LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Visões de hoje, de Isidoro Martins Júnior
Texto-fonte:
MARTINS JÚNIOR, Isidoro. Visões de hoje. 2ª edição.
Recife: Tipografia Apolo, 1886.
Izidoro Martins Junior
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VISÕES DE HOJE
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2.ª EDIÇÃO
Completamente refundida e accrescentada
de uma Synthese Artistica
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Laboremus et progrediamur
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PERNAMBUCO
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TIPOGRAFIA APOLO
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1886
A
TOMÁS GOMES DA SILVA
À
HONRADA MEMÓRIA
DE MEU AVÔ
VITORINO ANTÔNIO MARTINS
ÍNDICE
LINHAS EXPLICATIVAS (DA 1ª EDIÇÃO)
É um ensaio de poesia moderna, este livro.
Melhor: estes versos são um ensaio de poesia científica.
A razão de ser deles, ou a justificativa dessa tendência que lhes assinalo, é esta:
A Arte de hoje, creio, se quiser ser digna do seu tempo, digna do século que deu ao mundo a última das seis ciências fundamentais da classificação positiva, deve ir procurar as suas fontes de inspiração na Ciência; isto é: na generalização filosófica estabelecida por Augusto Comte sobre aqueles seis troncos principais de todo o conhecimento humano.
É para mim um princípio assentado, que ao estado definitivo de positividade a que chegou a mentalidade do homem civilizado, corresponde presentemente, no domínio do sentimento, esta escola de poesia — a científica.
Mas note-se: na aplicação desse princípio eu não vou até o ponto de aceitar a Ciência metrificada, posta em versos, como o alvo a que se dirige a moderníssima feição poética introduzida na França por M.me Ackermann.
Não; penso a esse respeito com Luiz Magalhães (o autor dos Primeiros Versos, publicados o ano passado em Portugal), o qual reconhecendo que as dissertações científicas na poesia produziriam o didaticismo, repele-as, para só se inspirar na corrente geral do pensamento novo...
Eu não quero, por consequência, a Poesia arvorada em compêndio, o Verso feito mestre de pedagogia.
Entendo que modernamente ela, a Poesia, deve ser científica; mas científica debaixo deste ponto de vista, deste modo:
— Sentindo o influxo da concepção filosófica do universo que domina em seu tempo; enunciando as verdades gerais que decorrem para a vida social dessa concepção; mas vestindo sempre os seus ideais com as roupagens iriadas das faculdades imaginativas, e nunca deixando de obedecer à emoção poética que dá nascimento à obra de arte.
Ou antes: quero a poesia contemporânea alimentando-se dos sentimentos filosóficos da nossa época, mas cantando-os sem tratadizar (seja-me licito empregar esse termo), no poema ou na ode, uma ciência particular ou uma ordem de conhecimentos especiais.
É também isso, pouco mais ou menos, o que parece querer indicar G. Wiroubof quando afirma, tratando na Revue de Philosophie Positive do Brahma (um poema ultimamente aparecido em Paris), que — a poesia científica de Ackerman não se nutre de ideias desta ou daquela seita filosófica, mas sim de sentimentos modernos.
Assim apadrinhado, pois, eu posso dizer que este livro que aí vai é um ensaio de poesia científica, sem ser um punhado de apostilas rimadas, didáticas, secas...
E como era isso, só isso, o que eu queria explicar nestas poucas linhas de prefácio, deponho aqui a pena e entrego à Critica as Visões de hoje.
A crítica que as julgue, que as inspecione, que as anime ou que as mate.
Isso me importa pouco, de resto.
Junho de 1881. — Recife.
O que eu pensava em 1881 com relação à Poesia Científica, não se modificou para menos. Ao contrário: robusteceu-se e alargou-se.
No terreno da Poética, as minhas ideias de hoje são o desenvolvimento das minhas opiniões de outrora, isto é: das minhas convicções formadas de 1880 em diante.
E tanto assim é que, entendendo dever dar mais consistência e relevo às minhas teorias literárias, na parte concernente à luminosa província da Arte escrita e metrificada, preparei e fiz publicar em fins de 1883, um pequeno livro de crítica e de propaganda, ao qual dei o título seguinte: A poesia científica.
Nesse lacunoso, mas convencido e sincero trabalho, eu não só justifiquei a minha crença na necessidade e na exequibilidade da formula poética que advogo, como propus, também, a dupla denominação qualificativa de — científico-filosófica, — para a referida Poesia. Com o segundo termo dessa denominação indicava eu o caráter anti-didático da minha intuição ou do meu modo de querer os versos científicos.
E publicado o opúsculo a que aludo; percorrido, depois disso, um grande lapso de tempo; não vejo nem pressinto em minhas doutrinas transformação alguma. A poesia científico-filosófica vazada nos rijos moldes artísticos de Berthezène, Sully-Prudhomme e Lefèvre, continua a ser, quanto a mim, a única feição possível para a emocionalidade moderna.
Não importa que os protestos surjam a cada instante, ou que a cada instante os críticos de medíocre visão intelectiva busquem encontrar na Ciência e na Poesia incompatibilidades insondáveis.
A Ciência não é só o estudo dos fenômenos ou dos factos por meio de instrumentos materiais como a régua, o compasso, o telescópio, o barômetro, a retorta ou o bisturi; é também, e principalmente, o estudo das leis que regem os referidos factos e fenômenos, por meio dos grandes instrumentos morais da indução e da dedução, da observação e da experiência, da análise e da síntese, da comparação e da filiação. Não há somente o concreto nas indagações científicas; há também o abstrato, que é o factor da filosofia, isto é: da verdadeira ciência de conjunto.
E desde que assim é, — ao lado das generalizações científicas há lugar para as idealizações rimadas dos bons artistas.
Demais, essa modalidade da Poética que eu procuro fazer conhecida e predominante, oferece aos que a estudam uma ontogênese brilhantíssima, na qual, abstraindo dos artistas contemporâneos, se pode notar os nomes e os trabalhos de Lucrécio, de André Chenier, de Goethe, de Fontane, de Le Brun e de Delille.
E, — é preciso convir — uma escola literária que tem tido criadores dessa ordem, corporaturas gigantescas como as que acabo de citar a constituírem-lhe os principais troços do edifício; uma escola assim principiada a arquitetar — não pode deixar de vir a ter um futuro iluminado e fecundo.
* * *
Às Visões de hoje, onde o estilo e o metro são uniformes e a ação nada tem de dramática, hei de fazer suceder, em breve, um outro poema intitulado Evolução, dramatizado e muito mais extenso, em cujo personagem principal eu procuro salientar uma comprovação, ou antes, uma manifestação da lei dos três estados. Nessa obra ensaio todas as manières poéticas: os versos clássicos, os românticos, os naturalistas e os filosóficos.
Será uma outra tentativa de poesia científica, em um quadro mais amplo e mais pacientemente trabalhado do que o deste livro.
Isidoro Martins Júnior.
Mais gouffres ! Laissez-moi, quel que soit le chemin,
M’évader d'un coup d'aile étrange et surhumain
Et m’enfuir, et chercher la justice étoilée !
Victor Hugo — La pitié suprême.
Ela me apareceu correta e flamejante:
Vestia simplesmente a túnica vibrante
Das austeras Judiths, das rubras heroínas,
Que nas mãos ideais, nervosas, pequeninas,
Empunhavam outrora as lanças e as espadas.
Tinha: — No largo olhar cintilações iriadas;
Sobre a régia cabeça uma abundante coma
Anegrada: da cor das saturnais de Roma.
Um rebelde barrete, ereto, escarlate,
Dava-lhe à testa grega uns longes de rebate.
Surgiu em minha frente à hora do crepúsculo:
Quando a Terra põe luto e o Sol é como um músculo
Cortado, a ensanguentar o mármore do espaço.
Trazia em seu perfil, de uma pureza de aço,
Os traços marciais, profundos, puritanos,
Que há nos bustos senis dos deuses espartanos
E nas telas pagãs, onde se encontra atletas
Brandindo herculeamente envenenadas setas.
Era uma alta mulher serena e gloriosa
Como essas criações da idade esplendorosa,
Artística, imortal, chamada Renascença,
As quais tinham vigor e uma bondade imensa
Nas linhas sensuais, nítidas, varonis.
Havia em toda ela a frescura do lis
E a forte majestade atlética do mar.
Na púrpura do lábio andava-lhe a pairar,
Como um astro no azul, o beijo cor dos sóis
Que serve p'ra estrelar a testa dos heróis.
E quando me avistou curvado e pensativo,
De pé, no negro chão, como um dervixe esquivo,
Ou como um menestrel sombrio e lacrimoso...
Ela veio p’ra mim n’um passo harmonioso
Cheio de intrepidez, como o passo da História.
Lembro-me muito bem.
A tarde merencória
Morria nesse instante. Ia p’ra sua vala,
Levando sobre o corpo um vestido de opala
Que lhe fizera o Sol com uns últimos clarões.
As nuvens, no horizonte, eram como visões
Ossiânicas, febris. O ermo não tinha fim...
E então, essa mulher pôs-se a falar-me assim,
Com uma ternura rara e maternal e funda:
“Ó filho cismador da América fecunda!
Ó moço entristecido! Eu sou a nova Musa,
Que anda como uma luz elétrica, difusa,
Dourando em toda parte os cérebros modernos
E abrindo os corações aos cânticos eternos
Vibrados no alaúde enorme do Direito.
Encara-me sem medo. Enterra no meu peito
A tua funda vista insaciada, ardente,
Como faz-se ao metal na forja incandescente!
Acerca-te, mancebo. Eu sou a trovadora
Estrênua do Futuro, e fui a lutadora
Que fez Rouget de Lisle e fez a Marselhesa
Quando abriu-se na França a cova da Realeza!
“Tu és poeta, eu sei. Bem vejo no teu rosto
Os vestígios sem fim desse risonho imposto
Que a férrea natureza, em ímpetos insanos,
Cobra aos crânios que têm apenas vinte anos.
Mas... tu não cantas mais as tenras sensitivas
Húmidas como um beijo, e as seduções lascivas
D'uma amante gentil, pálida como a lua,
Cujo seio redondo a gente vê que estua.
Tu és poeta, sim. Mas teus honrados versos
Não andam por aí chorosos e dispersos
Nos torpes camarins, nos cestos de costura,
Ou no regaço vil de alguma dama impura.
“Pois bem. Eu quero dar à tua inspiração
Um vigor semelhante à força de Sansão
Quando abalou sozinho os pórticos do Templo.
Da tua lira sã quero tirar o exemplo
Luminoso, viril, da cor do rosicler,
Que chame teus irmãos à faina do Dever,
E seja ao mesmo tempo um forte magnete
E o grito de um protesto e a marca de um ferrete!
“Mas para isso tens, poeta, de me ouvir;
Tens de me obedecer e tens de me seguir
Como nuvem que vai aonde o vento a chama,
Ou criança que corre à doce voz da ama.
“Escuta-me, portanto. Eu não sou simplesmente,
Com o meu corpo de bronze e o talhe meu valente,
A Musa senhoril, épica, estrugidora,
Dos hinos de combate alegres como a aurora
Que as novas gerações dos povos subjugados
Atiram para o ar, como grilhões quebrados.
Eu represento o Ideal e sou também a glória.
Tenho as fascinações nervosas da vitória
E veem-se em meu seio os tons angelicais
Das cousas juvenis, sonoras, imortais,
Que desde o Ramayana e desde Homero e Dante
Mostram em todo o mundo a face triunfante!
“A minh’alma, poeta, é como esse estandarte
Azul, bordado a ouro, aberto em toda parte,
"Que ora dá-nos o albor das louras alvoradas
Ora a pálida luz das noites consteladas.
“E como essa bandeira esplêndida do Céu,
Também eu na minh’alma imensa, sem um véu,
Reúno muito astro e muita nebulosa.
“ — É que eu sou afinal a síntese assombrosa
Das mais nobres paixões viris da Humanidade:
A síntese do Amor, do Justo e da Verdade!”
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E a Musa se calou. Seus olhos de vidente
Tinham no fogo estranho o aspecto imponente
Dos profetas da Bíblia anunciando aos povos
Que Deus ia mandar flagelos brutos, novos.
Eu ficara de pé.
No espaço a escuridão
Abrira a vasta asa espessa de carvão.
A noite havia já tombado impenetrável,
Brumosa como a Fé, negra como o Insondável.
E eu disse, inda surpreso e quase que tremendo,
À figura imortal que estava em face vendo:
— Sei muito quem tu és, mulher formosa e boa!
Conheço-te de há muito, impávida leoa
Cheia de virgindade e de energia cheia!
Tu és a Poesia, a mágica sereia
Do mar do Coração, do mar do Sentimento,
A qual tem por missão, sem perda de um momento,
Nadar, nadar, nadar, como Leandro fê-lo
Até trazer na boca a pérola do Belo!
Reconheço-te agora. És mesmo a Musa de hoje,
A casta vivandeira estoica que não foge
Das batalhas cruéis travadas todo dia
Contra as hostes ruins da velha tirania,
Contra o dogma, a treva e os negros despotismos
Feitos p’ra transformar as almas em abismos!
Eras tu que eu sentia, às vezes, perpassar
Com a fronte louros só e o corpo só luar,
Nos meus sonhos de luz, extensos como prados,
Repletos de visões e de insetos dourados.
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Sim. Não me engano, não. O mesmo ar celeste,
A mesma vasta fronte, a mesma longa veste!
Eu conheço-te até mais do que pensas, Musa!
Desde menino eu vejo a tua sombra escusa
Passar e repassar no lago do ideal,
Em cuja mansidão iriada, de cristal,
Eu gosto de ir olhar as concentradas cismas
Da água toda paz, toda doçura e prismas.
Em pequeno eu já via a tua branca imagem
Na onda, no vergel, na estrela, na paisagem,
Nos amores pueris, nos risos, nos folgares,
E agora encontro-a sempre em todos os lugares
Onde há que levantar um corpo da miséria,
Fazer jorrar a luz, fazer bater a artéria
Da honra, do valor, do trabalho e da vida,
Esses factores bons de toda grande lida!
Sim. Conheço-te mais do que tu pensas. Olha:
Sei onde foi teu berço e sei que orvalho molha
As per’las do teu seio, ó radiosa flor!...
— É o orvalho do Bem, o orvalho abrasador
Que fecunda, caindo, os peitos dos gigantes
Os peitos de Titã, claros como os diamantes.
Não me admira, pois, ó Musa! que viesses
Até mim, me apontar as copiosas messes
Que se têm de fazer no campo do futuro,
Agora que está grande e louro e está maduro
O trigo de que faz-se o pão da Liberdade!
Há muito já que eu sei da férvida amizade
Que tu sagras, ó Deusa, aos moços do presente,
Que não se deixam ir na túrbida corrente
Do Interesse, do Mal, e vão cantando alto
As canções do Direito, e pisam sob o salto
As misérias do Crime e os crimes dos governos!
Há muito já que eu sei dos sentimentos ternos
Que nutres dentro em ti por esses visionários
Cujos cérebros são os rútilos sacrários
Dessa hóstia que tem por nome — Inspiração.
Ó formosa mulher! Teu belo coração
E tu’alma viril são como um vasto manto
Incombustível, cru, formado de amianto,
Onde ajuntas o fogo, as chamas das ideias,
As estrofes febris das novas epopeias,
E tudo que há de são na vida, na saúde
De tua doce amiga — a rósea Juventude!
Tu nasceste no espaço, ó minha Musa meiga!
Teu berço teve a cor puríssima da veiga
Quando tremem na relva as lágrimas da chuva,
E um raio do bom sol, como uma fina luva
De ouro, cobre o cetim da flor aljofarada.
Vieste ao mundo no ar, na amplidão azulada;
Foram os teus avós o éter e a vastidão;
Nasceste, enfim, da luz de uma constelação
Batendo no aço nu do peito de um herói!
Teu berço é, pois, sem fim. Não cai, não se destrói
Como os lares dos mais, que ruem na poeira
Sob o sopro do Tempo ou guerra carniceira.
Nem tu podias ter a sorte que nós temos,
Nós — os homens, os vis que rimos e sofremos.
Tu, serena visão, ó branca filha d’Arte,
Não podes te prender, não podes limitar-te
No pequeno pedaço estreito de uma terra!
Um gênio como o teu se estende; não se encerra.
Por isso, tu que tens por pátria todo o mundo
E pela Humanidade o forte amor profundo
Que tanto incendiava o cérebro de Comte,
Por isso — viste a luz em cima do horizonte
N’um leito oriental de rendas purpurinas,
Tendo por ama a Aurora, as nuvens por cortinas.
É que pedia um céu, para voar, tua asa
Ligeira como a flecha e leve como a gaza!
É que, p’ra mergulhar, teu negro olhar bendito
Precisava da alvura imensa do infinito,
Onde há palpitações frescas de madrugadas
E há gotas de sereno e há cousas encantadas!
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Já vês, Musa, que eu sei a tua história toda.
Essa augusta missão, essa tarefa douda
Que impuseste a ti mesma, esse trabalho enorme
De andar sempre a espiar a cabeça que dorme
O sono da indiferença, a fim de a despertar,
A fim de a sacudir ao prodigioso mar
Do Século e da Luta, — o mar cujas marés
São feitas de talento e feitas de lauréis;
Essa missão sublime, ó Musa, é muito santa
Para que eu não lhe dê tanta energia quanta
Exista no meu ser!
Eis-me pronto, portanto,
A ouvir a tua voz, que me parece o canto
De uma ave matinal, contente de seu ninho,
Que solta na mangueira, à margem do caminho,
Um treno cristalino em notas poderosas,
Enquanto passam, rindo, as turbas descuidosas.
— Disse isto e emudeci. Logo em seguida então,
Ela pôs-me na face o úmido clarão
Dos seus olhos iguais a dois brilhantes pretos,
Misteriosos como a vis dos amuletos,
E tornou-me a falar. Falou desta maneira,
O lábio a coruscar, a testa sobranceira:
“Poeta! Alguma vez, de pé sobre o Presente,
Observaste o oceano indômito da História?
Trouxeste alguma vez à barra da Memória
Esse redemoinhar elétrico de gente
“Que vem desde o viver lacustre das cavernas
Onde os primeiros pais arrastavam-se nus,
Até as eclosões das épocas modernas
Em que a ciência é mais serena que Jesus?...
“Já mergulhaste o olhar nesse Amazonas de almas
Que tem por vagalhões povos e pensamentos,
Crânios de pensador, guerras e monumentos,
E que entre os temporais tem largas ondas calmas?
“Talvez. Mas não notaste a LEI que faz perene
O bronco estrepitar das vagas mugidoras,
Nem viste o agente bom que rege as águas louras
No seu giro veloz, no seu correr infrene.
“Pois existe essa LEI. Bem como o velho mar,
Que obedece à atração das fases do luar,
Também o mar da História está sujeito às leis
Imutáveis, fatais, que a Natureza fez
Desde a elaboração do cosmos, do universo,
Quando o poema da vida apenas tinha um verso!
“A torrente sem fim da vida social
Obedece também ao cunho universal
Dos atos da Matéria, ó meu ardente poeta!
Por isso a Historia vai, veloz como uma seta,
Atrás do seu futuro, atrás do seu destino,
Cavando muita vez seu leito em desatino;
Mas não pode furtar-se à LEI DA EVOLUÇÃO
A qual tem o vigor selvagem d’um leão
Sustendo numa garra a presa palpitante!
Essa Lei soberana é o facto dominante
Daquele extenso mar, daquele vasto oceano
Onde cresce o coral do pensamento humano,
E é ela quem dirige a cega Humanidade
Pela estrada do Bem cheia de claridade,
N’um rubro turbilhão dinâmico, espumoso!
“Eu sirvo esse princípio: — a Evolução. Repouso
Em seu potente ser e bebo vida nela.
Foi ela quem colou na minha fronte a estrela
De Musa do Porvir, e é só porque ela o quis
Que eu ando a fabricar estrofes — bisturis
Para anatomizar o cadáver do Mal!...
“Mancebo! Evoluir é a regra mais geral
De toda a natureza. Inelutavelmente
Tudo dobra, esse verbo.
E pois que é ele o agente
Que impele p’ra diante a Mole do Progresso,
Acompanha-lhe a ação! Abre o cendal espesso
Desse meio em que estás! Segue-lhe a trajetória!
“Por isso eu referi-me à lei que rege a História.
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“Eu vim ao teu encontro, ó corajoso moço,
Para falar a ti da tua Pátria. Eu ouço
Vibrar por cima dela, impertinente e longa
Como a voz de metal da estrídula araponga,
A rubra chicotada estúpida, aviltante,
De um fero despotismo hipócrita, infamante,
Que esmaga em seus anéis a terra de teus pais
Como aperta uma cobra os tenros animais
Nas suas roscas vis, quando a sacode a fome.
Eu sinto no meu ser uma afeição sem nome
Pela terra da luz, pela pujante América,
Esse querido chão de uma opulência homérica
Aonde antigamente os Incas, hoje extintos,
Iam, com velho ardor, sobre os altares tintos,
Seguidos dos seus reis, orar ao grande Sol...
Estou sempre a recordar o rútilo farol
Que o México acendeu antes de Montezuma
Ao pé dos seus vulcões, onde ondulava a pluma
Da civilização quebrada por Cortez,
E vem-me Bolívar à mente toda vez
Que eu vejo os Andes nus, firmes nos seus granitos,
Perfurarem o azul, como os aerolitos!
“Assim, quando n’um dia um túmido gemido,
Partido deste chão, roçou-me pelo ouvido
Dizendo-me que havia um povo moribundo
Aqui, sob este céu rico.do Novo Mundo,
Eu experimentei a fina dor estranha
De quem sente um punhal atravessar-lhe a entranha.
Gemia o teu Brasil, a tua pátria, filho!
Gemia e geme ainda. E o venerável brilho
Das suas tradições, hoje pulverizadas,
Vejo agora de rasto, enquanto as marteladas
Dadas em seu caixão por mãos de Iscariotas
Vendem ao Desespero a alma dos patriotas!
“Quem é que não s’indigna ao ver o quadro hediondo
De um povo jovem, bom, agonizando ao estrondo
Do reduto, que cai, das suas liberdades,
Podres como um esgoto, inúteis como frades?...
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“Eu me indigno, sim. Um povo é sempre um veio
De água clara, que leva em seu brunido seio
As gotas de suor de que se faz a Vida,
E a vida é uma cadeia humana, distendida
Entre o que foi e o que é, entre o Passado obscuro
E o Presente, que traz os germens do Futuro.
Eu creio nisso. E assim soluço, quando vejo
Nação como o Brasil sepultar o seu pejo
No torvo cemitério infame dos servis,
Curvando-se, assim como um ré ante o juiz,
Só... para apresentar o pulso ao soberano,
— Um clown mascarado a papos de tucano!
“Indigno-me, poeta. A raça de valentes
Que já no teu país produziu Tiradentes,
Produziu Badaró e Neto e Canabarro,
E à face do Poder cuspiu, como um escarro,
O ano Vinte e Quatro e o dia Seis de Março,
Em eras em que a Forca e o seu cruel cadarço
Davam sobre este solo escravizado, exangue,
Banquetes infernais, rubros do vinho — sangue;
Essa raça de outrora, ó moço, não devia
Ter filhos bestiais como esses que hoje em dia
Assentam-se ao sopé do Trono, p’ra comer
O sobejo que cai do imperial talher
Ou o osso que escorrega!
..........................................................................
Ó misero Brasil!
Ninguém sente como eu esse espetáculo vil
Que dás sem reagir nest’hora ao mundo inteiro,
A esse mundo que expele o padre derradeiro!
“Tu, mancebo, ainda não pregaste o teu olhar
Na geena sepulcral, mefítica, sem ar.
Dessa sociedade em que tu vives, como
Um fruto puro, fresco, um reluzente pomo,
N’uma arvore letal de seivas assassinas.
Bem como os teus irmãos, não olhas para as minas
Subterrâneas, que vão aluindo a tua pátria,
E talvez dentro em ti penses que se maltrate-a
Dizendo-lhe que está como um profundo esgoto
Cheio das podridões de um abcesso roto.
Quão louco que tu és se pensas desse modo!
Jamais hás de obter arrancá-la do lodo,
E vê-la-ás tombar, moribunda afinal,
Sem teres um remédio a dar-lhe p’ra o seu mal!
“Ó meu bom sonhador, ó meu jovem poeta!
Atira só um olhar, vivo como um cometa
E rápido como ele, à tua terra amada.
‘‘Hás de ver fumegar a cratera inflamada
Do despotismo ruim, da miséria e do vício!
“Eu vou t’a retratar. Escuta:
Um edifício
Inda por concluir e quase desabando;
Ruínas juvenis, por onde voa um bando
De corujas fatais, sarcásticas, que agitam
Sobre os muros sem cal as penas, quando gritam
Eis o aspecto que tem, por fora, o teu país,
O teu ninho, o teu berço, essa nação infeliz
— Condor, morto ao fuzil da casa de Bragança.
Pobre d’ela! Nem vê sorrir-lhe uma esperança
Na orla do levante — o sólio das manhãs
Vermelhas como a brasa e os gomos das romãs!
Sobre seu grande corpo, a ignorância treda;
Em roda do seu busto, a enorme labareda
De uma corrupção de Roma decadente;
Dentro dela, na entranha, o Povo nu, descrente,
Cuspindo maldições e mastigando pragas
Como os dentes da rocha os turbilhões das vagas;
E em cima, parecendo um corvo famulento,
A sombra má de um rei sujando o firmamento!
Quadro triste o da terra em que tu viste a luz,
Ó moço, ó meu poeta! Antes houvesse cruz
Onde fosse pregada a tua pátria viva,
Do que houvesse o veneno estúpido que a criva
De pústulas mortais, de cousas asquerosas,
Como essas qu’estou vendo erguerem-se assombrosas!
Ouve: Do teu país fugiu a Honra adusta,
Aquela amiga ideal, aquela amante augusta
De Bruto e de Catão. O arcanjo do Dever
Deixou-se sucumbir, deixou-se falecer
No meio do hospital de almas apodrecidas
Que ele via ocupar todas as avenidas
Abrindo p'ra o Trabalho. O estímulo a luta, o bem,
Lançaram-se por fim no túrbido vaivém
Do egoísmo que ali revolve as suas águas,
E foram sepultar-se, entre um milhão de mágoas,
Nos peitos de ouro e sol de alguns de teus irmãos
Que em meio do abismar souberam ficar sãos!
É pois um soçobrar tremendo, estrepitoso,
De tudo que era bom, de tudo que era gozo
P'ra os crentes da Justiça e os crentes do Porvir.
Não restará de pé, depois deste ruir,
Nada, neste torrão que os ósculos do Trópico
Aquecem como a um forno a lenha. Fim ciclópico!
Vê: Abraçam-se à Pátria e estão a ouvir-lhe o arranco
Último e £colossal, a escravidão do branco
E a escravidão do negro, — a besta dos engenhos,
A alimária boçal dos castigos ferrenhos
Que começam no tronco e terminam no carro
— Suplícios canibais mais feros que Pizarro!
Olha: O Caráter foi-se, a Heroicidade voou
P’ra o túmulo onde jaz Caneca, o nobre avô
Que junto a Miguelinho e Pedro Ivo dorme
Agora, na mudez da ossada fria, informe.
Não há mais pundonor na tua gente. O ouro
Déspota como um rei, possante como um touro,
Está feito o talismã com que se vence tudo,
Com que se compra a seda, as rendas, o veludo,
E compram-se também crenças, convicções,
Sentimento, ideais: o luxo e os corações!...
Aí não se resiste ao tinir do dinheiro;
Tenha-se de passar por cima do braseiro
Da infâmia, vai-se sempre atrás do som, do ruído
Do mágico metal, do prêmio prometido!
Desertou do seu templo este bom deus — Civismo.
A mocidade tem a artéria do altruísmo
Seca. Há na família uma dissolução
Que cresce como o gás no bojo de um balão
E lavra com furor. Procura-se atirar
A mulher para a rua, esvaziar o Lar...
— O Lar, o bom recanto plácido da alma
Aonde o homem acha, após a luta, a palma
Do trabalho e do amor, n’uns lábios de criança,
N’uns olhos de mulher de negra e longa trança!
Treme por consequência a família na base.
A plebe, a multidão fanatizada, quase
Que nunca ouviu dizer que fora da ignorância
Há grandes regiões feitas de albor. A infância
É triste, sem calor, tímida, preguiçosa;
Não se educa, não ri; semelha-se a uma rosa
Metida numa estufa. O cidadão não tem
Seguro o seu direito. O rei corrompe quem
Se atreve a meditar, a pensar... Aos deveres
Antepõem-se os vis e os frívolos prazeres,
Enquanto tudo mais afunda submerso!...
............................................................................
Enfim, poeta, o mundo, enfim, todo o universo
Recua ante esse abismo aberto em tua terra
Pelo Altar e a Coroa — a dualidade que erra
Sem cessar, sem parar, assustadoramente,
Ao redor das nações que olham para o nascente!
“Mas é preciso pôr um cravo nessa roda!
É preciso entulhar, encher de toda moda,
O infame sorvedouro! A América o suplica
N'um espasmo de angústia, espasmo de quem fica
Solitário na vida após a lenta morte
De um ser que muito amou! Faz-se mister a forte
Energia de Anteu neste momento augusto,
A fim de se arrancar da voragem o busto
Da Pátria envilecida, e erguê-lo ao Pantheon
Do século, onde estruge agora o largo som
Dos clarins do Direito!
“Essa missão é tua;
Tua e de teus irmãos, mancebo! Arvora nua
A tu’alma no mastro azul da Poesia;
Deixa que ela flutue aos ventos da harmonia;
Veste a cota do Bem, o aço do Valor,
O bronze da Vontade, e põe com todo o ardor
O teu braço ao serviço atlético da causa
Do trôpego Brasil, que sem descanso ou pausa
Sofre os males que viste. É uma obrigação
Que hoje tem todo o moço. Uma reconstrução
Geral tem de operar-se aí, no teu país,
Se o não querem deixar morrer como os reptis:
Estendido no pó... Portanto, é trabalhar,
Enquanto inda se sente o enfermo respirar.
É marchar, caminhar, é tocar a rebate;
É fazê-lo beber, enquanto o pulso bate,
O remédio, o elixir da viva luz moderna!
“Isso compete a ti e aos da falange eterna
Dos poetas, dos bons, dos simples, dos romeiros.
Compete a esses leões mansos como cordeiros
Que onde passam parecem arcos de aliança
Feitos da refracção dos brilhos de uma lança
No vidro da alma humana!............................
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Tens pois, ó trovador, tarefa soberana
Para encher-te a existência e p’ra cingir-te a fronte
De louros, como foi cingido Laocoonte
Pelos nós colossais das hórridas serpentes
Que Virgílio pintou com tintas surpreendentes!
Viste-o perfeitamente: A Ignorância é o corvo,
Que mais retalha e morde o ventre magro, torvo,
Do teu triste Brasil. Antes de tudo pois
Procura exterminar, com a força de cem bois,
Com a força de uma bala abrindo uma couraça,
Esse abutre, essa treva, esse antro, essa desgraça!
— Ela é quem faz os reis, foi quem fundou a Igreja
E é quem engendra o crime e a honra mercadeja.
“Olha, segue este rumo: Entra nas oficinas
Da ciência, da Luz. Penetra nessas minas
Onde a estalactite alva do Pensamento
Criva os muros senis, feitos do sedimento
Das cabeças-faróis, dos cérebros dos sábios!
Procura o Belo aí. Traz sempre nos teus lábios
Aquele misto ideal de riso e de tristeza,
Aquelas cousas sãs, boas, que a Natureza
Ensinou a Confúcio e ao filho da Judeia.
Mas sê antes de tudo um soldado da Ideia!
Pode-se ter amor, beijar as criancinhas,
Pregar a paz, ser bom, terno como avezinhas,
E pode-se também vestir uma fardeta,
Ser herói, combater, cravar a baioneta
N’um peito ou n’uma entranha. A condição é ser
Produtivo o lutar, ser luta do Dever!...
Por consequência estuda, canta, ri, combate.
Em tuas odes põe o ríspido acicate
Da ironia, do fel, da sátira explosiva
Que chia sobre o Mal como na carne viva
Uma brasa. Observa as formidáveis leis
Que regulam a queda, a elevação dos reis
E a desenvolução contínua dos mais seres.
— Também ao macrocosmo impõem-se deveres...
“Enquanto à tua Pátria, o que é preciso agora
É pores-lhes diante uma esplendente aurora
Que a doure, que a desperte e seja como a pilha
De Volta; que a eletrize e indique-lhe uma trilha
Ampla, nova, radiosa, aberta no horizonte,
E atraente bem como o píncaro de um monte.
Essa aurora tu mesmo hás de acendê-la, obrando
Deste modo:
— Descreve o giro venerando
Da ciência por sobre o solo da nações
Gigantes, que têm posto um cinto de clarões
No corpo do presente. Apoteosa o gênio
— O Proteu sempre novo, o Kean do proscênio
Da vida! Apoteosa os brados oceânicos,
Esplêndidos, febris, dos cérebros vulcânicos
De todos os titãs que pensam, que trabalham;
Aponta ao teu país os povos que batalham:
— A França, a Rússia, a Itália, a América do Norte,
A Alemanha e Albion. Mostra-lhe mais a coorte
De homens-constelações, que à face deste globo
Fazem à Natureza o luminoso roubo
Da Verdade, p’ra dar à nossa Consciência
Um pouco menos de ódio e mais de transparência!
Enfim, ergue-lhe ao pé as sínteses imensas
Do moderno saber, as construções extensas
Que pode levantar já hoje a Humanidade
Sem precisar do rei, sem precisar do frade!...
“Tais sínteses, então, faze-as como os abismos:
— Cheias de sombra, sol, íris e magnetismos.”
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* * *
Foi só o que me disse a Musa. Quando ergui
O rosto p'ra falar-lhe, apenas distingui,
No espaço e em derredor, uma palpitação
Que tanto pode ser que fosse a viração
Falando aos vegetais pela campina rasa,
Como fosse o fugir de uma invisível asa...
Já era noite imensa... O côncavo infinito
Tinha a rija mudez de um sílex do Egito.
Mirei o firmamento enorme. Em seu tesouro
Vênus representava a maior placa de ouro...
*
Então, a revolver no crânio as sensações
Que a Musa despertara em mim, aos turbilhões
Do seu verbo febril, eu alonguei a vista
Pelo chão, pelo ar, dos montes pela crista,
E pus-me a imaginar na inspiração de Hugo.
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Queria-a para mim. Não sei se ela baixou.
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....Nihil dulcius est, bene quam munita tenere
Edita doctrina sapientum templa serena
Despicere unde queas alios, passim que videre
Errare, atque viam palanteis quoerere vitae
Certare ingenio, contendere nobilitate,
Nocteis atque dies niti proestante labore
Ad sumas emergere opes, rerumque potiri.
Lucretius: De rerum natura.
Abóbada sem par da Capela Sistina
Onde o Buonarotti — a alma peregrina —
Consorciou, na tinta, a plástica pagã
E o místico ideal da aspiração cristã,
— Mostra na olímpia curva, em clássicas posturas,
Torsos, bustos, perfis enérgicos, — figuras
Nas quais vida, expressão e força e luz e fé
Nadam como no ar os átomos. Quem vê
O assombroso painel, — pensa forçosamente
N’um ciclope a fitar, com a órbita insistente
De um só olho, a extensão da religiosa nave!
E a gente, sem querer, debaixo desse grave
Fragmento de céu povoado de titãs,
Imagina que está, entre Leviatãs,
Nas épocas senis da Fabula e do Mito,
De deuses assistindo a um rábido conflito,
Ou que avista de perto o Circo dos romanos
Com guerreiros de Homero, hirtos, prometeanos!...
Também quem observa a cúpula do século
Que termina; quem olha, armado de um espéculo,
O zimbório ideal suspenso sobre nós
Pelo tempo — arquiteto impávido e veloz;
— Vê no espaço agitar-se a turma lucilante,
A coorte sagrada, o batalhão troante
Das sibilas, heróis, deuses e gladiadores
Que o Espírito Novo, em meio aos seus labores,
Antropomorfizou, para representar,
Para simbolizar, para evemerizar,
O talento, a vontade, o estudo, a independência,
A POLÍTICA, a ARTE, a RELIGIÃO, a CIÊNCIA!
* * *
Século dezenove! O bronze do teu vulto
Há de ser venerado, há de se impor ao culto
Dos pósteros, bem como impõe-se à escuridão
Um relâmpago, um raio, um brilho, uma explosão!
Hás de ser endeusado, atleta! Hás de servir
De exemplo, de fanal aos povos do porvir,
Como a estrela polar serve de rumo às naus,
Como serve a miséria em seus esgares maus
De guia para o crime! Ó século do labor!
As tuas criações, teus túneis, teu vapor,
Tuas forjas, teu ar, tua eletricidade,
Tua filosofia e tua heroicidade,
Tudo isso há de formar, por cima do futuro,
Um pálio radiante, enorme, azul e puro,
Sob o qual, sem o ver, eu sinto desde agora
Que hão de ir em procissão, belos como uma aurora,
Todos os cidadãos deste país — a ciência;
Todo filho da luz ou toda consciência
Lavada pelo amor — o grande agente altruista!
Ó século imortal! Ó século em que a conquista,
A guerra, as religiões e as velhas monarquias
Têm tombado no chão, nojentas como harpias,
Tristes como deserto! Eu curvo-me ante ti,
E ponho o joelho em terra afim de orar daqui
Ao teu busto ideal, titânico, estrelado!...
*
No alto da nossa idade eu vejo desfraldado
Um pano colossal, vibrante aos quatro ventos
Das novas intuições, dos novos pensamentos.
É o eterno estandarte enorme do saber,
De cujas dobras sai o róseo amanhecer
Do dia da Justiça!
Ali, nos vastos cimos
Onde a luz ri-se ao ar como a criança aos mimos,
Acampam-se do estudo os rijos batalhões.
Os soldados viris que têm por munições
De guerra os bisturis, as lentes, os compêndios,
A análise e a razão, e queimam-se aos incêndios
Do desejo de ler, de abrir, de observar
Tudo o que há, desde a flor, o seixo, o nenufar,
Até a lei fatal da luta pela vida;
Os voluntários d’alma, os homens bons da lida
Do futuro, — ali ’stão, lá têm os seus quartéis,
Seus crânios geniais, seus livros, seus farnéis!...
Sim. No dorso do século eleva-se a montanha
Alterosa, ideal, fascinadora, estranha,
Das vitórias de luz que a ciência nos seus pleito
Tem até hoje ganho...
Habitam nela os peitos
Dos sábios, dos heróis, dos magos do presente,
E é aí que se guarda a pólvora estridente
Com que se faz voar a pétrea cordilheira
Do erro, pelo ar, como uma fina poeira!
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Atentemos, portanto, ali — naqueles cumes
Onde estão faiscando os cintilantes lumes
De uma acumulação de humanas nebulosas.
Fitemo-los com força. Eu vou, bem como as rosas,
Abrir, para os saudar, as pet’las odoríferas
De umas canções de crente, harmônicas, lucíferas!
Mas antes...
Olha tu, homem moderno, escuta:
— Eu vejo te pesar uma cegueira bruta
Sobre o corpo, sobre a alma. Um sujo calabouço
Odioso como um crime, ignóbil como um osso,
Desses que andam aí roídos no monturo
Pelos cães sensuais; um calabouço escuro,
Férreo, caliginoso, inquisitório, imundo,
Eis o que me parece o abominável mundo
Em que te vejo triste, aniquilado, exausto!
À meus olhos estás descrente como Fausto
Sem teres entretanto aprofundado o céu
Como ele o fez primeiro, e levantado o véu
De toda cousa estranha, oculta, misteriosa.
Não sabes como eu choro a vida tormentosa
A túrbida existência hedionda que tu levas!
Imagino, ao te ver, que moras n’umas trevas
Feitas da meia-noite escura da ignorância
E da lama do erro! Estás como na infância
Apesar de a velhice haver-te desde muito
Empolgado o viver!..........................................
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É que nunca lançaste ao menos um fortuito
Olhar ao novo Deus, à nova Providência,
A quem a nossa idade apelidou — Ciência!
É que não viste nunca as púrpuras risonhas
Do Ideal do teu tempo; é que ainda tu sonhas
Com o velho mundo, enquanto o mundo novo canta,
Em roda do teu lar, o hino que levanta
As almas à região das grandes utopias
Louras como o verão, nos seus sonoros dias!...
Tu, meu pobre burguês, deixaste-te ficar
Com a tua inteligência ao pé do limiar
Dantesco e monacal da turva Idade Média.
Não quiseste aplaudir a ríspida comédia
Do rir voltaireano enorme e dissolvente,
Não soubeste julgar a força onipotente
Da vasta Enciclopédia e mais de OITENTA E NOVE;
Continuaste a crer em Pedro, em Cristo, em Jove,
Nos reis, no imperador, nos padres e no inferno,
E enfim, não penetraste o pórtico moderno
Do século vigente — a catedral da Ideia!
Daí, — esse teu ar, a catadura feia
Que eu noto agora em ti! Entretanto, é preciso
Que tu fites, além, o luminoso viso
Dos montes da Verdade e do saber humano.
Hás mister de fugir do ergástulo tirano
Chamado indiferença, a que tens sido preso,
E hás mister de deixar, por uma vez, o vezo
Do passado e da fé religiosa, velha,
Que só te deixa ver a criação de esguelha!
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Para isso é bastante este pequeno esforço:
— Olhar para os clarões que o século traz no dorso.
São as fulgurações do estado positivo.
Esse estado, essa fase, é como um largo crivo
Feito pela Razão na Consciência humana,
Por onde agora jorra a onda soberana
Da verdade moderna.
O espírito do homem
Cansado de buscar nas brumas que se somem
A razão do seu ser e mais da natureza,
Cansado de trilhar a intérmina devesa
Das hipóteses vãs, dos sonhos, das quimeras
Volúveis como o mar, franzinas como as heras,
Parou junto a esse marco erguido em seu caminho,
Como para um viajor em frente de um moinho.
Marco fecundo! Então, desde esse mesmo instante,
Ele pôs-se à cavar com força triunfante
O solo do Real. Ficaram para trás
Os mistérios, o vago, as fantasias más
Que tanto haviam já desfigurado a ciência,
E hasteou-se a bandeira, enfim, da Experiência
Sobre a férrea muralha impávida do estudo!
Agora essa bandeira é que domina tudo.
Nos paços da Razão onde antes se sonhara
O sábio de hoje pensa, observa, lê, compara,
A matéria nos seus fenômenos gigantes,
Descobre-lhes as leis severas e constantes,
E afinal, a poder de gênio e de trabalho,
Extrai dessa jazida o rútilo cascalho
Onde oculto, embutido, encontra-se o formoso
Diamante ofuscador, único e desejado
Da Verdade imortal, do facto luminoso!...
Foi da França que ergueu-se a aurora desse estado:
AUGUSTO COMTE foi o astro esbraseado
Dessa imensa manhã, dessa alvorada imensa
De que o mundo fez logo a sua nova crença.
Tempos havia já que a Humanidade ouvira
(É certo), como se ouve as queixas de uma lira
Vibrando na amplidão por uma noite antiga,
A voz de Galileu, comovedora, amiga,
Unida às de Descarte e Bacon e de Harvey,
Dizendo-lhe se estar forjando a grande Lei
Da idade positiva hodierna...
Mas só COMTE
Pode, estoico, escalar o alevantado monte
No píncaro do qual via-se a neve branca
Da nova compreensão fecunda, reta e franca,
Do mundo!
Vendo atrás Simon, Burdin, Turgot,
E Kant e Condorcet e Leibnitz, — voou
Ele p’ra a cumeada elétrica da Glória,
Após ter arrancado ao pélago da História
A vasta concha azul da Ciência Social!...
Ah! como eu sorvo a luz que vem desse fanal,
Como eu amo o clarão que vem dessa conquista!
* * *
Homem do meu país! A Lei positivista
É pois quem representa a síntese moderna
Do espírito humano, à cata de cisterna
Onde possa beber a linfa cristalina
De um ideal seguro!
Abraça tal doutrina,
E hás de ver como desce uma serenidade
Imensa sobre ti e sobre a Humanidade,
E como te penetra um vívido desejo
De ser trabalhador e puro como um beijo
Amoroso de mãe .........................................
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Atende bem: Nest’hora,
Toma de assalto o mundo a legião sonora
Dos Átilas do Bem, dos grandes heresiarcas
Que têm dentro de si as formidáveis arcas
Do Progresso, da Luz, da Razão, da Justiça!
Olha a arena da Europa. É nessa enorme liça
Que se trava a batalha, o cálido combate.
Então, dos batalhões ao furioso embate,
Tombam ruidosamente os velhos edifícios
Como ante a Piedade abatem-se os flagícios.
Enquanto que o Passado em pávido tropel
Desmorona-se, cai, sumindo-se a granel
Na treva, e à semear detritos pelo espaço
Parece muro a ruir pedaço por pedaço;
Ao passo que no pó mergulham-se os sistemas
Antigos sobre os quais erguiam-se problemas
Loucos, de teologia e de transcendentismo;
Enquanto vê-se bem que o vão metafisismo
— Ashavero que andava atrás do absoluto —
Agoniza mordendo o perigoso fruto...
Avista-se de um lado a estranha aparição
Magnética, sem fim, de uma ampla construção
Que tem por alicerce a ciência positiva!...
Dentro desse Escorial andam na faina viva
Todos os sábios bons, desses cujas cabeças
Não podem consentir que as caligens espessas
Do mal cubram de todo a humana inteligência!
Eles têm a firmeza e a longa paciência
Daquele Jó ideal do Velho Testamento,
E têm o entusiasmo elétrico, opulento,
De um hino marcial tocado n’uma praça
Entre os vivas febris da forte populaça...
Eles descem sem medo aos poços subterrâneos.
Não cansam nunca. A luz dos seus potentes crânios
Alumia-os por entre as trevas mais profundas.
Vão ao bojo do mar; vão às cavernas fundas
Da terra, para ouvir da boca milenária
Dos fósseis essa história imensa, extraordinária,
Do antropoides evoluindo até mudar-se em homem!
São os servos da gleba esp’ritual. Não comem
Enquanto não dão fim à esplêndida missão
A que votaram vida, ideia e coração.
Ei-los cavando o espaço: Atiram-se através
Dos astros, como um cão dispara atrás dos pés
Da caça que lhe foge. Ali perscrutam tudo:
Desde o éter enorme, imponderável, mudo,
Até as revoluções dos céleres cometas
Que viajam no azul sem recearem metas
Que os forcem a estacar na rúbida viagem!.. .
Eles — os sábios — são: fortes como a coragem,
Belos como um triunfo e bons como a virtude.
Rasgam as amplidões e vão, de aspecto rude,
Examinar o oceano, as rochas, os vulcões,
Os átomos, a História, as civilizações,
O óvulo, o vibrião, a célula, as ideias;
E elaboram assim as amplas epopeias
Que afinal, ao fechar desse trabalho insano,
Servem para engrossar o cabedal humano!...
Eis o que eles estão fazendo neste instante:
— Tratam de eliminar a fome estertorante
Que rói o ventre nu dos tristes operários.
Pensam em arrasar os túrbidos Calvários
Da miséria, nos quais a cruz do Capital
Martiriza os Jesus do trabalho. Do Mal
Andam a derrancar as mórbidas raízes.
Em lugar de iludir os seres infelizes
Com miragens fatais de etéreas esperanças,
Dando-lhes deuses, céus e bem-aventuranças
Eternas como o tempo e brancas como a Lua,
Eles mostram ao povo a majestade crua
Imponente e viril das forças naturais
E buscam diminuir os ímpetos fatais
Dessas forças! Estão além, com a sua calma,
Polindo e renovando a ciência da alma;
Estudando o atuar dos meios sobre as raças;
Procurando encontrar as apagadas traças
Dos primeiros avós, dos homens miocenes;
Provando que a matéria é uma soberba fênix
Que quando a julgam morta é que ela ressuscita;
Mostrando que a Moral não é cosmopolita;
Buscando demonstrar pela transformação
De uma simples monera a gênese do mundo
Orgânico; ensinando o dogma fecundo
Do progresso; afirmando a lei da seleção
E o seu correlativo: — a luta na existência!
Tentam reconstruir, fieis à Experiência,
O vetusto castelo informe do Direito
Que precisa de ser, sob outra luz, refeito!
*
Vemos: aqui — Littré, Spencer, Buckle, Comte;
É a Filosofia alevantando a fronte.
Ali — Haeckel, Pasteur, Darwin, Lyel, Broca;
É a Ciência pura — a refulgente roca
Que serve à fiação metódica dos factos
Ou feios como a morte ou belos como os cactos.
Uma e outra potência, estes e aqueles, — todos
Trabalham, sem ouvir aclamações e apodos,
Para dar-nos em breve a síntese suprema.
Ora, desse labor, surge, luzindo, o poema
De uma Religião humana e demonstrada,
De uma Moral austera e positiva e honrada,
De uma Sociedade honesta e previdente
Guiada pelo Amor, debaixo do ascendente
Da Indústria, do Saber, das Artes e da Paz;
Ora surge o blastema; ora a doutrina audaz
Do monismo e da lei prevista por Lamarck;
Ora concepções verdosas como um parque
Aparecem ao sol; ora ruins teorias
— Parasitas grimpando em alvas arcarias —
Tentam também medrar... Mas vence-as a Verdade.
E continua a faina em toda a majestade.
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Eu, olhando absorto a prodigiosa arena,
Tenho uma sensação fina como uma pena,
Intensa como a luz! De cada lutador,
De cada criação, e do dominador
Conjunto que se abarca e que na frente avisto,
Parece-me saltar, nervosa como o Cristo,
Aquela abstração corporizada: — Palas
Ou Minerva, que outrora, entre ferventes alas,
Os helenos viris apoteosavam como
Misto de sangue e sol, de Força e de saber!
*
Dobremo-nos! A Europa estende-se em um cromo
Cujo desenho mostra a linha rosicler
Das telas imortais. Aparição mirífica!
Saúdo-te com fé, Síntese Científica!
O ma Muse, debout! Suivons de compagnie
La Science implacable, et, degré par degré,
Voyons si de partout la Justice est banie,
Ou quel en est le siège et l’oracle sacré !
Sully-Prudhomme: — La Justice.
Eis o paço da História. Assento-me no umbral,
E assisto ao desfilar do exército imortal
Dos povos, das nações, das raças, das idades.
Passa-me pela vista um montão de cidades;
Batem-me na retina impérios, satrapias,
Ditaduras brutais, reinos, teocracias,
E eu sigo com amor a marcha cadenciosa
Da grande multidão que passa rumorosa
A meus pés, acordando os séculos do seu sono!
Sim. Bem como acompanha um perdigueiro o dono,
Eu sigo, com um olhar agradecido, o mar
Gigante, que ante mim vejo a redemoinhar,
É que no peito eu tenho imensa gratidão
Por essa mole humana, esse áureo batalhão
Ensopado do sol esplêndido da glória,
Que nos lança através das fendas da memória
Clarões como estes: Roma, Alexandria, Atenas!
É que eu penso nas más, nas trabalhosas penas,
Que aquelas gerações tiveram de sofrer
A fim de nos legar o moderno viver;
E sinto-me subir um reconhecimento
Enorme ao coração, quando esse pensamento
Assalta-me a cabeça em febre, reclinada
Sobre a folha de um livro...
*
Ó gratidão sagrada!
Tu fazes-me esquecer os crimes de chacais
Cometidos outrora, em meio às saturnais,
Pelas feras chamadas Césares! Castigos,
Tormentos infernais de suplícios antigos,
Calígulas, Dracons, Neros e Messalinas,
Os seres podres, ruins, dos vícios as sentinas,
Tudo isso, quando tu me surges no oriente
D’alma, desaparece, esvae-se-me da mente,
E eu vejo só na História a boa Humanidade
Trabalhando, ampliando esta risonha herdade
Chamada Terra, a qual nós todos habitamos,
E que vai ao redor do Sol, como nós vamos
Ao redor de uma esp’rança!................................
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*
Fico, por largo espaço, olhando p’ra o cortejo
Das épocas, dos tempos idos. Miro-o. Vejo
Todas as gerações e todos os impérios
Quer alegres, quer bons, quer fortes, quer funéreos,
Refletirem-se ali — sobre o cristal da História.
Observo a rigidez simpática, marmórea,
Das almas dos heróis iguais a de Spartacus,
E observo também os entes nulos, fracos,
Que deram-se sem custo a inércias criminosas,
Quando as pátrias — as mães — clamavam lacrimosas
Pelos filhos!... Assisto as festas de Luculo
E assisto à perdição dos pobres, que de um pulo
Vão da miséria nua à infâmia. Vejo, triste,
Ora férreos canhões, ora lanças em riste
Rasgando vidas! Vejo, avisto podridões,
Avisto bacanais, glórias, revoluções,
E avisto tudo o que há de belo e de horroroso
No homem, esse animal que nunca tem repouso
Porque traz dentro em si, no crânio, um azorrague
De fogo, que não há líquido que o apague,
— A Ideia!... O meu olhar, profundamente fito,
Sente passar-lhe em frente o nervoso infinito
Do desenvolvimento humano e social,
Percorro-o todo: desde a vida patriarcal
Até o presente; desde os mistérios de Isis
No Egito, — até Berlim, Washington, Paris!
Escoam-se ante mim todas as sociedades,
Todas as opressões, todas as liberdades,
Todos os homens vis, todos os infelizes
Todos os Barrabás e todos os Juízes!
Vejo passar a Índia e vejo Babilônia.
Vejo Roma a cantar n’uma noite de insônia
Uma torpe canção corrupta como Nero.
Vejo os jogos da Grécia e vejo o Trocadero;
Sinto andarem no ar gumes fatais de espadas.
Como um rancho sem fim de pombas dispersadas,
Vejo voarem nus os velhos ideais
Por cima dos montões das ruinas medievais
E das outras ruínas primevas. Os vultos
Venerandos ou maus passam semi-sepultos
Na sombra. Encaro Cristo e encaro Maomé.
Assisto às explosões nevrálgicas da Fé.
Lutero, Kung-Tseu, Átila, Tamerlã,
Reconheço-os. Encontro albores de manhã
E noites de caverna. À par de Marco Aurélio
Vejo Comodo, o qual atinge ao periélio
Da infâmia! Vejo mais as construções modernas,
Que parecem, de longe, elétricas lanternas
Acesas, p’ra dar luz ao corredor da História!
Passando e repassando, avisto a merencória
Fila dos pariás!... Enfim: a antiguidade,
O ciclo primitivo, a escura média idade,
A época moderna e mesmo os tempos de hoje;
Tudo, tudo, assim como um rio que se arroje
Por uma ribanceira, eu vejo-me passar
Diante — sob a luz fria do meu olhar!...
Mas eu não me assentei ali só para ver
Bonaparte matar, Cleópatra vencer
Antônio com um sorrir de deusa provocante;
Lucrécia apunhalar o seu peito alvejante
Onde tinha caído a nódoa só de um beijo;
Marat ser atirado a um cano de despejo;
Sócrates ingerir a cicuta suicida
Ou Vanoza enlear nos braços de perdida
A fronte bestial de um Bórgia libertino!
Não. Não foi só p’ra ver Licurgo e Constantino,
Orgias de Tibério e de Sardanapalo,
Que eu fui me debruçar à borda desse valo
Fundo, por onde corre a enchente estrepitosa
Da vida humana, a qual, como uma viva rosa,
Tem perfumes e sangue! Eu fui buscar na História,
Por entre os turbilhões da marcha evolutória
Que todo povo faz n’um tríplice estadio,
— O veio radioso, o esplendoroso fio
Do Progresso, que faz brotar da escravidão
O servo, e d’um vassalo um forte cidadão!
Sim. Eu fui procurar esse possante veio,
Esse facto em que eu, como um antiste, creio!
E eis o que ele mostrou-me, o facto armado em LEI:
Mostrou-me o Povo sempre a guerrear o Rei,
O homem sempre a roer o metal de um grilhão,
Ou sempre a demolir uma religião!...
A princípio eram pais, chefes e patriarcas,
A beber o suor das existências parcas
E a calcar a família, a tribo, sob o mando
Das suas vozes más, de timbre pouco brando.
Depois, quando chegou a fase das conquistas,
Eram guerreiros ruins e bárbaros, que as cristas
Das montanhas senis viam, pelos seus flancos,
Devastando, transpondo, os vales e os barrancos,
E buscando amassar com o sangue derramado
Um Poder que tivesse o Arbítrio por estrado!
Mais tarde, sob a lei do direito divino,
Sob o rei feito deus e a morte feita ensino,
Eram ministros crus, eram imperadores,
Que faziam lembrar a garra dos açores
E que tinham da plebe a mesma compreensão
Que a gente tem do lobo e o gato tem do cão!
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E o homem, o povo nu, sempre a gemer, gritar,
Como um preso que está, trêmulo, só, sem ar,
Entaipado em masmorra aspérrima, sem crivo;
O povo soberano, o homem coletivo,
— O ser que tem bebido as mais amargas taças,
O organismo que tem sentido mais desgraças
Tombarem sobre si, fazendo-lhe feridas
Capazes de arrancar mais de um milhão de vidas;
— O homem, o povo nu... respondia aos tiranos
Com uma grande porção de heroísmos espartanos,
Com uma revolução, com um raio, com um protesto
Cada vez que o Poder lhe era ruim, funesto!
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Ó lei da evolução, LEI DO PROGRESSO! Ateaste
No meu crânio uma luz, alegre como a haste
Que n’um dia de festa erige uma bandeira!
Ensinaste-me como a infinita fileira
Do Povo foi subindo, erguendo-se na História,
Até se transformar nessa soberba glória
Que hoje esplende ante nós, impondo aos derradeiros
Reis — a submissão inútil dos cordeiros!
Mostrando-me primeiro os tempos tenebrosos
Em que a Igreja e o Trono, os dois cruéis esposos,
Riam cinicamente em cima das torturas
Que faziam sofrer às tristes criaturas
Bafejadas ao ar de crença diferente
Ou nutridas de um sangue heroico, inconfidente;
Apontando depois ao meu olhar afoito
O crepúsculo bom do Século Dezoito
Onde, como um corisco em mão do velho Jove,
Fuzilava, bramia o rubro OITENTA E NOVE;
E afinal me indicando o sol NOVENTA E TRÊS,
Mostrando-me como é que as antiquadas leis
Fundem-se ao crepitar da cólera do povo,
Quando ela irrompe atroz, viva como um renovo
De arbusto, n’um jardim...
— puseste-me diante
Uma cousa ideal, translúcida, gigante,
Que eu não vejo sem ter os olhos ofuscados
E sem o entusiasmo erguer-me n’alma brados!
Esse aliquid ingente (Ó lei! eu te agradeço!)
É da idade moderna o rútilo cabeço,
Onde está, como um astro a descrever a eclíptica
E a brilhar, — do Presente a síntese política!
* * *
Fitemos essa aurora: enchendo de ouro o espaço,
Como enche de calor os ares o mormaço
Ou como enche o luar a terra de brancura,
Vê-se erguer-se dali, daquela enorme altura,
O vulto marcial, nu, da Democracia
Crispando o lábio bom num riso de alegria!
ELA está de perfil e tem a testa erguida.
Cerca-lhe a pura fronte a luz indefinida
Que os cristãos pensam ver rio rosto de Jesus
Quando o avistam sozinho e magro, em sua cruz,
Derramando suspenso o sangue generoso!
Paira no seu semblante um inefável gozo;
Forma-lhe vasto sólio a plebe universal
— A imensa multidão que faz o bem e o mal
Conforme dão-lhe pão ou dão-lhe tiranias —
E em torno, em derredor, medrosas como espias,
Passam-lhe muito leve as duas asas louras
Da Justiça, mostrando as linhas sedutoras!...
Veio de uma batalha, essa mulher que aí ’stá.
Lutou mais do que luta o ferro de uma pá
Que leva o dia inteiro a mergulhar na terra.
Andou mais do que anda um árabe que erra
De país em país!... O seu lutar foi duro,
Mas foi nobre. Bateu-se em nome do futuro,
Em nome do Dever, da Luz, da Liberdade,
Contra a Treva boçal, contra a cruel Maldade
Fundidas nesta lama; — o rei, o imperador!
Teve séculos sem fim de lancinante dor;
Teve injúrias, baldões, calúnias e labéus
Desses que só se atira aos mais infames réus;
Mas venceu afinal!................................................
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Agora diz ao mundo:
— Eu tenho dentro em mim o abismo mais profundo
Que se pode idear, de amor à espécie humana!
Minh’alma adamantina, alma republicana,
Feita de radiações prismáticas de sol,
É mais do que uma alma; é quase que um farol!
Povos, ouvi-me e crede: Eu busco os vossos peitos,
Como um médico busca, atento, sobre os leitos,
O pulso latejante aos pálidos doentes!
Só eu vos posso dar os ânimos valentes
De que vós precisais p’ra terdes cidadãos,
P’ra terdes liberdade e olhardes como irmãos
Todo o resto da terra e todos os mais povos!
Só eu — posso apontar vossos deveres novos.
Só eu — vos posso dar os direitos roubados
A vós, por vossos reis e pelos seus soldados
Ora a ponta de sabre, ora a poder de astúcia!
Só eu posso trazer a paz à fria Rússia,
Trazer um sangue novo às veias do Brasil,
E fazer com que a Irlanda atire o jugo vil!
Portanto, confiai no meu robusto braço:
Meus nervos são cordões, são filamentos de aço!
*
Pode falar assim ELA, a Democracia.
No centro desta amarga, indômita anarquia
Afetiva, mental e ativa, que solapa
As nações do Ocidente; em face deste mapa
Caótico, incolor, dos dias atuais,
Que nos mostra somente eternas espirais
De ideias, sem que alguma, enfim, ascenda, ascenda
Para predominar, e construir a tenda
Onde devem dormir as novas gerações;
No meio desta sombra e das vacilações
Filhas do evoluir das gentes arianas,
Que abalaram as leis católico-romanas
Desde o século quatorze, e em fins do de Arouet
Levaram com vigor ao cadafalso a Ré
De nome Monarquia; em face do Presente
E à vista do passado ou das lições da História;
— É forçoso pedir, alta e valentemente,
Para os Estados de hoje, a fórmula impulsória
De um regímen sem Rei!....................................
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O governo de um só veio da força bruta
E da ideia de Deus. Foi o papado, a astuta
Igreja de São Paulo, a mão que radicou
Na Europa esse absurdo, esse erro que passou
Para a América até; para nós outros, — nós,
Filhos da região que desafia os sóis!
Mas a Força prostrou-se ante o Direito, — ess’arte
Que o homem concebeu para marcar a parte
Que cabe a cada ser na comunhão social;
Por sua vez finou-se, em seu palácio astral,
A Divindade una, antropomorfa e santa;
E agora o globo inteiro, em liberdade, canta
A humana hegemonia!....................................
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Parece que, afinal, está chegado o dia
De assentar, de afirmar, que todo privilégio,
Toda testa c’roada e todo luxo régio,
Todo poder brutal, único, irresponsável,
Todo homem-fetiche, — é só conciliável
Com um estado mental que não é mais o nosso!
Viu-se que temperar o mando, quero e posso
Dos bonzos vis; tentar a monarquia-mista;
Propor Constituições; maravilhar a vista
Dos povos, com o princípio: o Rei reina somente;
Foi mentir: — pôr em cena a farsa repelente
De uma pobre nação cretinizada, cega,
Ou d’um rei-marionette, inútil, que estortega!
Hoje, quer um país tenha por almenara
Ou a semecracia americana, — a clara
Luz da Federação, — ou tenha o monumento
Sociolátrico e bom que Comte ergueu, ao vento
Do Porvir; quer persiga o ideal da Suíça;
Quer busque a França, quer atire-se na liça
Em que braceja audaz a América do Norte;
— Fatalmente há de ler esta inscrição, na forte
Curva do firmamento aonde a nova Crítica
Pôs a constelação do senso positivo:
REPÚBLICA — eis aqui a síntese política;
Uma Democracia é como um facho vivo!
La Raison nous révèle un culte perfectible
Qui, seul, peut resister au Temps irresistible.
La liste de nos saints est longue dans l’histoire.
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En Grèce vous verrez Démocrite et Zenon;
Leibnitz en Alemagne et Locke en Angleterre;
En France Diderot, Rousseau, d’Holbach, Voltaire.
Saluez, en passant, les morts de Marathon;
Voilà Guilaume Tell, Washington et Danton,
Louis Blanc et John Bright, Hugo, Garibaldi,
Et, pour continuer, Bacon, et Gassendi,
Spencer, Darwin. Littré !..............................
Alfred Berthezène: — Le Progress.
Vamos à Pré-história, às solidões eternas
Das eras iniciais...
* * *
O homem das cavernas,
Assombrado perante os factos imponentes
Que a forte Natureza, em pródigas enchentes,
Despejava na terra hidrópica de seiva,
Prenhe da floração que havia em cada leiva;
O homem habitador das furnas quaternárias,
O pai dos nossos pais, que, como as alimárias
Do deserto, vivia em pleno ar, vagando
Sob o celeste azul iluminado e brando;
O homem de Saint-Acheul, — extático, abismado,
Por ver a multidão de cousas, que a seu lado
Irrompia brutal n’uma nudez de Impéria;
Sentindo o latejar pujante da Matéria ’
Bater junto de si nas flores, no arvoredo,
Nos mugidos do mar, na altura do penedo,
No espaço cor de anil e nos bosques hirsutos;
Vendo pela ramada o lourejar dos frutos
Que pendiam por entre os resinosos galhos
Como pendem do céu raios de sol e orvalhos;
Pasmando ante o painel risonho e majestoso
Que o enchia de amor, de luz, de vida e gozo,
E não podendo achar, ver, descobrir, o autor
De tanta força viva, e tanto viço e cor,
De tanta robustez e tanta exuberância;
Nosso primeiro avô — jungido pela infância
Da sua inteligência, a qual só tinha aberto
Um pétalo, bem como a flor quando está perto
A aurora, ou vem caindo a tarde fina e calma!
— Pensou, imaginou que as cousas tinham alma
Que a pedra, o tronco, a lua, o sol e o grão de areia
Possuíam vontade e eram a grande teia
Onde ele estava preso, — ele, o ser mole e fraco —
E lançou-se a adorar o satélite opaco
Da Terra, a ajoelhar-se em frente do granito,
Cuidando que o rochedo ouvia bem seu grito,
Suas preces, seus ais, os fundos rogos seus!
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E fez de cada objeto um ente novo, um Deus!
Foi assim que nasceu a Fé, a Religião.
Mas esse fetichismo escuro, esse embrião
De crença não bastava ao homem! Ao subir
A escada vertical, nobre, do progredir,
Ele criou mais tarde estranhas divindades,
Que não eram, bem como as outras, propriedades
Das cousas brutas, vis, dispersas sobre a terra;
Mas que, como um cristal fantástico que encerra
Uma essência qualquer, fina, misteriosa,
Eram corpos contendo a força portentosa
Que havia arquitetado o mundo — esse prodígio!...
Eram gênios possuindo o tétrico prestígio
Do Poder imortal, da Causa vingadora!...
Esses deuses sem conta ora sorriam, ora
Mostravam-se cruéis, duros, terríveis, maus!
Entretanto, obediente e firme, como os paus
Musgosos da floresta, o homem se curvava
Ante os ídolos, ante a imagem que moldava
Ele mesmo!...
A amplidão enchia-se de azas;
Anjos rubros do Mal passavam como brasas;
O Olimpo, o firmamento, o céu, — era repleto
De entes fenomenais d’um rosto etéreo e reto;
O Amor, a Força, a Guerra, a Beleza, a Bondade,
Todas as abstrações filhas da Humanidade,
Eram deuses; pejavam, lúcidas, o ar...
Como ondas ideais de algum sidéreo mar!...
Essa nova criação era o Politeísmo.
Mais tarde, quando em Roma a luz do paganismo
Extinguiu-se, apagou-se; ele caiu de todo,
Sepulto entre explosões de crimes e de lodo...
Mas, ainda uma vez, o homem mergulhou
No tanque da quimera! Imergiu e tirou
De lá este ideal:
— Um ser divino e uno,
Mais forte que um titã, mais belo do que Juno,
Regendo o mundo, como um ditador um povo!
Abrira-se-lhe à vista um horizonte novo,
Roçara-lhe na alma uma lufada fresca
Que o prendia a um só Deus de luz, como Francesca
Fora presa à Rimíni!...
Então o nosso avô
Pôs-se a desmoronar altares; despovoou
O Olimpo dos heróis, dos mitos politêicos,
E começou a erguer os símbolos monoteicos
Sobre os destroços nus das outras crenças mortas!
Do Céu — fez um reduto aéreo de mil portas
Abertas sobre a Aurora, o Infinito, o Vago...
A inteligência humana — imaginou-a um bago
Tombado, para nós, da eterna sabedoria;
O Todo-Poderoso era o imenso dia
Por que ele suspirava após a noite-vida!
Quer esse deus tivesse a face contraída
Pela cólera, quer tivesse-a meiga e mansa
Como o semblante bom, gentil, de uma criança,
O homem se acobardava ante o seu fundo olhar,
E tremia, assim como ao vento o nenufar!
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Sob essa crença enorme, o mundo teve eras
Felizes e fatais: almas de jaspe, e feras!...
Teve dias de ouro e dias de negrores!
Viu, entre o estrepitar dos cantos e das dores,
Bonanças de ventura e tempestades de erro!...
Sentiu no largo seio o faiscar do ferro
Que Alá mandou brandir e os padres empunharam
Depois, muito depois, quando eles inventaram
Aquela cousa vil chamada Inquisição,
Torpe como um jogral, bruta como um dragão!...
Sob esse grande sol, o puro Cristianismo
— Fecundo e belo ideal feito de estoicismo —
O papado ferrenho, Henrique VIII e Huss
Passaram pela terra ora a brilhar, em luz,
Ora a trazer ao povo a sensação do espanto,
Do medo, do terror, dos ódios...
Entretanto
Esse estado infantil da humana consciência,
Esse monoteísmo...ia tombar. A ciência
No começo do século, ao ver que ele acabara
O seu curso, dissera à Teologia: — Para!
— Tu não podes, mais tempo, acompanhar o mundo
No andar em que ele vai, vertiginoso, fundo!
— O Homem, que já de há muito é cético, descrente,
Agora tem a mim para aclarar-lhe a frente!...
E desde esse momento, a ruim superstição
Morrendo, a Terra teve, em roda, esta visão:
* * *
Estendem-se no pó do solo os velhos cultos.
Mitos fenomenais espalham-se, insepultos,
N’uma grande extensão de esquálido terreno.
O ar é fino e puro; o espaço azul, sereno.
Júpiter, Jeová, Osíris, Buda, Brahma,
Jazem no escuro chão sob esta lousa — a lama!
Como cousas senis, fossilizadas, negras,
Amontoam-se além as bolorentas regras
Da Bíblia, do Alcorão, do Avesta e Rig-Veda.
Trôpegos, sem valor, curvos, de queda em queda,
Fogem, na treva espessa, Adon, Moloch, Siva,
Ormuzd, Vichnou, Ahriman, Baalath,
Salambô e Jesus, — toda essa tropa esquiva
De onipotentes reis do Céu e Terra. Alá,
Lusbel ou Satanás, Mafoma, Odin, os deuses
Vários; os sensuais altares vis de Elêusis,
Vênus, Plutão, Netuno, o Eterno Padre, os Anjos,
Maria — a Imaculada, os santos e os arcanjos.
Tudo — ali está, na sombra, espavorido ou morto!
Desde a cena do Cristo a meditar no Horto,
Até Juno — a cruel — vingando-se de Páris;
Desde a forte Minerva, erguendo-se nos ares,
Armada, a se evolar do cérebro de Jove,
Até a Roma de hoje, — essa em que Pio Nove
Inventou para si o nome de Infalível;
Desde Vênus saindo, estranha, irresistível,
Das espumas do mar, límpida como elas
E nua como a onda a umedecer as velas;
Desde a mãe de Cupido à mística Tereza...
— Todas as ficções e fábulas da empresa
Imensa que tentou o teologismo inane,
Acumulam-se ali, à semelhar o mane
De um morto colossal. E, a vista assim surpresa,
Sente o mundo irem longe — inúteis, mastigados
Pelo tempo voraz, — os dogmas sagrados,
Os sonhos divinais, os ágapes etéreos,
E todos os rituais e todos os mistérios!
Em vez deles, porém, nos surge uma figura
Feita de majestade e feita de brancura.
É a expressão atual da religiosidade,
Da sã, da nova Fé: — a Deusa HUMANIDADE!
Absolve o que foi e aclama o que há de vir,
Esse formoso ser. lmpele-nos a ir
Buscar o nosso culto, a nossa religião,
À História, ao mundo vivo, à honesta multidão
Dos avós que, a morrer, souberam trabalhar
(Quando outrora o planeta era um cruel lagar
De sangue) para os homens pósteros!... É calma
E justa e compassiva, essa giganta. Espalma
A sua grega mão n’um canto de horizonte,
E ao tirá-la nos mostra um sol, alguma fonte
Purpúrea, a derramar clarões sobre o passado!
A crença que ela prega é boa como um prado
Onde o sol, de manhã, contente se espreguiça
Entre espasmos de seiva, e o fino vento eriça
Os cabelos da relva, os clorofilados
Caules dos vegetais!...
Todos os fortes brados
Que ela faz ecoar pela amplidão garrula
Têm por objetivo a Inteligência. Ulula
A seus pés a maré undosa dos despeitos,
O pântano revolto e mau dos preconceitos,
E ela vai propagando as suas utopias,
Demonstrando; ensinando; e abrindo as gelosias
Que dão para essa rua homérea e triunfal
Da vida de amanhã!
O túrbido cendal
Que o Presente lhe põe diante — não impede
Que ela veja bem perto, em gloriosa sede,
O seu magico sonho.
Ela o deseja assim:
*
América e Europa irmãs. E no cetim
Do céu Ocidental nem uma nódoa. Apenas
A nuvem lauriazul aonde afoga as penas
Esta fulmínea ave, — o Sol, de rubras asas.
A alma das nações que evoluíram — rindo
Na luz, como um sabiá, ou como as alvas casas
Penduradas, no mato, às abas de uma serra.
Um só Deus — a CIÊNCIA; uma só FÉ cobrindo
Esta Igreja sem par humana e larga: — a Terra.
Total abstenção dos bárbaros cilícios,
Dos martírios brutais, dos negros sacrifícios
Feitos p’ra castigar a carne impenitente;
Um culto natural brotando, qual semente,
Espontâneo e vivaz, nos povos solidários;
EXPOSIÇÕES aqui, além os CENTENÁRIOS;
Nenhuma imposição fanática e selvagem;
Por padres — os varões afeitos à coragem
De gastar uma vida em cima de um in-folio,
A fazer o inventario, à descrever o espólio
Dos factos e das leis, das relações das cousas;
Um respeito sem fim por berços e por lousas;
Veneração e amor pela Família. A ideia
De Pátria a florescer, subordinada só
Ao conceito imortal de Humanidade. A feia
Crença n’um dualismo extinta, enfim, no pó.
Expelidos do céu os santos do Papado;
E outros santos viris, de rosto iluminado,
Enchendo o céu da História, estrelejante e humano,
Desde COMTE e Jesus, até Confúcio — o indiano.
Anjos — a velha Mãe piedosa e doce; a pura
Esposa lirial, a honesta criatura
Protetora do lar; a carinhosa irmã
Boa, inocente e alegre. Um belo e nobre afã
De sociabilidade. Os corações abrindo
Infinito caminho aos cérebros, e ouvindo
Em roda a Atividade erguer a brônzea voz
Para cantar a Indústria, — essa que rouba aos sóis
0 calor com que faz voar locomotivas!
Toda a gente ariana unida, como as vivas
Garras de uma orquídea, em tronco secular.
— Fé no Progresso, Amor, clarificando o ar!...
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E o mundo olha pasmado a tal figura estranha.
*
Ó mulher ideal! 0 mundo se arrebanha
A teus robustos pés!...
Síntese religiosa,
Tu luzes, como luz, de noite, a Nebulosa!
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Ces malédictions, ces blasphèmes, ces plaintes,
Ces extases, ces cris, ces pleurs, ces Te-Deum,
Sont un écho redit par mille labyrinthes;
C’est pour les coeurs mortels un divin opium!
C’est un cri répété par mille sentinelles,
Un ordre renvoyé par mille porte-voix;
C'est un phare allumé sur mille citadelles,
Un appel de chasseurs perdus dans les grands bois!
Car c'est vraiment, Seigneur, le meilleur témoignage
Que nous puissions donner de notre dignité
Que cet ardent sanglot qui roule d’âge en âge
Et vient mourir au bord de votre éternité !
Charles Baudelaire: — Les Fleurs du Mal.
Na Bactriana antiga, — essa vetusta Pérsia
Onde Deus era o Sol e onde era crime a inércia
Havia (a História o diz) um povo de valentes
Que o tórax da Terra enchia de sementes
E que enchia de preito o velho Zoroastro.
Como os ventos do mar fazem vergar um mastro,
As vertigens da Luz, invariavelmente,
Sacudiam o ser da iraniana gente.
Diz a História, também, que ali tal era a crença
Nos prodígios de Agni, na sua força imensa,
Que o persa, até na morte, alava-se p’ra o Sol
— Quando um filho do Iran sumia-se do rol
Dos que lutam, seu corpo enregelado e hirto
Não ia para o chão, a transmudar-se em mirto,
Em rosas, em poeira, em vermes e em boninas!
O cadáver, então, era elevado às finas
Transparências do ar, n’uma coluna ereta,
E lá, em pleno azul, sob a fulmínea seta
Do astro criador, — as aves famulentas
Vinham arrebatar as carnes friorentas
Do morto! Este ascendia às regiões solares
Disperso na amplidão, rasgando os fulvos ares,
E, com os pássaros bons de garras curvilíneas,
Ia-se incorporar às rubras, às sanguíneas
Fotosferas do Sol, cheias de apoteose,
Onde a vida de tudo abrolha, ferve, explose!...
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Nós os homens de hoje, iguais ao persa antigo,
Também vamos buscar, a um outro sol, abrigo
Contra os males brutais e contra o desalento.
Quando a pua do tedio — o mísero instrumento! —
Sorrateira e cruel perfura-nos a alma,
E a pesada mudez, horrivelmente calma
Da descrença, nos mata a última energia,
Machucando no caule as rosas da Utopia;
Quando o cadáver nu da nossa Inteligência
Tressua lividez; — nós vamos à eminência
De onde ainda se avista a lua do Ideal
Que dulcifica o céu e dulcifica o val,
E expomos este morto — a nossa Atividade —
Ao reflexo bom, à ingênua claridade
Do astro santo que tem o puro nome de ARTE!
E vemos, ao chegar, que vem de toda parte,
Voando e revoando, estranha passarada
Alegre como o campo em hora de alvorada.
São as aves do azul. Chamam-se: esta, AMOR,
Aquela, INSPIRAÇÃO, aquela outra, ARDOR,
Esta, IMAGINAÇÃO, e, além, ess’outra, CRENÇA.
Sobre nós se debruça a multidão extensa,
A turma altivolante. E, então, lá para o astro,
Principia a partir em luminoso rastro,
O nosso corpo todo, a nossa alma inteira,
Presos, esta e aquele, à asa alvissareira
Dos pássaros pugis! A doce lua da Arte
Atira ao nosso encontro o opálico estandarte
Da sua radiação serena, mansa e vasta,
E só nesse momento é que a energia gasta
Renasce dentro em nós!... E, como o persa, vão
Assim, os nossos ais à estrela da Ilusão!
* * *
.......................................................................
Disse o instinto da Arte à raça de Canstadt,
No dia em que ele viu o inóspito habitat
Da primitiva Europa inspirar ao selvagem
O machado de pedra:
“Encetaste a romagem
Que te há de conduzir à Acrópole do Belo,
Ao país radioso onde flameja o velo
Dos sonhos, à soberba e régia Catedral
Toda esguia e sonora, em que n’uma espiral
Hão de evolar-se o louro incenso da Poesia,
O perfume incolor, subtil, da Fantasia,
O giro musical da Luz, e a luminosa
Escala multicor dos Sons! Esta rugosa
Acha fenomenal de sílex lascado
É a célula viva, o plasma destinado
A enseivar, a nutrir todas as Criações,
Todos os Ideais, todas as Invenções,
Que teus filhos terão nas épocas vindouras!
Este graníteo bloco inerte com que estouras
A ossada gigante e rígida das feras,
Há de ser visto, lá para as futuras eras,
Como a pedra angular do olímpico palácio
Que o gênio humano um dia há de erigir na História!
“Olha aquele castelo estranho e violáceo
Construído no ar, com a luz fantasmagória
Do Sol que nasce, e tendo as nuvens por muralhas!
É como um ninho imenso, erguido sobre as galhas
Desta árvore — a Aurora! Extraordinário assim,
Deslumbrante, ideal, feérico, sem fim,
Eu creio que há de ser o rico monumento
Da Arte, no porvir, quando, com o pensamento
E também com a ação, — das leis da Arquitetura
O homem tiver ido à Musica, à Pintura,
À Escultura, à Poesia, e puder traduzir
N’uma pedra, n’um som, n’um verso, n’uma tela,
Suas aspirações, seu íntimo sentir,
Seu gemido de dor, seu êxtase ante a bela
Natureza imortal, coberta de esplendores!
“Será um edifício hiper-humano. As flores
Escarlates da glória e dos instintos bons
Abrirão, dentro dele, em vívidos listrões.
O teto será como as noites estreladas;
Tríglifos, capitéis, colunas rendilhadas
Alvas como cecéns, nervosas como abraços,
Encherão de grandeza e majestade os vastos
Salões fenomenais, varridos de estilhaços
De Sol! Serpearão, nos corredores, rastos
Fugitivos de sombra aonde estátuas brancas
Hão de esconder a sua esplêndida nudez.
As portas vergarão, abertas, claras, francas,
Ao peso de troféus mais belos que os dos reis.
O pórfiro vermelho, o mármore leitoso,
O cândido alabastro, o rígido granito,
Abundarão no corpo ingente e radioso
Desse amplo Pantheon, como em um monólito
Assírio hão de abundar os rudes cuneiformes!
Todas as imortais e todas as enormes
Almas que tenham tido a intuição do Belo,
No moimento soberbo hão de habitar!
“E ao vê-lo,
Ó homem de Canstadt, ó raça inicial!
Teus pósteros terão deslumbramento igual
Ao que tu sentes hoje em frente à natureza
Fecunda, colossal, circunvolvente, acesa
Nos estos da matéria em movimento e em pompa!”
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E qual uma estridente e alarmadora trompa
Que rasgasse a amplidão em notas vitoriosas,
Da Arte a brônzea voz sonorizou o espaço.
O labor começou. Tímidas, vagarosas,
Puseram-se a nascer as criações. No baço
E ruvinhoso olhar do proto-homem viu-se
Ondear um clarão divinatório. Abriu-se
A rude psyché do nosso antepassado,
E um bando de emoções ruidoso, alvoroçado,
Saiu dela, assim como abelhas da colmeia!
Construções do granito e construções da Ideia
Surgiram pouco à pouco.
E da choça de palha,
Da cabana de colmo e da casa lacustre,
Das danças sensuais no bosque que farfalha,
Dos cantos imbecis onde não boia o lustre
Da poesia vivaz que transfigura as cousas;
Passou-se a remover enormíssimas lousas
Para fazer Babéis, e passou-se a riscar
Com o diamante Ilusão este vidro sem par
Da existência!
Elevou-se, altiva, Babilônia;
O templo de Diana encheu de sombra a Iônia,
E o Mahabarata — um astro! — encheu de luz a Ásia.
Fabricou-se na terra encantada de Aspásia
O Júpiter Olímpio, e criou-se também
Aqui o Nibelung e o Ramayana além.
Afrontaram o céu pirâmides agudas;
Dólmens fenomenais, torres de pedra mudas
Sitiaram a terra. Erigiu-se o farol
De Alexandria, — um sol espiando o outro sol! —
As muralhas da China, o colosso rodiano,
O grego Parthenon e o Forum de Trajano,
Kremlim, a catedral formosa de Florença,
Alhambra, o Coliseu, a Basílica imensa
De São Pedro e a Torre inclinada de Pisa,
O Palácio de Ciro aonde o ouro, à guisa
De cal, os muros cobre; o Louvre, o Escorial,
Versailles e por fim Notre-Dame, a imortal;
— Surgem — visões de pedra! — em cima das cidades.
Vêm paralelamente, assombrando as idades,
Os bons, os geniais e os rútilos poemas:
A Epopeia, fundindo as cóleras supremas
E as supremas ações, engendra um dia a Ilíada
E outro dia a Odisseia — esta robusta Dríada
Que habita e que domina a sagrada floresta
Da Poesia!
E depois... sucedem-se os assombros:
A Itália divinal agita a loura testa
E, como Atlas, toma em cima dos seus ombros
Estes dois céus: Eneida e De rerum natura!
Tasso e Jerusalém aparecem na alvura
Infinita da Glória. A Divina Comedia
— Carro a fulvos corcéis, guiado pela rédea
Da translúcida Fé aos reinos dos mistérios —
Deslumbra a multidão e atravessa os etéreos
Páramos ideais da Rima e da Harmonia!...
Afinal, como um sol purpúreo que alumia
Uma nesga do azul, com brilhos em miríadas,
Alteia-se estuante o corpo dos Lusíadas!
* * *
Fechado o heroico ciclo, o épico estádio,
Levanta-se veloz, fluente como um rio,
O correto perfil da musa do Classismo.
O caótico, eterno, ensanguentado abismo
Das humanas paixões, abre, escancara a boca,
E faz ouvir a voz sombriamente rouca
Na côncava amplidão, palpitante de sóis.
Canta-se Atenas, Roma: a antiguidade. Heróis
Talhados pelo molde antropomorfo, agitam
As túnicas no ar. Os seios não palpitam
Senão pela rijeza olímpica da Forma
A revestir ações fenomenais. A norma
É jungir à Emoção a majestade grega,
— Majestade pagã, cuja grandeza cega!
De Milton a Boileau, de Delille a Molière
A Poesia espaneja a coma rosicler
Sob polvilhações de glória. Shakespeare
Como o Otelo febril, sombrio como o Lear,
Faz d’um imenso gênio um imenso escafandro,
E radioso, indomado, a ouvir como Leandro
Em derredor de se bramir a glauca esteira,
Mergulha, desce, vai, como flecha certeira
Tatear esta rocha — o coração humano,
Rocha estratificada em meio do oceano
Denominado Vida! A Tragédia sacode
Sua púrpura ao céu, n’um ritmo de ode
Guerreira, e vêm a andar cadenciosamente
Racine e mais Voltaire, Corneille e toda a ardente
Turba que os viu de perto!.................................
Chega depois nervosa, ideal e desvairada
A coorte febril do Romantismo.
Estrada
Grande e cheia de sol rasga, luzindo, o espaço,
E convida a marchar, a dirigir o passo
Do lado da cidade ogival, ignota,
Onde a flor da ternura ingenuamente brota
Entre lavas de fé e brilhos de armaduras.
Frontes nuas, pés nus, clâmides brancas, puras,
A beijar-lhes o corpo, internam-se os poetas
Pelo novo caminho eriçado das setas
Fulvas, que a vastidão — este carcás — dispara!
Passa Goethe primeiro. Um túrgido escarcéu
De lágrimas soergue a alma extensa e clara
Da Europa secular. O Werther, como um céu,
Suspende em seu engaste as cristalizações
Do Sentimento. O amor, o eterno amor borbulha
Como em vermelho forno uma onda de hulha,
E sobre os corações desce uma nuvem de ouro
Estrelada de pranto!...
Edênicas visões,
Delírios sensuais tendo o vigor de um touro,
Fantasias sem fim, nevrálgicas, etéreas,
Doudas quais legiões de meninos em férias,
Espalham-se no azul em trêmulas espiras.
Gessner, Florian, ternos, vibrando as litas,
Aparecem ao sol com guirlandas de rosas,
Colmados de lauréis e de ameias amorosas!
Seguidamente vem a intrépida falange
Em que surgem viris, fortes como um alfanje,
Vigny, o cismador; Chateaubriand, o crente;
Lamartine, o condor de asa pura e plangente,
Byron, o luminoso espirito sensual,
Espronceda, em que geme um sombrio ideal;
Ulhand, o evocador das fadas medievas;
Heine, — um eterno riso estilhaçando trevas;
Musset — soluço enorme em ritmo divino;
O ingênuo Béranger; Baudelaire, o ferino,
Que em vez de coração, no peito tem um charco;
Victor Hugo, o imortal, crânio que vale um marco
Na estrada azul do Belo; o assombro feito poeta;
Banville, o fantasista, e Gauthier, o atleta
Da rima sensual, rica, emperlada, viva;
O correto Barbier, e Leconte de Lisle,
Esse frio cantor que deixa que desfile
À seus pés, de vagar, todo o ideal antigo! —..........
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— É um cortejo de sóis, digo, a cismar, comigo.
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ARTE! Mulher lirial, criatura encantada,
Emanação do sol, filha de uma alvorada
Com algum semi-deus da velha Grécia heroica,
— Eu saúdo-te! Tu, que honradamente estoica
Tens sabido guardar na epiderme de opala
A frescura da flor que um lago manso embala
E a rijeza cruel de uma lâmina aguda;
Tu, que eu comparo a uma elétrica Amazona
Cheia de força agreste e de beleza muda
A rasgar, em corcel fantástico, esta zona
Onde a vegetação dos ideais rebenta
Apoplética, em luz, gloriosa, febrenta;
Tu, que és a poderosa e a plástica expressão
Desta vida interior que vive o coração
Humano, e que reflete em nossa inteligência
Como nuvem no mar ou um bem na consciência;
Tu, que tens por tarefa interpretar o mundo
Colorindo-o de azul, com a tinta do profundo
Íris das ilusões e da Utopia loura;
— Tu hás de, para mim, ser sempre a imorredoura
Fonte desta alegria e bravura serena
Que dormem no meu seio e fazem-me da pena
Um florete lavrado, em cuja folha canta
A corda de uma harpa heroicamente santa!
Como tu hás lutado, estranha criatura!
E como tens sofrido! Essa pupila escura
Decerto viu morrer Chatterton, Malfilatre,
— Almas presas à dor, corpos presos ao catre —
Viu Homero esmolar sem sandálias nos pés,
Viu ir à guilhotina o poeta do Hermès,
Viu a prisão de Tasso, o exílio de Camões,
Viu Gérard de Nerval buscando as solidões
Dos becos de Paris para enforcar-se, viu
Os martírios de Hugo!... E que pranto caiu
Do seu radioso olhar amplo, amoroso e quente
Sempre que ele encontrou esses males em frente!
Mas, Arte, o teu valor não se verga, jamais!
Como um remo que cinde uma onda, tu vais
Rija, tersa, feliz, correndo o globo inteiro:
Plantando aqui, colhendo além, sorvendo o cheiro
Límpido e matinal dos jardins enflorados;
Visitando não só as almas como os prados;
Sentindo ao mesmo tempo as paixões explosirem,
Os vícios bestiais cinicamente abrirem
As corolas cruéis nos caules afrontosos,
E os vergéis tropicais, os pomares seivosos,
Rirem, na luz do sol, verdes como absinto!
Neste momento eu vejo um deslumbrante cinto
De idólatras, a pôr no teu busto sagrado
Uma nuvem de incenso oloroso e nevado.
São, de um lado, os viris e honestos portadores
Das fecundas lições, dos sonhos e labores,
De Balzac, o escultor deste mármor — Goriot,
E do outro lado são os crânios em que andou
A alma de Lucrécio inspirando a valente
Intuição sem par da Poesia que sente
O sopro da ciência entumecer lhe o peito.
Diviso, então, no ardor do religioso preito:
Flaubert, Zola, Daudet, os Goncourt, — a pujante
Plêiade fraternal, austera e trovejante
Dos modernos, dos bons espíritos geniais
Que já não vão correndo, erradios, atrás
Da sereia fatal dita Imaginação
Ou Fantasia, e têm no sensório a visão
Nítida do Real e da Verdade. Além
Vejo Coppée, Lefèvre, Stupui, Bartrina,
Berthesène, Sully. E em meio do vaivém
Das novas odes vejo o busto da heroína
Ackerman, redourando o Prometeu!............
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Ó Arte!
Vamos! É despregar as asas do estandarte
E seguir! Deves ser, em tua enorme faina,
Como vela de nau, que, enquanto não amaina
O vento, arqueia o bojo e desafia a vaga.
Não importa sentir a maldição e a praga
Da Rotina boçal, que às tuas plantas ladre!
Tens muito que explorar. Tudo quanto se enquadre
Na larga psyché da Humanidade, — deve
Ser p’ra ti um farol radiante que te leve
Ao país do Ideal!
Desde a pérola — pranto
Até o riso — flor, até o perfume e o canto;
Desde o infante grácil até o herói ferido;
Desde um eterno amor até o amor vendido;
Desde a marcha dos sóis até a das idades;
Desde o progresso humano até as claridades
Nervosas do luar; desde as paixões serenas
Até o Ódio e a Dor — negros como geenas;
Desde um seio de amante e um regaço de esposa
Até o vegetal que junto de uma lousa
Cresce, na seiva má do barro funerário;
Desde um fio de azul e desde um nectário
Até a casta luz do astro da Verdade;
Desde a Glória imortal, a Bravura e a Bondade
Até a planetária irradiação da Ciência...
— Tudo deve atrair a doce transparência
Do teu fulgente olhar meditabundo e puro!
ARTE! Em teu ventre cresce este feto — o Futuro!
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Quando as quatro Visões se esvaeceram, sombra
Infinita e ruim, dessa que oprime e assombra,
Amortalhava o céu, o espaço, a terra, o mar.
Noite opaca e sem fim! Entretanto, no ar,
Ao silêncio brutal que amordaçava tudo,
Eu julguei perceber um eco heroico e rudo,
Como de voz transpondo uma garganta de aço!
E o eco iluminou-se, e a voz se fez pedaço
De sol! Incendiou-se a treva de repente,
E eu vi que junto a mim, na fulgurosa enchente,
Cada raio de luz era uma boca de ouro
A cantar, a cantar, em vitorioso coro,
A solidariedade humana, — a convergência
De toda Atividade e toda Inteligência!
E a Política, a Ciência, a Religião, a Arte,
Iam, entre os clarões, rubras como o deus Marte,
Entoando um Te-Deum à eterna Humanidade.
Te-Deum feito de Fé, de Amor e de Verdade!