Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Pombos de Maomé, de Humberto de Campos


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

O caetetu

João Piauí

Astúcia de judeu

Homens de negócio

“Abdherraman”

A champanhe

Piedade filial

O jornalista

Mas, se fosse?

O criado velho

O calmante

O visconde

A gorjeta

O engenheiro-chefe

Intimidades...

A professora

O “lamartine”

Carnavalesca

Avicultura

O dominó azul

O piloto

A atleta

Rompimento

O canário coxo

A “garçonnière”

O único remédio

A conquista

A rã e o sabiá

Auroras boreais

A descoberta do Anastácio

Ele volta...

O médico

A pergunta indiscreta

A taxa do pecado

O primeiro esquecimento

Distração de repórter

Quem não fala... é como quem não vê!

Mundiquinha

Os dois pontos (:)

O tísico

“Belfegor”

O pavor da Teresita

Amor próprio

A lei de Moisés

Peso leve

A ameaça de Jef

A nomeação

Saúde de ferro

As luvas

O impossível

A promissória

Confusão

A vingança do Barnabé

Mágoa justa

As batatas

Gente “chic”

O leão

Amores difíceis

Samuel Abn-Haleb

A vingança

A herança

A Nereida e o Tritão

O propagandista

Amores diminutos

O elixir

O “ chauffeur ” violinista

A pena de talião

O especialista

O susto

A comédia

A dorminhoca

A enguia

Fruto do engano

O estremecimento

A morte do guarda-livros

São Paulo-Rio

O relógio

A reputação

O conferencista

O maluco

O ladrão roubado

A confissão

O galo e o porco

Dedo mindinho

A datilógrafa

A heroína

No mosteiro de São Malaquias

A defunta

Os cogumelos de marte

O exame

Magnetismo

O menino que nasceu sem mãe

O sorteado

Charitas

O pecado

O secretário

Elegância moderna

O descrédito da imprensa

A sonda

Objetos desaparecidos

Lições de economia

O depoimento

Praticismo americano

A balança automática

Estratégia chinesa

O Padre indiscreto

Vida de armas

A paternidade

A xícara de chá

I

O CAETETU

Todas as noites, depois de uma hora, a terceira mesa, à direita, do Café Belas-Artes, na Avenida, se tornava propriedade daquele grupo de rapazes de imprensa: o Pinto Batista, o Maciel, o poeta Solano Júnior, o Castro Biana, cronista mundano, e o Atanásio Loiola Bastos, encarregado das máquinas, que acabou redator-chefe da folha, por ter casado, depois de um Carnaval e de uma perseguição da polícia, com a filha única do maior acionista da empresa. Aí, durante uma hora, e, às vezes, até às três e meia, ficavam todos a palestrar, a discutir política, ou a contar velhas histórias provincianas, arrancadas da memória com as unhas felinas da saudade.

Naquela noite, o grupo estava completo, e aumentado com o Sizínio Ramos, repórter policial, que havia chegado de Minas. Ameaçado de tuberculose, tinha o Sizínio se recolhido, escaveirado e amarelo, à sua vila natal, para as bandas de Paracatu; e era dali que regressava, robusto, alegre, corado, dizendo maravilhas do clima e contando proezas assombrosas praticadas por ele naqueles sertões desconhecidos. As suas caçadas, então, eram quase inacreditáveis. Passasse mais quinze dias em Paracatu, e poder-se-ia deixar milho no campo, de um ano para outro, porque não haveria mais um caetetu, ou uma simples pomba crioula, para comê-lo. A sua última expedição ao Serrote Velho, então, havia sido uma hecatombe. E contava, entusiasmado, o cabelo em cima dos olhos, o chapéu para a nuca, os punhos fora da manga:

Eu estava de espera atrás de uma pedra. De repente... vuuuuu... vuuuuu...; vuuuuu... Eram as juritis sentando... Eu cheguei a espingarda à cara, e... pum! ... pum! ... Ocupadas em comer as sementes do capim, as bichas nem davam pelas que morriam, batendo a asa: taco-talaco-placo... E eu era só carregar a arma e... pum!... pum! ... Nem fazia pontaria... No chão havia mais de duzentas juritis mortas, ou agonizantes... E eu ia erguer a arma, carregada, mais uma vez, quando surgiu assim, na orla do mato, um caetetu! ... Levei a arma à cara, e...

Por essa altura da narrativa, um sujeito corpulento, que estava a um canto, em uma mesa próxima, acompanhando em silêncio a conversa, e que se soube depois ser o famoso desordeiro “Pé-de-Bola”, pôs-se de pé, e, interrompendo o narrador, trovejou:

— Moço, se você mata também esse caetetu, por Nossa Senhora que eu lhe parto a cara!

Apanhado assim de surpresa, o Sizínio empalideceu, de repente. Sacudiu, porém, para trás, a mecha de cabelo que lhe tapava os olhos, e reatou, como se nada tivesse acontecido:

— O caetetu apareceu, assim, na orla do mato... Eu levantei a espingarda à altura da cara e...

Mediu o “Pé-de-Bola”, de novo, de alto a baixo, e concluiu, sentando-se, desanimado:

— Também, foi o único tiro que eu não acertei...

II

JOÃO PIAUÍ

Estatura mediana, atarracado, fornido como um tronco de aroeira, o João Piauí havia se tornado o terror daquela região sossegada, que vai das areias de Camocim às faldas da Serra Grande. Barba hirsuta cobrindo a maior parte do rosto moreno como os cajueiros cobrem, às vezes, a metade de um morro, possuía uns olhos pequenos e desconfiados, que eram como duas onças traiçoeiras, de emboscada naquele capão de mato.

A fama das suas façanhas corria o sertão todo, e a serra toda. Vivia nas quebradas da Ibiapaba, rodeado dos seus cabras, e se alguma vez descia até a Meruoca, ou até Granja, era para fazer justiça contra a prepotência dos fortes. Por isso mesmo, eram-lhe arroladas nada menos de quarenta e duas mortes, que ele contava como trinta e sete, por haver, naquele cálculo, cinco pretos, que não catalogava como gente.

Não obstante essa vida de facínora, o João Piauí possuía bom coração. E era como tal que, uma tarde, conversando com a velha Felícia, que o conhecera menino, esta lhe observou, maternal:

— João, você precisa preparar a sua alma, meu filho. Eu não digo que você não continue nessa vida, mas, ao menos, seja amigo de Deus!

— Mas, amigo como, tia Lícia?

— Você se confessando, meu filho!

Tão insistentes foram os conselhos, os pedidos, os rogos da velha sertaneja, que o cangaceiro aquiesceu.

— Está bem; mas com uma condição: eu vou me confessar, mas o padre não tem nada que me perguntar pelas mortes que eu fiz. Outra cousa: como o delegado pode querer aproveitar a minha entrada na igreja para me prender, eu vou levar comigo o Relâmpago, o Vassoura, o Ventania, o Tamarindo, o João Ratinho e o Figueiredo. Eles não entram na igreja, não: ficam só no adro, para garantir a retirada, em caso de perigo... Serve assim, ou não serve?

Consultado o padre Joaquim, de Sobral, sobre a exigência do João Piauí, lá estava o cangaceiro, naquele domingo, com o seu pessoal, à porta da igreja matriz. Disposto a tudo, o bandoleiro entrou, o chicote na mão, o chapéu de barbicacho caindo para a nuca, fazendo ressoar no chão as chilenas de prata. Chegou ao pé do padre, que já o esperava, e ajoelhou-se diante do confessionário:

Filho, — começou padre Joaquim, com bondade; — sabe alguma cousa do nosso catecismo?

— De quê?

— Do catecismo.

Piauí abanou a cabeça:

— Não sei, não, senhor.

Padre Joaquim pensou um instante, e tornou:

— Diga-me uma cousa: como foi que morreu Jesus Cristo? Quem o matou?

A essas palavras, João Piauí deu um pulo para trás, o chapéu na mão. Em um instante estava no adro, os olhos faiscando, como nos momentos de perigo.

— Dá o fora, pessoal! — Foi gritando à sua gente.

E passando a perna no cavalo:

— Parece que mataram alguém por aqui, e o “seu” vigário “tá” já fazendo o inquérito! ...

E a comitiva abalou, como um temporal, no caminho da serra...

III

ASTÚCIA DE JUDEU

Quando a Ritinha Moreira chegou era Lago Verde, foi um espanto geral nas famílias. Era como se tivesse aparecido uma cabra entre as ovelhas, um urubu entre os pombos. Como se atrevia, em verdade, uma mulher da vida, uma rapariga pública, tão famosa pelos seus desregramentos na capital, a ir fixar residência em um lugar tão honesto, de hábitos tão puros e existência tão familiar? Pouco a pouco, porém, a rapariga se foi impondo pela sua conduta, pela sua seriedade inatacável, até que a sociedade pudorosa de Lago Verde se conformou com a sua hóspede elegante, a qual não se apercebera, aliás, da sua vivenda pitoresca, de tão alarmada indignação.

Se a língua das mulheres havia sossegado, não sucedera, contudo, o mesmo ao desejo irrefreado dos homens. Não havia chefe de família, por mais honrado e mais grave, que, ao vê-la passar no seu costume de casimira azul-marinho, não lhe dirigisse uma pilhéria picante ou, pelo menos, um olhar significativo. Ritinha Moreira continuava, no entanto, o seu caminho, como enojada de tudo aquilo, de toda aquela bestialidade provinciana, dando, a uns e a outros, com o silêncio, a maior demonstração do seu desprezo.

Mulher que caiu uma vez, tem, porém, sempre um resto de sabão no salto do sapato. E foi o que sucedeu com a Ritinha Moreira. Impassível aos olhares dos rapazes mais bonitos e fortes de Lago Verde; indiferente aos bilhetes do coronel Duca Rocha, prefeito da cidade, e às promessas de proteção do dr. Alexandre Roque, juiz de direito da comarca, — uma arma havia que ainda não tinha sido experimentada contra a sua resistência: o dinheiro. E foi a essa que recorreu Isaac Baruel, conhecidíssimo usurário judeu, miserável como ele próprio e que possuía fechados na mão, como agiota, os maiores proprietários do distrito.

A fama da sordidez repugnante de Isaac Baruel havia chegado aos ouvidos de Ritinha Moreira antes, mesmo, da sua figura lhe passar por diante dos olhos. Foi, por isso, para ela, uma surpresa, quando aquele monstro humano lhe pediu, sorrindo alvarmente, uns beijos de amor, acrescentando, logo:

— Dou-lhe quinhentos mil réis!

A rapariga riu, recusando; mas ele insistiu:

— Um conto, menina; um conto de réis!

Um conto de réis não era dinheiro que se recusasse em Lago Verde, principalmente porque as reservas da antiga mundana estavam, já, escasseando. Ritinha refletiu, concordou, e havia marcado a noite seguinte, quando Isaac impôs:

Mas, olhe: a casa deve estar no escuro; sabe?

Para a rapariga, era isso melhor. Além de outras conveniências, havia a de não ver aquela boca formidável, espécie de cavidade de pedra, cercada de relva, em que a língua se movia com viscosidades de sapo.

Na noite seguinte, por volta das dez horas, a vivenda da rapariga ficou toda às escuras. E dois minutos depois, dois braços vigorosos a apertavam convulsivamente, fazendo-a, quase, desmaiar.

Ao primeiro beijo, sucedeu outro. A este, outro mais. E ao terceiro, o quarto. No oitavo, não podendo mais, a Ritinha querendo tomar fôlego, protestou:

— Ah! Basta, sr. Isaac! Basta! ...

— Como? Isaac? — Fez uma voz, que a rapariga reconheceu não ser mais a mesma do primeiro beijo. Eu não sou Isaac, não; eu sou o Bernardo, padeiro.

E logo:

— O Isaac está lá fora na porta, cobrando as entradas...

IV

HOMENS DE NEGÓCIO

A vida para aqueles dois homens de comércio era uma teia de transações, que se não acabava mais. Compras, vendas, perguntas, especulações em câmbio e em mercadorias, enchiam o seu dia, parte da sua noite, e, às vezes, penetrando o desconhecido, ainda lhes ia pelo sonho a dentro. E não fora para outra cousa, que não para negociar uma partida de bacalhau da Noruega, que se haviam apalavrado para um almoço, na Brama, naquela terça-feira de tanto trabalho.

Parecidos moralmente, a ponto de serem amigos leais, eram, fisicamente, o que há de mais dissemelhante. Se o Roberto Teixeira era magro, alto, escaveirado, com um bigodinho de vassoura escorregando do nariz, o Bocha Mota era baixo, gordo, escanhoado, com duas pernas curtas a carregar dificilmente a caixa d’água da barriga. Os dois podiam representar, em suma, em um sermão ilustrado, as vacas gordas e as vacas magras dos sonhos misteriosos do faraó.

O almoço fora, todo ele, temperado de algarismos, em somas e multiplicações. Lápis em punho, puxavam os dois de instante em instante pela carteira, e era um não acabar mais de “capatazias”, “armazenagens”, “fretes”, “seguros” e “comissões”, que só eles entendiam. À sobremesa estava, enfim, tudo combinado, em relação ao bacalhau.

Quem se mete em negócios é, porém, como quem se apaixona pelo álcool ou pela morfina: morre, mas não deixa. Por isso mesmo, ao saírem do restaurante, iam os dois discutindo, ainda, assuntos comerciais.

— Sabes quanto o Borges Correia ganhou naquela transação da batata? Dezenove contos!

— Dezenove? A como ele a vendeu?

— A doze, a caixa.

— Boa transação!

Palestrando assim, haviam chegado a um dos corredores da Galeria Cruzeiro, junto ao posto telefônico. Vindos de todos os lados, homens apressados enveredavam por uma porta dissimulada, por onde outros saíam, mais descansados. De dentro vinha um barulho de chuveiro intermitente.

Lembrado de que havia tomado três “chopps” duplos ao almoço, o Roberto Teixeira convidou o amigo:

— Vamos entrar aqui?

O outro acompanhou-o maquinalmente, com o seu andar de pata poedeira, comentando

— E o café que está a 48? ...

Como houvesse duas vagas, em uma série de “manjedouras” de mármore que se alinhavam junto à parede, os dois encostaram, de frente. E estavam nessa posição, quando o Roberto, sempre ruminando transações, lembrou, ainda:

— É verdade, Rocha, por que você não aproveita a baixa do café, para comprar aquela partida que o Zamite nos ofereceu?

— Ah! Agora não posso, filho! — Opinou, charuto nos dentes, o Rocha Mota.

E como quem se quer desculpar com a falta de tempo ou de capital:

— Agora estou com um grande negócio em mãos...

V

“ABDHERRAMAN”

Filho de um touro Heresford que custara oitenta contos, com uma das vacas mais criadeiras do sul de Minas, o “Abdherraman” havia de ser, necessariamente, um excelente reprodutor. E as previsões não falharam. Aos quatro anos, ainda com o chifre limpo, a sua fama havia chegado a todos os pontos daquela região pastoril, onde, nas feiras, não se falava de bicho mais precioso.

— Se o coronel Zezinho quisesse cem contos pelo animal, eu dava! — Era o que se ouvia, aqui e ali, da boca dos fazendeiros mais ricos, quando alguém se referia àquele formidável pai da malhada.

Quem vive na Avenida Central, não imagina o que seja um touro bom, em terras de criação. O dono é lisonjeado, cercado, bajulado, como se, em vez de ter um boi no curral, tivesse uma coroa na cabeça.

Homem prático, sabendo possuir no “Abdherraman” uma verdadeira fortuna, o coronel José Viriato tratou, logo, de tirar proveito da situação que o touro lhe dera.

Cada vaca, ou novilha, que era levada à presença do bicho, tinha de pagar duzentos mil réis. Ou pagava, ou não passava do mourão do curral, contentando-se com os beijos inofensivos que o touro lhe dava, babando, através da porteira fechada.

As exigências do coronel Zezinho acabaram, porém, irritando a população. Em menos de um ano havia feito mais de quarenta contos, à custa do “Abdherraman”. E foi, então, quando surgiu no Conselho Municipal de Imbituí a ideia de expropriar-se o touro, tornando-o propriedade da Prefeitura.

— Só assim, — exclamou, no Conselho, o intendente Agostinho Pereira, autor do projeto, — só assim os fazendeiros de Imbituí deixarão de ser espoliados por um colega, que vive do caftinismo mais repelente, explorando um touro! ...

Fazendeiros quase todos, os intendentes municipais de Imbituí apoiaram, com entusiasmo, a expropriação do bicho, por utilidade pública. E oito dias depois era o “Abdherraman” trazido para a sede do município, e posto em um curral atrás da Prefeitura, aonde, daí em diante, todo criador podia levar, sem quaisquer despesas, a sua vaca, para efeito de reprodução.

O resultado da medida foi, porém, o mais negativo possível. De valente que era no pasto do coronel Zezinho, o “Abdherraman” passara a preguiçoso, indiferente, inteiramente alheio às esposas que lhe levavam. Não fazia outra cousa senão comer alfafa, e deitar-se, para ruminar.

Quando a notícia desse desastre chegou à fazenda do coronel, este soltou uma gargalhada, com todos os dentes.

— Ora! Ora! ... Eu sabia disso! ... — Declarou, passando a mão pela barba. — O diabo da política estragou o touro. Enquanto era meu, vocês viam como ele trabalhava; mas agora, é da Prefeitura.

E abrindo os braços, num gesto largo: — Vocês já viram empregado público trabalhar?

VI

A CHAMPANHE

Das oito horas da manhã às sete da noite, era aquele o seu serviço: fazendo chapéus de senhoras, naquela casa de modas, imitando quanto possível os modelos parisienses. Como o estabelecimento não era grande, trabalhava a um canto da loja, a perna trançada, o cabelo castanho graciosamente revolto, e mão a ir, e a vir, no infatigável manejo da agulha. De vez em quando, levantava-se, tufava de um lado e de outro a cabeleira opulenta, experimentando, nela, o chapéu inacabado. Ajeitava-o, puxava-o mais para a frente, dava-lhe um toque, retocava-o de novo, e com tal interesse, tal gosto, como se fossem, todos, para o seu uso. E era um contentamento, uma alegria de coração, quando, pregado o último laço, o último enfeite, o exibia na mão esquerda, e o mirava e remirava, com um inocente orgulho de artista.

Pilha de uma viúva pobre e doente, adotara Maria Alice a profissão de chapeleira por ser a mais compatível com a sua vocação e, sobretudo, com a sua delicadeza. Ganhava pouco, era certo; mas, em compensação, vivia num meio honesto, lidando com senhoras, ao lado de companheiras virtuosas, e com a circunstância, ainda, de estar ali como num mostruário. Quem lhe diria que, dali, não arranjaria um bom casamento, vista, como era, da rua, pelos rapazes que passavam? E lembrava-se do caso de Adelaide, tão pobre, tão simples, tão modesta, descoberta num atelier pelo comendador Mesquita e transformada, de repente, em uma das mulheres mais chics do Rio.

Enquanto a agulha ia, e vinha, ideava Maria Alice a sua ventura, se lhe sucedesse o mesmo. Iria viver, com certeza, em Copacabana. E, à tarde, que sucesso, quando, toda de branco, a sombrinha aberta descansada no ombro, um cachorrinho pela coleira, fosse passear na praia, despertando a inveja inocente das mulheres e acendendo, aqui e ali, a curiosidade criminosa dos homens!

Certo dia, manejava Maria Alice, a cabeça baixa, a sua agulha fiel, com que cosia os seus sonhos, quando o dono do estabelecimento a espantou, apresentando-lhe um homem de meia idade, que desejava comprar um chapéu de senhora. De pé, abandonando algumas aigrettes que predispunha com arte, a mocinha pôs-se às suas ordens.

— Quer um modelo! Temos o que há de chic... Favor favor...

E começou a mostrar-lhe, destapando caixas, abrindo armários, chapéus de todos os feitios, de todos os preços, de todos os gostos, fazendo o elogio de cada um. E ainda ia mostrar outros, quando o freguês atalhou:

— Bom, eu não entendo disso; a menina vai fazer-me um favor: quando sair daqui, à noitinha, passará em minha casa, com dois destes chapéus, para minha mulher... A senhorita não se arrependerá, fique certa.

— Ah, — fez Maria Alice, com seriedade; — isso não é comigo; é com o gerente, o sr. Araújo. Se ele mandar, eu irei...

Combinado o negócio entre o gerente e o freguês, ficou assentado que a mocinha passaria por lá, quando fosse para casa. E às seis e pouco, batia, realmente, Maria Alice, às portas de um palacete de gosto, à rua Bambina, onde um criado a fez entrar para a sala, com as duas caixas de chapéus. Um minuto mais, e aparecia-lhe, metido num pijama de seda, o freguês que estivera na loja, o qual, muito risonho, muito polido, a cercou, logo, das melhores amabilidades.

— Ah, senhorita, como eu lhe peço perdão! Imagine que, quando eu cheguei em casa, soube que minha mulher havia subido à tarde para Petrópolis! Uma estopada! Mas a senhorita não se há de arrepender. Vou pagar o meu desaforo convidando-a a jantar comigo!

— Oh, não! Não, senhor! — Fez a mocinha, corando.

— Não, senhora, — protestou o dono da casa, gentil. — Não tenha medo: isto é uma casa de família. Depois, eu já estava à mesa...

E com insistência paternal:

— Venha! ... Venha! ...

Sem alimento desde a manhã, com o cheiro de iguarias que vinha da cozinha e na incerteza de encontrar em casa, sequer, um pedaço de pão, a vontade da chapeleirinha capitulou. E era vencida, e confiante, que se sentava, dois minutos depois, em frente ao risonho capitalista, à sua mesa de jantar, comendo com fome, com gosto, com apetite, sem prejuízo da compostura e da mais polida delicadeza.

Quase ao fim do repasto, o velho convidou:

— Agora, a menina vai tomar, comigo, meia taça de champanhe.

— Não; não, senhor! Muito obrigada! — Recusou Maria Alice, com horror.

— Não, senhora! — Tornou o. velho, rindo. — Vai beber à minha saúde. É de praxe...

Insistida, a chapeleirinha tomou a primeira taça. A segunda virou-a com delícia, com alma, com prazer. A terceira, e a quarta, já era ela quem as pedia, quem as reclamava, numa verdadeira alucinação. E tantas virou, na sua alegria descompassada, que, por volta das dez horas, tomava-a o bandido nos seus braços, levando-a, sem sentidos, para uma alcova que possuía ao lado do salão, onde lhe sacrificou a inocência no altar de lama da sua bestialidade.

Ao amanhecer, vendo-se numa casa estranha, Maria Alice passou as mãos pelos olhos, procurando lembrar-se do ocorrido. Recordava-se apenas do jantar, da champanhe, e nada mais. Endireitou as roupas amarrotadas, telefonou para a mãe, dizendo ter passado a noite em casa de uma colega, e às sete horas, dava entrada, como de costume, na grande casa de modas.

Inocente, boa, singela, não viu mal nenhum em contar a uma das companheiras, a Luiza, uma parte da ocorrência.

— Que comida boa, menina! Comi, como nunca, na minha vida! ... Depois, tomei champanhe, que eu nunca tinha tomado.

— Champanhe? — Fez a outra, com espanto.

E como quem se refere a uma cousa que nunca viu, e que está para além do sonho e da lenda:

— É bom? Que gosto tem?

— Bom, — confessou Maria Alice.

E, num jeito de corpo, ingênuo, na ignorância da sua infelicidade:

— Deixa é, assim, uma dor nas cadeiras, nas pernas, que a gente quase não pode andar...

VII

PIEDADE FILIAL

Escaveirado, ansiando como um fole, os olhos faiscando no fundo das órbitas como brasas no fundo de um tinteiro vazio, Isaac Hirchsfield esperava a morte. A moléstia que o vinha minando, que lhe chupara o rosto como a um caju e lhe dera à barba grisalha aquele jeito de molho de capim seco mal comido pelos burros, chegava ao seu termo. E foi na certeza de que a sua permanência na terra já não seria longa, que pediu, revolvendo-se no leito de ferro, coberto de lã vermelha e grosseira:

— Chamem Levi... Chamem Samuel...

Presentes os dois filhos, legítimos representantes da sua raça, ambos morenos, olhos negros, nariz curvo e pequeno buço espontante o moribundo aconselhou:

— Meus filhos, vocês estão ao par de todos os meus negócios... Sobre esse ponto, morro descansado... Mas eu lhes vou pedir uma cousa: não se casem. E se algum de vocês se casar, mesmo por algumas horas, que seja com rapariga judia... Não profanem a minha memória metendo-se com mulher cristã... Porque, ao suceder isso, eu sofrerei tanto, que meu esqueleto se virará dentro do meu caixão!

Disse isso, e morreu.

Sensato, obediente, acomodado, Samuel não pensou um minuto, sequer, em contrariar o último desejo do pai. Não pensava em mulheres, nem cristãs, nem judias: pensava apenas em multiplicar o que recebera na divisão da fortuna paterna, prescindindo de tudo que não fosse, propriamente, guardar dinheiro. Mais moço, e menos apegado aos preconceitos da raça, Levi residia com o irmão, mas, toda a vez que este saía, transformava a pequena morada em um jardim de delícias, como aquele que Maomé prometeu, na outra vida, aos muçulmanos.

Certa noite, ao entrar em casa, ouviu Samuel umas risadinhas nervosas, cristalinas, excitantes, no quarto do outro. Aproximou-se nas pontas dos pés, e olhou: ao lado de Levi estava, em carinhosa intimidade, uma linda rapariga de olhos azuis e rosto claro, um desses tipos que, desde o primeiro instante, se vê não pertencerem ao ramo semita. Indignado com aquele sacrilégio, Samuel afastou-se, e, ao encontrar, no dia seguinte, o irmão, observou-lhe, furioso:

— Então, isso se faz? ... Você metido com uma cristã... Você não se lembra, acaso, do que nos pediu o nosso pobre pai, cujo esqueleto deve estar virado, a esta hora, dentro do seu caixão ?!...

Levi baixou a cabeça, no sinal mais compungido do mais fundo arrependimento. Dias depois, porém, ao penetrar na casa, Samuel ouviu, de novo, sinais de presença feminina no quarto do herege. Espiou na fechadura e, vendo que era outra mulher, mas essa, como a primeira, evidentemente cristã, não se conteve, e bateu na porta:

— Levi?... Ó Levi... Abra!

Levi veio fora, ao seu encontro.

— Essa mulher que está aí é judia?

— Não; é cristã.

— Mas, Levi, você não se lembra que papai...

— Pois, é por papai mesmo, Samuel. Outro dia, por esquecimento, eu trouxe aqui uma rapariga cristã... Ele virou-se no caixão, e ficou de bruços... Agora, eu trouxe outra...

E com a cara mais sem vergonha deste mundo:

— Ele dá outra volta dentro do caixão, e fica direito... Não é?

VIII

O JORNALISTA

(IMITADO DE PIERRE VEBER)

A carreira jornalística de Agnelo Correia fora a mais honrada e laboriosa que a Associação de Imprensa, de que ele chegou a ser presidente, poderia registar. Estreando na profissão como simples “foca” de polícia, o rapaz fora, pouco a pouco, subindo de posto, até que chegou ao de chefe da reportagem do antigo “Diário do Rio de Janeiro”. E quando o “Diário” fechou, eram tantas as solicitações da sua atividade, que o Agnelo teve de recorrer ao baralho, tirando uma sorte, para optar, como optou, pelo lugar de secretário que o “Independente” lhe oferecia.

Alto, magro, olhos fundos, Agnelo Correia era o tipo clássico do secretário de jornal matutino. Na sua fisionomia fatigada, percebia-se o rastro permanente do sono, o sinal inequívoco das vigílias, dos cuidados, das noites de apreensão. Dormindo das quatro da manhã ao meio-dia, o sol não lhe punha na pele as cores clássicas da saúde. E como a vida não tivesse remédio nem descanso, uma noite, ou antes, certa madrugada, ao chegar em casa, o secretário do “Independente” sentiu uma vertigem, e morreu.

Evolando-se do corpo, a alma do Agnelo Correia passou a ter, a princípio, a forma de um fio de fumaça, muito fino, muito sutil, muito delgado. A certa altura, porém, a fumaça tomou uma forma gasosa, os traços do rosto se reconstituíram, e reapareceu, perfeita, nítida, a figura do homem que ele havia sido na terra.

Impelido por uma brisa suave, Agnelo caminhava, pisando as nuvens. Aqui e ali, encontrava outras sombras, que eram como pessoas que encontrasse na Avenida. Uma destas chamou-lhe, porém, a atenção.

— Meu Deus! — Exclamou. — Aquela não será a Berthe!

A Berthe era uma rapariga belga, domiciliada no Brasil, e a quem o Agnelo conhecia desde os tempos de repórter de polícia. Boa criatura, pagara-lhe o jornalista alguns jantares, alguns passeios ao Leme, dois vestidos de seda, em troca de algumas carícias sossegadas. Ao vê-la, sentiu o rapaz um certo contentamento.

Berthe Marot? — Indagou, tímido, encaminhando-se para a sombra que passava.

— A mesma, “mon cheri” — correspondeu a rapariga. — Você é aquele rapaz que trabalhava no jornal... Não é?

— Agnelo Correia.

— É isso mesmo... Que é que você faz por aqui?

— Eu? ... Eu vou por aqui, a caminho do Paraíso... E você?

Berthe baixou a cabeça, triste.

— Eu venho de lá... Não me deixaram entrar. O porteiro, um velhinho barbado, é irascível, insolente, intolerável. Diz ele que os meus papéis não estão em regra...

Agnelo sorriu:

— Era de esperar, Berthe... com esta lua! ...

E tomando-a pelo braço:

— Mas, vamos lá!

Minutos depois batia o antigo “foca’'’ do “Diário do Rio de Janeiro” à porta de ouro do Paraíso, a qual, logo, se entreabriu.

— Agnelo Correia, secretário do “Independente” — disse o jornalista, com ênfase, ao ver o Chaveiro, que, os olhos piscos, apareceu no interstício da porta.

— Ahn! Entre! — Ordenou São Pedro, solícito, escancarando a entrada.

Agnelo estacou, porém, no portal. E a voz solene — como fazia em vida à porta dos teatros — com um sinal para a sombra de Berthe, que se encolhia, tímida, a pequena distância:

— Madame vem comigo...

IX

MAS, SE FOSSE?

A tarde começava a cobrir-se de cinza, com ares melancólicos de viúva recente, quando o comendador Bonifácio deixou o seu palacete de Senador Vergueiro para dar pelo Flamengo o seu passeio habitual. Os seus sessenta e dois anos pareciam, naquele crepúsculo, mais leves, mais suaves de carregar. Parecia, mesmo, que tinha duas asas, e que a vida não era mais que um voo ligeiro, a pequena distância da terra.

Vestindo terno claro, chapéu também claro, de massa, rodopiava o comendador, na mão, a sua bengala de junco, trauteando uma ária popular, quando, retraindo os olhos ligeiramente, notou, ao longe, encostado ao cais, um vulto de mulher.

— Será bonita ou feia? — Murmurou o antigo mundano, de si, consigo, ao mesmo tempo que corrigia os bigodes brancos de alvura irrepreensível.

Mais alguns passos, que o velho capitalista procurou aprumar até o exagero, e o comendador estava, quase, em frente à figura feminina que, de longe, lhe havia chamado a atenção.

A dois metros de distância, notou que se não enganara na previsão. Loura, forte, um pouco cheia de corpo, mas, em todo caso, elegante, a dama, que era precisamente a viúva Pena Borges, não era mulher de quem se desviasse os olhos com facilidade. Possuía uma linda nuca, da qual sabia fazer uso com propriedade; e era exatamente como quem sabe o que possui, que voltara as costas para o jardim, e a frente para a baía, no momento em que o comendador passava a seu lado.

Ao atingir o ponto mais próximo, o capitalista deteve-se, a um metro da rapariga. Os seus olhos, como um sabão num corpo liso, escorregaram-lhe da nuca à ponta do pé. E examinava-lhe, ainda, atento, a anatomia, quando aventurou, a voz baixa:

— Então, que é que faz? ... Tão sozinha por aqui...

A essas palavras a moça voltou-se.

— Que é que o senhor supõe? — Exclamou, indignada. — Respeite as pessoas que não conhece! O senhor veja como fala!

E olhos fuzil antes:

— Eu não sou quem o senhor pensa; ouviu?

Tímido, nervoso, apavorado com a ideia de uma complicação, o capitalista só pensou em uma cousa: fugir, Avenida afora. E era isso que fazia, murcho, misturando os passos, quando ouviu, atrás:

— Psiu!... Psiu... ó cavalheiro!

Era a viúva. O comendador estacou, prevendo o escândalo. E esperava-a na certeza dele, quando a moça parou à sua frente.

— Eu não sou quem o senhor pensa: sabe?

E abrindo o rosto no mais lindo dos sorrisos:

— Mas, se o fosse... Quanto o senhor dava?

X

O CRIADO VELHO

Durante a vida toda, o Tiago fora, pode-se dizer, o único amigo do comendador Atanásio. Rico desde a mocidade, o antigo diretor da Cascadura Railway afastara-se dos negócios aos quarenta e cinco anos, e chegara quase aos oitenta sem outro companheiro que não aquele velho serviçal. Solteirão, e sem filhos, seus únicos parentes eram uns sobrinhos que residiam em Londres. E como conhecesse sobejamente o mundo, a vida limitava-se, para ele, àquele canto da biblioteca provida, onde, em uma cadeira comodíssima, passava horas e dias a conversar silenciosamente com os clássicos gregos. Ao lado, na parede, havia um botão de louça, que, exprimido, retinia lá fora, com violência, para que o Tiago, que era surdo, pudesse tomar conhecimento do chamado. E dois minutos depois, aparecia, espectral, lenta, vagarosa, a figura do velho criado, a indagar:

— O patrão chamou?

Por trinta anos, oito, dez, vinte vezes por dia a campainha retiniu, o reposteiro verde da biblioteca se arreganhou, e os livros ouviram, do ninho das suas estantes:

— O patrão chamou?

A princípio, a voz que indagava era forte e segura; com o correr do tempo foi, no entanto, esmorecendo, tornando-se fatigada, até que se transformou em uma consulta cansada e trêmula, de velho septuagenário.

Certo dia, porém, a campainha não chamou mais. Onze horas; meio dia; uma hora, e nada do patrão chamar, para pedir o almoço. Às duas horas, intrigado, o Tiago encaminhou-se para a biblioteca, abriu o reposteiro em que já havia o sinal escuro das suas mãos, e quase rola por terra: na sua cadeira costumada, o cobertor sobre os pés, a cabeça pendida para o ombro esquerdo, a boca semiaberta, os olhos arregalados, o braço mole, pendido para o tapete, o comendador jazia morto. Havia morrido, fulminado por uma embolia.

No dia seguinte, à tarde, foi o enterro. Alguns conhecidos dos velhos tempos, algumas coroas, e, atrás de todos os carros, em um tílburi que dançava o shimmy no paralelepípedo, o Tiago.

Metido o caixão na cova, e entupida esta, retiraram-se todos; menos o velho criado septuagenário que ficou a arranjar as coroas, dispondo-as com carinho e cuidado sobre a terra fresca do túmulo. E começava a anoitecer quando, o passo tardo, o busto curvado para a frente, tomou, silencioso, o rumo da porta da saída.

No momento, porém, em que atravessava o portal, retiniu, quase sobre a sua cabeça, a campainha grande do cemitério, convidando à retirada os visitantes retardatários Tiago estacou, por um instante. Em seguida, deu meia volta, tornando, com a mesma lentidão, sobre os próprios passos. E a voz trêmula, o corpo trêmulo, parando, automaticamente, de novo, diante da sepultura do amo:

— O patrão chamou?

XI

O CALMANTE

O modo por que a viúva Ladeira Maia procurava prender mister George Cox para noivo da filha, era quase escandaloso. Nomeado para as obras da enseada de São Francisco, em Niterói, o inglês se havia hospedado na pensão familiar da viúva, à praia de Icaraí. A princípio, tudo correra normalmente, em uma atmosfera de exploração respeitosa. Bastou, porém, que se soubesse, ali, ser mister Cox celibatário, para que a Cotinha, filha de Mme. Ladeira, voasse para cima dele, como urubu doido quando há peixe podre na praia.

Mister Cox não era, contudo, nenhuma criança. Embora não o parecesse, havia entrado, já, na casa dos sessenta. Era seco, alto, pescoço de crista de peru. Possuía olhos pequenos, pés grandes, e vivia maritalmente com um cachimbo, que não era grande, nem pequeno, com o qual consumia, diariamente, trezentas gramas de tabaco inglês e duas caixas de fósforos de madeira.

A Cotinha, essa, andava pelos vinte carnavais, e parecia ter vinte e seis. Morena e magra, estava quase preta de tanto procurar marido na praia. Tinha olhos largos e veludosos, cabelo “à la garçonne” e cheirando a maresia, braços com marisco no cotovelo, e, quando andava, era como balão de São João em noite de ventania.

Enquanto o inglês pensou na enseada de São Francisco, não pensou em mulheres. Assim, porém, que os trabalhos terminaram, não foi sem espanto que soube, pela boca de Dona Gertrudes, mãe da menina, que ele, George Cox, engenheiro pela Universidade de Cambridge, era noivo da Gotinha, a quem havia pedido em casamento, no sétimo “whisky” da terceira série, na noite do aniversário do príncipe de Gales.

— Bom! Bom! Se eu pede, eu casa! — Concordou, displicente, o inglês.

E chupando o seu cachimbo:

— Por quanto tempo?

Essa pergunta, em vez de melindrar Dona Gertrudes, deu-lhe apenas oportunidade para explicar a mister Cox que, aqui, no Brasil, casamento era um só. Preso a uma mulher, o homem tem que ficar com ela a vida inteira.

— Bom! Bom! Mim quer saber... — explicou, apenas, o velho engenheiro.

Oito dias depois, saíam de Icaraí, casados naquela tarde, para hospedar-se no Glória Hotel, mister e mistress Cox, née Gotinha Ladeira Maia.

Alojados no sétimo andar, do lado da baía, o inglês achou de bom aviso beber qualquer cousa, antes de ir fazer companhia à noiva. Encaminhou-se, por isso, para o bar.

— Dá-me um cálice vinha do Porto, senhor? — Pediu.

— Vinho do Porto? — Estranhou o empregado. — O senhor não casou hoje?

— Casou, sim.

— Então? O vinho do Porto é um deprimente, um calmante. O senhor deve tomar é “cherry”. “Cherry”, sim, é excitante.

— Então, traz “cherry”, — conveio o inglês, que, um minuto depois, virava o cálice e tomava, o cachimbo nos dentes, o caminho dos seus aposentos.

No dia seguinte, ainda não eram oito horas da manhã, e estava já mister Cox no bar.

— Senhor faz favor? — Pediu, chamando o barman. — Dá-me outro “cherry”; sim?

E puxando a carteira:

— Agora senhor manda cinco garrafas vinha do Porto minha senhora, sétimo andar...

XII

O VISCONDE

Com a morte do Pai, o saudoso visconde de Vila-Maior, que foi duas vezes ministro sob Dom Carlos, o Antônio Ferreira de Góis e Almeida tomou posse legal do título, e, com os haveres que lhe restavam, apurados na venda da quinta, em Famalicão, embarcou para o Brasil. Era um rapagão vistoso, verdadeiro tipo da sua raça, de rosto comprido e pálido, ornamentado por dois olhos muito negros e um bigodinho da mesma cor.

Chegado ao Rio, onde pretendia fixar residência e, provavelmente, casar, empregou o fidalgo uma parte do seu dinheiro em mobiliar uma casa, onde se meteu com o Manuel Macário, antigo criado do pai, que trouxera de Portugal.

O dinheiro é, porém, como o amor, acaba-se, quando menos se espera. E foi isso que sucedeu ao do visconde de Vila-Maior, cujos quarenta contos fortes, transformados em sessenta fracos, se eclipsaram em menos de ano e meio.

Aguardando sempre, como bom fidalgo, um casamento vantajoso, o filho de Ferreira de Góis, não pensara, jamais, em um emprego que lhe assegurasse a subsistência. Dia a dia, a sua carteira minguava. Até que, uma tarde, o Manuel Macário o procurou, solene.

— Patrão, — disse, — venho comunicar a Vossa Senhoria que deixo, hoje, o serviço da casa. Vou separar-me de Vossa Senhoria.

— Vais me deixar, Macário?

— É verdade, patrão.

— Desgosto? Aborrecimento comigo?

— Não, senhor, patrão.

E depois de olhar para um lado e para outro:

— Eu vou sair, patrão, porque... estou rico!

— Rico, Macário? Tu?

Manuel Macário confirmou:

— Eu, sim, senhor. Tirei quinhentos contos na loteria. Já comprei uma casa, muito confortável, muito boa, e vou viver para lá, sossegado.

E após um momento, em uma reverência:

— Adeus, patrão!

— Adeus, Macário; sê feliz!

Mordendo a unha polida, o visconde de Vila-Maior acompanhava, com o ouvido, as passadas do antigo servo, que descia a escada. De repente, deu um pulo.

— Macário?... Ah, Macário!... Sobe! — Chamou.

E frente a frente, batendo, amigável, no ombro do empregado:

— Macário, nós não nos separaremos assim. É impossível!

E caindo-lhe nos braços, num pranto doido:

— Eu vou ser teu criado, Macário! ...

XIII

A GORJETA

(SOBRE UM CONTO DE ANDRÉ BIRABEAU)

Atirada para fora da pensão em que vivia desde que chegara ao Rio de Janeiro, e em que a iam visitar, com tantas demonstrações de liberalidade, os amigos que ia fazendo com a sua beleza e a sua graça galante, Leonie Jourdain tinha de, naquela manhã mesmo, retirar dali os seus móveis. Outra casa do mesmo gênero estava, já, arranjada. Como, porém, fazer a mudança, o transporte de tudo aquilo, se o dinheiro todo tinha sido gasto com a liquidação de contas, e se não sabia, àquela hora do dia, o endereço de um só dos seus admiradores?

— O remédio — pensou, — é chamar um carregador, mandar tudo para a outra casa, e, lá, conseguir com a dona da pensão uns cinquenta mil réis até à noite, ou até amanhã.

Uma hora depois chegava, realmente, à porta da nova pensão, na rua do Catete, o Manuel Lopes, atrelado, como um cavalo de dois pés, ao seu carrinho de mão. E no carrinho, amontoados, o guarda-vestidos, duas malas de viagem, e, de par com outras miudezas, onze caixas de chapéus.

O Manuel Lopes não era nem novo nem velho. Andava pelos quarenta e tantos anos, era moreno, bigodudo, confirmando em todo o seu tipo a sua qualidade de português. Por baixo da blusa curta, de riscado, os músculos espocavam, firmes, ondulosos, retesados, mostrando ao menor movimento a sua estrutura de atleta.

Chegada um pouco antes para receber os móveis e fazer o pagamento do carreto, Leonie estava verdadeiramente atrapalhada. A dona da pensão tinha saído a compras, de modo que, concluído o serviço, que iria ela dizer ao carregador?

— Pronto, patroa! — Exclamou, enfim, o Manuel, tirando o chapéu, amarrando na cintura a suja toalha profissional. — Está tudo direitinho; não está?

— Quanto é o seu serviço? — Indagou Leonie, de costas, enquanto arrumava uns bibelôs sobre a cômoda.

— Saiba a patroa que são quarenta mil réis.

— Oh! Senhor Manuel! ... — faz a rapariga, simulando espanto, com o pensamento, já, em um plano. — Quarenta mil Reis!?... Onde os vou eu arranjar?

— Eu, então, é que sei? Eu é que tenho que receber.

Nesse momento, porém, Leonie já estava a dois palmos dele, a cabecinha de um lado, os olhinhos azuis muito brejeiros, a boquinha muito vermelha de “rouge”. E sorria-lhe. E o Manuel sorriu.

De repente, empurrada pela rapariga, a porta fechou-se sobre os dois. E o Manuel recebia quatro beijos, a dez mil réis cada um.

Terminado o pagamento, descia o português, lentamente, a escada do segundo andar, onde ficava o quarto da Leonie, quando, já em baixo, ouviu chamar:

— Psit! ... psit! ... O senhor Manuel?

O carregador voltou a cabeça para cima.

E Leonie, do alto, debruçada no corrimão:

— Senhor Manuel, suba! Eu me esqueci de lhe dar a gorjeta! ...

XIV

O ENGENHEIRO-CHEFE

Da comissão de engenheiros e capitalistas ingleses que viera ao Brasil tratar do arrendamento da estrada de ferro Buriti-Corumbá, era William Scott a figura mais interessante. Vermelho e louro, desse louro de fogo e desse vermelho de lagosta cozida, era um homem de, mais ou menos, cinquenta anos. Usava bigode, grisalho e revolto, frouxas roupas de brim branco, sapatos amarelos, chapéu de cortiça, e cachimbo. Era, em suma, um desses ingleses sólidos e poderosos, feitos para atravessar a África ou para dominar, com pistolas e metralhadoras, as tribos rebeldes da Índia.

Engenheiro-chefe da Calcutá Railway, estava William Scott no escritório central de Londres quando o “consortium” de banqueiros o designou para o exame da grande estrada brasileira, e lá se veio ele, mar em fora, com o seu cachimbo e o seu chapéu de cortiça, e, ainda mais, com o seu hábito de engolir por dia, à razão de dois por hora, e com uma pontualidade inglesa, vinte e quatro copos de whisky.

Logo após o desembarque no Rio, seguiu a comitiva para o interior, indo estabelecer o seu centro de operações em Itaguandú, modesta cidadezinha sertaneja em que havia apenas um hotel de décima ordem. E foi nesse hotel que se hospedou a comissão de que era chefe o engenheiro Scott, com os seus mapas, os seus instrumentos científicos e quatro malas ferradas, uma com roupas de uso e três com bebidas de abuso.

Trabalhador e beberrão, William Scott trabalhava e bebia. Pautando, porém, a dose de whisky pela do trabalho, exagerava em ambas, a ponto de, às vezes, perder a calma, e praticar verdadeiras depredações.

Certa manhã, estava o inglês no seu quarto, em uma casa ao lado do hotel, sentado em uma cadeira de vime e com os pés sobre a mesa de centro, em que repousavam o copo e a garrafa, quando empurraram a porta e surgiu, risonhamente sem vergonha, a cara do Anastácio, preto retinto, criado do estabelecimento, que procedia à limpeza nos aposentos dos hóspedes.

— Posso entrar, para fazer a limpeza? — Indagou o moleque.

— Você entrar, apanha! — Declarou Scott, o cachimbo nos dentes, fazendo o gesto de quem vai dar um murro.

Anastácio achou graça, e entrou, o espanador debaixo do braço. Não tinha, porém, ainda, chegado ao meio do aposento, quando o inglês, dando um salto de tigre indiano, caiu sobre ele, aplicando-lhe quatro socos rápidos, um dos quais o atirou por terra, estendido, teso, inteiramente imóvel.

— One... two... three... four... five... six... seven... eight... nine...

E como o Anastácio se não movesse:

— Knock-out!

Indiferente ao sucedido, William Scott acendeu o cachimbo, virou no copo o resto da garrafa, virou na boca o conteúdo do copo, e, puxando a porta, encaminhou-se para o hotel, sentando-se sob uma latada rústica, onde o hoteleiro havia posto, já, uma pequena mesa de ferro, com outro copo e outra garrafa. E achava-se aí há meia hora, mudo, vermelho, congestionado, como um homem que está sendo torrado, quando o Florêncio, dono do hotel, enveredou pela latada, os olhos fora das órbitas:

— Mister! ... Mister! ... O senhor matou o criado, mister! ...

— Matou, sim! — Confirmou, indiferente, o engenheiro. — Mas, não importa, não senhor!

E, fleumático, acendendo novamente o cachimbo:

— Bota no meu conta...

XV

INTIMIDADES...

Era ali, naquele precioso boudoir de mulher de luxo, estojo encerrando uma pérola, todo verde e ouro, entre divãs baixos e almofadas altas, que a viúva Marianinha Heyse costumava receber as amigas mais íntimas. Através do arco e da cortina de filó que separava o quarto de vestir, viam-se os móveis de peroba clara, e, refletidos no cristal dos espelhos, o cristal dos vidros de perfume, que lhe perpetuavam na pele macia aquele cheiro de mocidade.

Recostada no divã escuro, emergindo das almofadas coloridas, a linda senhora parecia surgir de um banho de seda. A sua cabecinha de ouro revolto, destacava-se, como um crisântemo, contra o verde-folha da parede. E era entre meneios de flor embalada pelo vento, que conversava, animadamente, com aquele outro bibelô vivo que era mlle. Siqueira, aquela a quem, na expressão de um poeta que a amava com loucura, Deus dera olhos grandes para poder ver a delicada miniatura dos pés.

Amigas de berço e de salão, as duas haviam crescido juntas, no mesmo ambiente de galantaria. Ultimamente, porém, a Siqueira andava mais arredia, mais fugitiva, menos mundana. Aparecia raramente nos chás, nos bailes, nas reuniões de sociedade. Amor? Pobreza? Desilusões?

Era sobre isso que, naquela visita retardada, as duas conversavam, permutando intimidades, contando aventuras, surpresas, novidades, ocorridas no interregno de tão longa separação.

— E tu, que tens feito? Muito amor por esse coração? — Indagava, o espelhinho na mão esquerda, o batom de rouge na direita, colorindo a cravina da boca miúda, a viúva Heyse.

— Não, filha, não! — Contestava a outra.

E revirando os olhos negros na imensidade celeste das órbitas:

Tu sabes que eu sou uma sentimental.

— E o tal negócio do Rocha Maia? Foi paixão mesmo?

Tude Siqueira riu:

— Parece, menina. Pelo menos durou quase uma semana.

— Uma semana? Que horror! ... — Fez a viúva, franzindo a testa, cuja mobilidade lhe dava maior graça à fisionomia.

— E tu, — interrompeu a Siqueira, — é certo que estiveste de amores com o Simões Castro? Disseram-me.

A outra confirmou:

— Verdade pura, minha flor; verdade pura.

— E durou muito?

— Ah! Menina, isso eu te não posso dizer ao certo!

E voltando a avivar os lábios com rouge:

— Eu tinha ido sem relógio...

XVI

A PROFESSORA

A Ritinha Sanches era uma daquelas criaturas sólidas e predestinadas, que, na expressão literária de Raul Pompéia, nas páginas modelares do Ateneu, nascem para “esposas das multidões”. Ao vê-la passar na rua principal da pequena cidade sertaneja em direção à escola de que era professora, tinha-se a impressão de uma poldra de raça, que atravessasse, nitrindo em desafio, as floridas várzeas natais.

Tudo nela transpirava desejo desordenado. Rosto amplo e moreno, orlado de cabelos negros, turbilhonantes, furiosos; olhos escuros e ardentes, orlados de roxo; narinas arfantes e abertas; boca vermelha, polpuda, sensual, mordida permanentemente pela dentadura forte, em que os dois dentes superiores, da frente, ligeiramente separados, abriam um pequenino interstício para a saliva — aquela mulher saída do seu sexo recordava, positivamente, entre os homens, o gigante Golias mandado, num repto, ao campo atemorizado dos hebreus.

Não há, porém, gigante filisteu contra o qual não se apresente um Davi. E o que se apresentou, dessa vez, com as pedras na funda, foi o Dr. Leôncio Borges Bombarda, promotor público daquela comarca, o qual, de há muito, preparava o seu laço de vaqueiro, na expectativa de um momento para laçar com um pedido, e puxar até à igreja, aquela famosa novilha de chapéu e sapato. E, um dia, houve o casamento.

Filhos, ambos, de outros municípios, o noivo e a noiva não tinham casa própria: o promotor residia com o coronel Praxedes Porto, chefe político da cidade, e a moça, na companhia de uma família pobre, da qual era pensionista. A cidade possuía, porém, um hotel regular, e como os noivos tivessem de partir no dia seguinte em viagem de núpcias, foi aí que se hospedaram, em quarto convenientemente preparado.

Atarracado e grosso, Leôncio Borges Bombarda era, talvez, no município, o único homem solteiro à altura daquela noiva. Pescoço de touro e espáduas de carregador, procedia, em linha reta, do Barão de Morro Alto, cujos traços fisionômicos andavam, ainda, nos descendentes de todas as mulatas da Barra Funda.

O casamento dos dois foi como todos os casamentos. Nada de mais, nem de menos. Apenas, no dia seguinte, após a partida do casal, que tomara o trem das 9,45, batiam palmas à porta do botei.

— Quem é? — Gritou, de dentro, o hoteleiro.

— Sou eu, “seu” Zezinho; sou eu, o Juvêncio marceneiro, — respondeu, de fora, a voz mole, um caboclo, muito conhecido do lugar.

E no mesmo tom:

— Foi daqui que mandaram me chamar para consertar o estrado de uma cama?

XVII

O “LAMARTINE”

A grande paixão de Zacarias Bandeira Dias era a criação de canários. Detentor da medalha de ouro em diversas exposições, tomara gosto por esse passatempo, consagrando-lhe todas as horas que lhe não eram consumidas pela repartição em que trabalhava. Na sua pequena casa do Engenho de Dentro havia gaiolas desde a sala de visitas até o muro do quintal, onde fizera, ele próprio, um caramanchão, destinado a sanatório das avesitas doentes.

E os seus canários, todos, tinham nome. Havia uns cor de ouro, outros cinzentos, outros alimoados, de tonalidades que só os profissionais distinguem e qualificam. Este, denominava-se “D. Manuel”; aquele, “Junquilho”; outro “Besouro II”, por morte do “Besouro I”. E toda a casa era um barulho de trilos, de gorjeios dobrados, como se houvesse suspensas do teto centenas de lâminas de cristal, que se chocassem, estalando, à menor sacudidela do vento.

Certo dia, ao entrar em casa de regresso da Secretaria, encontrou o Zacarias toda a família alarmada. Ao deitar alpiste na gaiola do “Lamartine”, o lindo canário amarelo com que contava conquistar, naquele ano, o grande prêmio do certame, deixara o moleque escancarada a portinhola, por onde a avezita escapuliu, voando para um mamoeiro do vizinho. Atalha daqui, atalha dali, procuraram, ainda, detê-lo; tudo fora, porém, debalde, voando o bichinho de árvore em árvore, de quintal para quintal, até que desapareceu.

A mágoa do Zacarias foi indizível. O que lhe voara, não havia sido um passarinho; havia sido a própria medalha, a grande medalha, da próxima Exposição. E foi com essa convicção que, à noite, desiludido de rever o “Lamartine”, correu aos jornais, nos quais pôs um anúncio, declarando pagar cem mil réis a quem lhe restituísse o canário.

Na tarde do dia seguinte, cismava Bandeira Dias, a mão no queixo, no avarandado da casa, quando a criada lhe foi dizer, enxugando as mãos nervosamente ao avental, quase rindo, e quase chorando, que o Simeão, da estância de lenha, morador no quarteirão, lhe queria falar sobre o bichito. De um pulo, o honrado funcionário estava de pé, diante do caboclo.

— Que há, Simeão? — Foi logo indagando, nervoso.

— Não foi “seu” doutor que perdeu um canário?

— Foi, sim; e então?

— E que dá cem mil réis a quem trouxesse ele?

— Foi; e você o encontrou?

— É um canário amarelo; não é?

— É amarelo, sim.

— Com duas peninhas pretas no rabo?

— Exatamente, — rugiu Zacarias, com ímpetos de esganar o caboclo, mas detendo-se, com os olhos no saco de estopa que o Simeão trazia, apertado pela boca.

— Pois, “seu” doutor, eu trago aqui o canário!

Um sorriso de contentamento iluminou, descongestionando-as, todas as fisionomias. E era sorrindo, ansiosos, que todos os olhos acompanharam a mão esquerda do caboclo, quando esta mergulhou no saco profundo.

De súbito, porém, todos os sorrisos se paralisaram. É que, em vez do canário, o que aparecia na mão do Simeão era, simplesmente, um gato, um bichano comum, todo mosqueado de preto e cinzento.

— Que brincadeira é essa? — Fez o funcionário, branco de cólera.

O caboclo sorriu, por sua vez. E, chegando a boca ao ouvido do Zacarias, ao mesmo tempo que batia, leve, na barriga do gato:

— O canário está dentro...

XVIII

CARNAVALESCA

Procedendo, embora, de famílias do mais alto conceito social, o casal Cerqueira de Lira nascera, pode-se dizer, sob a proteção dos deuses galhofeiros. Folião desde menino, o Sebastião adorava o Carnaval. E como foi num Carnaval que conheceu a Zezita, que se tornara sua esposa, era natural que esta afinasse pela mesma corda, perdendo inteiramente a linha aos primeiros ribombos da Avenida.

Ainda se estava pelo Natal, escolhendo os perus para o forno, e já o Sebastião e a Zezita combinavam cores de seda para a fantasia do ano próximo. E era sem disfarce que se metiam num automóvel, na noite de 31 de dezembro, saindo a percorrer a cidade cantando ou, antes, berrando cantigas populares. Podia-se dizer, mesmo, que o repertório artístico de madame Cerqueira de Lira era composto da “Cabocla de Caxangá”, do “Ai, Filomena”, da “Minha Rolinha”, da “Baratinha”, do “Tatú subiu no pau”, sem que isso alterasse, de nenhum modo, a sua reputação de mulher de bom gosto.

A mania carnavalesca da moça não alterava, assim, a sua compreensão da virtude.

— A Zezita, — dizia o marido, — é como aquela garça do Alberto de Oliveira.

E repetia, em prosa, o verso do poeta:

— Passa na lama sem sujar as penas!

Efetivamente, nada se podia dizer, de mais, daquela encantadora doidivanas. Em caminhão, de automóvel, ou a pé, divertia-se loucamente, cantando as suas coplas, esguichando perfume nos olhos de toda a gente, fazendo desenrolar no espaço o fio multicor das serpentinas. Às vezes, num apertão, um atrevido aproximava-se dela, pondo-se em contacto com o seu braço, com a sua perna, com o seu colo, numa atração desrespeitosa. Esses excessos não tinham, no foro da sua consciência, a menor significação: não sentia um arrepio, uma revolta, um arrebatamento, sequer, dos sentidos. Dir-se-ia que não tinha sexo, ou que era um rapaz, como os outros que se atracavam com ela.

Era fiado, talvez, nessa falta de temperamento da esposa, que o Dr. Cerqueira lhe dava liberdade tão ampla. Às vezes, num baile à fantasia, ou numa refrega em plena Avenida, ele dava por falta da companheira. Isso, porém, pouco o incomodava, porque estava certo de que, de manhã, ela iria ter à casa, fatigada, suada, com os cabelos cheios de confete e o corpo cheirando a lança-perfume, mas honesta, direita, pura, enfim, tão casta como saíra.

Aquele domingo de Carnaval fora, porém, mais animado do que nos outros anos. Metida num dominó negro, sapatinhos de cetim róseo, gola cor de rosa, e, à cabeça, um barretinho de seda preta, Zezita era, positivamente, um diabinho maravilhoso. A meia-máscara, cobria-lhe apenas os olhos, que, entretanto, se traíam, espiando curiosos pelas duas janelas que lhes haviam deixado.

Não obstante a vulgaridade da fantasia, aquele mascarado chamava a atenção. A graça do vulto, a beleza da boca, minúscula, a alvura dos dentes pequeninos, a doçura da pele que ficava a descoberto, a finura dos cabelos castanhos, a harmonia do colo túrgido, eram atributos a revelar uma formosura de eleição, uma dessas joias humanas cinzeladas pacientemente pela Natureza. E foi isso mesmo que percebeu, do seu automóvel, o Antenor Dutra, quando a puxou em plena Avenida, para o seu carro, carregando-a para o Assírio, onde pularam, dançaram, e beberam, até às três da manhã.

Onde passaram depois dessa hora, nem ela soube. O que havia de certo, é que chegara em casa às oito da manhã, encontrando o marido, com a cara suja de rouge, os cabelos empastados de farinha de trigo, de sapatos, cinto, calça de flanela e camisa de seda, roncando profundamente. Atirou-se a seu lado, pegou no sono, e, ao acordarem, os dois, às quatro da tarde, puseram-se a trocar impressões, de olhos fechados.

— E tu, por onde andaste? — Indagou o Cerqueira.

— Eu? Fiz uma asneira. Mas felizmente sem consequências.

E passou a contar:

— Fui para o Assírio com um Pierrot, ceiamos, e, depois, fomos não sei onde. Quando passou o efeito do champanhe, eu estava sem dominó, sem sapatos, e com ele, dormindo, junto de mim. Vesti-me, e fugi. Felizmente, ele não me conhece.

— Não lhe disseste o teu nome?

— Não; não disse, não!

— Ainda bem! — Fez o marido, aliviado. — Senão, seria uma vergonha...

E soltou um ronco, dormindo de novo.

XIX

AVICULTURA

A pensão de Mme. Adéle, no Catete, tornara-se famosa pela importação, em pequenas partidas, de pensionistas chics, e de preço. Era lá que os congressistas novos entravam em contacto com a alta civilização da metrópole, e onde submergiam fortunas volumosas, de fazendeiros de São Paulo, de boiadeiros de Minas, e de pesados coronéis da vasta burguesia carioca.

À tarde, das três às seis, saía Adéle com o seu produto mais escolhido, a tomar o seu sorvete na Colombo, e o seu chá, no Alvear. A sua presença, aqui ou ali, era saudada, sempre, por um sorriso significativo, que a megera correspondia com uma piscadela de olho, indicando a companheira de ocasião. E tal era o seu sucesso diário, que levava, sempre, para o jantar na pensão, dois ou três cavalheiros endinheirados, colhidos habilmente na pescaria.

Entre os nomes apontados no canhenho da velha exploradora, estava, há meses, o do deputado Bernardo Braga, que ela sabia uma das fortunas mais sólidas do Rio-Grande. Por mais de uma vez, no Alvear, ela lhe piscara o olho, indicando-lhe as companheiras de mesa. O velhote fizera-se, porém, desentendido, continuando a tomar o seu gelado, ou a remoer a sua torrada, como se nada houvesse acontecido.

Naquela tarde, entretanto, a situação melhorara. Ao penetrar no salão da ala direita, a megera notara, em uma das mesas encostadas ao espelho, a figura magra, mas de traços fortes, do honrado representante do povo. Saboreava ele, na ocasião, um chocolate com brioches, numa gulodice de quem concentra toda a vida nas bochechas. Ao ver a rapariga, e, sobretudo, a francesinha que a acompanhava, virou-se na cadeira, mastigando.

A companheira de Mme. Adéle merecia, em verdade, esta atenção curiosa do velho mundano. Era um tipo gracioso, chic, tentador, de parisiense. Pele muito fresca, olhos escuros, brilhantes e brejeiros, lábios muito vermelhos, não era alta, nem baixa. O cabelo castanho, ondulado e fino, escapava-se-lhe, cuidado, de sob um chapéu pequeno, fantasioso, levemente puxado sobre os olhos. Tinha uns dentes miudinhos, muito alvos, muito iguais, que a dona fazia questão de mostrar a todo instante, num sorriso estudado.

A toilette da rapariga completava essa elegância das maneiras e da pessoa. O vestido, dentro, era um mimo de costureira; a francesinha preferira, porém, escondê-lo avaramente com aquela graciosa capa de veludo cinzento, que lhe dava uns ares de princesinha russa, fugida da pátria, precipitadamente, numa noite de revolução.

Bernardo Braga examinava detidamente a presa, mastigando as suas torradas. A rapariga interessava-o. Tinha lindo rosto, linda boca, bonitas mãos. Para ele, porém, o corpo era tudo. Seria ela, de fato, elegante? Aquela capa não seria um meio de disfarçar qualquer defeito de formas?

Diante dele, Mme. Adéle piscava o olho, desafiadora. Bastava um gesto seu, e a francesinha estaria nas suas mãos. O velho era, no entanto, cauteloso. Tomou seu chá, engoliu suas torradas, pagou a despesa, e encaminhou-se para a mesa das duas.

— Oh, coronel, bon soir!

— Bon soir! — Correspondeu o devasso, limpando a boca com as costas das mãos.

Falaram da pequena. Era um encanto, e estava às suas ordens. Queria?

Bernardo Braga olhou, de perto, a rapariga. Era bonita, disse. Não podia, porém, dar uma resposta decisiva, por causa da capa. Tirasse ela a capa e ele, vendo--lhe o corpo mais livremente, tomaria uma resolução imediata.

— Ah, coronel! — Protestou Adéle. — Quanta exigência! Sim, senhôrr!...

E irritada, para acabar com aquilo de uma vez:

— Diga-me uma cousa, corronel.

O velho fitou-a, os olhos piscos.

E ela, as mãos na cintura, duplicando todos os rr:

— Quando o senhôrr querr comprrarr galinha, manda prrimeirro pelarr?

XX

O DOMINÓ AZUL

Os jornais haviam anunciado para aquele sábado, nas proximidades do Carnaval, uma festa retumbante no Assírio. O baile inauguraria a série de ouro dos festejos da época, e não se falava em outra cousa, da Tijuca às últimas casas de Ipanema, nas rodas boêmias da cidade.

Folião incorrigível, desses que sentem, em fevereiro, o outono transformar-se em primavera, o Dr. Otaviano não dissimulava, mesmo em família, na intimidade do seu lar encantador, o desejo de tomar parte, naquela noite, na festa monumental. A mulher, a quem ele relatara o seu pensamento, não pusera a isso a menor objeção; e foi com verdadeira indiferença, ou antes, com alegria secreta, que a filha, a Carlotinha, o seu louro anjo de dezoito anos, ouvira falar, à mesa, naquela nova extravagância do pai.

Sábado, ao fechar o escritório, o Dr. Otaviano não foi, sequer, para casa. Jantou na cidade, deu uma volta de automóvel, e, às onze horas, quando a Avenida retumbava, fervilhando, reboando, turbilhonando, ao som das músicas carnavalescas, saía ele de uma casa de modas que lhe preparara o dominó, encaminhando-se, fantasiado, para o famoso restaurante dos subterrâneos do Municipal, que já se achava, a essa hora, repleto de gente.

Forçando a entrada, com a máscara de cetim preto colada ao rosto moreno, divertia-se o bulhento folião há meia hora, pulando, dançando, bebendo, cantando, quando se surpreendeu ao lado de um interessante dominó azul, que ora saltava nos seus braços, apanhando beijos no lindo pescoço nu, ora corria para outros, ligeira, leve, maravilhosa, em rodopios, brejeiros e tentadores.

Procurando insistentemente pela criaturinha endiabrada, o Dr. Otaviano não a deixou mais. Corria-lhe no encalço, levantava-a nos braços, beijava-a, apalpava-a num desbragamento que desafiaria a atenção das testemunhas menos sisudas se não fosse naquela noite e, principalmente, àquela hora da madrugada.

Às três da manhã, com a música rugindo, fervendo, berrando, na interpretação sonora de todas as vozes da lascívia, do desejo, dos sentidos desordenados, o terrível boêmio compreendeu que era hora de ir para casa, dando por terminada aquela formidável noite de orgia. Antes de partir, porém, era dever seu ir à procura do dominiozinho azul, do diabrete que tanto apalpara, beliscara, mordera, indenizando-a dos prejuízos que porventura lhe tivesse causado, retendo-o nos seus braços quando a dama que ele dissimulara podia ter, perfeitamente, aquiescido, interesseira, ao convite dos numerosos foliões que a solicitavam. Com esse propósito, a máscara na mão, saiu pela sala em busca do dominó encantado, até que, afinal, o descobriu. Estava nos braços de outro mascarado, dançando, remexendo-se, sacudindo-se, na fúria de um desses legítimos tangos nacionais, daqueles que vascolejam o sangue no coração. 'Encontrando-a naquele tumulto, agarrada ao seu par como uma ostra ao rochedo, o Dr. Otaviano tocou-lhe no ombro. A dama parou, inquirindo-o com os olhos.

— Eu não quero que te queixes de mim, — começou o velho folião. — Diverti-me bastante contigo, tomando o teu tempo, e já vou-me embora. Dize lá: quanto é?

A dama sorriu, brejeira, por baixo da máscara, e numa sacudidela, dando-lhe as costas:

— Para papai não é nada!

E atracando-se, de novo, ao cavalheiro, desapareceu, rebolando, sacudindo-se, remexendo-se, no meio da multidão.

XXI

O PILOTO

(SOBRE UM CONTO DE JEAN KOLB)

O Bibiano era menino ainda, e já pretendia ser a palmatória do mundo. Na pequena cidade em que morava, e em que havia nascido, ninguém o suportava, pela sua pretensão. Tinha farejado todas as profissões, e não adotara nenhuma. Tipógrafo, estafeta, sapateiro, alfaiate, caixeiro de armarinho, empregado de padaria, — tudo havia experimentado. E como não se conformasse com a ideia da continuidade e da disciplina, passava a maior parte do tempo a “aperuar” o jogo do gamão que travavam, todas as tardes, à porta da Farmácia Humanitária o padre Jesuíno Frota, vigário da paróquia, e o velho Cazuza Guedes, proprietário do estabelecimento.

A grande, a máxima, a suprema ambição do Bibiano era ser empregado da farmácia. Aqueles boiões enormes, repletos, um, de anilina verde, outro de anilina encarnada, exerciam sobre ele verdadeira fascinação. E era com olhos de namorado que o rapaz ficava, às vezes, à noite, horas inteiras, com os olhos pregados nos dois vidros bojudos, por trás dos quais irradiavam duas lâmpadas, multiplicando os reflexos da água colorida.

Desvanecida essa aspiração, arrumou Bibiano a sua trouxa, e, dizendo adeus à mãe, desceu a serra em cujo alto nascera, indo ter a Barra-Grossa, como trabalhador do porto. Nunca, na sua vida, tinha visto o mar. Ao vê-lo, não mostrou, porém, o menor espanto. Era como se houvesse nascido à beira d’água e não tivesse feito outra cousa, na terra, senão viajar. Criticava tudo, zombava de tudo, e falava de manobras, de atracações, de travessias com mar grosso, como se tivesse dado volta ao mundo, nas naus de Fernão de Magalhães.

Certo dia, conversava o Bibiano sentado no cais, o boné atirado para a nuca, censurando ora um, ora outro, dos velhos marinheiros do porto, quando lhe bateram familiarmente no ombro. Voltou-se de súbito e deu de cara com um indivíduo gordo, rosto vermelho, fisionomia de homem do mar.

— Você é piloto, camarada? — Inquiriu o sujeito.

— Meu Deus! — Fez o Bibiano, com um riso de mofa. — Eu nunca fui outra cousa nesta vida!

— Pode levar um navio até o porto de São Vicente?

— É grande o navio?

— Não; é pequeno.

— Mesmo que fosse grande. Quando sai?

— Agora, à noite. Às nove e meia o “Tupá” levantava ferros em Barra-Grossa e ganhava o mar, com o Bibiano ao leme. A noite estava escura como a alma de Judas, e o “Tupá” entrava por ela como uma faca em caviar. Para onde iam, Deus não sabia, e o Bibiano ainda menos. O segundo piloto, apavorado, esperava a cada momento o choque do casco contra uma pedra. O Bibiano continuava, porém, impávido, a mão no leme, o olhar mergulhado na treva, perscrutando a escuridão.

De repente, desenha-se a duzentos metros de distância, pela proa, um vulto negro, que, de tão negro, se destacava na negrura da noite. Bibiano franziu a testa, perguntando a si mesmo que seria aquilo, pela frente. Um instante mais, e rasgavam a treva, como dois olhos enormes, um vermelho, outro verde, os dois faróis de um transatlântico monstruoso, que viajava, com toda a força das máquinas, em sentido contrário.

As luzes acentuavam-se, cresciam, de minuto a minuto. Os cabelos do Bibiano arrepiaram-se. Um sentimento de terror invadiu-o todo, dos pés à cabeça. Compreendeu, nesse instante, toda a extensão da sua audácia, da sua coragem, da sua temeridade. Sentiu horror de si mesmo, e, num gesto de desespero, abandonando a roda do leme, precipitou-se, os olhos esbugalhados, as mãos na cabeça, escada abaixo, aos gritos:

— Comandante! Comandante!

E sacudindo os braços, com o terror estampado no rosto:

— Comandante! O navio vai entrar numa farmácia! ...

XXII

A ATLETA

As arquibancadas do Circo Mateus, armado no terreno vago de propriedade do comandante Feliciano Praxedes, estava, aquela bora da noite, quase cheio, quando o Machadinho chegou, com a Carmela.

O Circo Mateus era um modelo, no gênero. Barraca enorme de um acampamento de gigantes, assemelhava-se a um formidável guarda-chuva aberto, em que as varetas fossem de corda, e o cabo representado por um mastro poderoso, da melhor madeira da serra. Dentro, em torno, alinhavam-se os bancos improvisados, feitos de tábua tosca, em escala ascendente, e em que os espectadores, sentados, lembravam as andorinhas quando pousam, à tarde, nos fios telegráficos.

Ao entrar no vasto anfiteatro, a Carmela notou o prestígio da sua elegância mundana. Acentuadamente morena, cabelo crespo denunciando a mestiçagem ligeira, olhos negros e malinos, era o tipo, mesmo, da graça brasileira. E tudo isso realçado pela ondulação felina do corpo, todo ele harmonioso, e todo ele em movimento rítmico, à semelhança de uma grande música silenciosa.

Cara raspada, paletó cintado, calça mostrando o artelho e as meias de seda, o Machadinho sentou-se ao seu lado, na primeira fila de cadeiras. Fincou a bengala de castão de ouro entre uma e outra perna, pousou nela as mãos hem tratadas e de unhas polidas, e, sem indagar por onde andavam os olhos da mulher, pôs-se a olhar em torno, displicente.

Cantidiano Machado era um desses indivíduos inescrupulosos e felizes, para os quais tudo, na vida, corre excelentemente. Sem emprego, encostado à amizade do desembargador Viana, que lhe frequentava assiduamente a intimidade, nada lhe faltava, em casa. O dinheiro mesmo_ que desbaratava na rua, vinha-lhe das mãos da esposa, sem que ele indagasse, jamais, a sua proveniência.

De repente, à terceira chamada da campainha pendurada à porta do circo, apareceram em cena os primeiros artistas. Era um grupo composto de uma dama avantajada, espécie de atleta feminino, de um sujeito espadaúdo, bigodes retorcidos de italiano, e de um rapazola de quatorze anos, filho, provavelmente, do casal. Vinham, os três, vestidos de maillot cor de carne, tendo, apenas, cada um deles, uma espécie de tanga ligeira, à altura dos rins.

Acalmada a tempestade de palmas, a mulher tomou posição no meio do circo. O homem pôs-lhe a mão nas mãos, e pulou para os seus ombros. E, aí, antes que o rapazola tomasse parte no exercício, começou a fazer, com todo o seu peso, toda a espécie de malabarismos.

Sorriso à flor do lábio carminado, Carmela acompanhava todos os movimentos do artista, que evoluía sobre os ombros da companheira. E estava para dar palmas, quando o Machadinho, voltando-se para ela, lhe observou:

— Preste hem a atenção; ouviu?

E como a rapariga o interrogasse com os olhos:

— Veja como é bonito uma mulher que “sustenta” o marido! ...

XXIII

ROMPIMENTO

— Toda a gente, no Rio, pensava que eu me casava com ela, — informava o Alfredo Rocha Borges ao João Lucindo, enquanto mexia, vagarosamente, a sua xícara de chá. — E, no entanto, não só não casei, como ainda a tenho, hoje, entre as minhas piores inimigas.

Aquela história, contada assim tão tranquilamente, parecia esquisita ao João Lucindo. O namoro da viúva Eunice do Amaral com o Rocha Borges era dos mais conhecidos nas rodas elegantes. Viviam como noivos, como camaradas, como íntimos, como criaturas que se amam e se entendem. Como, então, se teria acabado tudo aquilo?

O Rocha Borges leu, perspicaz, a indagação que havia no silêncio do amigo. E resolveu explicar-lhe, com singeleza, o mistério daquela separação:

— Eu e a Eunice vivíamos, como tu sabes, na mais honesta e encantadora camaradagem. Levava-a às festas, ao teatro, aos passeios, e pretendia tornar-me seu marido logo que terminasse o luto pela morte da minha mãe. Éramos felizes, assim. Este ano, fomos os dois, fantasiados, ao Carnaval. Eu de dominó, ela de apache. Sábado, domingo e segunda, percorremos os clubes principais, dançando, ceiando, brincando. Terça-feira havia baile no Cascata-Clube.

— O Cascata-Clube pegou fogo pelo Carnaval...

— Isso mesmo. E nós estávamos lá, na ocasião do incêndio.

— Vocês?

— Então? Eu e a Eunice. E aí é que se deu a desgraça.

— Conta, menino! — Suplicou o João Lucindo, impaciente, mexendo-se na cadeira.

E o Rocha Borges contou:

— Eu havia deixado a Eunice no primeiro andar, ceiando, e descido ao andar térreo, para falar ao telefone, pedindo o carro ao chauffeur. Da caixa do aparelho onde me havia fechado, não sabia de nada que sucedia fora. E quando abri, as chamas já haviam tomado a escada e o elevador, isolando todas as pessoas que se achavam lá em cima.

— Que horror!

— O meu primeiro cuidado foi, naturalmente, salvar a Eunice. No meio daquela confusão, daquele tumulto, daquele inferno, gritava-lhe pelo nome, correndo em torno da casa, quando a vi aparecer em uma janela, ao clarão vermelho daquela fornalha. Olhei em torno, e descobri uma tábua, que os pedreiros haviam deixado, ao terminar as obras. Pus uma ponta da tábua em cima, na borda da janela, segurei a outra no peito, e mandei que a Eunice se escanchasse, e escorregasse para a rua. Ela obedeceu, escorregou, mas, ao chegar ao chão, foi para tomar um auto, e ir para casa. E nunca mais me falou.

Tomou um gole de chá, e, crispando as mãos, concluiu, indignado:

— Mas, rapaz, quando é que eu podia imaginar que o diabo daquela tábua tinha um prego?!...

XXIV

O CANÁRIO COXO

A conhecida casa de aves, à rua Sete de Setembro, estava, àquela hora, fervilhante de bichos. No centro, em grandes gaiolas pousadas no chão, eram os galináceos de raça, aos casais ou aos ternos: os galos, imponentes, soberbos, a crista de sangue e a cauda em trompa de caça, e as galinhas, humildes, familiares, obedientes, prontas a acudir, em cacarejo tímido, ao mínimo chamado do seu marido e senhor. Os pombos, cinzentos, roxos ou brancos, faziam roda nas caixas de madeira, imprimindo na areia das tábuas o trevo de quatro folhas do seu pequeno pé de rubi. Os patos grasnavam, pesados, em grandes caixões sem limpeza, ao mesmo tempo que as galinhas d’Angola estalavam o bico, passeando rapidamente o seu vulto ágil, nervoso, ligeiro, de penas escuras artisticamente pintalgadas de cal.

O maior sortimento era, porém, de aves canoras. Além do viveiro grande, formigante de coleiros e bicos-de-lacre, coloridos como joias de asas, notava-se a porção de gaiolas pendentes do teto, e em que os canários de raça, cantores famosos, premiados nas exposições, retiniam árias ligeiras como pequenos maestros voláteis. Havia-os amarelos, gema de ovo; outros, mais claros, e outros puxando para o verde, como folhas que tivessem garganta. E foi exatamente um daqueles que encantou, olhado de baixo, mme. Viterbo Ramos, que ali entrara, mesmo, afim de comprar uma avezita para a varanda do seu bangalô.

Metido na sua gaiolinha de arame, o passarito não se cansava de estalar o bico, cantando. E enquanto cantava, quase que não pousava no chão da gaiola, voando de um lado para outro como uma banana-ouro que tivesse endoidecido.

— Faz favor... — chamou a moça, dirigindo-se ao Sr. Teotônio, português pesadão e bigodudo, proprietário de tudo aquilo.

E indicando a gaiola:

— Quanto custa aquele canário?

— Duzentos mil réis, — informou, seco, o homem das aves.

O Sr. Teotônio fez descer a gaiola, pousou-a sobre o balcão, e elogiava vivamente o passarito, como primeiro cantor da casa, quando a moça, de repente, observou:

— Mas, espere; esse canário não é coxo?

É sim, senhora; ele tem uma perna quebrada.

— Ah! Que pena! ... — Fez madame.

— Assim, não me serve...

A essas palavras o Sr. Teotônio pôs as mãos na cintura.

— Ora, minha senhora! ... Diga-me cá uma coisa, — exclamou, aborrecido.

E brutalmente:

A senhora quer canário para cantar ou canário para dançar?

XXV

A “GARÇONNIÈRE”

Desde que lhe morrera a mulher, o honrado chefe de secção tornara-se um estroina como poucos havia na cidade. Ganhando o suficiente para o sustento da casa, dirigida pela Julinha, sua filha única, deixava a esta a incumbência de todos os negócios domésticos, e passava a noite, até tarde, ao lado de companheiros alegres. E assim lhe ia correndo a vida, sem cuidados, sem surpresas, sem desgostos irremediáveis.

A ventura é, porém, como as rosas, que desabrocham pela manhã e se desfolham à tarde. Comendo bem, divertindo-se à farta, Antônio Venâncio confiava na filha, sem tomar-lhe, entretanto, conta dos atos. A menina afigurava-se lhe ajuizada, embora um pouco amiga do luxo, dos passeios, do bulício da cidade, mas tudo isso lhe parecia explicável, natural, para quem vivia sozinha, em companhia apenas da avó.

Certo dia, no Clube dos Piratas, travou o conhecido funcionário relações, embora ligeiras, com um digno companheiro de pândega. Era o Rogério Batista, rapaz endinheirado e jovial, que havia regressado, há pouco, da Europa.

— O Rogério Alves Batista! — Dissera um colega, que o apresentara.

E batendo no ombro do outro:

— O Antônio Venâncio Barcelos!

E sacramentando a aproximação:

— Sejam amigos, hein? Comam no mesmo pasto, mas não briguem!

Nessa mesma noite, após três garrafas de champanhe, bebidas pelo bico de duas francesinhas de lábios de lacre, ficou combinado que o Barcelos iria, dois dias depois, conhecer a garçonnière do novo companheiro.

— Mas você não me achará em casa; sabe? — Avisou o estroina.

— Como não? — Estranhou Barcelos.

O outro explicou-se, claro. Não era chic um homem receber outro nos seus aposentos galantes. Ia fazer como em Paris. Punha na garçonnière uma das suas amiguinhas mais encantadoras, e entregava ao convidado a outra chave da porta. O amigo assim distinguido tomava conta da casa como se fosse a sua, passando dessa maneira, sem ser incomodado, uma tarde deliciosa.

— Está combinado? — Indagou Rogério, despedindo-se.

— Depois de amanhã?

— Depois de amanhã.

Dois dias depois, às duas horas da tarde, recebeu o Venâncio, na sua repartição, uma carta expressa, com a chave da garçonnière. E o que o Rogério lhe dizia era muito, em poucas palavras. Recomendava-lhe que fosse, às três, em ponto. A pequena estaria lá, à espera, um pouco antes. Era o “suco”, a garota. Aproveitasse ele a tarde, e não se arrependeria.

Venâncio Barcelos torceu o bigode, lisonjeado, correu ao barbeiro, barbeou-se, penteou-se, perfumou-se e, às três horas, menos dois, metia a chave na fechadura do gracioso ninho secreto, escondido entre árvores, na quietíssima travessa familiar, em Botafogo. Empurrou a porta, e entrou, abafando os passos na tapeçaria que forrava o soalho de toda a casa.

— Minha filha! ...

— Papai! ...

XXVI

O ÚNICO REMÉDIO

 (ADAPTADO DE RENÉ BERLY)

Pois, é isso! Ou trezentos mil réis ou nada! ... Eu sei quanto vale a minha vaca? Ora, bolas!

— Mas, que é isso, João? Não se pode tratar com você hoje? Que é que você tem?

— Bolas! Vá amolar o boi!

E abandonando a vaca, e a respectiva cria, à toa, à sombra de uma árvore, na pequena praça da vila, animada pela feira do dia, João Timóteo embarafustou pelo meio do povo, abrindo a onda humana com quatro ou cinco braçadas poderosas, que o seu cacete ajudava.

À sua aproximação, as cabeças cobertas por um lenço, os vestidos ramalhudos, as blusas de chita berrante afastavam-se, apavoradas. E as maldições choviam, de um lado e de outro:

— Oh, desgraçado! ...

— Vote, temporal!

A vaca e o bezerro, abandonados à sombra da árvore, interrogavam-se com o mesmo olhar redondo e saliente: que é que ele terá? E juntavam-se mais um à outra, como numa reciprocidade de proteção.

Vencida a multidão, João Timóteo enveredou, na praça, por uma porta, em cujo interior se viam dois frascos enormes, um vermelho, outro azul, em cada um dos quais se lia: “Machado, farmacêutico”.

Em outro qualquer dia, que não naquele da feira, o dono da casa teria tomado um susto, ao ver entrar-lhe pela porta aquela fisionomia feroz. Naquela ocasião estava, porém, com a casa cheia, aviando um xarope para este, um unguento para aquele, de modo que, em vez de estremecer, até sorriu à vista do João Timóteo.

— Um momento, João; já lhe atendo, — disse-lhe, risonho, quando o bruto apareceu entre os dois frascos vermelho e azul.

A boca babando como a de um touro, o vaqueiro deu um murro no balcão.

— Ah, não! Não espero nem um minuto! Diabos me levem! Ou o senhor me dá um remédio para isto, ou arranca já, e já!

— É um dente estragado, não é? ... E está lhe doendo... não é? ...

— Bolas! Então não se está vendo que está? ... é preciso eu dizer? ...

— Acalme-se, João... Um instante. Tirar o dente eu não posso... Não é da minha profissão. Mas eu vou lhe arranjar um remédio para adormecer a dor... Uma cápsula de aspirina...

— Aspirina? ... Eu não faço outra cousa há oito dias senão comer essa porcaria... Pão me faz nada... Já estou com a barriga ardendo...

— Bem, bem... Vamos ver... Faz-se uma aplicação de clorofórmio.

— Clorofórmio... Já estou com a goela em brasa! ... Mas que diabo! Não há nada mais nesta porcaria de botica ?!...

O sr. Machado vai protestar, mas a assembleia de fregueses começa a rir, achando graça no caso. O melhor é, pois, pilheriar.

— Sim, sim, João, há remédio para tudo... Espera... Olha, ultimamente, eu também tive uma dor de dentes... Um desespero... De repente, porém, me veio a lembrança o provérbio: “Dor de dentes, mal de amor”. Foi uma inspiração, e eu não hesitei; corri em casa, procurei minha mulher, a Joaninha, dei-lhe uns beijos, e, o resto, você compreende. Ao fim de vinte minutos estava bom!

— Compreendo... — rugiu o caboclo, o olho vermelho de dor.

E após um momento:

— Mas, onde é que eu encontro, a esta hora, Dona Joaninha?

XXVII

A CONQUISTA

Ao passar o Bueno Mendes, com os seus embrulhos de chefe de família, a “borboleta” da estação das Barcas, rumo de Niterói, notou que dois olhos muito negros, escondidos como dois salteadores à sombra de um chapéu muito largo, se fixavam na sua figura. Passado o obstáculo de ferro que se vence com três tostões, notou o rapaz que aqueles olhos o acompanhavam, e que havia, de parte da proprietária deles, qualquer interesse pela sua pessoa.

Inimigo de escândalos e, mesmo, pouco amigo de conquistas, Bueno Mendes considerou, logo, os perigos da aventura. A dama, que era linda, achava-se acompanhada de um cavalheiro forte, airoso, bem vestido, que era, com certeza, seu marido. Melhor seria, pois, fugir à tentação, antes que aquele desconhecido, justamente enciumado, lhe metesse na barriga seis caroços de azeitona, desprezando a via gástrica.

Disposto a continuar o seu caminho, o honrado funcionário de Banco tomou a barca, procurando um lugar, em cima. E começava a acondicionar os seus embrulhos, quando se sentaram a seu lado o rapaz bem vestido e a dama dos olhos buliçosos, cujos olhares não se desviaram da sua pessoa, enquanto o marido, cabeça baixa, lia, indiferente, um dos jornais vespertinos.

— Já se viu que perseguição? — Dizia, de si, consigo, o pobre Bueno, ao mesmo tempo que abençoava, no íntimo, aquele encontro providencial.

Dias depois, na barca para o Rio, aliviado dos embrulhos familiares, encontrou-se o rapaz com 0 mesmo pedaço de tentação. Um pouco de coragem da parte dele, e, na viagem, estavam os dois de palestra formada, sabendo, então, Bueno Mendes que a moça se chamava Amélia, e, na intimidade, Lili, era casada com aquele sujeito que a acompanhava sempre, e morava, provisoriamente, na praia de Gragoatá, onde tinham ido passar o verão.

— E onde poderei vê-la, mais intimamente? — Indagou Bueno.

— Em minha casa mesmo, — informou a dama, os olhos baixos, numa acentuada expressão de nervosismo. — Meu marido é ciumentíssimo e seria capaz de matar-me, se tivesse a menor suspeita de mim. Ele é, porém, empregado no Rio, de onde só volta às sete horas, de modo que eu não teria a menor dúvida em arriscar a minha vida para ter o prazer da sua visita. O senhor sabe que, quando a gente ama sinceramente, não enxerga perigo...

— E quando poderá receber-me?

— Amanhã mesmo... Está bem? Às duas horas da tarde.

Toda aquela noite, passou-a Bueno Mendes a pensar naqueles olhos, naquela boca, naquele corpo maravilhoso, que aparecia no seu caminho, como um rosal em meio do deserto. E quando foi no dia seguinte, entrava ele, com uma caixa de joalheria na mão, na pequenina vivenda da praia de Gragoatá, onde a deliciosa criatura o aguardava num perfumado roupão rosa, em companhia, apenas, de uma criada de confiança.

Só um homem apaixonado pode imaginar o que foram, para o simpático empregado de Banco, as horas daquela tarde. A beleza da moça, o fogo dos seus beijos, e a convicção de que praticava um duplo pecado, apossando-se de uma senhora honesta, de outrem, davam àquela aventura um encanto, que ele jamais imaginara. E as estrelas começavam a piscar no céu, quando Bueno, correndo ao bolso do colete, examinou o relógio.

— Meu Deus! Sete e dez! Teu marido não tarda a chegar!

Estendida, de olhos fechados, Lili não ouvia nada. Uma sonolência doce apossara-se dos seus sentidos, anestesiando-os. E foi por vê-la assim, que o rapaz entreabriu a porta, e chamou a criada.

— Diga-me uma cousa, — perguntou.

A que horas costuma chegar o seu patrão?

— Às seis e meia; às vezes às sete. Mas hoje já chegou.

— Como? — Indagou, horrorizado, quase num grito.

A E a rapariga, com a maior sinceridade deste mundo:

— Ele chegou eram seis horas; mas eu disse que tinha gente com a patroa, e ele, então, saiu outra vez...

XXVIII

A RÃ E O SABIÁ

A noite começava a apagar, ao longe, com o seu manto escuro e pesado, a fogueira que o sol acendera nas nuvens do ocidente, quando o sabiá, que, de um galho baixo, — minúsculo Nero de penas, — acompanhara, cantando, o incêndio daquela Roma intangível, percebeu que o chamavam:

Psiu ... psiu! ... Ó amigo! ... Era você que estava cantando?

O sabiá virou o bico na direção do solo, e viu quem falava. Era a rã, o batráquio inchado e inofensivo, que, a gorja palpitante, parecia aguardar a resposta.

— Era eu mesmo; por quê? — Respondeu a ave, desconfiada.

A rã fez um arzinho de riso galhofeiro e informou:

— Não é por nada. É que eu ouvi dizer que você era a garganta mais afinada, mais harmoniosa de toda a floresta. Mas estou vendo que me não disseram a verdade. Não é, acaso, da mesma opinião? Absolutamente. Eu própria, sabe? Eu própria, canto melhor.

— Você — fez o sabiá, achando graça.

— Você?

— Não ria, não, — tornou a rã; — eu canto melhor do que você. E se quiser, apostemos!

— Está fechada a aposta. Apostemos!

— Está fechada. Vamos escolher dez juízes, dez bichos insuspeitos, que terão de dar o veredicto.

Durante dois dias trabalhou aquele pequeno mundo na escolha dos dez membros do Conselho de Sentença. E ao começo do terceiro, era anunciada a composição do júri, do qual faziam parte o canário, a graúda, o gaturamo, o japim, a pipira, o coleiro, o corrupião, o sapo e a tartaruga.

— Excelente! ... Pensou o sabiá, contente, ao verificar que a maior parte dos jurados era de aves canoras, que poderiam compreender, perfeitamente, a sua superioridade sobre o competidor.

À hora da prova, o sabiá empoleirou-se em um galho verde, que o vento balouçava, e começou a cantar. Cantou as matas natais, cantou o crepúsculo, cantou a saudade imensa, e profunda, da Natureza agonizante. Ao terminar, a rã coaxou monotonamente umas duas ou três vezes, e deu por findo o seu esforço.  E quando se passou à apuração, o papagaio, que presidia à sessão, leu o resultado:

— A favor da rã, oito votos; e a favor do sabiá, dois.

E logo:

— Saiu vitoriosa a rã, por oito votos contra dois!

Todos baixaram a cabeça, constrangidos. À saída, conversava-se sobre o fato, ou, antes, sobre o escândalo, quando o sapo declarou, solene, as mãos na cava do colete:

— Eu, por mim, votei no sabiá!

— Eu, também! — Confessou a tartaruga, enxugando o rosto com o lenço.

Todas as aves canoras haviam votado na rã.

Essa fábula, que veio, parece, embora com outros bichos, no Punch, de Londres, contava-a, à porta do Garnier, o grande Alberto de Oliveira, a um grupo de rapazes que amam os livros, quando o professor Bocha Pombo, que não ouve bem, se aproximou, e pediu:

— Como é, Alberto?

E a mão na concha da orelha, para escutar melhor:

— Como é essa história, que você estava contando, sobre a candidatura dos poetas à Academia de Letras?

XXIX

 

AURORAS BOREAIS

A mocidade para as mulheres é como o dia para as diversas regiões do planeta. Assim como há países em que o dia tem quatorze horas, outros há em que amanhece tarde, e anoitece depressa. O interior do Brasil está, em relação à mocidade das mulheres, neste número. Em Pernambuco, no Ceará, no Maranhão, as senhoras recolhem-se à intimidade do rosário, à espera dos netos, pouco depois dos trinta anos. Aqui no Rio, não; no Rio, as damas dançam o shimmy e piscam o beiço para os rapazolas desocupados, até depois dos sessenta. Vigora, aqui, o regime da Aurora Boreal.

O Antoninho Macêdo Rocha andava pelos vinte e dois anos, quando, por exigência da família, enlutada recentemente, abandonou a Faculdade do Recife, onde cursava o terceiro ano de Direito, para vir gastar na capital da República uma parte da herança que lhe coubera em partilha. E aqui desembarcou em um dia de sol, com a cidade faiscando, tentadora, pelos vidros de todas as suas janelas.

Claro, cabelos negros e lisos, lançados para trás, o estudante pernambucano era o tipo legítimo do efebo nacional. Possuía boca pequena e vermelha, dentes miúdos, e como trajava rigorosamente de preto, o rosto parecia mais pálido, e mais romântico, no contraste grave das cores.

Atirado, assim, com a sua juventude sadia, ao tumulto da vida carioca, Macêdo Rocha era, nos círculos mundanos, um grão de milho no galinheiro. Nos chás dançantes em que aparecia, as mulheres chics, entre os quarenta e os sessenta, o disputavam como se se tratasse de um salva-vidas no momento do naufrágio. E Macêdo Rocha deixava-se arrastar, como a folha que, sem vontade própria, tomba, e desce, na violência da correnteza.

Na batalha que, em torno da sua pessoa, se feria, mostrava, porém, o novo Adonis uma simpatia doce, e toda íntima, por Mme. Gama Bermudes, a quem encontrava, sempre, como por acaso, a seu lado, nas festas a que comparecia.

A Gama Bermudes andava aí pelos cinquenta e cinco anos, pintava o cabelo de marrom, e trazia no rosto o estigma de idade. Entre a ponta do queixo e a caixa torácica, pendurava-se-lhe uma cortina de pele, mole, flácida, bamboleante, que o seu coquetismo procurava ajustar ao pescoço com as quatro voltas de um colar de pérolas, do valor, só ele, de trezentos contos de réis. Cortava as falripas “à la garçonne”, calçava sapatinhos Luiz XV, e, em matéria de vestidos, enfeitava a sua ruína com as melhores heras das costureiras do Rio.

Não obstante tudo isso, ou por tudo isso, a Gama Bermudes, que se julgava uma das senhoras mais irresistíveis da cidade, achou-se com o direito de disputar às contemporâneas, nos chás, o moço pernambucano. Aquelas maneiras tímidas do rapaz caíram, logo, no seu agrado. E tanto fez, que, uma tarde, ao senti-lo perto, o hipopótamo de saias atacou, logo, o estudante.

— O senhor parece simpatizar muito comigo... Não é, doutor?

— Oh, muito! — Confessou o moço, confuso. — A senhora parece-se demais com uma pessoa que foi tudo para mim na vida, e que eu acabo de perder!

— Alguma noiva? — Fez a velha, a cabeça de um lado, a dentadura à mostra, os olhos faiscando, cúpidos, por baixo das três camadas de tinta.

— Não, senhora, — informou, triste, o rapaz.

E enxugando uma lágrima:

— A minha avó...

XXX

A DESCOBERTA DO ANASTÁCIO

— Vá passar uns dias conosco, meu tio; vá. Aproveite as festas do Carnaval, e vá visitar-nos.

Foi assim que, ao deixar a Campanha, onde fora liquidar os últimos negócios da herança do pai, o Benedito Madeira Mendes, escrevente num cartório do Rio, convidara o velho Anastácio Barbosa, irmão do falecido e pessoa queridíssima na família. E foi em virtude desse convite, feito de tão boa vontade, que o ancião enveredou, uma tarde, pela casinha da rua São Cristóvão, próximo à praça da Bandeira, onde residia, com a mulher, e os irmãos, o autor daquele oferecimento gentil.

Recebido com intimidade carinhosa, Anastácio desarrumou a mala, aboletou-se em um quarto que lhe foi arranjado, e, dois dias depois, industriado pelo dono da casa, começou a sair só.

— Não tem que errar, meu tio, — dissera-lhe o escrevente. — O senhor sai de casa, dobra à direita, entra na rua Miguel de Frias e vai até o Mangue. Aí, atravessa a ponte, e vai tomar o bonde do outro lado. É facílimo!

Certa manhã, acabava o honrado mineiro de sair de casa, quando, ao entrar na rua Miguel de Frias, sentiu uns desejos esquisitos, de certa necessidade. Metros adiante, havia um paredão da Light. Apressou o passo, na esperança de encontrar ali o refúgio que os cachorros encontram em cada poste, quando, levantando os olhos, viu em letras negras, no muro, o seguinte aviso: É proibido verter água”.

— Mau, mau! — Gemeu Anastácio, pondo-se a caminho.

Na Avenida do Mangue, viu outro muro, e caminhou para lá. E estava para realizar o seu desejo, quando um fiscal se aproximou, batendo-lhe amigavelmente no ombro:

— É proibido isso aqui, camarada. Marche!

Pálido, as mãos frias, os pés gelados, com um peso no corpo, que lhe dificultava as passadas, aproxima-se o honrado velho de um paredão da Central, disposto a cumprir, de uma vez, o seu dever de animal. Assim, porém, que chegou junto, estremeceu, como se lhe caísse um raio aos pés. Lá estava no muro da Estrada de Ferro, como no da Light, o mesmo aviso terrível: “É proibido verter água aqui”!

— Maldita terra! — Gemeu, dentes cerrados, o velho Anastácio, fazendo parar um bonde, que passava para a cidade.

Dez minutos depois, o olhar parado, o rosto pálido, o nariz afilado, encostava-se o velho mineiro, a um poste, na rua da Assembleia, quando viu, em cima, num primeiro andar, um letreiro enorme, tomando duas sacadas. Endireitou os óculos, e leu: “Vias urinárias”.

— Ora, sim, senhor! — Exclamou, num sorriso, enfiando pelo corredor da casa em cujos altos vira o letreiro. — Afinal de contas, encontro um lugar para essas necessidades!

À tarde, à mesa do jantar, fornecia o velho Anastácio as suas impressões da cidade.

Gostei muito! — Dizia. — É muito bonita. Só estranhei uma cousa.

E com a boca cheia, descansando o talher:

— Quem inventou essa ideia, Benedito, de botarem os mictórios daqui em cima do sobrado? É só para a gente pagar vinte mil réis... Não é?

XXXI

ELE VOLTA...

Os três anos de intimidade entre a Vivi Barreto e o Arnaldo Bordalo, haviam sido, quase, um noivado contínuo. A Vivi acabava de separar-se do marido, um comerciante brutal e amigo de bebidas, quando, em uma terça-feira de Carnaval, conhecera o Bordalo. E tão delicado o achou, e tão sincero nas suas demonstrações amorosas, que abandonou a casa do pai, onde se recolhera, unicamente para consagrar-se àquele homem, que preenchia, em tudo, a grande aspiração do seu destino.

Arnaldo Bordalo andava pelos vinte e nove anos quando isto sucedeu. Alto, forte, claro, rosto escanhoado, era mais um homem de trabalho do que um pelintra. Vestia-se com decência, mas sem exageros de moda, fornecendo a quem o via a impressão boa, e honesta, de um honrado pai de família. Engenheiro, dedicava-se com afinco à sua profissão, de que só se afastava, à noite, para passar algumas horas na pensão de que era Vivi a única inquilina irrepreensível.

Boa rapariga, bom coração, Vivi Barreto poderiam dar uma companheira excelente para um homem de bem. Arnaldo tinha, porém, responsabilidades sociais. Tinha mãe e irmãs, e, se não frequentava, acompanhando-as, as reuniões mundanas da cidade, isso não significava repúdio à sociedade, a ponto de levar para o seu lar, com o seu nome, uma criatura cujo marido ainda era vivo e que, ademais, já havia respirado a atmosfera pesada, e comprometedora, dos ambientes duvidosos.

Colocado, assim, entre a afeição e o preconceito, o moço engenheiro tinha de, naturalmente, capitular perante a família. E, tamanha foi a vitória da diplomacia doméstica, principalmente do carinho materno, que, um dia, os jornais anunciaram o noivado de Arnaldo Bordalo, o ilustre arquiteto brasileiro, com a senhorita Maria Alice Gouveia da Câmara, filha única do senador Câmara, e neta, por parte do pai, dos barões de Itararé.

Era essa notícia, dada pelo rapaz, pessoalmente, na véspera, que punha vermelhos, naquela manhã, os olhos de Vivi. A rapariga não dormira a noite toda, chorando. E estava nesse estado de abatimento profundo, consequente às grandes catástrofes, quando lhe entrou no quarto a Dona Andréia, proprietária da pensão, a qual, ao fim de três anos, já lhe havia, também, criado amizade.

— Que é isso, minha filha? Arrufos entre vocês? — Indagou a velhota, bondosa.

A rapariga, rompendo em soluços, e caindo-lhe nos braços, mal teve forças para exclamar:

— O Arnaldo... me... a... ban... donou!... Deixou-me... on... tem!...

— O doutor Arnaldo? ... — Fez a matrona, com espanto. — O dr. Arnaldo? ...

E Vivi, soluçando:

— Sou uma... des... des... graçada! ...

Dona Andreia meditava. De repente, indagou:

— Mas, ele te deixou por outra?

— Sim, se... nhora.

— Rapariga ou donzela?

— Mo... ça... Deixou-me... pa... ra se ca... sar...

Os olhos da matrona iluminaram-se. Em sorriso bom espontou-lhe na boca murcha.

— Ah! Minha filha, sossega! — Pediu. — Não tenhas medo, não. Se te deixou para casar, fica tranquila.

E abraçando-a, com a certeza das mulheres experientes:

— Ele volta...

XXXII

O MÉDICO

A vizinhança andava, há tempos, revoltada com o cinismo daquela senhora. E não era para menos. Casada há pouco mais de um ano com o Balduíno Sezefredo da Rocha, alto funcionário do Ministério da Viação, Dona Dorinha não tinha o menor motivo para enganar o marido. O rapaz dava-lhe tudo, de coração, e com abundância. A casa era de aspecto nobre, a criadagem era numerosa, e madame, não obstante a sua origem modesta, luxava, agora, como as grandes damas da cidade. Por que, pois, permitir aquela indignidade, aquela miséria, aquela perfídia, sem uma comunicação oportuna ao pobre esposo traído?

O mais indignado com aquela traição revoltante era, entretanto, o comendador, Benício de Souza. Pai de seis filhas casadouras, não lhe era lícito consentir semelhante ignomínia nas vizinhanças da sua casa. E foi por isso que, naquela tarde, mal o tenente Valério Freire entrou, como habitualmente, no palacete de Sezefredo da Rocha, correu o comendador ao telefone, afim de prevenir do caso o desventurado funcionário.

Ao tomar, porém, do fone, colocou-o de novo no gancho, irresoluto. Valeria a pena a gente meter-se na vida alheia, mesmo naquelas circunstâncias? E se o homem morresse, ao receber inesperadamente aquela notícia, que era, podia-se dizer, o desmoronamento de toda a sua vida?

— Ah, já sei! — Disse, de repente, batendo na testa, e tomando o fone.

Feita a ligação pedida, e chamado ao aparelho o funcionário, o antigo capitalista tremia mais, talvez, do que o marido da moça. E foi com um estremeção que ouviu, de súbito:

— Alô! ... Alô! ...

—. Alô!... — Grunhiu o comendador, atrapalhado. — É o senhor Sezefredo?

— Sim, senhor... Quem fala?

— Senhor Sezefredo, é... é... para pedir ao senhor que chegasse... a toda pressa... aqui, na sua casa... A sua senhora teve... teve uma vertigem... e está passando bastante mal!

Um estalo do outro lado do fio denunciou o susto, o sobressalto, a surpresa causada pela notícia. E não se tinham passado oito minutos após o abandono do fone, quando parou na porta do palacete um automóvel de praça, do qual pulou, ainda com o carro andando, o Balduíno Sezefredo, que foi logo galgando os degraus da escada, em grupos de três e quatro.

Ao penetrar subitamente no quarto de dormir, Sezefredo sentiu um frio no coração. Estirada no leito, em camisa, Dona Dorinha estava branca de cera. Ao seu lado, de pé, segurando-lhe as mãos, o tenente Valério quis fugir, ao ver o dono da casa. A ânsia apaixonada com que este se atirou para a esposa, beijando-a, sacudindo-a, chamando-a, fê-lo, porém, ficar.

Aos solavancos do marido, Dona Dorinha respirou, entreabrindo os olhos.

— Salva!... — Fez Sezefredo, num contentamento inominável. — Salva!

E virando-se para o Valério, os olhos cheios d’água, apertando-lhe as mãos, com vivacidade:

— Muito obrigado, doutor! Muito obrigado! O senhor salvou a minha mulher.

E levando-o até à escada, com todas as reverências, supondo tratar-se de um médico chamado para socorrê-la:

— Mande-me a sua continha, sim? Pode pedir quanto quiser!

XXXIII

A PERGUNTA INDISCRETA

 (SOBRE UM CONTO FRANCÊS)

Após a aposentadoria do marido, que completara trinta anos de serviço público e vinte e quatro de reumatismo, a bondosa Mme. Lopes Batista ordenara admiravelmente a vida do casal: passeio de bonde seis noites por semana, e, às quintas-feiras, aquela encantadora reunião dos Mota Sampaio, com os quais mantinha, apesar dos anos e da quase vizinhança, relações mais ou menos cerimoniosas.

Antônio Lopes Batista era um desses velhos burocratas inatacáveis, cuja vida é mais pautada do que o papel em que escrevem. O mínimo acontecimento incomum tomava na sua existência proporções extraordinárias. E era por isso que a mulher, Dona Felismina, participava de todos os seus atos, exercendo sobre o antigo funcionário público uma verdadeira tutoria. Encontrasse ele na rua um conhecido, e, ao chegar em casa, tinha que contar à companheira como o cumprimentara, o que dissera, como, se despedira, para, ao fim, escutar a sentença:

— Fizeste mal. Não devias ter dito assim. Devias ter feito assim.

E explicava-lhe o gesto que lhe competia fazer, as palavras que devia ter proferido, a conversa que devia ter entabulado.

Certa quinta-feira, após o jantar, Dona Felismina queixou-se:

— Eu não me estou sentindo bem, Antônio. Parece que me resfriei, ontem, à noite.

— Não vamos, então, à casa dos Sampaio?

— Eu, não; mas, tu, podes ir.

— Sem ti?

— Por que não?

E batendo-lhe na mão, sorrindo:

— Eu só te recomendo que não flertes com Dona Lolota... Ouviste?

As reuniões dos Mota Sampaio eram das mais concorridas do bairro. É verdade que não havia danças nem meninas namoradeiras; os frequentadores, gente burguesa e honesta, contentavam-se com o chá, com as palestras, com o quino e, sobretudo, com o jogo de prendas, que fazia a delícia daquela pequena sociedade.

Naquela noite, em que Dona Felismina faltara, a brincadeira escolhida fora a das “perguntas indiscretas”, cujas respostas, pela precipitação e pela surpresa, constituíam, às vezes, verdadeiros disparates. Quem desse a resposta mais apropriada, mais oportuna, mais feliz, era considerado vencedor do serão e festejado com uma salva de palmas.

Feita a roda de convidados, na qual fora dado ao Lopes Batista o lugar de costume, começaram as perguntas, de supetão:

— Onde estava ontem à noite? — Indagava um.

Pergunta daqui, resposta dali, chegou a vez do marido de Dona Felismina.

— Onde o senhor se sente melhor, sr. Lopes?

— Nos braços de minha mulher! — Respondeu, sem pestanejar, o antigo funcionário público.

E uma salva de palmas, misturada de risos de aprovação, cobriu as últimas palavras do velho burocrata, considerado, assim, o herói daquela noite.

Ao chegar em casa, Dona Felismina já estava recolhida.

— Que tal a festa, Antônio?

— Muito boa. Imagina tu que o herói da noite, hoje, nas “perguntas indiscretas”, fui eu!

— Tu? — Estranhou a precavida senhora, prevendo uma gafe. — Que foi que perguntaram?

— Perguntaram: “Onde o senhor se sente melhor, sr. Lopes? ”

— E tu, que respondeste?

Pudico e honesto, Lopes Batista sentiu-se, de repente, assaltado por uma vaga de vergonha. Adorava a companheira, mas sabia que ela, com a sua severidade intransigente, não lhe perdoaria a sem-cerimônia da resposta. E foi ligeiramente vermelho que respondeu, numa mentira:

— Eu respondi que me sentia bem quando... ia ao teatro!

— Ao teatro? — Estranhou a matrona. — Que tolice, Antônio! Que resposta banal! Com certeza os Sampaio te tornaram o herói da noite, por bondade, por gentileza. Eles são muito bons...

Na manhã seguinte, estava Mme. Batista à janela quando o velho Mota Sampaio passou, rumo do seu bonde.

— Bom dia, Dona Felismina!

— Bom dia, sr. Sampaio!

— Já sabe, então, que o seu marido foi, ontem, em nossa casa, o herói do serão! Nós lhe perguntamos onde é que ele se sentia melhor, e ele respondeu...

— Já sei! Já sei! — Interrompeu a boa senhora, com ares constrangidos.

E aborrecida:

— Entretanto, foi uma tolice, sr. Sampaio. Imagine o senhor que ele só teve esse prazer duas vezes; e assim mesmo, uma foi para dormir, e outra para sair antes de acabar! ...

XXXIV

A TAXA DO PECADO

Era digna de comentários e de registo, naquela sociedade tão acentuadamente mundana, a amizade que ligava o desembargador Generoso Borges à formosa viúva Rocha Broxado. Nascida de uma admiração recíproca, fora aquela estima crescendo, desenvolvendo-se, modificando-se, a ponto de dizer-se, por toda parte, que o Amor já havia selado clandestinamente aquelas relações inocentes.

Nada havia, entretanto, de mais falso. Rica e festeira, vivendo em um ambiente de futilidades risonhas, Dona Carmen não era acompanhada nesses lugares pela vigilância do simpático magistrado. Este era pobre, modesto de maneiras, e não poderia seguir no voo uma libélula daquele feitio, com as simples asas dos seus vencimentos.

De uma tarde em diante, porém, a maledicência começou a ter várias razões para suspeitas. O desembargador e a viúva queriam-se, amavam-se, tornando, mais do que possível, provável a ideia de um casamento.

Carmen Broxado andava pelos trinta e seis anos e fazia questão de patentear todo o viço dessa idade gloriosa. Alta, forte, elegante, possuía linda pele e um corpo de escultura. O rosto, podia não agradar a um artista, que admira as linhas, mas agradava, com certeza, a um homem, que compreende as paixões. Os olhos eram um pouco saltados, e a boca mais forte, talvez, do que o necessário. O conjunto da figura tornava-se, porém, impressionante, à primeira vista, ou em exame demorado.

Foi dessa criatura que, o monóculo encastoado no olho, o rosto escanhoado e liso, em atitude petulante, o desembargador se aproximou. E abordou o assunto, no momento, exatamente, em que ela, diante da penteadeira, dava os últimos retoques no cabelo castanho.

— Madame — disse-lhe, resoluto, o magistrado, com a gravidade de quem passasse a relatar os autos de um grande processo; — madame, eu insisto na minha proposta, mas, também, nas minhas exigências.

— Exigências, de quê? — Fez a viúva, sem voltar-se. — Exige que eu abandone a sociedade pela vida puramente de família? Ah, meu caro! Se é assim, não falemos mais nisso. Eu gosto muito de bailes, de teatros, de chás; enfim, gosto de divertir-me!

— E quando se diverte, não pratica leviandades?

Carmen Broxado guardou silêncio. Ao fim de um instante, porém, tornou:

— Mas, podemos chegar a um acordo. Eu sou rica, tenho os meus oito mil contos; o desembargador é pobre, não tem nada. Poderia pagar-lhe uma multa, quando fosse a um baile, a um passeio, a um teatro... Duzentos mil réis, por exemplo...

Ante essa proposta insultuosa, o magistrado resolveu fazer blague:

— Bom, então, façamos uma cousa: toda a vez que a senhora me enganar, pagar-me-á cem mil réis!

A essas palavras, a viúva voltou-se, rápida:

— Ah, isso nunca!

E num desafio, como quem descobre a urdidura de um trama tecido na sombra:

— O senhor tem, acaso, a ideia de reduzir-me à miséria?

XXXV

O PRIMEIRO ESQUECIMENTO

Desde a véspera, Jeová, com a sua sensibilidade de pai, tivera o pressentimento da catástrofe. O modo por que Eva acorrera, naquele dia, ao seu chamado, despertara-lhe no espírito a suspeita de um perjúrio. Havia, com certeza, no coração da primeira mulher, qualquer segredo pecaminoso. E foi com essa convicção que o Senhor passou a noite sem poder dormir, e a remexer-se, incomodado, no seu enorme leito de nuvens.

Ao amanhecer, desceu o Criador ao Paraíso Terrestre, sentando-se na clareira florida em que se habituara a repousar, todas as manhãs. Estava abatido, com todos os vestígios da insônia: a testa enrugava-se-lhe em pregas profundas, os olhos empapuçados, a face pálida, a barba revolta. E foi com essa fisionomia de sofrimento, que, não vendo Adão, nem Eva, no lugar em que costumava encontrá-los, chamou, a voz formidável e trêmula:

— Adão, onde estás?

O rosto a cair, envergonhado, sobre o peito felpudo, uma folha de parreira a cobrir-lhe, as partes desgraciosas do corpo, a cabeleira em revolução sobre os olhos, o primeiro homem aproximou-se, tremendo:

— Onde estavas? — Rugiu o Criador, compreendendo toda a extensão do desastre.

— Tive medo de vós, Senhor, porque estava nu! — Gemeu o infeliz, desolado.

— Mas quem te disse que estavas nu? Não é por teres comido do fruto vedado?

— Foi Eva quem me deu, Senhor, e eu comi.

— E quem o deu a Eva?

— A serpente, Senhor!

Um arrepio de raiva sacudiu, como um terremoto a uma floresta virgem, as santas barbas de Deus. As mãos no rosto, na dor de quem vê a sua obra inutilizada para sempre, Jeová ficou em silêncio, um instante. De súbito, a cólera no olhar, explodiu, indicando Eva:

— Por teus filhos sofrerás grandes dores, grandes penas, grandes trabalhos, e serás, para sempre, a escrava do teu marido. Vai!

E a Adão:

— A terra será maldita por tua causa, e só dará espinhos e abrolhos; comerás pão com o suor do teu rosto; até que tornes ao barro, de que foste tirado; pois, tu és pó, e ao pó hás de voltar.

Apontada, aos dois, a porta do Paraíso, a cuja entrada foi posto um anjo com uma espada de chama, viram-se os proscritos, de repente, em pleno Deserto. A mão na mão, o dorso despido, os pés sangrando nos saibros, puseram-se a andar, sem esperança e sem rumo. O passo mais forte, Adão ia à frente, puxando a companheira, que já fraquejava. De repente, Eva estacou.

— Ah! — Fez, num movimento de espanto.

Adão parou, olhando-a:

— Temos de voltar, filhinho; sabes?

E, coquete, os olhos no companheiro:

— Não é que eu esqueci, lá, a folha da parreira que tenho de mudar amanhã?

XXXVI

DISTRAÇÃO DE REPÓRTER

(PIERRE VEBER)

O diretor do “Paris Quotidiano” acendeu um charuto, e, mandando chamar ao seu gabinete o pobre Renato Moreau, disse-lhe, com gravidade:

— A empresa acaba de perder, como sabe, na pessoa do nosso querido Bonzan, nosso redator mundano, um belo escritor que era, também, um fino homem de sociedade. Para substituí-lo, meu caro sr. Moreau, nós pensamos, como era natural, na sua pessoa. Há ano e meio que o senhor redige com finura e aptidão a secção de polícia; é justo, pois, que suba de situação no jornal.

— Quando se sobe, não se fica parado... — aventurou o repórter, timidamente, oferecendo, já, uma demonstração da sua capacidade para a vida elegante.

— É uma expressão natural, que o uso justifica... A partir de amanhã, portanto, fica investido nas funções de redator da secção mundana. É preciso, contudo, que se apure no vestuário e no estilo. O senhor tem de comparecer aos grandes casamentos, aos grandes enterros, às grandes festas. Não tire nunca do bolso o seu livro de notas, para tomar apontamentos; isso só se vê no teatro. Não trate por tu, com intimidade, as pessoas que não conhece. Se for convidado para um baile, não coma muito no buffet. Observe o maior cuidado nas suas maneiras, nas suas palavras. E, quem sabe, não fará o senhor um belo casamento, nesse meio que vai frequentar?

— Eu tenho essa esperança, sr. diretor.

— Você começará hoje mesmo, à noite, pela festa da Duquesa de Lambei. À meia-noite, traga as notas.

À meia-noite, em ponto, assentava-se Renato Moreau em frente às tiras brancas, na redação, a casaca no espelho de uma cadeira, o punho da camisa acima do cotovelo, e começava a escrever. Não se tratava mais do roubo a descobrir, do assassinato misterioso, do transeunte esmagado por um automóvel. Moreau escrevia, agora, de botinas de verniz. E começou:

"MUNDANIDADES

Ontem, no aristocrático palácio da sra. Duquesa de Lambei, houve, como se anunciara, elegante recepção, para festejar o noivado de Mlle. de Lambel com o Visconde de Peyraud.

A élite do Tout-Paris assistia a essa festa. Notámos aqui e ali: S. Ex. o Sr. Ministro do Exterior, com seu chefe de gabinete, o Sr. Lehavleur; o Sr. Cambrenole, o conhecido banqueiro, e sua Exma. Senhora; o Sr. Lartine, diretor dos Armazéns Unidos; o Conde e a Condessa de Bringue-Naryes; o Sr. Lacoste, administrador do Crédit-Fictif; o Conde San-Komsafoet, deputado pelo Morbillan; o Sr. Embaixador da Macedonia; o Sr. Alaytre, o riquíssimo industrial”.

Nesse ponto, Moreau deteve-se para sonhar um pouco, e adormeceu. Acordado em sobressalto cinco minutos depois, tomou da pena apressadamente, e, por hábito, concluiu:

“Todo esse pessoal foi recolhido ao xadrez”.

XXXVII

QUEM NÃO FALA... É COMO QUEM NÃO VÊ!

Viterbo Lopes estava casado há apenas quinze dias quando encontrou na Avenida, em companhia de outros patrícios, o Harry Amudsen, que havia sido seu companheiro de estudos na Universidade de Cambridge. Dois abraços e quatorze whiskies selaram esse encontro, cujo resultado foi o convite para um almoço, na residência do jovem engenheiro nacional, à rua Delfim, em Botafogo.

No dia seguinte, por volta das doze horas, entrava Nenenzinha Viterbo em casa, de regresso das compras, quando encontrou na sala de visitas, sentado no sofá, aquele sujeito alto, vermelho como crista de peru, a fumar negligentemente um cachimbo de espuma. Era louro, rosto escanhoado, e vestia linho branco, apesar do inverno. Os sapatões amarelos afundavam-se, pesados, no tapete azul, como dois couraçados da armada britânica que tivessem ancorado na baía do Rio de Janeiro.

Ao dar de cara com o inglês, a moça, prevenida de véspera pelo marido, encaminhou-se para ele, a mãozinha estendida, com o melhor dos seus sorrisos.

— Ah! É o Sr. Harry Amudsen; não? Meu marido já me havia falado no senhor!

A cara de pau, sem perceber uma palavra do que ouvia, o inglês compreendeu, pela mão estendida, que a dama o estava cumprimentando. E correspondeu, num shake-hand.

— Good by!

— Nós o esperávamos hoje... Viterbo havia me dito...

— Yes... yes... — confirmou o inglês, por palpite.

— A nossa casa é humilde, casa de pobre, mas é casa de amigos... Não acha?

— Yes... yes... — tornou o inglês.

Percebendo, pelas respostas, que o tal Harry não a estava entendendo nada, a moça resolveu deixá-lo.

— Com licença; sim?

E, erguendo-se, encaminhou-se para o aposento próximo, que era, exatamente, o seu quarto de vestir. Uma vez aí, sem mesmo encostar a porta que comunicava.com a sala, pôs-se a tirar, uma a uma, as peças do vestuário. E estava, já, apenas de camisa, empoando-se diante do espelho alto, para vestir outra toilette mais adequada ao almoço, quando o marido, penetrando na sala, seguiu a direção dos olhos do inglês, e viu que ele os tinha plantados na mulher, através da porta escancarada.

Em dois passos estava diante da esposa:

— Mas, tu és louca, Neném? Tu estás doida?

— Doida, por quê? — Fez a moça, ofendida.

— Tu não estás vendo que o Harry está ali? Como te atreves a despir-te, na frente de um estranho?

— Ora! Ora! — Achou graça a Nenenzinha, continuando a empoar o colo e os braços morenos.

E voltando-se para o marido, num movimento súbito, com raiva:

— Tu não vês, idiota, que esse teu amigo não sabe uma única palavra de português?

XXXVIII

MUNDIQUINHA

Todos os dias às dez horas, a caixa dos livros debaixo do braço, e, dentro da caixa, a merenda, partia a Mundiquinha para a escola. Franzina e pálida, via-se logo que era filha de pobre.

E era, mesmo. Andava a menina pelos dois anos quando o pai, um pedreiro português, escapuliu do terceiro andar em que trabalhava, indo rebentar os ossos no solo, pondo sangue pela boca. Padeceu dois dias e duas noites, o Albino. Até que, no terceiro, entregou a alma ao Supremo Arquiteto, deixando na penúria a esposa, a Maria da Graça, e aquela pirralha, que era todo o encanto da sua vida.

Gomando para uma freguesia numerosa, a viúva do Albino conseguiu criar a filha, honrando sempre a memória do marido. Aos sete anos, meteu-a na escola pública, no Andaraí Grande; e há um ano que a pequena cursava as aulas, quando a professora, a bondosa Dona Atília, teve uma febre, e morreu.

Ao ser divulgada a notícia, não houve mãe pobre que não lamentasse o acontecimento. Dona Atília era, para os pequenos, uma segunda mãe. E como se todas se tivessem combinado, não houve quem não preparasse a filha com o seu vestidinho lavado e discreto, para ir dizer, na sala da escola, onde o corpo ficara exposto, o último adeus à velha educadora.

Metida no seu vestido de cassa branca, com uma fita negra à cintura, a Mundiquinha foi considerada pronta, pela mãe.

— Minha filha, — disse-lhe a Maria da Graça, dando o último toque no vestidinho singelo; — você vai ver, pela última vez, a sua professora. Vá só na escola, beije-lhe a mão, e volte; eu não vou com você não é porque não queira: é porque tem aqui muita roupa ainda para hoje, e não tenho tempo.

E dando-lhe um beijo no rostinho pálido:

— Vá!

O passo triste, de criança enferma, a pequenita encaminhou-se para o edifício escolar, a cuja porta se enfileiravam os automóveis, os carros, e, no meio destes, outro, mais comprido, com os cavalos cobertos de crepe. Lá dentro homens de preto, pessoas chorando, e, num caixão, os olhos cerrados, as mãos cruzadas no peito, o corpo de Dona Atília.

Esgueirando-se por entre os homens, escorregando, sem fazer bulha, entre uma bengala e uma perna, a Mundiquinba chegou à clareira onde se achava o esquife. Era no momento, exatamente, da encomendação. A estola faiscando à luz dolorosa dos círios, o breviário aberto nas mãos, monsenhor Severino, vigário da paróquia, recitava, entre o silêncio geral, à cabeceira do caixão, o ofício dos mortos. E a sua voz, trêmula, mal disfarçava a comoção do momento.

Ao emergir, como um ratinho, no meio daquela gente e daquela cena, a pequenita estacou, espantada. E sem que alguém desse pela sua presença, mergulhou de novo naquela maré humana, até sair outra vez na porta, ganhando a rua, na carreira, rumo de casa.

Ao enveredar pelo portão, cansadinha, pálida, mais morta do que viva, quase não podia falar. Assim mesmo, foi correndo na direção do canto em que guardava a caixa dos livros.

— Que é isso, menina? Que foi? — Indagou a mãe, acorrendo inquieta.

— Eu vim buscar... meu... livro... — informou a pequena, ansiando. — Hoje... tem... escola...

E remexendo nervosamente na caixa, caneta para um lado, papel para outro:

— Já tinha lá... um padre... dando... lição! ...

XXXIX

OS DOIS PONTOS (:)

O principal atrativo da beleza bárbara de Mme. Castro Dorster são aqueles sinaizinhos encantadores. Os olhos da jovem senhora são lindos, no seu misto de fulgor e de ternura. Os cabelos castanhos, ligeiramente ondeados, cheiram como uma campina desabrochada. A boca, pequena e vermelha, de lábios polpudos, guarda duas fieiras de dentes tão certos, tão iguais, como se fossem colecionados a capricho. Ê alta, esbelta, colo de onda, e veste-se com o gosto, o garbo, o apuro de uma verdadeira parisiense.

A sua vaidade não está, entretanto, em nenhum destes atributos da sua graça incontrastável: motivam-na, e justamente, alguns sinaizinhos miúdos, legítimos grains de beauté, que lhe dão uma certa graça ao rosto, ao sorriso, à pele morena, ao conjunto, em suma, da sua formosura atordoante.

São eles em número de cinco: um, sob a pálpebra esquerda, pequenino como uma pulga que lhe procurasse o negro abismo dos olhos; outro, do mesmo tamanho, e igualmente negro, na face direita, lisa e corada como um jambo; outro, no pescoço, à direita; e dois, pequeninos, iguais, juntinhos um do outro, como Castor e Pollux, em pleno colo, quase na fímbria do decote, como se se quisessem abrigar sob as rendas.

Admirador da maravilhosa criatura, o Dr. Pantaleão Moreira não havia encontrado, jamais, oportunidade para manifestar o entusiasmo que tamanha reunião de graças lhe despertava. Cinemas, bailes, passeios, a tudo fora ele, na esperança de um colóquio rápido, em que desse vasão ao tumulto dos seus sentimentos. Parecia-lhe, pois, um sonho, aquela ventura de ter ao seu braço, naquele jardim quase deserto, de uma quietude convidativa, a mulher cuja imagem constituía o seu pensamento de cada dia, de cada hora, de cada momento.

Radiosa de beleza, Mme. Castro Dorster estava, em verdade, deslumbrante. O vestido de baile, descobrindo-lhe os braços e o colo, punha em destaque, aos olhos do rapaz, belezas novas, encantos novos, graças novas, que ele nunca imaginara. E entre estas, lá estavam, radiando, negrejando no colo ondulante, aqueles dois sinaizinhos atrevidos, um diante do outro, como companheiros inseparáveis.

— Poderíamos descansar um pouco? — Ofereceu o rapaz, indicando um banco verde, à sombra de um jasmineiro florido, pontilhado de lâmpadas pequeninas como vagalumes paralisados no voo.

A dama aceitou. Sentaram-se. E, dentro de alguns minutos, ouvia Mme. Dorster a declaração de amor mais ardente, mais viva, porventura chegada, até agora, a ouvidos de mulher.

— E estes sinais, — gemia o moço, — estes sinais, minha senhora, regulam, no seu rosto, no seu colo, a pontuação do meu destino. — Aqui, na sua face, na sua pálpebra, estão as reticências misteriosas da minha felicidade. Que segredos conterão elas? Que arcano guardarão?

Curvado, quase de joelhos, o rapaz tomou nas mãos o rosto da moça, que fechou os olhos, numa síncope deliciosa. Beijou-lhe o sinal da pálpebra. Beijou-lhe o da face. Beijou-lhe o do pescoço. De repente, estacou, diante dos dois, que ornavam o colo.

— E estes dois, — gemeu, — que dirão eles? Que significarão eles no poema da minha sorte, do meu futuro, da minha vida?

A moça abriu os olhos, doce.

— Estes, — sussurrou, a voz trêmula, indicando os dois sinaizinhos do colo, — são dois pontos, e significam o que representam. Querem dizer...

E fechando os olhos, a mão no decote:

— ... que pode continuar...

XL

O TÍSICO

A conhecida pensão galante da Praia do Flamengo atravessava aquela tarde de calor com a tranquilidade de todos os dias: à sala de jantar, em torno à mesa coberta por uma felpuda pelúcia carmesim, quatro ou cinco mulheres novas, o peignoir sobre a pele, tomando cerveja. Em uma cadeira de braços, despenteada, uma francesa idosa, gorda, cabelos oxigenados, trocava ideias com as outras, que papagueavam. Era Mme. Adrienne, dona da casa.

A pensão da Adrienne era uma das mais conhecidas do Rio, principalmente entre os estrangeiros. Ingleses, franceses, alemães e americanos, davam-lhe a preferência, por um motivo razoável: as pensionistas eram sempre bonitas e jovens, apesar de em pequeno número. De vez em quando, entrava para a confraria uma inglesa, uma austríaca, uma americana; o estado-maior, era, porém, constituído de silhuetas parisienses, muito chics, muito claras, muito distintas, e inexcedíveis na arte de esvaziar uma carteira entre duas taças de vinho espumante.

Naquela tarde quente, discutiam elas futilidades de modas e preços de vestidos quando ressoaram passos, abafadamente, na escadaria coberta de tapetes. Ouvido experiente, acostumado àquele rumor agradável aos seus sentidos gananciosos, Mme. Adrienne levantou o corpanzil fatigado, encaminhando-se para a sala de espera, onde o visitante havia parado. Era um inglês, alto, magro, olhos azuis, rosto cortado de vincos fundos. Trajava terno de brim branco, chapéu de massa cinzento, e botinas amarelas, de duas solas.

— Bom dia, mister! — Saudou a megera, mostrando, numa gentileza acolhedora, toda a sua dentadura postiça.

— Bom dia, senhora! — Correspondeu o recém-chegado, a cara enigmática.

Sem mais preâmbulos, Adrienne foi oferecendo:

— Quer ver as meninas?

— Não, senhora. Senhora mesmo escolhe. Mim quer uma pequena seja tísica.

— Tísica? — Estranhou a dona da pensão, arregalando os olhos.

— Sim, senhora. Tísica; tuberculosa.

E acentuou, o chapéu na cabeça:

— Eu quero beijar uma mulher tuberculosa... Paga dois libras.

Acostumada às excentricidades britânicas, Mme. Adrienne não entrou em maiores explicações. Voltou à sala de jantar, onde estavam as raparigas, e contou-lhes, rindo, a esquisitice do “bife”. Certo, nenhuma delas sofria de moléstia tão grave; não custava nada, entretanto, a nenhuma, simular um pouco de tosse durante meia hora, ao preço de duas libras, que valiam, ao câmbio do dia, quase oitenta mil réis.

— Vou eu! — Gritou Anete, uma parisiensezinha muito loura, de boca pequena como um cravo.

— Eu vou! — Ofereceu-se André, uma belga elegante, forte, de cabelos castanhos e olhos cinzentos.

— Vai Anete mesmo! — Sentenciou a dona da casa, tomando a rapariga pela mão para ir apresentá-la ao inglês.

Vinte minutos depois, com as duas libras na mão, já na escada, Anete quis saber do seu namorado de um instante o motivo por que ele desejava beijar, com tamanho interesse, uma mulher tuberculosa.

— Senhora non estava tísica? — Indagou, parando, o “bife”.

A rapariga deu uma gargalhada:

— Eu, não! Não vê logo? Eu queria era as duas libras...

— Mas, agora, senhora estar tuberculosa.

E como Anete o olhasse, rindo, concluiu, grave, batendo no peito:

— Porque eu estou tuberculosa, último grau.

E saiu, teso.

XLI

“BELFEGOR”

(IMITADO DE HENRY FALK)

O desembargador Arlindo esperava há meia hora no salão da formosa viúva Tavares Guedes, quando a encantadora criatura lhe surgiu, na moldura branca da porta, com a sua cabeleira de ouro a escapulir, revolta e fina, do chapéu de palha da Itália, circundado de pequeninas rosas vermelhas e amarelas.

— Ah, meu caro desembargador! — Exclamou a moça, encaminhando-se para o magistrado, com um sorriso nervoso e a estender-lhe a mão pequenina. — Perdoe-me tê-lo feito esperar. Mas o senhor não imagina como tenho andado inquieta, preocupada, nestes últimos dias!

— Sua saúde, madame?

— Antes fosse, sr. desembargador; antes fosse!

E torcendo as mãos, aflita:

— É o “Belfegor” ...O senhor conhece o “Belfegor”? ... É aquele terra-nova que o ministro da Finlândia me trouxe da Europa, o ano passado... Pois bem: o “Belfegor” anda irritado, inquieto, ladrando muito, passando a noite sem dormir ... Chamei o veterinário, e ele quer a urina do animal, para examinar. Agora mesmo estava vendo se conseguia isso, e tem sido inútil o trabalho!

Nesse momento, o “Belfegor” apareceu no salão, a agitar a cauda. Atrás, vinha um criado, com um frasco na mão.

— Impossível, madame, — confessou o fâmulo; não consegui nem uma gota!

— Ora, meu Deus! Já se viu? — Gemeu a viúva, nervosa. — Como há de ser, para arranjar esta urina?

E pondo-se de pé:

— Quem sabe se num passeio, não será mais fácil? O senhor desembargador quer vir comigo?

Momentos depois, os olhos postos em “Belfegor”, que ia adiante, caminhavam pela Avenida Beira-Mar, no Flamengo, a linda senhora e o velho magistrado. Assim que o animal parava diante de um poste ou de um tronco e suspendia a perna, a moça corria, com o frasco. O cachorro espantava-se, descia o pé, e continuava na sua carreirinha, cheirando aqui, ali, acolá. Em certo momento, cansada já, a viúva pediu:

— Ah, desembargador! Ajude-me! Tome o frasco!

Os olhos postos no “Belfegor”, foram os dois caminhando. O que sucedera à moça antes, sucedia agora ao magistrado: o bicho não deixava encostar. E foi quando o velho mundano teve uma ideia. Corre daqui, atalha dacolá o cachorro entrou por uma rua estreita, deserta àquela hora. O desembargador saiu-lhe no encalço, as abas do fraque abanando. E quando voltou, trazia o frasco pelo meio quase, de um líquido amarelo, que a viúva, muito contente, e agradecidíssima, logo arrolhou para entregar ao especialista.

Quatro dias depois, ao regressar à casa da formosa mundana, encontrou-a o magistrado ainda mais aflita. Os seus lindos olhos eram os de quem tinha chorado muito.

— Ah, meu caro desembargador! Que desgraça! Parece que vou perder o “Belfegor”! Já veio o resultado da urina!

— Já veio? ... Qual foi? ... Qual foi?... — Indagou o velho juiz, ansioso.

— O pior possível, sr. desembargador! Imagine o senhor, que foram encontrados micróbios abundantes de certas moléstias infecciosas! ... Moléstias do mundo! O senhor compreende?

— Mas... eu... Nem me diga, madame! Nem me diga! — Exclamou, gaguejando, o magistrado.

E fechou os olhos, num desmaio.

XLII

O PAVOR DA TERESITA

Aquele casamento, marcado para janeiro, foi adiado, primeiro para março, e, enfim, para setembro. A Teresita era ainda uma criança, não tinha mais de dezesseis anos, de modo que seria uma barbaridade sacrificar num altar, como Abraão a Isaac, aquela criaturinha mal desabrochada para a vida.

Em agosto, o Dr. Machado Rocha, pai da menina, ainda pensou numa transferência para o ano seguinte; a nomeação do noivo, o Dr. Guerra Sobrinho, para uma das missões médicas num dos Estados do Norte, impediu, porém, essa medida. De modo que o enlace se realizou, mesmo, em setembro, com o luxo, o barulho, a suntuosidade de um verdadeiro acontecimento social.

De estatura mediana, rosto claro e redondo, que dois grandes olhos negros iluminavam, Teresita Rocha era, talvez, mais gorda do que convinha. O cabelo negro e ondeado, que não sacrificara às exigências da moda corrente, dava-lhe o ar de uma colegial bem-comportada, que seria, mais tarde, uma excelente mãe de família.

Órfã de mãe aos doze anos, não teve a menina o carinho, o zelo, o conselho, sempre doce, e sempre instrutivo, do lábio materno. Crescera no colégio, onde o pai a internara, de modo que só tivera contacto com o mundo para ficar noiva, e casar-se. Era, pois, inocente, ingênua, que passava da tirania de muitos para o domínio de um só.

A festa promovida pelo Dr. Machado, para solenizar o casamento da filha, fora retumbante. Pelas ruas por onde passara o cortejo, as moças apinhavam-se no passeio, trocando observações brejeiras. E era com um sorriso de candura à flor do lábio que Teresita agradecia os gestos de carinho das conhecidas, algumas das quais lhe mandavam, à passagem, um pequenino beijo nas pontas dos dedos. À noite, a recepção foi, para a noiva, como a última festa das suas bonecas. Parecia-lhe que tudo aquilo havia sido uma brincadeira, uma farsa como aquelas do colégio, em que ela aparecia vestida ora de pajem, ora de noivo, e que, terminada a festa, e retirados os convidados, tudo continuaria como dantes.

Pouco a pouco, porém, foram os amigos se despedindo, ficando na casa, apenas, os noivos, a criadagem, e o Dr. Machado. Aflita, nervosa, mordendo o dedinho da mão esquerda, Teresita ia, já, recolher-se ao seu quarto de solteira, quando o pai a deteve:

— Não, minha filha; você vai dormir com o seu marido.

— Oh, papai! — Estranhou a moça, corando. — Eu, dormir sozinha com um homem? ... Eu nunca fiz isso...

— Eu sei, filhinha; mas é preciso. Vai...

E conduziu-a à porta do quarto nupcial, onde a passou, dos seus braços carinhosos, para os braços apaixonados do Guerra Sobrinho, que logo trancou a porta, sobre os dois.

Naquela quietude da alcova, o rapaz começou a tranquilizar a menina. Ele seria seu amigo, toda a vida. Que não tivesse medo. Depois, ela se habituaria de tal modo, que não passaria mais sem a sua companhia, sem o seu amor, sem o seu carinho.

E paternal:

— Deixa de medo, meu amorzinho. Se sofres hoje, amanhã já não sofrerás. É uma operação tão insignificante, tão simples, que muitas nem dão por isso!

A essa voz de operação, Teresita arregalou os olhos:

— Oh, Luiz! Eu tenho tanto medo! ...

E juntando as mãozinhas, numa súplica:

— Com clorofórmio! ... Sim?

XLIII

AMOR PRÓPRIO

Beatriz Berredo era daquelas mulheres incontentáveis, que o padre Manuel Bernardes teria comparado às naus, às quais, no seu dizer imaginoso, por mais que se ponha a bordo, há de sempre faltar alguma coisa. O marido gastava com ela a maior parte do que ganhava; isso não impedia, porém, que a moça o acusasse de parcimonioso, de sovina, de somítico, mesmo diante das amigas, que se admiravam, entretanto, da elegância, da distinção, do luxo caro, com que ela se apresentava em toda parte. E era essa acusação que ela fazia, mais uma vez, à Rosita Viana, na terrasse dos Pereira Teles, enquanto os pares oscilavam nos salões, como navios na tempestade, ao som do maxixe ou do shimmy.

— Pois olha, não parece que ele seja assim, — obtemperava a amiga, como se procurasse desculpar o acusado. — Tu vestes tão bem, com tanta elegância, que não há quem diga... Esse vestido, não foi ele quem te deu?

— Isso, foi. Tudo que eu tenho, vem dele. Mas tu não imaginas, meu bem, o que é preciso de esforço, de jeito, de tenacidade, para arrancar-lhe qualquer coisa de que eu precise! É quase um miserável!

Nessa mesma noite, ao chegarem em casa, o Dr. Berredo notou que madame não estava satisfeita. Aquelas formiguinhas de fogo, que eram os seus caprichos, andavam, com certeza, alvoroçadas no formigueiro do cérebro, no côncavo daquela cabecinha de ouro, tão linda, mas tão insegura no tumulto das suas leviandades. E isso mesmo ficou confirmado, quando, chegados em cima, no quarto de vestir, ele procurou desabotoar-lhe o vestido, e ela lhe repeliu a mão, num gesto brusco de criança amuada.

— Deixe-me! — Disse, num jeito de corpo, afim de fugir-lhe à carícia. — É melhor que me deixe pra aí de uma vez!

E atirou-se, vestida, sobre o divã, a cabeça nas mãos, desatando num choro convulso.

— Mas que tens, filha? Que é isso? Que foi que te fiz? — Indagou o esposo, de pé, no meio do quarto.

— Eu bem sei que não lhe mereço nada... — gemia Beatriz, com o rosto no espelho do divã. — Qualquer marido, por mais pobre, por mais sovina que seja, sempre arranja um meio de dar à mulher aquilo que ela deseja... Só eu, que sou tão sincera, tão econômica, e que só peço o que preciso, não tenho nada! Meu marido não tem um carinho, um gesto espontâneo, a generosidade de dar-me aquilo que se dá à mulher mais rude, mais torpe, mais indigna! ...

— Mas, filha, — ensaiava o doutor, já habituado àquelas cenas; — que é que um marido fez pela sua mulher, que eu não faço pela minha? — Vamos, dize!

Beatriz quase não ouvia, nos seus soluços, as respostas do companheiro.

— Aí está a Rosita, — continuava ela; — não há nada que deseje, que o Godofredo não lhe dê! E é um simples empregado público, sem fortuna, sem crédito, sem nada... Ainda outro dia, eu passei com ela pelo Luiz de Rezende... Havia na vitrine uns brincos de brilhante, que eram uma beleza... Eu falei neles a você... Ela falou ao marido dela... Pois, bem; quem foi que se lembrou de comprá-los para a mulher? Foi você?... Não, senhor, foi o Dr. Viana! E o resultado foi ela aparecer hoje na festa com eles, enquanto eu só exibia joias velhas, usadas, que toda gente já viu...

— Mas, minha filha... — tentou Berredo, atrapalhado; — tu sabes...

— Ah! Não sei de nada! — Fez Beatriz, num repelão, os olhos em fogo, à simples ideia do sucesso da amiga. — O que sei é que marido é como o Viana! Um homem fino!... Um homem limpo!... Um homem que não é miserável! ...

Esse insulto foi, em cheio, ao coração do engenheiro. O amor próprio ferveu-lhe, rude, dentro da alma. Era demais! E como era demais, rugiu, num gesto de cólera, que assustou a mulher:

— Que Viana!... Que nada!... Eu não sou miserável! A senhora engana-se! Aqueles brincos... Sabe quem deu a ela aqueles brincos?

E, enquanto a mulher arregalava os olhos, passiva, branca de terror:

— Fui eu! Sabe? ... Fui eu! ...

E bateu no peito, forte, com todo o orgulho do seu amor próprio revoltado.

XLIV

A LEI DE MOISÉS

Abraão, filho de Levi, é um tipo característico da sua raça. Magro, alto, barba negra e cerrada, olhos pequenos e escuros, nariz aquilino, passa o dia a vagar de um lado para outro da sua casa de penhores, à espera dos clientes necessitados. A freguesia é numerosa porque os seus juros são módicos: dez por cento ao mês, sem reforma de cautela, dando ele ao freguês apenas um terço do valor do objeto empenhado.

Honrado e intransigente, Abraão, filho de Levi, tem, na vida, um cuidado: o destino do seu pequeno Jacó, sangue do seu sangue, carne da sua carne. Jacó prospera na lei de Jeová, mas Abraão, filho de Levi, teme, como pai, que ele degenere em costume, pondo fora, como os mancebos cristãos, a herança penosamente acumulada pelos antepassados.

Jacó, filho de Abraão, tem apenas seis anos. É uma linda criança de olhos negros, e face pálida, a quem Sara, como mãe amantíssima, recita quotidianamente os ensinamentos de Moisés. Ele sabe que a maior virtude humana é a economia. Os botões que lhe escapem da roupa são guardados um a um como se fossem moedas de ouro. Fósforo que lhe caia sob os olhos é levantado e colecionado para ser, depois, transformado em palito. Abraão, filho de Levi, ensaia um sorriso quando vê a paciência do filho. O seu coração teme, porém, que o menino se contagie no convívio de estranhos, tornando-se perdulário, estroina, dissipador, incompatibilizando-se, por esses sentimentos, com o espírito fundamental da sua raça.

Certa noite, quis, porém, Jeová, que a sua graça caísse, numa chuva de confiança humana, sobre a cabeça de Abraão, filho de Levi. Terminado o breve repasto da noite, ia o usurário abrir a Bíblia para ler um trecho do livro de Jó, quando indagou:

— Jacó, filho de Abraão e neto de Levi, que dia é hoje?

— Sábado, meu pai.

— Não é dia de mudar de camisa?

— É, sim, meu pai; é dia de mudar de camisa.

— Então, vai mudar a tua camisa, Jacó, filho de Abraão e neto de Levi; e que Jeová seja contigo.

Pequenino, magro, ligeiro como um veadinho, o menino tomou o rumo do quarto de dormir. Ao fim de alguns minutos voltou, com um camisão igual, em tudo, àquele que vestia quando entrara. O comprimento era o mesmo, e, o mesmo, o feitio. Era, apenas, um pouco mais debotado.

— Mudaste o camisão, Jacó, filho de Abraão e neto de Levi? — Indagou o judeu.

— Mudei, pai, — confirmou o pirralho.

E olhando a roupinha humilde:

— Tirei aquele com que estava, e vesti-o do avesso.

Um sorriso de felicidade iluminou a fisionomia do esposo de Sara. E foi com os olhos erguidos, a barba negra refletindo o brilho do olhar, que o pai gemeu, estendendo a mão sobre a cabeça do filho:

— Jeová te conserve sempre na lei de Moisés, Jacó, filho de Abraão e neto de Levi.

E começou a aparar um fósforo para fazer um palito.

XLV

PESO LEVE

Aquela casa de aparência tão simples e tão honesta, era conhecida no Rio por um dos antros mais perigosos do Amor. A porta, de que uma banda ficava permanentemente encostada, oferecia acesso ao primeiro andar por uma escada estreita, cortada ao meio por uma alta grade de madeira. Daí para diante só se podia penetrar mediante reconhecimento antecipado, conseguido, aliás, com facilidade, por intermédio da campainha. À semelhança do navio que, ao lançar ferro no porto, pede, com um apito, a visita da Saúde e da Alfândega, o freguês apertava aquele botão elétrico para solicitar a presença da velha Torquata, proprietária do estabelecimento.

Dentro, na sala de jantar mobiliada com certo gosto, é que se alinhavam em torno à mesa, como mercadorias do mesmo armarinho, as clássicas frequentadoras da casa. E ali estavam, naquela ocasião, entre outras, a Luiza Somero, a Julita, a Maria Augusta, a Nenen, a Tosca e, mais insinuante que todas, a Ester de Oliveira, recentemente chegada de São Paulo, onde havia depenado meia dúzia de capitalistas.

Foi aí, nesse rosal de flores desfolhadas, e em que a rosa era, às vezes, menos cheirosa que o estrume de que vivia, que o William Scott penetrou, abalando a escada e o corredor com o estrondo dos seus sapatões 46. Chapéu de massa à cabeça, cachimbo pendurado do beiço forte, vermelho como uma crista de galo, o inglês chegou à porta da sala de jantar e passeou os olhos de triunfador pelas mulheres presentes, as quais ensaiaram, logo, num requebro, o seu melhor sorriso de perdição.

A primeira em que o seu olhar pousou, era gorda demais. A segunda, exageradamente magra. William, não obstante, conhecer as mulheres a olho e a dedo, como se costuma dizer, resolveu indagar o peso de cada uma.

— Quanta pesa senhora? — Indagou, olhando a Luiza.

— Setenta e cinco quilos, Mister!

— E senhora? — Perguntou à outra.

— Quarenta e um.

— E senhora?

— Sessenta e dois.

Uma a uma, ia o inglês consultando, perguntando-lhe o peso, até que chegou a vez da Ester.

— Senhora, quanta pesa?

A rapariga sorriu.

— Eu, Mister?

O inglês fez um sinal de confirmação.

— Eu peso pouquinho.

E piscando o olho para o bolso do bicho.

— Peso, apenas, uma libra...

XLVI

A AMEAÇA DE JEF

 (GEORGES AURIOL)

Nós jantávamos, os dois, eu e Tony Rotterdam, no “Cavalo de Bronze”, onde se come admiravelmente, e como o garçom acabasse de trazer três dúzias de zelandesas pedidas, Tony engoliu quatro de uma vez, e observou:

— Estas ostras são colossalmente boas!

— Nunca, na minha vida, comi melhores, — confirmei.

E ele:

— É fantástico!

“Fantástico” e “colossal” são os dois qualificativos favoritos de Rotterdam. Quando uma cousa não é colossal a seus olhos, pode-se assegurar que ele a acha fantástica. O resto não o interessa.

Durante dez minutos saboreámos nós em silêncio os moluscos deliciosos. Ao fim desse tempo, Tony ergue os olhos e dá com o calendário.

— 19 de Março! — Exclama ele. — Mas é dia de São José, hoje! Não queres que eu te conte uma pequena história sobre São José?

— Sim, evidentemente.

— Tu sabes — desculpou-se ele, — que eu sou um bom católico; lá isso sou; mas, não obstante isso, não dispenso as pilhérias sobre o Paraíso. Isso, não dispenso. É divertido, e não faz mal a ninguém. Os santos são mais tolerantes do que os homens.

— Seguramente.

— Nesse tempo, — começou, — fazia apenas dois anos que Shiedam havia sido inventado, e São José, que até então tinha andado sempre muito direito, começou a se modificar. O burgomestre de Shiedam chama-se justamente José, e, como é de imaginar, não esquecia o seu padroeiro nas suas preces. “São José — dizia ele — fazei com que eu obtenha isto ou aquilo; fazei com que meu avô seja menos avaro; fazei com que minha mulher não passe em ruas em que haja casa de modas; e eu vos darei, meu santo, um pequeno barril de Genebra! ”

A datar desse tempo, São José não foi mais o mesmo. Todas as tardes, ao entrar no Paraíso, era agarrado à parede, piscando os seus pequeninos olhos sagrados. E essas cousas aborreciam São Pedro.

— Jef — disse-lhe este, um dia, (Jef é José, em flamengo) — Jef, disse-lhe ele, se isto continua como vem sucedendo de certo tempo a esta parte, eu me verei na contingência de dar parte ao Altíssimo. Isto não é vida, e compromete seriamente a gravidade da corte celeste.

Jef não ligou, porém, grande importância à ameaça, e, no dia seguinte, voltou pior do que na véspera. São Pedro insistiu:

— Jef, o Todo Poderoso está indignado com você. “Uma vez, vá! Disse-me ele. Uma vez, pode-se permitir, mas se continuar, deixo-o dormir fora”.

A essas palavras, José tornou-se branco como esta toalha.

— O que? ... — Estarei eu ainda no Deserto? Eu?

— Você não está no Deserto, mas terá que dormir lá fora, mesmo.

— É sério isso?

— É sério.

— É você mesmo, Pedro, que está dizendo isso?

— Eu mesmo.

— Você quer me fazer dormir fora, você, um camarada velho? Pois, faça. Faça, e você há de ver! Faça! ...

E de punhos cerrados:

— Eu tiro meu filho daqui, e vou fundar um Paraíso ao lado deste; sabe? E que é que você fica fazendo aqui, hein, caboclo velho?

XLVII

A NOMEAÇÃO

O presidente do Banco de Hipotecas e Contratos Rurais acabava de entregar o chapéu ao contínuo, quando um empregado entrou no gabinete, avisando:

— Está aí uma senhora que quer falar com Vossa Senhoria.

— Mande-a entrar, — ordenou, secamente, o banqueiro.

Bernardo Correia Lopes era homem de uns cinquenta anos, forte de ombros e de cabeça, face corada, rosto largo e um bigode pequeno, preto e branco, aparado à americana. Vestia com distinção, apresentando um físico de indivíduo que passa bem. E foi diante dele que surgiu, de repente, com a sua carinha de boneca francesa, a tentadora Mariazinha, cuja cabeleira ondulada, fugindo ao chapéu azul, despedia o brilho, a umidade doce, a suave cintilação da água oxigenada da véspera.

— Faça o obséquio de entrar, minha senhora! — Pediu o banqueiro, pondo-se de pé, assim que apareceu à porta, como uma flor por uma fresta de muro, o rostinho garoto da encantadora visitante.

Postos em frente um do outro, a moça explicou ao banqueiro o seu caso, enquanto descalçava as luvas. Era casada há três anos com um rapaz do comércio que a crise desempregara. Tímido e escrupuloso, o João, o marido, não tinha coragem de pedir a ninguém uma colocação. E era por isso que ela, sabendo de uma vaga no Banco, e informada de que o sr. Bernardo Lopes era um coração generoso, ali estava, confiante, pedindo o lugar para o esposo.

Enquanto a moça falava, o diretor do conhecido instituto de crédito ia examinando, com a volúpia de um entendido, as linhas daquele corpo soberbo. Devorou-lhe o pé, com os olhos gulosos; subiu até o artelho; adivinhou-lhe a curva do joelho, a flexibilidade da cintura, a graça do colo jovem. Bebeu lhe, com os olhos, a gota do beijo, na cisterna vermelha da boca. E torcia as mãos, encantado com aquele conjunto de graças femininas, quando informou, numa perturbação evidente:

— A falar verdade, minha senhora, nós não temos, agora, nenhuma vaga para seu marido.

— Ora!... — Fez Mariazinha, num muxoxo. — Mas o senhor podia criar um lugar... Não podia?

— Poder, posso; mas não é tão fácil, como parece. Tenho companheiros de diretoria, há uma comissão fiscal, de modo que se torna, se não impossível, pelo menos um pouco difícil.

— Mas o senhor querendo... — aventou Mariazinha.

Bernardo Correia fez um gesto de vaidade satisfeita, balançou-se de vagar na cadeira de mola, e pronunciou, num sorriso de homem poderoso:

— Bom, como a senhora confia tanto em mim, eu vou fazer uma cousa: o seu marido será nomeado, no princípio do mês, ajudante de tesoureiro do Banco. Está bem assim?

— Oh, como o senhor é bom! — Exclamou a moça, pondo-se de pé, e segurando com ambas as mãos a mão áspera, mas bem tratada, do banqueiro.

E apertou-lhe os dedos fortes, dando-lhe, ao mesmo tempo, o número do seu telefone, para a devida comunicação.

Dias depois, quem entrasse na garçonnière que Bernardo Correia Lopes mantinha para os lados de Ipanema e fosse capaz de pregar o ouvido a uma fechadura, arregalaria os olhos, com espanto. É que de dentro vinha uma voz feminina, a pedir, mimosa, a alguém, entre um barulho suave de beijos:

— Tesoureiro... Sim, filhinho?

No dia 1° do mês seguinte, o marido de Mariazinha tomava posse, orgulhoso, do cofre da tesouraria.

XLVIII

SAÚDE DE FERRO

Com quarenta anos de idade e dezoito de repartição pública, o Tomaz Fernandes jamais fora visto com uma simples constipação. A gripe, o sarampo, a varíola, as epidemias de toda a espécie e as febres de todos os graus, — tudo isso havia escorrido por ele como a água da chuva pelos vidros de uma janela: sem deixar vestígio.

— Tenho uma saúde de ferro — dizia com ênfase.

E toda a gente concordava:

— O Tomaz Fernandes tem uma saúde de ferro!

Uma circunstância contribuía, ainda, para pôr em maior destaque tamanha felicidade: o Fernandes era funcionário dos Correios, e trabalhava na secção de correspondência, onde vivia em contacto com os micróbios mais cosmopolitas, vindos das mais diversas partes do mundo.

Ao lado dessa particularidade, possuía uma outra: nunca, desde que passara a governar-se a si mesmo, havia tomado banho. Um exame bacteriológico, ou, melhor, microscópico, na sua pele amarelada, patentearia a presença de detritos, correspondentes às várias épocas da vida da cidade, neste último quarto de século. À semelhança da terra, cujas camadas geológicas representam períodos da formação do planeta, amontoava-se no seu couro a poeira de todos os acontecimentos: da inauguração da estátua de Cabral, em 1900; da revolta de 14 de novembro, em 1904; das demolições para abertura da Avenida, em 1906; das passeatas pelo rompimento da Grande Guerra, em 1914; das festas pelo armistício, em 1918; da sublevação de 1922; e, sobretudo, dos vinte e cinco anos de Carnaval, de 1900 a 1924.

Com essa couraça defensiva, o Tomaz Fernandes havia se tornado, parece, invulnerável. Não havia mal que lhe entrasse.

— Tenho uma saúde de ferro! — Não se cansava ele de afirmar.

Os companheiros de secção é que não estavam, porém, de acordo com esse privilégio, que mais interessava à siderurgia do que ao serviço postal. O Fernandes exalava um cheiro mais extravagante e indefinido do que o que sai da igreja da Penha, nos dias de missa cantada com assistência popular. Chegava a dar síncopes nos outros, quando ele passava na sala, o carão oleoso, o cabelo duro lançado para trás, as mãos repletas de correspondência a distribuir.

Um dia, porém, os colegas não puderam mais e resolveram protestar. O Tomaz Fernandes devia tomar um banho. E para isso, para entender-se com ele sobre matéria tão séria, foi nomeada uma comissão de três funcionários.

Graves, circunspectos, os mandatários da maioria foram procurar o Tomaz, que conferia, nesse momento, uma grande mala postal, vinda de Porto Alegre.

— Fernandes, — aventurou o mais velho, tomando uns ares de quem, depois do enterro, dá pêsames ao viúvo; — Fernandes, é em seu benefício mesmo que nós lhe vimos dar um conselho.

E tomando coragem:

— Você precisa tomar um banho, Fernandes!

Sorriso murcho na boca franzida precocemente, o funcionário achou graça.

— Banho? eu?... Para quê? Vocês não veem que eu tenho uma saúde de ferro?

Sorriu de novo:

— Eu tenho uma saúde de ferro; se eu me molhasse...

E, com seriedade, como quem encontra uma desculpa providencial:

— Quem sabe se não me dava ferrugem?

XLIX

AS LUVAS

(SOBRE UMA IDEIA ALHEIA)

Toda gente que lê português conhece aquele episódio da Relíquia, de Eça de Queiroz, em que o Raposão, de regresso de Jerusalém, entrega à sua excelentíssima tia, a Sra. Patrocínio das Neves, na presença de pessoas piedosas, uma lembrança trazida dos Santos Lugares. Reunidos os amigos da casa, e anunciada pelo devoto romeiro a presença, em um caixote, colocado sobre o altar, da coroa de espinhos conseguida por ele na Palestina, destampou Dona Patrocínia o volume, desatando o embrulho que nele vinha. E, em vez da coroa, da santa relíquia tão cobiçada e esperada, o que surgiu aos olhos de todos foi, “em todo o seu luxo, com todo o seu impudor, enxovalhada pelos seus braços, em cada prega, fedendo a pecado”, a camisa de dormir da Mary, a inglesinha sedutora com quem o malandro estivera metido no Cairo!

A aventura do Raposão não é, entretanto, única, nos anais da “jetatura” amorosa. Igual a ele, ou mais caipora ainda, foi um desventurado moço mineiro, que abandonara Belo Horizonte para estudar medicina no Rio.

Apaixonado pela sua noiva, Alexandre Martins havia prometido à moça, na véspera da partida:

— Fica tranquila, Alzirinha, fica tranquila. Eu nunca me esquecerei de ti!

— Juras? — Pediu-lhe a doce criaturinha.

— Juro, meu amor! Juro! — Confirmou o rapaz.

No trem que o conduziu de Belo-Horizonte a esta cidade, não pensou Alexandre em outra cousa que não na sua Alzirinha, tão meiga, tão linda, tão pura; e mal saltou no Rio, o seu primeiro cuidado foi correr a uma das casas de modas da rua do Ouvidor, para comprar-lhe uma lembrança.

Que poderia, entretanto, ser? Ao seu espírito apaixonado ocorreu, de súbito, uma ideia. Antes de partir, havia furtado à sua noiva, à sua Alzira, um par de luvas, muito macio, muito perfumado, que ele trazia, sempre, bem junto do coração. Nada mais justo, pois, do que comprar-lhe outras luvas, mais lindas do que aquelas, e que lhe fossem provar que ele, distante embora, não se esquecera, jamais, da sua imagem e do seu amor.

Alexandre Martins era, porém, um rapagão forte, belo, magnífico. Ao servi-lo, a vendeuse não afastava dele os olhos, e de tal modo que, servindo ao mesmo tempo uma freguesa, acabou por trocar os embrulhos, dando-lhe, em vez daquele que continha as luvas, outro, com uma calça de seda para senhora. Contente, sem dar pelo engano, Alexandre encaminhou-se para o hotel, e escreveu à sua Alzirinha esta carta, em que ia, ardente, impetuoso, sincero, todo o seu coração:

“Minha querida. — Neste embrulho que hoje te envio pelo chefe do trem, encontrarás uma pequena lembrança, em troca daquela que te tomei antes de partir. Era meu desejo encontrar-me perto de ti quando a experimentasses, pois a vendeuse deu-me alguns conselhos sobre a maneira de usá-las.

Eu espero, minha querida, que mãos estranhas não toquem, jamais, na minha ausência, nessa lembrancinha do teu pobre noivo, embora eu saiba que muitos porão nela os olhos, com desejo de acariciá-la com as mãos. Creio que elas te ficarão bem, como as que tens, e que usavas na minha presença. Se ficarem compridas, poderás deixar assim mesmo, pois eu tenho visto aqui muitas nessas condições. Logo que eu chegue aí, espero que tu me mostres como te ficaram. Se não puderes abotoá-las, aguarda o meu regresso, que eu as abotoarei.

Toma cuidado, meu amor, para que elas não sejam inutilizadas por pessoas que estejam com as mãos sujas. Eu conheço muito esses rapazes de Minas, e sei que eles não têm cuidado com essas cousas. Se, porém, elas se sujarem, poderás passar benzina, que ficarão limpas outra vez. Por esse modo, elas te durarão dez anos. A moça que me as vendeu disse-me que tem umas há três anos, e que só mandou lavá-las uma vez. É bom, sempre, desinfetá-las uma vez por semana com bolas de naftalina, para afugentar as moscas. Quando tiveres de usá-las, convém soprar dentro, para serem enfiadas com facilidade. Antes de t’as remeter, beijei-as de ponta a ponta, meu amor, como se as visse, já, usadas por ti.

Teu, do coração, — Alexandre Martins.

Dias depois, Alexandre recebia uma carta da sua Alzirinha, desmanchando o casamento. E não soube, nunca, o motivo de tamanha ingratidão...

L

O IMPOSSÍVEL

Sentado no seu trono de nuvens douradas, incrustado de estreias, distribuía Jeová, naquela madrugada de primavera, os sete anjos que deviam impedir as sete maiores calamidades do dia, velando, zelosos, pela harmonia das cousas terrenas e, em particular, pela conduta das criaturas.

— Tu, Azael, — ordenou, chamando um dos anjos — guardarás contra os corvos famintos os pequeninos cordeiros dos rebanhos da Arábia.

E chamando outro:

— A ti, Iriel, compete impedir que o Eufrates, intumescido pelas últimas chuvas, ultrapasse as ribanceiras invadindo as terras cultivadas de Enoque.

E indicando um terceiro:

— Tu, Nataniel, irás te postar nas proximidades dos continentes, detendo com os teus braços a água dos oceanos, para que elas não saiam, como pretendem, dos eternos limites que lhes tracei.

E a outro:

— Compete a ti, Misael, sustentar com os teus dedos, no espaço, em torno da terra, todos os pássaros que enchem os ares, de modo que eles não tombem no solo, servindo de pasto aos animais que os esperam.

E o outro, que era, de todos, o mais ilustre e o mais forte:

— A tua missão hoje, Gabriel, será impedir que Sara, mulher de Esaú, se entregue a Lameque, por quem se acha, desde ontem, tomada de amor. O marido está vigilante, com a casa em cerco e as portas trancadas. Corre, porém, a auxiliá-lo, a ajudá-lo, inutilizando os planos da esposa, para que a vergonha não entre em seu lar.

À noite, quando a terra já devia estar, lá embaixo, adormecida, voltaram os anjos, um a um, dando conta do seu mandato.

— As tuas ordens foram cumpridas, meu Senhor, — começou Azael, fechando as asas voadoras. — Os milhares de cordeiros de toda a Arábia pastaram, todo o dia, tranquilamente, sem que os corvos os incomodassem nas campinas.

— Fiz o que me ordenaste, Senhor, — informou o segundo, ajoelhando-se. — Detive com as minhas próprias mãos as águas empoladas do Eufrates, evitando que elas se atirassem, como pretendiam, sobre as terras de Enoque, teu protegido e teu servo.

— Consoante a tua vontade, Senhor, — falou, humilde, o terceiro, — velei, hoje, durante o dia, pela integridade dos continentes, repelindo, uma a uma, todas as ondas que os assaltavam. E os continentes, como vês, estão salvos do mar.

— A tua determinação, meu Senhor, declarou o outro, — foi cumprida, na forma do teu desejo. Mantive nos ares todas as asas que voavam, fortalecendo os condores, amparando os colibris, e ensinando, mesmo, o caminho aéreo às abelhas.

Nesse momento, chega, fatigado, roto, com as asas partidas, sujo de sangue e de lama, Gabriel, o anjo que faltava. Cabeça baixa, olhos baixos, como quem regressa de uma batalha perdida, pairou, leve, sobre a nuvem, e, sem dizer uma palavra, afundou o rosto entre as mãos.

Compadecido, mas, ao mesmo tempo, severo, Jeová chamou-o, pedindo-lhe contas.

— E tu, que fizeste? Cumpriste a tua missão?

O anjo, que era, de todos, o de maior mérito na corte celeste, levou ambas as mãos aos olhos e informou, confuso:

— Foi impossível, meu Senhor!

— Eu sabia que era impossível, meu filho! — Confessou Jeová, triste, passando-lhe a mão pela cabeça. — Quando a mulher quer...

E não continuou. Desataram, os dois, a chorar...

LI

A PROMISSÓRIA

(IMPRESSÃO DE LA FONTAINE)

A leitura do Quincas Borba, de Machado de Assis, feita mediatamente pelo Leocádio Batista, acordou, no seu espírito, afeito à literatura das portarias e dos ofícios, um certo número de considerações que lhe pareceram judiciosas. A figura daquele Palha, marido de Helena e explorador de Rubião, mereceu-lhe, entre outras, atenção especial. E foi arrepiando a escova do bigode cortado à americana, que ele se pôs a analisar esse personagem do romance.

— Que inconveniente pode haver, — pensava, os olhos espetados no espaço, através da janela escancarada; — que inconveniente pode haver em um homem exibir sua mulher como um desafio aos tolos, desde que ela continue a ser dele, sem deixar que o milhafre se aproxime da presa? O que vale na mulher é a pureza do corpo e a sinceridade do coração. O resto é artificialidade. Que importa, pois, que a minha tente seduzir fulano ou sicrano, se o seu coração é meu, e se ela nunca se entregará? A coquetaria é uma arma como outra qualquer. E tanto pode ser empregada para obter elogios de um jornalista como o dinheiro de um milionário.

E concluía, como numa satisfação a si próprio:

— A questão é que o peixe apanhe a isca e não toque no anzol.

Arranjada, sobre essas bases, a sua filosofia, começou o honrado funcionário a procurar o melhor meio de tirar proveito, e sem o menor prejuízo, da formosura de Dona Eleonora. E, no fim de alguns dias, tinha ele resolvido, de si, consigo:

— Farei o seguinte: assinarei uma promissória ao Tibério Nunes, e, no dia do vencimento, dir-lhe-ei que vá receber em minha casa. Ele irá, será recebido pela Lélé, que se mostrará accessível, e, quando ele tentar beijá-la, ela gritará, dando-me sinal. Eu entro na sala, ameaço-o com um escândalo, tomo-lhe a letra, e estará tudo concluído: ficarei com o dinheiro, sem que minha mulher tenha sofrido o menor agravo.

E esfregando as mãos:

— Está resolvido: vou assinar a promissória.

Admirador antigo de Mme. Leocádio Batista, o capitalista Tibério Nunes não pôs a menor objeção à pretensão do rapaz: emprestou-lhe cinquenta contos, juros de meio por cento ao mês, noventa dias de prazo, e, no dia do vencimento, foi, de acordo com o devedor, fazer a cobrança a domicílio.

A casa do ilustre servidor da República era, nesse tempo, à rua São Clemente, nas proximidades da praia. E foi com o coração desarvorado que o jovem milionário atravessou o jardinzinho sem trato, e apertou, o dedo trêmulo, o botão da campainha.

— Ah! É o doutor? — Exclamou, a carinha risonha, a formosa Dona Lélé, aparecendo à janela.

E abrindo, em baixo, a porta:

— Faz favor de entrar, doutor... Dê-me o seu chapéu... O Leocádio saiu, por um instante, e não deve tardar... É um momentinho...

E indicando-lhe o interior:

— Entre para a sala... Faça favor....

Na sala de visitas, sentado no sofá, ocupado quase todo pelas almofadas de seda, o capitalista começou a devorar, com os olhos, as formas graciosas da moça, que lhe pareceu mais linda, mais harmoniosa, na sua toilette caseira. De repente, a mão do rapaz avançou, apanhando a mãozinha de lírio, que pousava, como uma pétala, sobre o veludo carmesim da cadeira. Dois braços se estiraram, enlaçando-a. E o silêncio tombou, como um dossel de noivado, sobre a sala de visitas, transformada, de súbito, em alcova nupcial.

De repente, abre-se a porta, emoldurando a figura grave, e pálida, do Leocádio Batista.

— Miserável! — Ruge o infeliz, avançando para a mulher, rilhando os dentes, os punhos cerrados. — Eu não te disse, desgraçada, que tu gritasses antes que esse infame te beijasse? Eu não te disse?

Rosto nas mãos, cabelos de ouro rolando em catarata pelo vestido machucado, a moça rebentou em soluços.

— Eu não ouvi... direito... — gemia, cortando as palavras.

E com o rosto nas almofadas:

— Eu pensava... que era... para gritar... depois...

LII

CONFUSÃO

Uma família experiente, ou, pelo menos, desconfiada, teria ficado de pé atrás desde o dia em que o Adriano, sem mais explicações, pediu à Elisinha que não fosse mais a festas em que se dançasse.

— Mas, eu só dançarei contigo! — Objetou a menina.

— Agradeço-te; mas eu não sei dançar.

— Eu te ensino.

— Não quero.

— Mas, por que, meu amor?

O silêncio em que o rapaz deixava essa pergunta, era de molde a despertar a curiosidade da moça. Os meses foram, porém, se passando, até que chegou o dia do casamento, em que a Elisinha Roberto penetrou, solene, na igreja, pelo braço do pai, para sair, meia hora depois, pelo braço do Adriano que passava a ser, daquele momento em diante, seu escravo e seu senhor.

Finda a cerimônia, e feita uma refeição ligeira, partiram os noivos, de automóvel, para a Central do Brasil, afim de apanharem o noturno paulista. A viagem de núpcias seria aquele passeio a São Paulo, onde o casal havia tomado aposentos condignos, que seriam o cenário luxuoso daquela venturosa “lua de mel”.

Passageiros de um vagão-dormitório, fretado pela família, os recém-casados o transformaram, naturalmente, numa deliciosa alcova nupcial. Antes, porém, de estabelecerem qualquer intimidade, achou o Adriano que era chegado, enfim, o momento de confessar à noiva a verdade triste, amarga, dolorosa, que jamais revelara. E foi tímido, os olhos baixos, que se sentou no leito pequeno, ao lado da companheira.

— Filhinha, — sussurrou, as mãos frias, — eu tenho um segredo, uma infelicidade minha, para te revelar.

— Tu?

— Sim; eu. Foi uma deslealdade da minha parte, mas eu te peço que me perdoes, em nome do amor que eu te consagro.

A moça encarou-o, sem compreender. E Adriano ajuntou:

— Eu te digo: eu sou aleijado!

— Aleijado?!... — Fez a moça, num grito.

— Sim. Eu tenho o pé esquerdo cortado acima do tornozelo!

E dizendo isso, levantou a parte inferior da perna, da qual desatarraxou, ante os olhos espantados da rapariga, um pé, feito de borracha, e cuja perfeição era absoluta, a ponto de enganar as pessoas mais perspicazes.

Aquela revelação foi, para a Elisinha, um jato de água gelada numa pequena panela fervendo. E foi com o coração rebentado, a alma partida de tristezas, que chegaram, pela manhã, a São Paulo, onde a recém-casada pediu, mal encobrindo a sua decepção dolorosa, à hora do almoço:

— É verdade, Adriano; eu preciso telegrafar a mamãe, dizendo que chegamos sem novidade. Quando desceres, manda-me aqui em cima algumas folhas de papel do telégrafo.

Atendida, a desgraçadinha aproveitou a ocasião: tomou uma folha, e escreveu, apressada:

“Madame Roberto. — Praia Flamengo, 833. — Rio.

Sou infelicíssima. Meu marido só tem um pé. Saudades.

Elisa. ”

Dobrou a fórmula telegráfica, chamou o criado, deu-lhe uma gorjeta farta para que fosse transmitir secretamente o despacho, e quedou, sossegada. No dia seguinte, porém, descia para o café, quando lhe entregaram um telegrama do Rio. Abriu-o, e leu:

“Madame Adriano Falcão. — Hotel d’Oeste. — São Paulo.

Consola-te comigo. Teu pai não tinha nem isso. Abraços saudosos.

Mariana. ”

LIII

A VINGANÇA DO BARNABÉ

O sr. Barnabé Sampaio havia falhado na vida. Funcionário de um dos nossos ministérios, tinha marcado passo desde amanuense, conseguindo chegar, apenas, por antiguidade, a 2° oficial. Toda a gente passava adiante, por merecimento. Barnabé ficava. E ficava sem inveja, sem revolta, sem protesto, contente com o seu destino.

A preterição de que era vítima possuía, entretanto, um fundamento: Barnabé não trabalhava, não cumpria os seus deveres, comparecendo à repartição já com o ponto fechado, e isso mesmo para fazer jus a um pequeno lugar, mensalmente, nas folhas de pagamento.

Baixo, gordo, o bigode grisalho, entrando pela boca, saía pela manhã, e voltava alta noite. Botequim em que ele se sentasse com um boêmio da sua força, não fechava antes da madrugada. E foi por isso que Dona Jesuína, assim que o filho completou vinte anos, lhe disse, logo:

— No primeiro concurso que se abrir no ministério, Luiz, tu vais te inscrever. Nós não podemos contar com o teu pai para nada, e é preciso que tu assumas," quanto antes, a direção da família.

Ativo, inteligente, estudioso, o rapaz começou a preparar-se para o concurso. E quando este foi aberto, inscreveu-se, tirando, em todas as matérias, o primeiro lugar. Nomeado, graças ao brilho das provas, patenteou, logo, tamanho amor ao trabalho que, no segundo ano, foi promovido a 3° oficial, com exercício no gabinete do ministro.

Excelente funcionário, saiu do gabinete, aos vinte e três anos, como 2° oficial, isto é, na classe do pai. Aos vinte e cinco era promovido a l° e, aos trinta, investido nas funções de chefe de secção, interinamente, e, por um capricho da sorte, da mesma secção em que funcionava Barnabé.

Vadio incorrigível, este não se preocupava com a brilhante carreira do filho. O rapaz havia assumido a direção da família e o boêmio, cada vez mais intolerável, continuava a zombar dos Regulamentos.

— Meu pai é a minha vergonha! — Dizia o moço, em casa. — E o que é pior, é que não leva a sério os seus deveres, não comparecendo à hora regulamentar. Se continuar assim, eu terei de repreendê-lo, chamando-o à ordem, na presença dos outros funcionários. Se ele não quer cumprir com a sua obrigação, eu saberei cumprir com a minha.

Bondosa e sofredora, Dona Jesuína chamava a atenção do marido:

— Barnabé, toma juízo, meu velho. Sê mais assíduo à repartição. Achas bonito, então, seres repreendido publicamente pelo teu filho?

O boêmio sorria, zombando da ameaça, até que esta, um dia, chegou.

Luiz havia distribuído um serviço ao pai, e, quando pensou que estava concluído, Barnabé não havia, sequer, começado.

— Senhor Barnabé, faz favor? — Chamou o rapaz, chegando à porta do salão.

O 2° oficial aproximou-se e entrou.

— O senhor, — começou Luiz, — o senhor tem abusado demais dos seus superiores hierárquicos, deixando sem execução as ordens que lhe são dadas. Se o senhor não mudar de vida, darei parte ao ministro, pedindo a sua demissão. Pode retirar-se!

Barnabé baixou a cabeça, e retirou-se. Ao chegar, porém, fora do gabinete, onde os colegas o esperavam, rugiu, a testa franzida:

— É uma vingança covarde, desse chefe contra mim. Eu sei porque ele me está perseguindo!

Os colegas cercaram-no.

— Ele me persegue — tornou Barnabé, — mas eu vou me vingar.

E tomando o chapéu, no cabide:

— Vou dormir, hoje, com a mãe dele!

LIV

MÁGOA JUSTA

A imprensa havia aberto colunas para noticiar o triste acontecimento: vítima da gripe que o atacara há algumas semanas, entregara a alma ao Criador, no seu suntuoso palacete da Avenida Atlântica, o opulento banqueiro Soutelo de Miranda, presidente do Banco de Hipotecas, proprietário das minas de ouro de São Silvestre, sócio de várias firmas e acionista de quase todas as empresas prósperas espalhadas pelo país.

Figura preponderante no alto comércio, quase todas as grandes casas fecharam, em sinal de tristeza. E foi uma verdadeira romaria para Copacabana, de onde o corpo devia sair, com acompanhamento enorme, para o mausoléu da família, em São João Batista.

A romaria ainda aumentou, pode-se dizer, quando, na sua bisbilhotice habitual, os jornais noticiaram que, aberto o testamento, se havia verificado que o morto deixara uma fortuna de cento e oitenta mil contos, que devia ser distribuída por todos os membros da família.

À noite, o salão de bilhar do palacete, transformado em câmara mortuária, estava repleto. Sobre o catafalco de veludo negro, enfeitado de cruzes douradas, dormia o velho milionário o seu sono definitivo, com as mãos magras, encordoadas de nervos mortos, cruzadas sobre o peitilho da camisa de casaca. O rosto esguio tinha a cor do marfim antigo. O bigode branco fechava-lhe a boca pela última vez, como as aldravas da Morte impondo-lhe o eterno silêncio.

Em torno, ardiam os círios, e agonizavam as flores das grinaldas funerárias. Um cheiro de velas e de rosas martirizadas enchia o ambiente, onde apenas se ouviam o estalar das tochas, o zum-zum das moscas ou as palavras cochichadas da multidão vestida de preto que enchia o salão e se derramava, em uma tristeza constrangida, pelos extensos corredores da casa.

Alinhadas em torno da sala, em cadeiras e sofás, os olhos avermelhados pelo pranto da véspera, meditavam, talvez na fragilidade da vida, talvez na solidez da fortuna do morto, o irmão, os filhos, os sobrinhos, a viúva, os parentes todos, dos quais os menos contemplados iam herdar de quatro a cinco mil contos de réis. E foi rompendo esse silêncio fúnebre, quebrando a quietude lúgubre do lugar, e do momento, que se ouviu, de repente, partido de um canto do aposento, o choro fundo, doloroso, comovido, de Isaac Nataniel, retalhista judeu que negociava em fazendas, e que comprava por atacado em uma das casas de que o morto era comanditário.

— Ahn... ahn... ahn... ahn... ahnnnnnn... Ahn... ahn... ahnnnnnn... — soluçava o desgraçado.

O choro amargo, alto, sentido, enchia a sala. Espantados com ele, todos se voltaram para o lugar onde aquele homem esguio, de preto, se derretia em pranto, as costas sacudidas pelos soluços, o rosto mergulhado no lenço. E todos se perguntavam mudamente quem era aquele inconsolável, quando um caixeiro da casa comercial atravessou a sala e foi bater no ombro do mísero.

— Que é isso, senhor Isaac! Que é isso? ... — consolou, amigo. — Não chore assim...

E como não fosse ouvido:

— Não chore assim... O senhor não é parente do morto...

— Pois é... por isso... mesmo... que eu... choro... — declarou Isaac, cortando as palavras com os soluços.

E continuou a chorar.

LV

AS BATATAS

(SOBRE UMA IDEIA ALHEIA)

O João Taveira não era, absolutamente, um talento. Em compensação, era um conquistador incorrigível e, também, dos mais venturosos. Forte, carão redondo e pálido, bigodeira abundante, vestia-se com certo apuro, à custa, embora, das economias da esposa. As mulheres levianas não perguntavam, porém, as origens da sua elegância, de modo que, à hora da sua passagem, a rua era como um ramalhete, com a quantidade de rostos risonhos que iam surgindo pelas janelas.

De quantas sorriam, tentando o rapaz, uma, no entanto, o impressionara: a Claudina, mulher do João Cantídio Peixoto, vendeiro da esquina, o qual tinha a casa de comércio ao lado, exatamente, da casa de família.

A Claudina era o que se pode dizer uma noz na boca de um menino sem dentes. Com cinquenta e oito anos, o João Cantídio casara quando a rapariga andava pelos vinte e dois, e era considerada, no bairro, a mais formosa moça do quarteirão. Encarcerada, desde então, nos fundos do estabelecimento, restava-lhe, apenas, para as comunicações com o mundo, um corredor para a rua, com uma porta que era, também, janela, e de que o marido se utilizava aos domingos e feriados, após o fechamento da “venda”. Era aí que o Taveira costumava lobrigá-la furtivamente, até o dia em que, por um dos milagres em que o amor é frequente, lhes foi possível combinar, por escrito, aquele encontro perigoso e clandestino. O merceeiro devia sair, domingo, à noite, para ir ao cinema ou ao teatro. Ela deixaria, então, encostada a porta do corredor, por onde o rapaz devia se esgueirar, ligeiro, afim de não ser percebido pela vizinhança maledicente.

À hora marcada, tudo se cumpriu. O beijo foi longo, imenso, desesperado, como o de duas pessoas que se desejavam ardentemente, sem, jamais, se terem falado. E tão demorado foi o colóquio, e tão abundantes as palavras que se tinham a dizer, que, quando os dois acordaram do seu sonho, o João Cantídio estava, já, batendo forte na porta do corredor.

— Minha Nossa Senhora! — Gemeu a Claudina, de um pulo, torcendo as mãos. — E agora? ...

A única saída da casa, fechado o estabelecimento de comércio, era o corredor. Nesse, porém, estava o Cantídio. O remédio era, pois, o rapaz esconder-se no quarto que havia entre a venda e a sala de jantar, o qual servia de depósito de mercadorias. E foi para aí mesmo que o Taveira correu, a roupa na mão, metendo-se dentro de um saco vazio, ao lado de outros de batatas, e cuja boca a Claudina, mais morta do que viva, amarrou com um barbante grosso.

Momentos depois, aberta a porta, entrava o Cantídio. Não lhe passava pelo espírito a suspeita mais ligeira. A sua preocupação era, toda, com os gatunos, que lhe podiam dar na “venda”, e foi com o pensamento nisso que, logo depois de entrar, tomou de uma vela, acendeu-a, e penetrou no depósito. Aí, tomou de um cacete, e, batendo aqui, batendo ali, começou a examinar os cantos. Ao chegar aos sacos de batatas, bateu, forte, no primeiro. Bateu, seguro, no segundo. Do seu esconderijo, no quinto saco, o Taveira via tudo, por um buraco da estopa. E tremia, apavorado. No terceiro saco, o Cantídio malhou grosso. E levantava, já, o cacete, para fazer o mesmo no quinto, quando uma voz surda, súplice, quase um gemido, se ergueu dali:

— É batata... É batata... É ba... ta... ta...

LVI

GENTE “CHIC”

Os dois elegantíssimos personagens haviam chegado do Sul com a imponência, o aplomb, a distinção mundana de verdadeiros capitalistas. Brasileiros de nascimento, passavam a vida nos centros de jogatina, farejando pelo mundo o baccarat e a roleta como o cão fareja a perdiz na mataria cerrada. E acabavam de chegar de Mar del Plata com destino a Poços de Caldas, quando foram surpreendidos no seu faustoso quarto de hotel de luxo pela admiração leviana da cidade.

Altos, morenos, vistosos, diziam-se argentinos, para melhor recomendar-se ao mundanismo carioca. O mais velho, mais robusto, dava por toda parte, o nome de Juan Saavedra, e vestia-se com uma correção irrepreensível. O outro, mais espadaúdo, era, contudo, elegante, e dava por onde ia o nome de Sebastian González. Eram como irmãos, unidos pelo mesmo destino, como mestres da mesma profissão.

Uma noite, estava Sebastian lavando o rosto antes de descer para o jantar, quando o outro entrou da rua, atirando para o lado a bengala e o chapéu de palha. E foi, logo, gritando:

— Sabes com quem eu vou jantar agora à noite, caboclo velho?

Gonzalez levantou o rosto da bacia, e, com ele escorrendo água, indagou:

— Com a francesinha do velhote?

— Nada, idiota. É cousa séria! Eu vou jantar com o comendador Sócrates, a convite da filha! Esta, que está doidinha por mim, perguntou-me se, autorizada pelo pai, eu aceitaria um convite seu para jantar ... Aceitei logo! E o velho está certo, certíssimo, de que eu sou grande estancieiro na Argentina! ...

Às oito em ponto, saía o Saavedra do hotel, trajando uma casaca maravilhosa, com uma linha, um garbo, uma distinção de príncipe. E por volta de meia hora da madrugada entrava novamente no hotel, encontrando à porta o Gonzalez, que ia sair para o jogo.

— Ah, rapaz, que sucesso! — Foi, de pronto, informando. — A pequena é um anjo e o velho é um verdadeiro nababo. Não imaginas quanta riqueza! Tapetes orientais, quadros de mestres, e, à mesa, baixela de ouro!

— Baixela de ouro? — Fez o outro, espantado.

— Sim, senhor! E tudo mais de ouro: garfos de ouro, facas, colherinhas de ouro...

Por essa altura, Gonzalez sorriu:

— Colherinhas de ouro, também?

— Também, sim... Duvidas?

— Duvido! — Confirmou o primeiro. E desafiador, para o amigo:

— Cadê... Mostra!

LVII

O LEÃO

(PIERRE VEBER)

Nesse tempo, os desertos da Líbia eram muito menos frequentados do que hoje. A principal indústria do país — a cultura do leão em estado livre, dava excelentes resultados. O leão pululava e podia-se dizer que bastava a gente se abaixar para apanhá-lo. E era lá que os romanos se abasteciam de reis dos animais para os ásperos divertimentos do circo.

Então, um jovem leão de belo aspecto vivia feliz naqueles desertos; a caça era para ele ao mesmo tempo uma distração e um meio de vida; nas épocas de amor, constituía provisoriamente uma família, e, uma vez educada a prole, deixava-a lá, correndo logo a outra aventura.

Uma tarde, em que passeava com esse abandono afetado e esse não sei que de pretensioso que se nota em todas as grandes feras, caiu ele, bruscamente, em um fosso, que verificou ser, em virtude mesmo dessa queda, um fosso para apanhar leões. Gente armada surgiu abrindo uma jaula em que o leão, furioso, mas cordato, se precipitou. Estava prisioneiro.

Durante semanas foi ele carregado naquela gaiola, de cidade em cidade, onde era mostrado como curiosidade; e à medida que a viagem prosseguia, os guardas redobravam os maus tratos com o animal: deixavam-no jejuar dias inteiros; picavam-no com barras de ferro em brasa; acutilavam-no a todo instante; chegaram, mesmo, a aparar-lhe as garras num requinte de crueldade.

Finalmente, atingiram a Itália, onde os beluários do imperador tomaram posse do bicho, prendendo-o em um subterrâneo escuro, em que lhe não davam de beber, nem de comer. E a pobre fera pensava:

— Que crueldade nova me prepararão eles?

Abatido pelo sofrimento, pela fadiga, pela sede, pela fome, o animal considerava o universo com a sabedoria do filósofo a quem tocasse, nele, o maior quinhão de amargura.

Um dia, quando se achou em condições, vieram-lhe abrir a jaula, fazendo-o sair a golpes de tridente, e tomar por um corredor gradeado. Alcançou, assim, uma porta, escancarada sobre a claridade de um anfiteatro flamejante ao grande sol de julho. No umbral, estacou; e o que viu, tê-lo-ia feito recuar de horror, se não tivessem tido a precaução de fechar-lhe a grade assim que ele passou.

No meio do anfiteatro, dezenas de seres macilentos, desgrenhados, horríveis, agrupavam-se, em atitudes ameaçadoras, ou levantando os punhos num gesto de desafio. O leão estremeceu, e soltou um grito:

— Nossa Senhora! Lançaram-me aos cristãos! ...

E, resignado a tudo, deitou-se sobre o flanco, esperando a morte.

LVIII

AMORES DIFÍCEIS

Os dois quartos ficavam fronteiros, nas duas alas do hotel: em um, morava o jovem oficial de cavalaria, o tenente Berredo Neto; no outro, aquela criaturinha loura, cabelo à demi-garçonne, dona de uns lindos dentes, de uma boca do tamanho de um dedal, e que esvoaçava pelo aposento repleto de almofadas e de bibelôs como uma abelha que endoidecesse num canteiro florido.

O moço militar já residia ali quando a rapariga se fixou no hotel, com o marido, um sisudo homem de negócios que podia ser, quase, seu pai. Risonha e trêfega, abrira logo as janelas, cantando como um pássaro.

E o desembaraço com que o fazia, a singeleza estabanada dos seus modos, denunciavam, nela, um espírito infantil e puro, um desses anjos da Alegria que se confundem, na sua inocência, com os anjos do Pecado.

Os primeiros dias de vizinhança foram para o rapaz de verdadeiro encantamento. Despedido o marido, a cujo pescoço se pendurava, suspendendo os pés, como uma criatura amimada, punha-se a rapariga a movimentar-se pelo quarto, arrumando uma cousa, desarrumando outra, e sempre cantando, feliz, com uma límpida voz de cotovia satisfeita.

Do alto da sua janela, debruçado ostensivamente, Berredo Neto olhava a moça, acompanhando-lhe os movimentos como o gato acompanha, de longe, os avoejos do canário irrequieto. Por mais, porém, que olhasse, que tossisse, que procurasse chamar a atenção da linda criaturinha, era como se a sua pessoa nem, sequer, existisse. E essa indiferença, esse desprezo, irritava o rapaz, transformando em amor, em sentimento profundo e sincero do coração, o que fora, a princípio, uma simples curiosidade dos olhos.

Ao fim de quinze dias Berredo Neto estava desesperado de paixão.

Aquela atitude superior da rapariga matava-o. E sofria, já, o veneno do amor e do ódio nas fibras mais recônditas, quando deliberou:

— É uma loucura, mas hei de fazê-la; vou à outra ala do hotel, bato na porta, entro no quarto dela, e digo-lhe tudo, tudo, que me vai pelo coração. Depois, que ela, ou o marido, me mate. Morrerei satisfeito. Assim, é que eu não posso viver!

E, tomando o chapéu, saiu, resoluto.

No corredor da ala fronteira, examinou, pela direção, o quarto do casal. Não era preciso tanto: a porta estava aberta, e, ao passar pela frente, o militar viu a moça, lá dentro. O primeiro movimento foi de recuo, de arrependimento, de renúncia virtuosa, descendo as escadas e ganhando a rua. De súbito, porém, tomou coragem, e, firme, decidido, enfiou pela porta, parando um metro adiante do batente.

— Madame, — foi dizendo, ofegante do esforço e da emoção, — eu não podia mais esperar!

Sentada na cama-divã, entre as suas almofadas coloridas, a moça olhava-o, sem espanto.

— Madame! — Tornou o rapaz, num ímpeto, a voz estrangulada, — diga-me, por Deus, o que é preciso, para que seja minha! ...

E esperava, ansioso, a resposta que devia ser de indignação, de surpresa, de revolta, quando a rapariga o olhou, irônica:

— O que é preciso, não sabe?

E espreguiçando-se, toda mole:

— É só fechar a porta com a chave, meu bem...

LIX

SAMUEL ABN-HALEB

Há dias, desde o casamento de Rebeca Benzahon, Samuel Abn-Haleb não se sentia bem do estômago. Os engulhos, o mal estar geral que vinha sentindo, haviam-se ainda agravado com aquelas empadas de quatro semanas, comidas às pressas, e por serem mais baratas, no botequim da Estrada de Ferro, na Leopoldina. E como se tudo isso não bastasse, havia ainda aquele suplício de uma viagem a Petrópolis, onde tinha de liquidar uma letra no armarinho do seu cunhado Abraão.

O seu lugar, no carro, era o último, de frente, do lado da sombra.

E estava já no seu banco, fazendo mentalmente a conta dos juros a receber, no caso de Abraão só lhe pagar no dia seguinte, quando se lhe sentou adiante, com a cara para a sua, e viajando de costas para a locomotiva, um cavalheiro bem parecido, com ares de pessoa de distinção. Era um homem de meia idade, corretamente vestido de preto, camisa alva, colarinho duro, e que, ao sentar-se, foi, logo, pondo no cabide a maleta, o chapéu e a bengala, e preparando-se tranquilamente para dormir.

Pálido, os olhos fundos, a barba negra a escorrer do queixo magro, Samuel Abn-Haleb acompanhava disfarçadamente esses preparativos quando um apito, seguido de um estalo de ferragens e de um abalo de carros, anunciou a partida. E, em breve, rolava o trem em ziguezagues de ébrio divertido, demandando a encosta longínqua da serra.

Aos primeiros solavancos, sentiu Samuel, logo, os inconvenientes da sua temeridade, metendo-se a viajar naquele estado de saúde. Duas ou três vezes conteve as empadas, que queriam, parece, vir espiar a paisagem pela portinhola estreita do carro.

As estações sucediam-se, como num sonho vertiginoso. Diante de Samuel, a cabeça encostada ao espaldar da poltrona, a boca escancarada, o cavalheiro de preto dormia beatificamente. E um ronco pausado, medido, uniforme, casava-se ao barulho atordoante do trem.

Após a estação da Estreia, quando a máquina corria mais vertiginosamente para alcançar a tempo a Raiz da Serra, Samuel não pôde mais. Engulhou três vezes, engoliu outras três, numa agonia de morte. Da quarta, porém, não se conteve: abriu a boca, e um jacto azedo e abundante, veio fora espalhando-se, numa onda repugnante, no soalho do carro e sobre os joelhos do cavalheiro de preto. Olhos fechados, com um suor frio a brotar-lhe da testa e a irrigar-lhe a barba, o filho de Israel tinha a impressão de que o mundo se estava acabando. Passado, entretanto, o primeiro instante, abriu os olhos, e, sentindo-se melhor, enxugou a testa, limpou a barba, concertou a gravata. Diante dele, os joelhos inundados de vômito, o viajante de preto continuava a dormir, a boca aberta, a cabeça encostada ao espaldar da poltrona.

— E agora? — Imaginava o judeu, olhando a catástrofe.

E pensava no melhor meio de sair daquela atrapalhação, quando um apito forte anunciou a estação próxima, na base da serrania. Com o assobio agudo, o cavalheiro despertou, espreguiçou-se, e, ao baixar a cabeça, arregalou os olhos, vendo o desastre nos seus joelhos, no banco, no chão.

Mas não teve tempo de dar uma palavra, ou de pedir uma explicação. À sua frente, perfeitamente limpo, estava curvado para ele, na mais gentil das atenções, Samuel Abn-Haleb, a perguntar-lhe, solícito:

— O cavalheiro sente-se melhorzinho?

LX

A VINGANÇA

Dona Rosita entrara em casa aborrecida, agitada, sacudida por um nervosismo intolerável.

— Gustavo já voltou? — Perguntou, atirando para um lado o chapéu pequenino, de veludo azul, enfeitado de aigrettes brancas.

— Não, senhora, — informou a criada, predispondo as cousas para que madame mudasse de roupa.

— Ele saiu depois de mim?

— Logo depois.

A cena, por ocasião do almoço, havia sido violenta. Impetuoso, Gustavo atirara à face da mulher um epíteto grosseiro, uma infâmia, um insulto inominável. Duvidara, mesmo, da honestidade da companheira, atribuindo-lhe misérias que ela jamais praticara.

— É infame o que dizes! — Bradara a moça, erguendo-se da mesa, congestionada.

— Infame, não! — Retrucara o monstro, batendo, forte, na toalha, fazendo tilintar os pratos. — Mas tu hás de ver. De hoje em diante serei o que outros são: um gozador, um boêmio, um perdulário!

E com outro murro:

— Tu hás de ver!

Rosto em fogo, olhos cintilantes de cólera, Dona Rosita correu ao quarto, vestiu-se, tomou o chapéu, pôs a capa, e saiu, batendo o portão. Na rua, parara, mordendo os lábios, crispando as mãos nervosamente, sem saber, mesmo, para onde ia.

— Infame! — Rugiu, de novo.

E tomando, de súbito, uma deliberação terrível, chamou um auto, que passava.

— Para Copacabana! — Ordenou, atirando-se nas almofadas.

Vinte minutos depois enveredava a moça, sem se deter, pelo jardim, pela saleta, pelo gabinete verde em que o engenheiro Luiz Otávio lia, displicente, a secção mundana de um jornal.

— Você, aqui, Rosita? Você? — Exclamou o rapaz, dando um pulo do divã. — Que foi isto? Que há?

— Nada! — Obtemperou a linda senhora, o rosto vermelho, os olhos em fogo. — O que há, é que eu vim aqui para ser sua. Você não me fez tantas promessas nesse sentido? Não as fez, ainda ontem, quando foi jantar com meu marido? Pois, bem; aqui estou!

E enquanto falava, ia atirando para cima de um móvel o manteau, o costume azul-marinho, a cinta, a combinação, ao mesmo tempo que o rapaz, atarantado, fechava precipitadamente as janelas do gabinete.

Era dessa visita infamante que Dona Rosita regressava, agora, ao anoitecer. Voltava mais nervosa, mais agitada do que fora. A sua roupa, a sua pele, a sua própria carne, infundiam-lhe nojo, repulsa, repugnância. Tinha ímpetos de enfiar as unhas no corpo, e dilacerar-se. Parecia-lhe que, mergulhada no oceano, não lavaria, jamais, a baba do miserável a quem se entregara.

Momentos depois de sua chegada a campainha do portão tilintou. Era o marido que entrava. E a presença dele, agora, enchia-lhe a alma de terror, de pavor, de um medo alarmado, como nunca sentira. Certo, ele reconheceria no seu olhar, no seu rosto, a nódoa daquela vergonha. Fora brutal, a vingança. Gustavo não merecia castigo tão grande. Era grosseiro, violento, impetuoso, mas era, com certeza, leal. Não faria mais aquilo. Não voltaria nunca mais à casa de Luiz Otávio. A tempestade de lama passara. Receberia o marido amavelmente, dizendo-lhe que estivera na casa do pai. O tempo depois faria secar o punhado de lama, dispersando a poeira...

E pensava assim, arrependida, quando o marido entrou na alcova. Trazia a gravata amarrotada, um laço feito às pressas, e rescendia a champanhe.

— Boa noite! — Rugiu o mastodonte, entrando.

— Boa noite! — Gemeu, tímida, a desgraçada?

E aproximando-se dele, amorosa:

— De onde vens? Onde foste esquecer aquela zanguinha... Hein?

— Eu? — Respondeu Gustavo, desviando os olhos.

E medindo as palavras, para saírem alinhadas:

— Eu passei a tarde com o Luiz Otávio, em Copacabana. Fizemos lanche, jogamos o pôquer, tomamos um champanhezinha; vim de lá agora...

— Infame! ... — Rugiu a moça, entre dentes, com rancor.

Aquela mentira, tão grande como a sua, revoltou-a. E foi por isso que, em vez de perdoar, continuou, no dia seguinte, de olhos fechados, a rolar pelo abismo...

LXI

A HERANÇA

No terceiro ou quarto dia do casamento, quando as noivas, em geral, riem com todos os dentes, achando a vida um Paraíso, a Elisinha Roberto já trazia os olhos vermelhos, de tanto chorar. O marido que o pai e a mãe lhe haviam dado, o Matias Libório, não passava de um bruto sem o menor sentimento, e que se havia revelado, em toda a hediondez dos seus defeitos, no dia seguinte ao do consórcio. Boêmio de marca, tomara o caminho da rua logo na outra noite, deixando a mulherzinha abraçada com o travesseiro, e aplicando à fronha gomada os beijos doidos, nervosos, apaixonados, que reservava para a boca do companheiro.

Ao fim de dois anos, não havia, mais, do dote da Elisinha, a mínima reminiscência. Com o falecimento da mãe, a rapariga recebeu a sua parte, que o marido devorou. E o mesmo sucedeu quando lhe morreu o pai. Felizmente, para prendê-la à vida, deu-lhe Deus o Rogério, um pirralho encantador, que lhe nasceu seis anos depois do casamento e que, por isso mesmo, trazia as virtudes das obras de arte meticulosamente fabricadas.

Era esta a situação da família quando, uma noite, parou ao portão, badalando furiosamente, uma ambulância da Assistência Municipal. Dona Elisinha desceu às pressas, e, ao chegar em baixo, viu, entrando pela porta, que a criada abrira, o corpo do Matias, enrolado em uma toalha de mesa, suja de vinho e de sangue. Em uma das suas pândegas noturnas, durante uma ceia alegre em uma pensão galante da rua Santo Amaro, havia o boêmio altercado com um conviva, um italiano violinista, o qual lhe vibrara, certeiro, uma punhalada no coração. E, no dia seguinte, saía o cortejo, puxado por um carro de terceira classe.

Só depois da morte do marido pôde Dona Elisinha avaliar o mal que ele lhe fizera. Todos os seus haveres haviam sido desbaratados. Se não quisesse morrer de fome, teria que trabalhar, ou pedir esmolas. E era nisso que pensava, uma noite, à janela da sua casa, quando apareceu no parapeito vizinho a figura rotunda de Dona Melânia, pessoa que se metia, no bairro, com a vida de todo o mundo.

— Boa noite, Dona Elisinha!

— Boa noite, Dona Melânia!

E começou o diálogo:

— Então, muita tristeza?

— É verdade. E com muita razão. Estava, agora mesmo, pensando no que me fez meu marido. Imagine que não me deixou um tostão, sequer, para o filho! Gastou o meu dote, a herança de minha mãe, o que eu herdei de meu pai, ficando eu sem o menor recurso!

— Essa casa não era dele?

— Não, senhora; era de aluguel!

— E o piano?

— Era alugado.

Dona Melânia fez um pequeno silêncio, e instou:

— Mas, em compensação, deixou-lhe um filho que é uma beleza!

— Ora, Dona Melânia! — Fez Dona Elisinha, com cara de aborrecimento. Nem isso ele me deixou.

E com desprezo:

— Nem isso era dele! ...

LXII

A NEREIDA E O TRITÃO

Tic-tic, tic-tic, tic-tic... — e lá se ia, Avenida em fora, aquele delicioso vulto feminino, que ninguém sabia de onde viera. Quando, no canto da rua Sete, os homens deram por ela, houve um movimento de curiosidade. Alguns desgarram-se dos respectivos grupos, acompanhando-a. Outros, mais timoratos, ou mais ocupados, limitaram-se a ficar de olhos espichados, seguindo-o com o pensamento. E quando a moça chegou em lugar mais deserto, pela altura da General Câmara, e voltou-se para examinar uma vitrina, viu que a escoltavam, à distância, uns dez ou doze admiradores.

Com a argúcia que só as mulheres possuem, apreendeu a gravidade e, ao mesmo tempo, o encanto da situação. Era bonita, jovem, de uma elegância requintada, e, certo, aqueles indivíduos não faziam mais que seu dever, acompanhando-a. Perigo não havia. Apesar de casada com um homem que a não compreendia, e de ser nova e linda, tinha confiança em si mesma, triunfando contra todas as tentações. Vaidosa, certo que o era. Gostava de ser cortejada, seguida, admirada. A sua virtude era, porém, intransigente, e ela estava certa de que, em nenhuma hipótese, capitularia.

O exército de seguidores era, dessa vez, numeroso e completo. Havia de tudo: almofadinhas, militares, homens do comércio, e, mesmo, alguns velhos, cuja marcha rápida constituía uma violência sobre as pernas. O mais simpático, era, porém, um oficial de Marinha, todo de branco, luvas na mão, porte insinuante, olhos vivos, cara raspada, que vinha à frente dos demais, na convicção da sua superioridade e na certeza, quase, da vitória. Apressando o passo, o rapaz emparelhou com a moça, e viu que era encantadora. Alta, esbelta, olhos negros, cabelos de treva, constituía, mesmo, um legítimo tipo de beleza. O busto era harmonioso, de linhas puras, dando a ideia de uma criatura de outra esfera, dessas que nos despertam, ao mesmo tempo, o desejo e o respeito.

Forte, soberbo, cabeça levantada, luvas na unha, o oficial caminhava ao seu lado, quando, de repente, aventurou:

— Perdoe-me a senhora, mas a minha audácia é mais filha da sua beleza do que da minha grosseria.

Passo firme, como quem está habituado a esses ataques em plena rua, a dama, nem, sequer, estremeceu. O rapaz não era, contudo, homem que recuasse diante do primeiro insucesso, e insistiu:

— Eu sei que não é de cavalheiro interromper, assim, o caminho de uma senhora. A culpada é, porém, a sua formosura.

Conhecendo o perigo que aquele admirador constituía, a moça resolveu, de pronto, afastá-lo.

— Cavalheiro — disse, fechando o rosto; — não insista. Eu sou uma senhora casada!

— Ah, minha senhora, perdão! — Murmurou o oficial, respeitoso.

E numa curvatura:

— Sinto muito que assim seja.

— Obrigada, comandante — correspondeu a moça, desfranzindo a testa, num sincero agradecimento.

E estendendo-lhe a mãozinha fina, clara, iluminada pelas joias das unhas:

— Mas não sente mais... do que eu!

E continuou — tic-tic, tic-tic, tic-tic — o seu caminho.

LXIII

O PROPAGANDISTA

Dos seiscentos ou oitocentos caixeiros viajantes que percorrem o sul do Brasil, pelo interior, como representantes de firmas comerciais do Rio e de São Paulo, era o Bernardo Godinho, ou antes o “Formiga de Fogo”, como vulgarmente o conheciam, o mais simpático e popular. A sua habilidade em conquistar fregueses era formidável. Produto novo confiado às suas mãos era produto vitorioso. Por isso mesmo, as fábricas mais afamadas o preferiam, pagando-lhe comissões vantajosas que nenhum outro conseguia.

Não fosse isso, e a fábrica de vinagre “Souza Pinto”, de São Paulo, não o teria disputado tão ferozmente, com oferecimentos de toda a ordem, a um estabelecimento de fazendas que vendia para o interior, e a uma grande manufatura de cigarros, que fornecia a todos os caipiras das mais remotas fronteiras do Estado.

Lavrado o contrato com a fábrica de vinagre, o “Formiga de Fogo” largou-se pelo sertão, resolvido a impor o seu produto. Era de vê-lo de cidade em cidade, de vila em vila, de estação em estação, de hotel em hotel, de vendeiro em vendeiro, louvando aconselhando, recomendando o “Souza Pinto”, que considerava o mais puro e saboroso do mundo.

— Veja... prove... — dizia aos comerciantes, derramando um pouco do líquido na palma da mão. — Onde há vinagre como esse? Onde? Nem em Portugal! Nem na França! Nós somos fornecedores de todas as casas reais, na Europa.

E batendo no ombro do freguês:

— Fique sabendo que, se o vinagre em que os soldados embeberam a esponja no Calvário fosse “Souza Pinto”, Nosso Senhor até agradecia! ...

Arrolando encomenda sobre encomenda — em barris, em garrafas, em garrafões, — o Godinho, chegou, enfim, ao alto sertão de Mato Grosso, em regiões, onde, no dizer do outro, “a mão do homem nunca havia posto o pé”.

Montado em uma burra estradeira, puxando um cabresto, ele próprio, um cavalo com a maleta de roupa e a caixa das amostras, foi enveredando floresta a dentro. E preparava, uma tarde, a fogueira que o protegesse durante a noite contra a voracidade das feras, quando lhe caíram em cima oito índios vigorosos, que o enlinharam com embira e cipó, arrebatando-o, em carreira desabrida, pelo seio da mata silenciosa.

Ao amanhecer, estava o Godinho, os braços amarrados para trás, na presença do chefe da tribo, um índio mais índio do que os outros, isto é, com maior número de dentes no colar e penas mais vistosas na cabeça e na cintura. O selvagem olhou-o de cima abaixo, e ordenou, com superioridade:

— Taó guanapary cuim.

Que era como quem dizia:

— Ponham-no na panela para o almoço.

Mas adiantou:

— Auan taopeba mudauxy coró.

Que significava:

— Façam-lhe, porém, antes de morrer, a última vontade.

Meia hora depois a fogueira estava acesa. Sobre a fogueira, uma panela de barro, grande como uma pipa. E dentro da panela, quase cheia de água, o “Formiga de Fogo”.

A água começava a esquentar. Uma fumaça leve, tênue, ligeira, evolou-se, anunciando a fervura próxima. Mergulhado na água, apenas com a cabeça de fora, o Godinho esperava a morte. E sabia-a prestes, pela temperatura, quando um bugre, evadido da comissão Rondon e que sabia o português, se aproximou do fogo.

— Tua morte está próxima, “puary” (nome dado aos brancos pelos índios Trapicás); qual é a tua última vontade?

O rosto de “Formiga de Fogo” iluminou-se com um sorriso de vitória.

— A minha última vontade?

— Ficou na ponta dos pés, para falar melhor:

É que vocês me comam temperado com o vinagre “Souza Pinto”, que é o melhor do mundo!

E mergulhou na panela.

LXIV

AMORES DIMINUTOS

No dia seguinte, logo, ao da sua chegada a Petrópolis, Marieta Robine andava, já, de namoro com o Edgar Sobreira, que lhe pareceu, de todos os candidatos ao flirt, o mais interessante. Ao saltar na estação, no trem das doze e pouco, as “almofadinhas” estavam, todos, a postos. Havia-os para todos os gostos: pequenos, miudinhos, casaco cintado, tipo clássico para damas de quarenta a quarenta e cinco anos; grandes, fortes, atléticos, espadaúdos, com o rosto coberto de pó de arroz — modelo para senhoras de trinta, com toda a vitalidade do sangue; e pálidos, tristes, escaveirados, bigodinho a Carlito, para raparigas românticas e viciadas, estilo parisiense.

Alinhados na plataforma da estação, como bonecos num mostruário, Marieta escolheu, sem custo, o Edgar. Elegante e distinto, com uma testa ampla e morena e uns grandes olhos rasgados, era, ele, o homem “ideal”. E foi com essa convicção que a rapariga, de passagem, lhe sorriu, no momento em que o marido, abandonando-lhe o braço, se curvava para apanhar a maleta de mão.

Pequena e bem-feita, Marieta era uma dessas bonequinhas francesas que a gente tem medo de tocar, para que se não quebrem. Loura como um chopp, e clara como a espuma do mesmo, possuía uma boquinha em forma de coração, e uns olhos vadios, terríveis, eloquentes, que falavam como dois papagaios. Quanto ao marido, esse, era o tipo histórico dos predestinados: gordo, grosso, pequeno, sempre suarento e malvestido, e, o que era mais, com a barba sempre por fazer.

Com essas vantagens todas, o Sobreira não tergiversou; e de tal modo que, na tarde seguinte, por volta das cinco horas, estava no bangalô dos Robine, tomando chá, no mesmo divã, com aquela criaturinha deliciosa que, quarenta e oito horas antes, lhe era completamente desconhecida.

— Ah, Edgar, como tu és bom! ... — Gemia a moça, num suspiro de encantamento.

E, logo:

— Hás de amar-me muito... Não é?

— Oh! Muito, meu amor! — Confirmou o Sobreira.

— Toda a minha vida! — Tornou o rapaz com convicção.

A essas palavras, Marieta entristeceu.

— Ah! Assim eu não quero! Eu quero que me ames até, apenas, às oito horas.

— Até às oito horas, filha? Mas, por que?

E ela, num suspiro:

— É que meu marido chega no trem das oito e dez...

LXV

O ELIXIR

(SOBRE UM CONTO FRANCÊS)

A diferença de idade, entre os dois, havia sido enorme. Quando se casaram, ela estava com dezessete e ele com trinta e cinco. E tão justo lhes correu o tempo, que ali se encontravam, um e outro, nas fronteiras extremas da vida, ela com cinquenta e dois feitos, e ele com setenta, por fazer.

Sem filhos, e com uma fortuna que os libertava de preocupações financeiras, os dois velhos marchariam felizes ou, pelo menos, resignados, para a tranquilidade do túmulo, se não fosse aquele ciúme intempestivo de Dona Leonarda. A veneranda senhora não se podia conformar, efetivamente, com o desinteresse que por ela manifestava o seu encarquilhado companheiro, e era limpando os olhos encastoados em pergaminho que lhe dizia, procurando as lágrimas no intrincado labirinto das rugas:

— Qual, Esperidião, tu não me queres mais! Tu já me quiseste... Hoje, não!

E desatava a chorar, enxugando os olhos fundos na bainha da saia caseira.

Bem-humorado sempre, e olhando a sua decadência sob aspecto mais positivo, o ancião tomava entre as mãos trêmulas e rugosas a cabecita alva da companheira, punha-lhe nos cabelos de neve os lábios fundos, moles, tristes, em que os beijos não estalavam mais, e tranquilizava-a, carinhoso:

— Não digas isso, Dadá; sim? Não digas isso. Eu te quero muito, muito...

E quedavam-se abraçados, ela com a cabeça no peito dele, ele com o rosto nos cabelos dela, horas e horas, por muito tempo.

Essas pequenas cenas afetivas não conseguiam, entretanto, matar no peito de Dona Leonarda, a flor tardia daquela esperança, que se transformava, às vezes, no fruto de uma suspeita.

— Qual! — Gemia. — Ele não me quer mais! É impossível!

E tanto pensou, meditou, refletiu que, um dia, apareceu em casa um vidro de medicamento, que o médico lhe havia dado, para ministrar ao Esperidião. E recapitulava tudo que o doutor lhe dissera:

— É um remédio que só se toma uma vez na vida, minha senhora. Passado o efeito, que é de algumas horas apenas, nunca mais o fato se reproduzirá. Por isso, preste bem a atenção.         E rememorava, palavra por palavra, a recomendação:

— Tomadas as duas primeiras colheres, o paciente mostrará, logo, alegria, contentamento, jovialidade, desejo de locomover-se, de andar, de passear. Deixe-o sair, porque, minutos depois, ele voltara ansioso, caindo apaixonadamente em seus braços!

Dona Leonarda tremia, toda ela, ao pensar, como se fosse uma noiva, no que ia acontecer. À tardinha, tomou o seu banho morno, procurou no fundo de uma grande mala uma camisa de rendas que lá dormia, amarelada, entre flores murchas, e, às sete horas, deu a primeira colherada ao velhinho. Às oito, deu outra, e observava, atenta, os efeitos do elixir miraculoso, quando o marido, após alguns passeios pela casa, entremeados de beijos e pilhérias picantes, pediu, estendendo os braços de arbusto seco, e apertando-a entre eles:

— Filhinha, dá-me o meu chapéu e o meu paletó; sim? Estou com vontade de andar, de mover-me, de espairecer!

E recebendo o paletó e o chapéu:

— Até já; sim?

E despediu-se, beijando-a nas duas faces.

Tremendo toda, como quem espera o seu noivo, Dona Leonarda recompôs a casa, correu ao quarto de dormir, vestiu a camisinha amarelada, guardada durante quinze anos, repuxou os cabelos, passou no rosto e nos braços um pouco de água de Colônia, encostou a porta do aposento, e meteu-se, nervosa, debaixo do lençol de linho, tirado do baú naquele dia. E esperou. O relógio da igreja próxima deu nove horas. Deu dez. Deu onze. E o Esperidião sem chegar!

— Que teria acontecido, minha Nossa Senhora! — Gemia a velhinha, aflita.

Por duas vezes, foi à janela e olhou a rua. Nada. Ninguém. Ouviu dar uma hora. Duas. Às duas e meia, abalada por tantas emoções, adormeceu.

De manhã acordou com um barulho desusado na rua. Correu à porta.

Era a Assistência que trazia o Esperidião, encontrado sem sentidos, pela madrugada, no interior de uma casa suspeita, nas vizinhanças da Lapa.

LXVI

O “ CHAUFFEUR ” VIOLINISTA

Durante algum tempo, o Guilherme Gomes vacilou entre as duas profissões: músico de cinemas ou chauffeur de carro de praça. Segundo violino em um teatrinho de Campinas, tinha gosto e capacidade para reger uma orquestra pequena. Os oito contos de réis que o pai lhe deixara punham-lhe, porém, coceira no bolso da calça; e foi para fazê-los render que o rapaz adquiriu em segunda mão um bom Hudson, com quatro lugares, o qual, concluído o exame e tirada a licença, foi dirigir pessoalmente, fazendo ponto na Avenida, em frente à Galeria Cruzeiro.

Dois anos e meio passou o Guilherme na sua profissão e no seu posto. Baixo, claro, cara raspada, fardado de caqui, boné da mesma fazenda, conversava ora com um camarada, ora com outro; assim, porém, que divisava um freguês cortando a Avenida, corria para o lado do seu carro, abrindo a portinhola, e indagando:

— Taxi? ...

Expedito e simpático, trabalhando para si mesmo, fazia negócio. O seu pensamento estava, porém, no seu violino, à companhia do qual voltaria um dia, e com quem conversava, às vezes, alta noite, para matar as grandes saudades que o atormentavam.

Deixa-te estar, “caboclo”, — dizia ele, guardando o instrumento na caixa; assim que eu tenha vinte contos para montar uma orquestra, eu volto para teu lado.

Dava-lhe um beijo:

— E nunca mais te abandonarei! ...

Ao fim de trinta meses de correrias pela cidade, rodando e buzinando das areias Leblon à chácara mais recôndita da Boca ao Mato, achou o Guilherme que era tempo de realizar a sua grande aspiração artística. Possuía no Banco vinte e três contos; o carro valia, ainda, uns seis; era o suficiente para a montagem de um pequeno grupo de “batutas”, com flauta, violão, piado, cavaquinho, e “reco-reco”, sem contar o seu violino, que seria o “capitânia”, o instrumento-chefe, daquela esquadrilha sonora.

Vendido o carro, e arranjados os companheiros para a orquestra, estava o ex-chauffeur, ao fim de duas semanas, com o grupo formado. Faziam parte dele o Tanajura, o João Gabriel, o Fifi, o Honório o Requeijão. Ele, Guilherme, na qualidade de dono dos instrumentos, dirigia o pessoal.

A estreia do bando não era fácil. Os cinemas estavam com os seus contratos tomados, os teatros tinham orquestra própria, e os clubes, mesmo, andavam bem servidos. E foi, então, quando o violinista campineiro resolveu o caso, indo tocar nos hotéis e restaurantes.

A inauguração foi, assim, no Restaurante Suíço, à rua da Carioca. Abancado a um canto da sala, repleta de gente fina, o grupo esperava ordens do gerente da casa, por intermédio do Guilherme, que se mostrava pálido, comovido, como se estivesse transcorrendo o mais grave momento da sua vida.

De repente, o gerente aproxima-se da orquestra. O rapaz põe-se de pé, atento.

— Toque um tango... Ouviu? — Ordenou o sujeito.

— Um tango? ... — fez o Guilherme, a voz trêmula.

E atrapalhado, na sua emoção:

— Quer por peça ou... ou... à hora?

LXVII

A PENA DE TALIÃO

O destino dos filhos, a vergonha de que se cobririam quando, mais tarde, viessem a saber da verdade triste, havia sido a única força a deter o comandante Samuel no caminho de um crime ou de um escândalo. O amor pela esposa, esse desaparecera de todo; apenas, como não podia viver sem um carinho, sem um afeto, sem o contacto de um coração feminino, montou uma casa pata a viúva do seu antigo camarada Batista Mindelo, pela qual manifestara simpatia desde solteiro mas que respeitara, sempre, enquanto lhe viveu o marido. Aparentemente, e em benefício dos filhos, vivia com a esposa, a estuporada Dona Carola; a companheira do seu coração era, porém, a outra, que o fazia completamente feliz.

A vida levada por Dona Carola tornava-se, entretanto, e dia a dia, sinais censuráveis. Inteiramente livre, sem dar a menor satisfação ao comandante, passava, às vezes, dois dias fora de casa, em companhias as mais duvidosas. À sua passagem, na rua, formavam-se procissões de conquistadores, que lhe iam no encalço; e era, para ela, uma vaidade, um motivo de orgulho, ver-se assim perseguida, acompanhada, por dezenas de homens que nem, sequer, conhecia.

Foi informado da vida que levava a antiga companheira, a criatura que tomara à sua guarda, a mãe, enfim, dos seus filhos, que o comandante Samuel resolveu livrar-se, definitivamente, daquele pesadelo. As provas que possuía contra a esposa, documentando a sua existência de libertinagem, eram irrecusáveis e esmagadoras. Bastava, pois, uma petição ao juiz, pedindo divórcio, para que fosse instaurado o processo e conseguida a sua separação daquela que ele chamava, no seu julgamento antecipado, um “cadáver moral”.

Requerida a sentença, compareceram a juízo, no dia aprazado, a ré e o autor. Grave, pálido, barba crescida, o semblante acabrunhado, trajando preto, o antigo comandante do “Gravatá” recordava, no seu abatimento, um viúvo que regressasse, de olhos pisados, da missa de sétimo dia. Contrastando com ele, Dona Carola jamais parecera tão alegre, tão contente, tão feliz. Exibia um espalhafatoso vestido amarelo, sem mangas, o colo aberto até à confluência dos seios, e, completando a desenvoltura, um chapéu de palha da Itália, amontoado de flores, como uma sepultura recente.

Aberta a sessão, e iniciado o interrogatório da ré, esta trançou a perna, com desembaraço, cruzando as mãos sobre o joelho que ficara de cima.

A senhora confessa, então, que foi infiel ao pacto conjugal? — Indagou, em certa altura, o magistrado.

— Sim, senhor; confirmo! — Declarou, decidida, balançando a perna, um sorriso cínico ao canto da boca, Dona Carola.

— E o motivo que alega?

A traição, também, por parte do senhor meu marido. Empreguei a “pena de Talião”: fiz o que ele me fez.

Mas, se ele diz que só se afastou do lar depois que a senhora o enganou.

— Também é verdade!

— É verdade?

Sim, senhor. É que eu cá não espero que me digam as coisas para eu dar a resposta. Antes de me fazerem, faço eu. E a pena de Talião!

E, cabeça erguida, narizinho no ar, continuou a sacolejar a perna, num desafio.

LXVIII

O ESPECIALISTA

Não obstante a franqueza do anúncio, o qual declarava que as consultas ao ilustre especialista começariam às duas horas da tarde, aquela senhora subiu as escadas do consultório cinco minutos, precisamente, depois do meio-dia. Pálida, ofegante, o olhar assustado, a consulente precipitou-se pela primeira porta que encontrou aberta, e que era, exatamente, a do gabinete do eminente ginecologista.

Àquela hora, o médico não estava, certamente, no consultório. E como fosse ainda cedo para a chegada do patrão, o Benedito, um cafuzo espigado e resoluto, atirou para um lado o espanador com que fazia a limpeza da casa, vestiu o avental do doutor e, pondo o pince-nez de ouro com que o especialista examinava as clientes, sentou-se à mesa, disposto a escrever, no papel do consultório, uma pequena carta à namorada.

Foi nesse momento que a dama, que não conhecia pessoalmente o ginecologista, enveredou pelo gabinete em que o Benedito rabiscava a sua carta, paramentado de médico. Surpreendido naqueles trajes, o primeiro pensamento do crioulo foi despojar-se de tudo aquilo, desculpando-se do sacrilégio. A mulher não lhe dera, entretanto, tempo para isso, caindo-lhe aos pés, em soluços:

— Doutor, salve-me! Salve-me pelo amor de Deus!

Olhos arregalados, o preto olhava a pobre senhora, sem compreender o que se passava. As palavras da moça revelaram, porém, o mistério:

— Foi uma loucura, doutor! Foi uma loucura! Eu supunha que ele casasse contigo, e me é impossível dar ao mundo, à vida, uma criaturinha que não poderá, jamais, pedir a bênção ao pai!

Pince-nez na ponta do nariz, as mãos ásperas, habituadas à vassoura, mergulhadas no bolso do avental, o Benedito olhava a moça com austeridade, quando se lembrou de salvar a situação:

— Já sei, — observou, com os olhos no forro da sala; — a senhora quer matar a criança antes de nascer. Não é?

Um suspiro da rapariga confirmou esse pensamento.

— Pois bem, — acrescentou, cínico, o moleque. — Vamos acabar com ela. O caso é simples.

E olhando a moça através do pince-nez:

— A senhora chega em casa e bebe uma moringa de água, inteirinha. Compreendeu?

— Sim, senhor, sr. doutor, — confirmou a cliente, baixando os olhos.

— Duas horas depois, tome outra, e não deixe sair.

— Sim, senhor, — gemeu a pobre.

— Passadas mais duas horas, — acrescentou o cafuzo, — tome outra, e segure dentro.

— Sim, senhor, — sussurrou a mísera, quase desmaiando.

E o Benedito, levantando-se com solenidade:

— Nós “precisamos” afogar esse “capetinha”!

E cobrou vinte mil réis.

LXIX

O SUSTO

A rua em que o José Viana de Souza Júnior foi residir, assim que chegou ao Rio de Janeiro, era uma dessas vias públicas de vida sossegada, sem bonde à porta e com uma grande linha de arvoredo igual, e de copas redondas, bordando a calçada. Durante o dia, só passavam por ali os moradores, gente aristocrática, e um ou outro bilontra, desses que consomem a tarde toda pescando, com o anzol dos olhares, os rostos encantadores que meditam no quadrado de uma janela florida. E, à noite, além dos moradores displicentes e retardados, só mesmo o guarda-noturno, cujo apito fazia concorrência aos grilos, que trilavam, na quietude noturna, empoleirados nas frondes silenciosas.

Foi aí, que, uma tarde, o Saul Peixoto Guerra descobriu, no momento em que a visão saia de um automóvel, aquele rostinho redondo, e muito claro, em que uns olhos negros punham a claridade doce, e românica, de luar numa geleira. Da esquina onde parou, viu-a entrar no jardim da casa, e, pouco depois, o telefone tilintava lá dentro, na sala de jantar, em uma tentativa audaciosa.

Ao fim de uma semana de idas e vindas, o Peixoto Guerra havia feito progressos consideráveis. Começou cumprimentando a moça à passagem, trocando um olhar por um sorriso, e acabou por penetrar, à noite, no jardim, onde havia, preso à grade, um discreto caramanchão convidativo.

Naquela noite, que era a terceira daquele idílio imprevisto, o caramanchão parecia mais uma gaita de fole, de tantos suspiros que de lá saíam. A cabeça cheirosa pousada no coração do rapaz, os olhos fechados para sentir melhor o veneno daquela voz que lhe pingava beijos no ouvido, Dona Esmerina escutava as palavras apaixonadas que o namorado lhe segredava, pendurando uma carícia em cada sílaba e enfiando a conta de um suspiro na agulha de cada período.

De repente, porém, ouvem-se passos na calçada. O caminhante, que vinha, pisava com força, e, ao chegar em frente ao caramanchão, encostou-se à grade. O Peixoto Guerra, que trançava as rosas de uma frase lírica, estacou, receoso. Dona Esmerina abriu os olhos, inquieta.

— Ahn! És tu? — Disse, tranquilizando-se, ao ver na grade o rosto do marido. — Que susto me pregaste, José ?!...

E acomodando-se, dengosa, de novo, no peito do rapaz:

— Tomei um susto! ... Pensei que fosse o guarda-noturno...

LXX

A COMÉDIA

PEÇA EM UM ATO PIPI...QUININO

Personagens:

LULÚ — 7 anos.

ANTONICO — 9 anos.

ZEZÉ — 6 anos.

OLGUINHA — 7 anos.

ZOÉ — 7 anos.

NHONHÔ — 3 anos.

Salão de brinquedos no palacete Braga Borges. Os seis pirralhos, cansados de travessuras, resolvera promover divertimento mais sossegado.

ANTONICO — Vamos brincar de teatro? Vamos?

ZEZÉ — Vamos!

OLGUINHA — Vamos!

ZOÉV — Vamos! Vamos!

LULÚ — Vamos! Vamos brincar de teatro!

ANTONICO — Vamos representar a comédia que levaram no colégio; aquela do “Soldado corajoso”!

ZEZÉ — Está feito! Vamos representar o “Soldado corajoso”; vamos, todos!

LULÚ — Viva o “Soldado corajoso”! Viva! ...

ANTONICO — Eu vou fazer o general. E você, Olguinha? Que é que você quer fazer?

OLGUINHA — Eu quero fazer a criada!

ANTONICO — E você, Lulu?

LULU — Eu quero fazer o padre! Eu gosto de padre!

ANTONICO — E você, Zoé?

ZOÉ — Eu quero fazer a feiticeira.

ANTONICO — Muito bem! E você, Zezé?

ZEZÉ — Eu quero fazer o sacristão!

(A um canto da sala, brincando com um cachorrão negro, o “Veludo”, Nhonhô, o mais novo da troupe, não presta grande atenção à distribuição dos papéis, quando o Antonico, para que não fique ninguém fora do brinquedo, se aproxima dele).

ANTONICO — E você, Nhonhô, que é que você quer fazer?

NHONHÔ (levantando a camisinha) — Eu télo fazê pipi...

LXXI

A DORMINHOCA

O Sr. Macário Fagundes não é um homem desconfiado. Aquele caso, narrado por ele próprio, dá ideia de seu temperamento calmo, e, sobretudo, da confiança absoluta, perfeita, incondicional, que lhe merece a mulher.

Caixeiro viajante da casa Pinto Herscher & Cia., o Sr. Macário vivia constantemente longe de casa, ganhando, em negócios da firma que representava, os honrados dinheiros que Dona Lili gastava nas casas de chá, de sapatos, de chapéus e de modas, durante a sua ausência. Cometa comercial, um dia estava em Jaguarão, no Rio Grande do Sul, vendendo sal para as charqueadas, e outro em Manaus, negociando em machadinhas para a extração de borracha. Minas, Pernambuco, Baía, Ceará, tudo isso havia ele medido de trem, de automóvel; a cavalo e a pé, em viagens de propaganda comercial que pouco, entretanto, lhe rendiam pessoalmente. E por onde andasse, o seu pensamento estava no Rio de Janeiro, na sua casa e na sua mulherzinha, cujo coração só de três em três meses lhe era possível ter, e ligeiramente, palpitando de encontro ao seu.

Certa vez, de regresso do sul, chegou o sr. Macário à sua casinha de Vila Isabel após uma ausência de dois meses. À noite, fatigado da viagem, recolheu-se ao leito de casal, bocejou, e dormiu, tendo o cuidado, porém, de, antes, pedir desculpas à sua Lili, que lhe estranhava, daquela vez, aquele sono irresistível.

O sono é, entretanto, como o talento: quem o tem cedo, acaba cedo. E essa lei confirmou-se, mais uma vez, naquela noite, com o sr. Macário Fagundes, que, tendo se deitado às oito horas, se viu acordado completamente às duas e meia da manhã. Fortalecido pelo repouso, o seu primeiro cuidado foi beijar longamente, docemente, a sua mulherzinha adormecida. E beijava-a, beijava-a, beijava-a, quando esta, sem abrir os olhos, protestou, com doçura:

— Não, filhinho; não!

E insistiu:

— Não! Não! Não! ...

Estranhando aquela recusa, o sr. Macário sorria, achando graça daquele sono Pesado, quando resolveu agir mais delicadamente, interpelando-a:

— Mas, por que, hein? Por quê?

E continuava a beijá-la, quando a moça gemeu, dormindo:

— Não; não! Não quero! O meu marido chega amanhã!

Coração bom, alma simples, espírito sem malícia, o sr. Macário pôs-se a rir, baixinho, daquele engano da mulher. E como não quisesse acordá-la para dar-lhe um trote, puxou os lençóis para o pescoço, e dormiu, roncando, até de manhã...

LXXII

A ENGUIA

Durante quinze anos o Joaquim Roque nada fizera senão embebedar-se. Ao açorar, de manhã, o seu cuidado era tomar o chapéu, e encaminhar-se para o mercado. As nove horas estava embriagado que se não sustinha, quase, nas pernas. Comprava um pão, ou algumas bananas, comia, e principiava, de novo, a bebericar. Ao anoitecer entrava em casa, jantava de olhos fechados, e dormia como um porco, até a madrugada no dia seguinte. No décimo dia útil de cada mês, jejuava, até às quatro da tarde: era dia do pagamento no Tesouro, onde recebia pela tabela dos aposentados. A caminho e casa, porém, recuperava o tempo perdido, virando um copo em cada botequim do trajeto.

Aquele sábado não era, entretanto, de recebimento. Era dia comum, e Joaquim Roque amanhecera no mercado, cumprindo a tristeza do seu destino. Às oito horas, com alguns tostões no bolso, chegou a uma banca de peixe e começou a mexer no pescado.

— Sai daí, pau d’água! — Intimou o peixeiro.

— Sai, não! — Protestou o ébrio, que ainda não o estava, de todo. — Eu quero comprar um peixe, e não saio!

Para ver-se livre do freguês tão incômodo, o peixeiro deu-lhe, por cinco tostões, uma enguia de dois palmos. Joaquim Roque meteu-a no bolso do velho paletó esfuracado e de cor incerta, retomando o caminho do botequim, onde se pôs, novamente, a beber, inteiramente esquecido da compra que fizera.

Ao entardecer, tomou o caminho de casa. Tropeça daqui, tomba dacolá, enfiou, às guinadas, pela rua São José, sem saber, mesmo, por onde ia. Um guarda-civil, habituado a vê-lo naquele estado, deu-lhe o braço, amparando-o, até uma das ruas transversais. Outro segurou-o, ajudando-o, até o beco do Carmo. Deixado aí, Joaquim Roque sentou-se, os olhos quase fechados, gorgolejando pragas. A baba, grossa, abundante, pegajosa, escorria-lhe da boca sem dentes pela barba grossa, áspera, quase branca. Das botinas sujas, que haviam engolido as meias, as pernas saíam, magras, sujas, cabeludas, como antenas de caranguejos monstruosos. Os punhos da camisa, escuros e sem botões, desciam da manga do paletó, vindo cobrir, quase, os dedos grossos, de grandes unhas orladas de preto.

Sentado no batente de uma porta, Joaquim Roque murmurava contra perseguidores imaginários, quando meteu a mão no bolso do paletó. Comprimida, a enguia, de que ele se havia esquecido, enfiou a cabeça pelo primeiro buraco da algibeira, vindo aparecer, fora, numa extensão de três centímetros. Ao dar com a vista na cabeça do peixe o ébrio arreganhou a boca, num gesto de espanto. Mexeu com a mão no bolso, para certificar-se. Ao movimento dos dedos, dentro, a enguia bateu, fora, com a cabeça. Convencido de que não se enganava, Joaquim Roque desatou numa choradeira funda, alta, que mais parecia um berreiro de gado.

Populares acorreram, curiosos. O guarda-civil fez o mesmo, indagando o que era. E Joaquim Roque, o rosto em pranto, a boca em choro, a mão esquerda no bolso, indicando, com a direita, a cabeça da enguia, que aparecia pelo buraco do paletó:

— Meu dedo polegar criou ôôôôlho!...

LXXIII

FRUTO DO ENGANO

O Dr. Bonifácio Lopes acabava de entrar no consultório quando o contínuo lhe anunciou aquela senhora, que tinha hora marcada.

— Mande-a entrar, — ordenou.

E um minuto depois tinha à sua frente, coberta por um espesso véu de viuvez, um vulto de mulher jovem, que a toilette negra impiedosamente envelhecia.

— Esteja à vontade, minha senhora, — pediu o ilustre clínico, virando-se na cadeira. — Não tenha cerimônias, e conte-me, claramente, o seu caso.

— A minha moléstia, doutor, é esquisita, — principiou a moça. — Começou, há quatro meses, por uns vômitos, umas síncopes, umas irritações, uns ataques de choro. Depois, passei a engordar subitamente. As pernas incharam. Procurei um médico, pessoa de confiança, e ele disse que era um quisto. Não sei o que seja.

Experiente, o Dr. Bonifácio diagnosticou, logo:

— Ah, minha senhora, o seu caso é claro.

E rindo:

— Vá preparando as fraldinhas, porque o pirralho vem, com certeza, por aí!

A essas vozes, a dama se ergueu de súbito na cadeira.

— Oh; doutor! Não me injurie! Eu sou uma viúva honesta, uma senhora séria, e não admito, absolutamente, brincadeiras. Repila-me, mas não me insulte!

— Mas, minha senhora, — gaguejou o médico, atrapalhado, — pode ser... pode ser que... Há quantos meses morreu seu marido?

— Há dois anos.

Essa informação perturbou o clínico.

Era um caso, realmente, complicado. E foi beliscando o beiço, preocupado, que pediu:

— Faça favor... Entre para o gabinete... Eu vou examiná-la.

Vinte minutos depois, após um exame consciencioso, o Dr. Bonifácio insistiu:

— Não há dúvida, minha senhora. Eu confirmo o meu diagnóstico. É inexplicável, mas é verdade! Consulte a sua consciência, veja por onde andou, os passos que deu, e talvez encontre alguma explicação... A senhora mora só?

A essa pergunta, a viúva bateu na testa, como quem acaba de fazer uma descoberta.

— Ah, doutor! Quem sabe se...

E contou:

— Depois que meu marido morreu, eu fui morar com minha irmã, que é casada. Como ela também é pobre, moramos eu, ela e o Alfredo, seu marido, no mesmo quarto de pensão, onde ocupamos duas camas, sendo que eu durmo com ela.

— E então?

— Então... — reatou a viúva.

E olhos muito vivos, muito espantados, por baixo do véu:

— Quem sabe se o Alfredo não se enganou?

LXXIV

O ESTREMECIMENTO

Saída do grande estabelecimento que a detivera, interna, por cinco anos, Antonieta Fernandes era uma dessas criaturinhas modelares e encantadoras, capazes de fazer a felicidade do homem mais exigente. Era linda, boa, humilde, e, para complemento feliz, não conhecia a língua pátria nas suas expressões correntes, mas, apenas, sob o aspecto puramente literário. E foi isso, exatamente, o que mais despertou o interesse do seu primo Carlos Sobreira, rapaz educado na Europa, e que havia trazido, dali, uma alma verdadeiramente parisiense.

Postos em contacto no tumulto do Rio de Janeiro, viviam os dois noivos como vivem, em geral, os namorados: iam juntos ao cinema, às festas, aos passeios de automóvel, e isso com aplauso de Dona Leocádia, mãe da menina, que fazia o maior gosto no casamento.

Certo dia, começou a matrona a notar, na filha, uma certa mudança de maneiras. Não era mais a mesma criatura alegre, risonha, jovial. Tinha modos tristes, andava pelos cantos da casa, a mão no queixo, os olhos fundos e um grande segredo no coração. Por seu lado, o Carlos não era mais o namorado de outros tempos: aparecia mais raramente e, quando se encontrava com a menina, era para ficar silencioso, como quem se quer ver livre, logo, daquela situação.

Impressionada com o caso, Dona Leocádia resolveu interpelar a filha.

— Anda cá, dize-me uma coisa, — chamou. — Que há entre vocês?

— Nada, mamãe, — informou a moça, baixando os olhos, esforçando-se para não chorar.

— Não; isso, não! — Tornou a matrona, experiente.

E beijando a menina com ternura:

— Houve, entre ti e o Carlos, algum estremecimento?

— Estremecimento? — Repetiu a menina, franzindo a testa.

Dona Leocádia não insistiu, e Antonieta, mal se viu livre, correu, logo, a consultar o seu Dicionário, que era o de Cândido de Figueiredo. Abriu-o no lugar competente, e leu, literalmente:

"Estremecimento (estre-me-ssi-men-to), s. m. — ato de estremecer, estremeção; agitação; tremura repentina e passageira. — Movimento convulsivo dos nervos”.

Terminada a consulta, a menina corou. E foi vermelha de arrependimento e vergonha, que correu a atirar-se nos braços maternos, soluçando:

— Foi isso mesmo, mamãe! Nós tivemos um “estremecimento” na véspera de São João.

E a voz trêmula, o braço estendido, as lágrimas em turbilhão:

— Foi ali atrás da porta, junto do piano...

LXXV

A MORTE DO GUARDA-LIVROS

Foi uma consternação na casa Bastos, Braga & Cia., a conhecida firma importadora de fazendas e miudezas, quando ali chegou a notícia de que o guarda-livros da firma, o Liberato Gomes, havia tido uma síncope no café da esquina e estava, já, agonizante. Os sócios da casa correram para o local em que o seu auxiliar se extinguia, mas, ao chegarem ali, já o encontraram estendido sobre quatro cadeiras, e, ao lado, um médico da Assistência, que lhes declarou, simplesmente:

— Está morto...

Liberato Gomes era um homem de cinquenta e poucos anos. Magro, alto, rosto chupado, vestindo sempre com decência, era o tipo, mesmo, dos indivíduos da sua profissão. Empregado da firma há dezoito anos, vira um dos encaixotadores do armazém passar a gerente, e de gerente a sócio, sem que sentisse o menor ressentimento.

Ele sabia, como membro da sua classe, a prevenção dos caixeiros contra os empregados de escritório, considerados a aristocracia do comércio. E como aristocrata, que era, conservava-se no seu posto, trabalhando com dedicação, contentando-se, resignado, com o seu ordenado comum e, quando os negócios corriam bem, com uma pequena gratificação no fim do ano.

Era com essa gratificação que, em geral, em fevereiro ou março, mandava a esposa para Poços de Caldas, onde a modesta senhora ficava dois meses, e onde ele, honrado e saudoso, a ia ver de duas em duas semanas. E era lá que se achava Mme. Liberato Gomes, dessa vez, enferma, quando o marido morreu.

Charuto à boca, o ventre para diante como uma proa de couraçado, a papada gorda a esconder a gravata e o colarinho e a despencar-se, mole, pelo peitilho da camisa gomada, o Sr. João Bastos, chefe da firma, logo que regressou ao armazém, voltou-se para o sócio mais recente, o antigo caixeiro Domingos Maia, e chamou:

— Senhor Maia?

— Pronto, senhor Bastos! — Acorreu, solícito, maneiroso, serviçal, o antigo empregado.

— Senhor Maia, — tornou o gordo comerciante, — o senhor providencia sobre o enterro do sr. Liberato. Enterro de primeira classe, com uma grinalda em nome da firma. Telegrafe, também, à viúva, comunicando-lhe a morte do marido, e apresentando-lhe pêsames em meu nome.

Com a sua cara de fuinha, o nariz grande, os olhos pequenos, Domingos Maia ia fazendo um gesto de assentimento a cada ordem do antigo patrão. E havia feito o último, quando o sr. Bastos achou conveniente acrescentar:

— Mas, olhe, sr. Maia: é preciso cuidado na comunicação do fato à viúva. A pobre senhora sofre também do coração, e poderia morrer com o choque. De modo que eu achava melhor o senhor passar primeiro um telegrama, com a minha assinatura, comunicando-lhe que o marido se acha gravemente enfermo. Não convém, logo, dizer que ele morreu. O senhor compreende?

— Perfeitamente, sr. Bastos; perfeitamente! — Confirmou o ex-caixeiro, a descer sobre os braços finos as mangas da camisa branca e suada, que, sem suspensório, lhe formava em torno ao cós da calça uma auréola de frasco de doce.

Nessa mesma tarde, recebeu, efetivamente, a desventurada senhora, este telegrama:

“Viúva Liberato Gomes. Grande Hotel.

Caldas.

Liberato gravemente enfermo. Enterro amanhã. Pêsames.

João Bastos”.

LXXVI

SÃO PAULO-RIO

O criado, solene e teso, recoberto de bordados de ouro como um príncipe russo, recebia as taças em que havia servido o sorvete aos convidados da marquesa, quando, naquela reunião chic, alguém se referiu ao progresso de São Paulo.

— É o coração do Brasil — opinou mlle. Fernanda Lodi, admirável boneca rosa e neve, fazendo faiscar os seus grandes olhos castanhos.

Como todas as rodas seletas, aquela era pequena: oito ou dez senhoras, e dez ou doze cavalheiros. Ali estavam, porém, algumas das mulheres mais lindas do Rio, e entre os homens, algumas das figuras mais representativas. Mme. Braga Bôto era paulista, com todo o coração. Mlle. Flávia Soutelo gostava de São Paulo, mas adorava muito mais o Rio. E foi quando Mme. Souza Meireles, com o seu dengue habitual, a voz mole, de síncope, declarou, entrefechando os seus belos olhos de mulher refinadamente coquete:

— Eu, por mim, se Deus me perguntasse o que eu preferia, entre Rio e São Paulo, eu lhe pediria que me pusesse um pé aqui, outro em São Paulo.

— Pois, eu — adiantou, logo, o capitão-tenente Sobreira Rocha, acariciando, molemente, o seu bigodinho à Carlito, — e no caso de tomar a senhora essa resolução, isto é, ficar com um pé aqui outro em São Paulo, eu faria exatamente o contrário.

As mulheres puseram-se a olhá-lo, curiosas.

E ele, com a cara mais sem vergonha do mundo:

— Eu, nesse caso, não queria uma coisa nem outra.

E, cínico:

— Eu preferia ficar em Guaratinguetá, olhando para cima!

LXXVII

O RELÓGIO

— Está joia, minha filha, — disse-lhe a velha mãe, prendendo-lhe ao braço um pequeno relógio de ouro, pendente de uma pulseira de fita marrom, que o tempo encardira, — esta joia será a tua protetora, entre os perigos da cidade para onde vais. Quando sentires a tua virtude em risco e o teu coração inseguro, olha-lhe os ponteiros, durante sessenta segundos. Faze isto, e serás sempre salva!

Chegando ao Rio de Janeiro, para onde o marido transferira a residência, começou Dona Violeta a fazer vida chic, de alto mundanismo, de grande luxo, de requintada elegância. Obrigada, por uma promessa feita à velha mãe, a não se separar do relógio, começou por mudar-lhe a fita, que lhe parecia feia. Depois, como o cronômetro principiasse a atrasar-se toda a vez que se tratava de ir a um baile, a um teatro, a um chá, a um passeio, levou-o a um relojoeiro, que lhe trocou a corda, e lhe substituiu, um a um, os ponteiros de ouro.

Absorvida pelo meio em que vivia, a linda moça pernambucana caminhava de olhos fechados na direção de um abismo, coberto de flores, mas repleto de espinhos dilacerantes. E tão atordoada estava, naquele ambiente, que não se revoltou nem reagiu, no momento em que o Dr. Barbosa Torres, famoso galã da alta roda, lhe propôs, à meia-voz:

— Então, não falte. Espero-a na garçonnière, amanhã, às duas, em ponto!

À noite, a moça quase não dormiu. Devia ir? Faltaria à promessa? O combate entre os anjos bons e as legiões diabólicas foi formidável. Estas acabaram, porém, como sempre, triunfando, e, no dia seguinte, pouco depois do meio-dia, estava a linda senhora em uma das mesas do Alvear, fazendo horas para ir, como prometera, ao encontro do capitalista.

Mergulhada nos seus pensamentos, não dera, sequer, pela passagem das horas. Ao fim de algum tempo, emergindo do mundo de sonhos em que se afundara, olhou o relógio de pulso. Era uma hora, em ponto.

— Ainda tenho uma hora... — disse, abismando-se, de novo, nas suas cogitações.

Pouco a pouco, o salão de chá, deserto antes, se foi enchendo. Fora, na Avenida, se acentuava o movimento de automóveis e transeuntes.

— Hora e meia! — Exclamou a moça, consultando o relógio-pulseira.

Não tinha acabado, porém, de pronunciar essas palavras de impaciência, quando um relógio deu, longe, na rua, quatro badaladas. Saiu precipitadamente, e viu, no frontal da “Equitativa”, que estas não mentiam.

— Quatro horas! ... Que horror! Vou chegar com um atraso enorme!

Chamou um automóvel, deu um endereço, e, momentos depois, saltava à porta de um palacete, no Flamengo.

— O Dr. Barbosa? — Indagou, agitada, do velho criado que acorrera.

— Não está, minha senhora, — informou o doméstico.

— Não está?

— Não, senhora. Ele esperou madame até às três horas; e como madame não viesse, saiu, dizendo que não viria jantar.

O ímpeto da moça, foi arrancar o relógio do pulso, e rebentá-lo no calçamento. Olhou-o, porém, com doçura, lembrou-se da velha mãe distante, das palavras que esta lhe dissera à partida, e beijou-o. Atrasando-se, a pequenina máquina acabava de salvá-la.

— Obrigado, meu amigo, — disse a moça, já no auto, beijando-o, de novo.

E com ternura, sacudindo a cabeça:

— Que lição me deste! A gente, como os relógios, só pratica o bem quando vai devagar...

LXXVIII

A REPUTAÇÃO

(APÓLOGO ARABE)

Cansados de vagar sozinhos pelos infinitos caminhos da terra, encontraram-se, um dia, numa bifurcação de estradas misteriosas, o Fogo, a Água e a Reputação. Amparados aos seus bordões de peregrinos, pararam, entreolharam-se, e, como se não hostilizassem à primeira vista, fizeram, de pronto, camaradagem. Satisfeitos com o encontro, um deles propôs, cordato:

— Vamos viajar juntos?

— Está combinado! — Concordou o segundo.

— Aceito! — Acudiu o terceiro.

Começada a viagem em comum, cada um principiou a contar, singelo, os seus feitos, os seus heroísmos, as peripécias infinitas do seu destino. O Fogo, que era, dos três, o mais velho, narrava a sua viagem celeste, os seus serviços aos homens, o efeito das suas cóleras desesperadas, que tudo devastavam, assolavam, destruíam. Erguendo a sua voz musical e suave, a Água falou de si própria, historiando a sua vida subterrânea, as lágrimas que chorava, comovida, pelos olhos cegos das fontes. E, finalmente, falou a Reputação, aludindo à dependência em que estava, permanentemente, da vontade e do capricho dos outros. Aproximados, assim, pelo conhecimento recíproco, deliberaram, os três, não se separarem mais.

— A nossa amizade, — propôs o Fogo arrepanhando o seu faiscante manto vermelho, — deve ser eterna, contínua, inquebrantável. Ninguém nos afastará um dos outros!

Os companheiros concordaram, e o Fogo insistiu:

— Combinemos, pois, o meio de nos encontrarmos, quando algum de nós se extraviar. E por sua parte, explicou:

— Quando não me encontrardes perto de vós, levantai os olhos, e examinai o horizonte: onde virdes a Fumaça, que é minha filha, ide nesse rumo, que aí estou eu.

— Se eu me afastar de vós, — informou, por sua vez, a Água — baixai os olhos à terra, examinando o solo. Onde notardes a Umidade, que é minha irmã, cavai nesse lugar, que me encontrareis.

Dito isto, olharam, ambos, a Reputação, que se conservava em silêncio, interrogando-a:

— E tu? Que sinal nos dás, para te procurarmos?

A interpelada corou, confusa, tentando explicar:

— A mim, quando vocês me perderem, não me procurem mais.

E confessou, triste, com os olhos no chão:

— Porque, aquele que me perder uma vez, nunca mais me encontrará...

LXXIX

O CONFERENCISTA

Quinze dias antes da conferência literária em que o eminente crítico Samuel Antunes pretendia estudar “O efeito das vogais na poesia francesa do século XVII”, já a imprensa noticiava, entre os melhores adjetivos do dicionário, o grande acontecimento. E ali estavam, todos, para ouvir a palavra do mestre ilustre, tão parcimonioso nas suas letras e, por isso mesmo, tão desejado.

Às nove da noite, o salão da Academia Brasileira de Letras, no “Petit-Trianon”, estava transbordante de gente. Cabelo cortado à la garçonne, a maior parte das senhoras, sem chapéu, davam a ideia de uma reunião de estudantes. E quando o escritor subiu à tribuna, explodiram as palmas.

Samuel Antunes andava pelos cinquenta anos e parecia, na figura, mais um merceeiro do que, propriamente, um homem de letras. Cara enorme, bochechas flácidas, bigode aparado a tesoura e olhos espiando a custo por entre as pálpebras empapuçadas, impunha respeito sem infundir simpatia. A voz era monótona, enfadonha, e rolava sobre o assunto como um carro de bois por um caminho sem pedras.

Às onze horas, a assistência estava, positivamente, fatigada. Havia fisionomias expressivas, sorrisos de bondade generosa que encobriam, apenas, o ódio concentrado no coração. Outros, fechando os olhos, e esticando a perna, mergulhavam, logo, no sono, oscilando com a cabeça como um navio em ressaca.

Neste número estava o professor Viana Tosta, o conhecido educador, que metera a língua portuguesa em cerca de cinco mil cérebros, correspondentes a três gerações de estudantes. Acompanhado da senhora, estava o professor a ouvir o conferencista, quando foi, aos poucos, fechando os olhos, recostando-se na cadeira, e desatando a roncar, com toda a liberdade dos pulmões:

— Brrrrrrr... hannnnnnn... brrrrrrr... hannnnnnn... brrrrrrr... hannnnnnn...

Na quietude fatigada do salão, o ressoar do professor Tosta acompanhava, quase, a voz do conferencista.

Ao seu lado, Dona Romualda, a esposa, cochilava, a cabeça no peito. E estava nessa posição indecisa, quando lhe tocaram, de leve, no braço:

— Minha senhora? ... Minha senhora? ... Dona Romualda assustou-se. Era um espectador da fila seguinte, que reclamava:

— Minha senhora, faça favor de calar o senhor seu marido.

— O senhor está sendo impedido por ele de ouvir o conferencista? — Estranhou Dona Romualda, ofendida.

— Não, senhora; não é isso, — procurou explicar-se o reclamante. — Mas é que ele, ressonando assim alto...

E com aprovação de todos:

— Não deixa dormir os outros espectadores ...

LXII

O MALUCO

— Foi um caso doloroso, meu velho, aquele do nosso Permínio Soutelo. Nunca se havia verificado um exemplo tão curioso de loucura, com base no egoísmo. E o mais interessante, é o modo por que a moléstia se veio manifestando, definindo, caracterizando, até não deixar mais dúvida de que se tratava de um caso mórbido, e não, mais, de uma esquisitice de milionário.

Era assim que, no landaulet em que o fora receber no cais Faroux, o capitalista Bernardo Forjaz narrava ao desembargador Torquato Rocha, seu velho companheiro de mocidade, a amarga história daquele amigo comum.

— Como começou isso? — Indagou, interessado, as mãos cruzadas no castão de ouro da bengala, o ilustre recém-chegado.

— É isso que eu te quero contar, — tornou o outro.

E começou:

— A base de toda a enfermidade dele era, como te disse, o egoísmo. Principiou por não querer ninguém no ônibus em que andava. Ao entrar num desses veículos no fim da linha, fazia colocar o letreiro de “especial”, pagava o aluguel, e percorria a Avenida de ponta a ponta, sozinho, dentro do carro sem outro passageiro!

— Interessante! ...

— Depois, já se não contentava com isso. Se queria assistir a um espetáculo, a uma peça qualquer, comprava a lotação toda do teatro, e assistia o drama, ou a ópera, de uma cadeira, que era a única ocupada, no meio daquele deserto.

— E depois?

— Depois, passou a fretar trens unicamente para si, viajando com dezenas de carros vazios; a alugar palácios de que era o único morador; e, até, a comprar todas as casas de uma pequena cidade do sul, afim de ser o dono exclusivo da localidade!

— Coitado!

— Tudo isso, porém, meu velho, era natural. Tratava-se, talvez, de uma originalidade, de uma bizarria, mas dessas bizarrias que se explicam. Até que, nessas exigências crescentes, chegou ao cúmulo.

— Que foi?

— Queria que Dona Rosina, a esposa, fosse só para ele!

— Ah! Estava doido! — Opinou o desembargador, resoluto, batendo com a bengala, com força, no fundo do carro.

E sacudindo a cabeça, penalizado:

— Estava doido varrido! ...

LXXXI

O LADRÃO ROUBADO

 (IDEIA ALHEIA)

Há quatro dias, desde que saíra da Detenção, após o cumprimento de uma pena de seis meses, o Zeca Francês não punha na boca um pedaço de carne. Com os vinte e poucos mil réis que recebera ao ser posto em liberdade, produto de pequenos trabalhos realizados na prisão, comprara um colarinho e uma gravata, consumindo o troco em café com pão, todas as manhãs. E era com fisionomia de tresnoitado, e de faminto, que passeava, naquela noite, pela rua dos Inválidos, à espera, no silêncio da madrugada, de uma porta aberta, para assaltar, cauteloso, qualquer petisqueira de cozinha.

Novo ainda, com vinte e seis ou vinte e sete anos, Zeca Francês era conhecido na roda dos meliantes pelas suas maneiras galhardas de conquistador profissional. Era, mesmo, abusando da sua beleza máscula, do seu bigodinho insolente e dos seus olhos irresistíveis, que ele se exercitava como ladrão. Conquistando as criadas, chegava, com facilidade, ao quarto dos patrões. E quando as copeiras davam pela verdade, o Zeca estava longe, com o produto do roubo, e, às vezes, com o coração da cúmplice involuntária, que nunca mais se esquecia do bandido encantador.

As mãos no bolso da calça, o chapéu no cocuruto, andava o celerado acima e abaixo, soletrando as placas das esquinas, como quem não conhece a cidade, e fugindo, precavido, à aproximação da ronda. E era, já, madrugada alta, quando, olhando para um lado e para outro, a ver se tinha sido pressentido pelo guarda, enfiou, de esguelha, por uma porta que se achava encostada, e que era de um prédio enorme, de três andares, em uma das extremidades da rua.

Pé ante pé, chegou ao primeiro andar. Não fazia o menor ruído. Habituado àquelas visitas clandestinas, tornava-se leve, como o vento. E foi assim, deslizando, que se aproximou da primeira porta. Mal, porém, chega em frente à fechadura, que era a cabeça de um prego luminoso, espetado na escuridão, a porta abre-se, de repente. O primeiro pensamento do bandido foi recuar. O segundo foi, porém, esperar, com sangue frio, as consequências. E esperava-as, quando surgiu à sua frente, em camisa, um vulto de mulher a quem o celerado, com a maior calma do mundo, estendeu, sorrindo, a mão vigorosa.

— Entra... — sussurrou a rapariga, puxando-o para dentro, e fechando a porta.

À claridade da lâmpada suavemente velada, Zeca Francês examinou, disfarçadamente, a dona do quarto. Era uma rapariga de uns quarenta anos, um pouco magra, mas passável, ainda. E foi de olhos fechados, que se lhe atirou nos braços, com toda a fúria de um apaixonado que aguardasse, ansioso, aquela oportunidade.

Meia hora depois, despediam-se os dois, com dois beijos, à porta do compartimento. Em meio da escada, porém, o estômago do meliante rugiu, como um leão insubmisso.

— Não; eu não saio daqui sem comer alguma cousa! — Decidiu o ex hóspede da Detenção, de si, consigo.

Suave, como sempre, deu meia volta, procurou a escada do segundo andar, e subiu. Habituado a ver no escuro, viu onde estava a primeira porta, e, encostado a ela, procurava, de leve, abri-la sem choque. E estava quase a conseguir o seu fim, quando a porta seguinte se abriu docemente, enquanto uma voz feminina sussurrava, chamando-o:

— Por aqui... Vem por aqui...

Forçado, de novo, a doces galanteios, o Zeca não esperou, sequer, que abrissem a luz. Despachou como pôde, entre beijos de fogo, a misteriosa apaixonada, e partiu, escada abaixo, as pernas trêmulas, agarrado ao corrimão.

No andar térreo, orientou-se como podia, procurando a cozinha. Escolhida a direção, marchou nas pontas dos pés, empurrando as portas com uma suavidade de brisa. Ao empurrar a última, percebeu, pelo cheiro, que era ali. E ia dar o segundo passo quando o pé se lhe esbarrou, no chão, em um corpo, que dormia sobre uma esteira.

— Vem cá... — gemeu alguém, puxando-o pela bainha da calça.

Ajudado mais pela fraqueza das pernas do que pelo desejo, o gatuno estirou-se na esteira, a fio comprido. Apesar do escuro, e pela mancha que o vulto na treva fazia, verificou que era uma preta, provavelmente a cozinheira. Enlaçou-a com raiva, beijou-a, meteu-lhe os dedos na carapinha, e, em breve, desmaiava, num suspiro.

Voltando a si, ergueu-se, como lhe era possível. Certo, não arranjaria nada. Melhor seria, pois, escafeder-se, indo roubar um pão em qualquer janela, antes de amanhecer. Trôpego, amparando-se aqui, segurando-se acolá, tomou o rumo da saída. A porta ainda se achava encostada. Abriu-a, de leve, e ia pondo o pé na rua, quando se sentiu preso pela gola do paletó, enquanto uma voz lhe dizia, baixo, entre dentes:

— Venha cá... Ande! ...

A essas palavras, o Zeca fechou os olhos, escorregando, num desmaio, para o chão.

— Ah, hoje, não! Não posso mais... Amanhã eu venho... — gemeu, desfalecendo.

Momentos depois abriu os olhos, e sorriu, do engano.

Era o guarda-civil.

LXXXII

A CONFISSÃO

Desde que o médico, o Dr. Vitrúvio, começara a mostrar-se apreensivo, passando as noites à sua cabeceira, Dona Antonieta compreendeu que os seus dias estavam contados. Conhecia sobejamente o famoso especialista, e sabia que ele não abandonaria os outros clientes, o seu intenso trabalho de consultório, se não houvesse risco de uma surpresa fatal, num colapso irremediável. Não era, entretanto, a ideia da morte que a afligia sacudindo-a com aqueles soluços: era aquele segredo da sua alma, a ideia de morrer em pecado de mentira, deixando o Fabrício, o seu pobre marido, na ilusão de que nunca fora enganado. E nessa tortura, nessa agonia dolorosa da consciência, afundava, de bruços, o rosto nos travesseiros, soluçando como se lhe tivesse acontecido a maior desgraça da terra.

De repente, tomou uma resolução:

— Chamem o Fabrício... Façam-me o favor... Chamem o Fabrício... — pediu, agitada.

Baixo e rotundo, olhos empapuçados e beiço pendente, o comendador Fabrício Rocha era o tipo clássico do comerciante de secos e molhados. O carão amarelo porejando gordura, a gola do paletó pingada de cinza de cigarro, tinha-se a impressão, ao vê-lo, de que ali estava um homem nascido para o dinheiro. Serrassem-lhe o cérebro, e encontrar-se-ia dentro, em lugar de miolos, uma tabuada. Mesmo ali, em casa, com a mulher ameaçada pela morte, o que o preocupava era, ainda, a venda de uma partida de cebolas. E foi a fazer mentalmente a conta do lucro possível que penetrou no quarto da enferma.

— Fabrício, meu filho, perdoa-me! — Exclamou a mísera, segurando-lhe a mão gorda e mole como um sapo, e desatando em soluços. — Mas, eu não podia morrer sem dizer tudo, Fabrício! ...

Olhos estúpidos, fisionomia de quem não está entendendo nada daquilo tudo, Faceio Rocha olhava a mulher, em silêncio. E esta continuou, entre soluços:

— Fabrício... eu preciso dizer-te... tudo... O nosso filho, Fabrício... o José... não é... teu filho! ...

O comerciante arregalou os olhos, mas não disse palavra. E a enferma prosseguiu:

— Eu tinha muita vontade de ter um filho, Fabrício... Eu não tinha... Então, uma vez... há quatorze anos... estavas para São Paulo... Achava-se hospedado aqui o Martinho, meu primo... Pedi-lhe que me auxiliasse... que me socorresse ... E ele acedeu... Acedeu, mas pediu-me três contos... Eu não tinha... Mandei, então, buscá-los no escritório... por tua conta... Mandaram... E, meses depois, nascia o José...

E numa crise de choro:

— Perdoa, Fabrício... Perdoa! ...

— Mas, perdoar por que, filha? — Interrompeu, nervoso, o comendador. — Perdoar por quê?

— Perdoa-me por não ser teu o filho!

— Perdoar-te por não ser meu o filho? — Fez o comerciante, escandalizado.

— E quem disse que o filho não é meu?

Relanceou os olhos em torno:

— É meu filho, sim, senhora. O José é meu filho!

E dando um murro no espelho da cama:

— Foi comprado com o meu dinheiro, é meu!

LXXXIII

O GALO E O PORCO

O quintal era grande, relvoso, arejado; a maior parte da bicharia procurava, porém, de preferência, à hora da canícula, a sombra da mangueira enorme, a qual se abria, muito verde, muito copada, muito folhuda, como o formidável guarda-sol de um gigante. Ali, na areia fresca, se rebolavam os patos, estalavam os perus, deitavam-se os cabritos; e não era para outro lugar que marchavam os porcos, muito chatos, muito lerdos, muito pesados, varrendo o chão com a barriga.

O movimento maior do local era, porém, o que lhe emprestavam as galinhas. Numerosas e irrequietas, havia-as de todas as cores: amarelas, brancas, pretas, e, sobretudo, rajadas de preto e branco, na fantasia democrática da raça carijó. E, no meio delas, imponente, soberbo, a crista muito vermelha, a cauda em forma de trompa, o galo de raça, cujas penas douradas lhe punham acima do papo uma suntuosa gargantilha de ouro. De dois em dois minutos, esse magnífico sultão de penas espichava o pescoço, batia as asas, e soltava o seu grito de desafio:

— Cô-cô-ri-cô-ô-ô-ô! ...

E as árvores da mangueira arrepiavam-se, como se a árvore fosse uma grande galinha de rumorosas penas vegetais.

Naquela tarde fresca, e lavada de sol, o Abdul-Hamid do galinheiro estava, mais do que nunca, satisfeito da vida. Mariscando na terra frouxa, ciscando para um lado e para outro, as galinhas bicavam o chão, procurando larvas e pedras miúdas. Pintinhos recém-nascidos, cobertos ainda de penugem, corriam de uma banda para outra, como bolas de algodão brancas, amarelas ou pretas, arrastadas pelo vento. Leque aberto, estourando a cada esforço, o papo congestionado, os perus estalavam, como bolas que fossem rebentar.

Figura principal daquilo tudo, o galo não tinha considerações: um cô-cô-ri-cô, duas minhocas, e ei-lo a beliscar a crista a uma galinha, e a empurrá-la, com o seu peso, terra a dentro, como se quisesse enterrá-la viva. Enquanto isso, o porco e a porca, deitados um ao lado do outro, grunhiam baixo, como bons burgueses, marido e mulher, que se dão conta, à noite, de tudo o que fizeram de dia.

De uma das vezes, o galo deu com os olhos no casal, e caminhou para o porco: — Que é isso, compadre! Isso lá é vida? Você planta-se aí ao lado da comadre, e não sai mais? Faça como eu, que não tomo o tempo a ninguém!

— Ora, compadre, — grunhiu o porco, amolado; — trate de si e deixe os outros. Veja que entre mim e você há uma grande diferença.

O galo cacarejou, zombeteiro.

— É o que lhe digo, — tornou o porco. — As nossas funções são muito diferentes. Você se mete nessas cousas por perversão, sem moralidade nenhuma. Tanto assim que nem sabe quais são os seus filhos. E eu não.

E estirando-se, de novo, preguiçoso, ao lado da porca:

— Eu, se trato disso, é para constituir família.

LXXXIV

DEDO MINDINHO

(IDEIA ALHEIA)

Tôt ou tard cela se saura Mon petit doigt me le dira.

RENE HERBEY.

Era o Renato um pirralhito de quatro para cinco anos, quando a. avó lhe perguntou, o olhar severo:

— Tu não boliste no bolo da sobremesa, Natinho?

— Não, senhora, vovó; eu nem vi se tinha doce aqui!

— Olha, não mintas, — insistia a velha. — Se tu mexeste, este dedinho há de me dizer a verdade.

E mostrava-lhe, ameaçadora e bondosa, o dedo mínimo da mão esquerda, que tinha a vantagem, dizia, de revelar todos os segredos, desmascarando todas as mentiras.

A insistência com que Dona Guilhermina ameaçava o neto com aquele dedinho inocente, fez nascer no menino um respeito especial por esse apêndice da mão esquerda.

— Olha, Renato, não me escondas nunca a verdade, — aconselhava a boa velha, segurando-o pelos ombros; — este dedinho me contaria tudo!

A obstinação da avó, em apelar para aquele dedo miraculoso, surtiu, naturalmente, os seus efeitos. Enquanto menino, acreditou ele, realmente, que aquele dedinho possuísse o dom de adivinhar as cousas, descobrindo os casos mais encobertos. Quando ficou rapaz, e não acreditava mais nessa infantilidade, cuidou, logo, de incutir essa crença no ânimo alheio, para tirar, também, o seu proveito.

Com quatorze anos, no colégio em que o meteram, chegou ele a criar, mesmo, uma teoria, para demonstrar as virtudes adivinhatórias do dedo mindinho.

— As coisas mais secretas, as mentiras mais bem arranjadas, não o perturbam nunca. Ele sabe de tudo, conhece tudo, descobre tudo, — afirmava.

Saído do colégio e da Faculdade, continuou o Renato a fazer a propaganda do dedo mínimo. Ao chegar em casa, onde Dona Guilhermina, já velhinha, o esperava, ia, logo, perguntando:

— Vovó, alguém me telefonou hoje?

E, logo, vingando-se do que a velha lhe fazia anos atrás:

— Olha, lá! Se alguém me telefonou mesmo... meu dedinho me dirá!

A velha ria, o neto ria, e terminava tudo em beijos, na consolidação cada vez maior daquela amizade.

Certo dia, foi o coração do Renatinho atingido por duas flechas, invisíveis, partidas dos olhos negros da Clarisse, encantadora criaturinha de dezoito anos, cujo único defeito consistia em ser desabaladamente mundana. Conhecedora da novidade, Dona Guilhermina procurava dissuadir o neto daquela ideia de casamento.

— Meu filho, tu vais te arrepender. A Clarisse é muito bonita, muito chic, muito elegante; mas é uma menina muito vivida, frequentadora de bailes, de cinemas, de piqueniques. Toma cuidado!

— Qual, vovó, — aparteava o neto; — eu saberei apurar o passado da Clarisse. Se ela ainda for digna de mim, eu caso, se não, não!

No dia seguinte, ao encontrar-se no cinema com a namorada, resolveu o rapaz interpelar a menina, de modo mais ou menos definitivo.

— Diga-me uma coisa, Clarissinha: você me responde aquilo que eu lhe perguntar?

— Respondo, — informou a moça, decidida.

— Pois, bem, — tornou Renato, mais animado: — você, na sua vida, nunca fez uma concessão a qualquer bilontra?

— Nunca!

— Nunca praticou uma leviandade que comprometesse a sua condição de moça?

— Nunca! — Tornou a rapariga.

Um clarão de felicidade iluminou o rosto do rapaz. E foi radiante, iluminado pela própria alegria, que o antigo estudante explodiu, risonho, na sua ameaça infantil:

— Olha, Clarisse, se isto for mentira...

E mostrando-lhe o dedo mínimo como a avó fazia com ele:

— Este dedinho há de me dizer!

LXXXV

 

A DATILÓGRAFA

Chapéu de palha amarela, enfeitado de uvas da mesma cor, vestido de linho branco, toda leve, toda fresca, toda sorriso, Clarinha entrava, todas as manhãs, às nove horas, no escritório de Barros Gomes, o próspero despachante aduaneiro, onde funcionava, há meses, como datilógrafa. Chegava, tirava o chapéu, renovava o pó de arroz do rostinho risonho, afofava com as mãos brancas as ondas do cabelo castanho, e sentava-se à máquina, trabalhando. E como a caligrafia do patrão fosse ilegível, entrava de vez em quando no gabinete deste, consumindo vinte minutos e, às vezes, meia hora, para saber se aquele agrupamento de letras queria dizer “duas mil caixas de batatas” ou “duzentos barris de manteiga”.

O escritório de Barros Gomes, à rua do Rosário, era constituído por uma grande sala, dividida por meio de tabiques, em três compartimentos. No primeiro, em frente ao corredor, funcionavam os ajudantes, os empregados que atendiam à freguesia; no segundo, comunicando-se com este por uma porta, ficava a datilógrafa com a sua máquina; e no terceiro e último, o gabinete do despachante, caprichosamente arranjado, com a secretária enfeitada de flores, um terno de couro, e um divã voluptuoso, sobrecarregado de almofadas orientais.

Barros Gomes não era, ainda, um velho. Andava pelos cinquenta anos, era forte de corpo, calvo, e com todas as vantagens do homem limpo. Vestia-se, de verão e de inverno, de linho branco, trazia o rosto escanhoado, e, nesse rosto, o sorriso feliz, e clássico, do homem cujos negócios vão bem. Além dessas vantagens, contava a de ser casado com Dona Cotinha, senhora de trinta e oito anos, mas viçosa ainda, apesar dos fios de prata que começavam a intercalar-se na sua ondeada cabeleira de treva.

Ganhando dinheiro à farta, o despachante era, naturalmente, vigiadíssimo pela mulher. E foi por isso que esta franziu a sobrancelha, num gesto de despeito ou de espanto, no dia em que lhe chegou em casa uma carta anônima, comunicando-lhe uma inominável traição do marido. “O seu esposo, minha senhora, — dizia a carta, — recebe diariamente no seu gabinete, das três às cinco, uma mulher, com a qual se tranca. Não consinta essa sem-vergonhice. Defenda os seus direitos de esposa”. E assinava: “Um que tudo vê”.

— Será possível? — Exclamou Dona Cotinha, amarrotando a carta na mão. — Será possível que o Barros me engane no seu próprio escritório, sem o menor respeito pelos empregados e por aquela menina que está lá?

E cerrando os olhos, como quem quer ler no invisível:

— Será possível?

Nesse mesmo dia, às quatro horas da tarde, estavam os empregados do escritório nos seus postos, quando Dona Cotinha entrou, indagando:

— O Barros está aí?

— Está, sim, senhora, — informaram todos, levantando-se em homenagem à “patroa”.

Na sala seguinte, estacou:

— Boa tarde, mademoiselle.

— Boa tarde, madame, — respondeu Clarinha, interrompendo o trabalho.

— O Barros está aí no gabinete?

— Está, sim, senhora.

— Está trancado?

— Sim, senhora.

Dona Cotinha esfriou. Apelou, porém, para as suas reservas de energia e, a voz baixa, indagou da mocinha:

— Diga-me uma coisa: ele está trancado aí dentro com alguma mulher?

— Como? — Estranhou a menina, testa franzida, um sorriso brincando nos lábios. — O sr. Barros aí dentro com uma mulher?

E como Dona Cotinha a olhasse, aflita, à espera de uma resposta:

— Madame não vê logo que eu não consentiria nunca, que o seu marido “me” enganasse?

LXXXVI

A HEROÍNA

Laureano Gonçalves estava em Uruguaiana vendendo uma partida de couros, quando circulou a notícia de que uns duzentos bandoleiros, chefiados por Pablo Ramon e arregimentados no Uruguai, haviam tomado, dizendo-se revolucionários, a vila de São Veríssimo. E é de imaginar a sua ansiedade, a sua aflição, os seus cuidados de marido, lembrando-se que deixara a Julieta, sua mulher, sozinha, tomando conta do estabelecimento comercial.

Confirmada a notícia terrível, o negociante não esperou mais: pulou para o cavalo em que viera, e, depois de correr uma noite e um dia, foi pousar, fatigado, nas Três Pontes, lugarejo insignificante, a quatorze léguas, ainda, de São Veríssimo. Adorando a mulher, tendo nela a companheira no lar e a colaboradora nos negócios, temia que, na fúria da invasão, a sua mulherzinha tivesse sido vítima de algum desrespeito, de alguma infâmia, de alguma afronta miserável. Que os bandoleiros levassem tudo: louça, fazendas, dinheiro; mas que deixassem incólume a sua Julieta, que era, podia dizer, o bem mais precioso da sua vida.

Pelo caminho, viera o Laureano, procurando, inquieto, ansioso, da boca de toda a gente, notícias da vila. Que casas teriam sido saqueadas? Que depredações teriam cometido os salteadores? E estremecia de horror, com a simples ideia de que a sua honra conjugal tivesse sido, também, acaso, vítima dos invasores.

Ao chegar a Três Pontes, teve notícias mais positivas. Peões procedentes do Norte, e que haviam passado em São Veríssimo, contavam cousas inomináveis, ocorridas ali. O comércio todo havia sido taxado pesadamente nas contribuições da guerra. Nas vizinhanças da vila não ficara mais uma simples cabeça de gado.

— O pior, de tudo, porém, — contava um dos peões: — foi o que fizeram com as mulheres casadas. Imagine o senhor, que, de quarenta e duas senhoras que há no lugar, uma só escapou à baba dos bandidos, com as outras todas, o que se viu foi uma desgraça, um horror, uma vergonha! Iam buscá-las em casa, e, por toda a noite, era uma devassidão de envergonhar as pedras!

Essa notícia tranquilizou, um pouco, o comerciante. Certo, aquela mulher, resistente, heroica, virtuosa, era a sua Julieta. Não podia ser outra. E foi com essa convicção que, madrugada ainda, saltou para cima do cavalo, e continuou a viagem.

À noite, estava em casa. O coração aos pulos, tinha medo de tratar do assunto, de falar do seu receio, do seu temor, da sua suspeita. Afinal, encontrou uma brecha.

— Tu não imaginas, minha filha, os horrores que foram espalhados por aí, a respeito da invasão aqui. Ainda ontem, nas Três Pontes, um peão contava, para quem queria ouvir, que os miseráveis não pouparam nem a honra da vila: e chegou a dizer mesmo, que, das quarenta e duas senhoras casadas aqui de São Veríssimo, só uma não se entregou aos bandidos, conservando-se fiel a seu marido!

A essa notícia, Julieta, que abria uma colcha branca na cama de casal, ficou quieta, pensativa, a mão no queixo.

— Eles disseram isso, Laureano? — Indagou.

E, de repente, para o marido, a testa franzida, como quem não atinou com o caso:

— Quem será?

LXXXVII

NO MOSTEIRO DE SÃO MALAQUIAS

(HISTÓRIA PARA TEMPO DE REVOLUÇÃO)

As senhoras haviam pedido um armistício para o chá, e nós, que havíamos passado três horas seguidas a movimentar os reis, as damas e os valetes sobre a pequena mesa de “poker” improvisada na biblioteca, levantamo-nos ao mesmo tempo, esticando as pernas e os braços, no gesto característico do cansaço e da preguiça.

Éramos quatro: o coronel Rezende Lago, o almirante Justino Ribas, o capitão Josué, e eu. E como predominassem, no grupo, os militares, foi marcando passo, como quem marcha para o campo de manobras, que tomamos, todos, o rumo da sala de jantar.

As senhoras já estavam sentadas quando ocupamos os nossos postos. A porcelana, muito clara, punha manchas de leite coagulado no leite líquido da toalha de linho bordado. Flores vermelhas espocavam, como beijos pecadores, na boca de cristal dos solitários, enquanto o abat-jour, de cima, espalhava sobre todos, e sobre tudo, a sua grande bênção luminosa.

Foi nesse ambiente familiar e sossegado, que, à instância da dona da casa, a viúva Lopes Alves, o almirante Ribas começou a contar a história daquela noite.

— Era uma vez — começou ele, enquanto mexia, vagaroso, o topázio líquido e cheiroso que lhe haviam posto na xícara; — era uma vez, na Espanha, os frades do mosteiro de São Malaquias resolveram mudar de prior. O que tinham, não era mau; era, porém, rigoroso em demasia, e como eles haviam contribuído com o seu voto na confraria para colocá-lo naquele posto, achavam-se com direito a certas concessões na disciplina. Para tratar da matéria, promoveram, então, em uma sala secreta, aquela reunião.

— Isto não pode continuar! — Declarou frei Ambrósio, a face vermelha, o nariz porejando suor. — Prior ou simples frade, nós todos somos filhos de Deus. Em nome de que direito, então, o senhor prior conserva frei Anastácio preso no coro?

— É uma violência! — Concordava frei Lourenço.

— É um absurdo! — Opinava frei Timóteo.

E todo o mosteiro, indignado:

— Nós não devemos consentir! ... Não devemos consentir! ...

Foi por essa altura que, mais sensato, e com um conhecimento profundo da vida, frei Gregório resolveu intervir. Era um frade alto, magro, anguloso, com cabeça de queijo e barba de capim.

— Irmãos — começou, a voz pausada: eu não sei se tendes razão em tudo que dizeis. O que sei, entretanto, é que a sabedoria está mais na generosidade do que na violência. Se Jesus Cristo, Nosso Senhor, perdoou os seus inimigos, por que não há de o senhor prior perdoar aqueles que, num momento de insensatez, infringiram as leis da nossa ordem?

— Muito bem! ... É isso mesmo! ... Apoiado! ... — apartearam os monges.

— Diante disso, eu estou ao vosso lado. E proponho-vos uma cousa: vamos todos incorporados ao sr. prior, e eu terei a coragem de dizer-lhe, francamente, num ultimatum, o que pensa e quer o nosso mosteiro. Estais de acordo?

— Muito bem! ... Apoiado! ... Vamos todos! ...

E pondo-se todos de pé, formaram uma grande fieira, um atrás do outro, marchando, com frei Gregório à frente, em direção a sala onde o sr. prior devia estar, àquela hora, no seu sólio de primeira autoridade da ordem.

Calmo, sereno, como um general à testa do seu exército, frei Gregório marchava, sem olhar para trás. A porta do saião estava aberta, e o monge foi entrando, sem pedir licença, seguro da sua força e da sua missão. Em frente ao sólio, de onde o chefe do mosteiro o olhava espantado, como quem olha um maluco, estacou, e, a voz firme, imperiosa, intimativa, começou:

— Senhor prior! Eu e os meus companheiros ...

E virou-se para trás, para indicar os outros monges. Virou-se, e empalideceu.

Frei Gregório estava sozinho! ...

— Até logo, coronel! ...

— Até logo, capitão! ...

LXXXVIII

A DEFUNTA

Desde os primeiros anos da mocidade, o comendador Apolinário tivera no seu compadre Cantídio Borges da Cunha um amigo para todas as emergências. Testemunha do seu casamento, fora Borges da Cunha o padrinho do seu primeiro filho, e, através de quinze anos, o mais assíduo amigo da casa. Falecida Dona Palmira, a situação dos dois comerciantes não mudara. E mais firme se tornou, quando, após dois anos de viuvez, o comendador contraiu novas núpcias, levando para o seu palacete das Laranjeiras a encantadora Maria Augusta, cujos trinta e quatro anos eram mais viçosos, talvez, do que os quinze, ou dezoito, das meninas mais viçosas das redondezas.

Entre a nova esposa e o amigo de vinte e tantos anos, era natural que o comendador preferisse, em matéria de confiança, a amizade mais velha. E era isso que fazia naquela noite, à mesa do jantar, aproveitando a ausência da esposa e das filhas, que haviam saído à tarde, em visita a uns parentes recém-chegados do interior.

A criada havia deixado diante dos dois velhotes, que fumavam em silêncio, as duas xícaras de café, quando o comendador interrompeu aqueles minutos de meditação, sacudindo com o dedo a cinza do charuto:

— Você tem sido, Borges, mais do que meu amigo; tem sido meu irmão.

O velho capitalista lançou para o teto a nuvem de fumaça, encarando o velho companheiro. E este continuou medindo as palavras:

— Não há segredos da minha vida, Borges, que você não conheça. Você foi testemunha dos meus anos de felicidade, viu a fundação desta casa, e é, em suma, a única pessoa a quem eu posso revelar as minhas particularidades domésticas.

Tranquilo, pensamento por longe, o capitalista sacudiu a cabeça, concordando.

Outro momento de silêncio interrompido apenas pela chuva que caía melancolicamente lá fora, e o comendador voltou à carga.

— Nós, — começou, pausado; — nós, que já vamos descendo a montanha da vida, podemos falar das mulheres como de criaturas estranhas. Por isso, não se admire que eu lhe venha falar de minha companheira, de cousas íntimas, que só a mim importam. Mas, se eu não as contar a você, meu amigo, meu irmão, a quem as contarei?

— É isso mesmo; é isso mesmo! — Concordou Borges da Cunha, balançando a cabeça e chupando o charuto.

Animado por essa confirmação, o comendador Apolinário aventurou:

— Você, que me conheceu há vinte anos, há de concordar que a Palmira era muito melhor dona de casa que a Maria Augusta.

— Muito mais; muito mais! — Confirmou o velho, maquinalmente.

— Depois, — emendou o comendador, — não era tão festeira, tão amiga do luxo, tão vaidosa.

— Tem razão, — aplaudiu, grave, o velho capitalista.

Incentivado por esse apoio fraternal, resolveu Apolinário levar mais longe as suas revelações íntimas. Se Borges da Cunha era seu irmão, ou mais do que isso, que inconveniente havia naquelas confidências? E continuou, num extravasamento que não pôde conter:

— Além disso, meu velho, era outra mulher!

E entusiasmado, batendo no ombro do amigo:

— Era mais bem-feita, mais forte, mais fornida; finalmente, mais mulher!

Calmo, olhar perdido no teto, Borges da Cunha confirmou:

— Eu também achava...

E continuou, cabeça para trás, a acompanhar, em silêncio, as espirais da fumaça, que se enrolava e se desenrolava no ar...

LXXXIX

OS COGUMELOS DE MARTE

“O professor Trost, diretor do Observatório de York, declarou em Chicago que as suas observações sobre o planeta Marte nada lhe tinham oferecido de novo. Esse astrônomo não acredita que possa existir ali organismo vivo, a não ser grandes cogumelos”.

Do Matin, de 28 de agosto.

O ano de 1949 tinha sido, pode-se dizer, consagrado ao planeta Marte. À semelhança do que sucedera em 1924, quando aquele astro se aproximara igualmente da Terra, os astrônomos de todo o mundo puseram-se de sobreaviso, na esperança de uma revelação sobre a habitabilidade daquele nosso vizinho celeste. Com uma diferença apenas: é que os astrônomos de 1924 não tinham telescópios tão poderosos, capazes, como os de 1949, de devassar a superfície daquele planeta recalcitrante.

Os aparelhos mandados construir pelo governo argentino para o eminente professor Pablo Varela, especialmente para que o grande astrônomo, identificador das placas de Mercúrio, estabelecesse a verdade sobre a existência dos marcianos, eram, realmente, formidáveis. E era neles que estavam depositadas as maiores esperanças da ciência quando, naquela reunião de sábios, subiu à tribuna da Sociedade Universal de Astronomia, em Buenos-Aires, o homem cujos olhos haviam surpreendido, enfim, os profundos segredos daquele mundo.

O professor Varela era um homem alto, esguio, cara comprida e escanhoada, vermelho como uma lagosta cozida. Os olhos, aqueles olhos tão invejados, luziam, azuis e pequenos, sob dois vidros fortes, que cintilavam com violência à claridade intensa das lâmpadas invisíveis. Vestia à maneira dos fidalgos do século VIII, moda que havia voltado, sem excepção da cabeleira postiça, toda empoada, e do calção curto, de veludo carmesim. E toda a plateia, constituída de eruditos e homens do mundo, apurava pelo mesmo figurino ressuscitado.

Ao subir à tribuna, o grande astrônomo recebeu uma salva de palmas, que durou nove minutos. E quando a tempestade dos aplausos serenou, o sábio começou, pausado, entre o silêncio geral:

— Senhores! A ciência, prosseguindo no seu avanço no céu, conseguiu oferecer aos habitantes do nosso planeta mais algumas informações sobre Marte.

Fez uma pausa. Continuou:

— Marte, senhores, apresentou-se-nos, desta vez, envolto em uma nebulosidade intermitente. As nossas lentes permitiram-me, entretanto, constatar a existência de um grande mar, quase gelado, no hemisfério sul, e de dois desertos de areia vermelha, próximo à linha do Equador.

Tomou fôlego. Bebeu água.

— O ponto principal, senhores, que é a habitabilidade de Marte, não foi, contudo, apurado de modo satisfatório. O nosso aparelho devassou, é certo, os continentes do planeta. E, descobrindo-lhes, embora, os habitantes, não os pôde identificar. Os marcianos não nos deram, sequer, senhores, a honra de olhar para cima.

Pigarreou e concluiu:

— À hora em que os surpreendemos, estavam, todos, de guarda-chuva!

XC

O EXAME

O consultório do eminente especialista achava-se repleto, naquela tarde; mas, no meio de tanta gente chic, de tanta senhora bonita, não havia um palmo de cara, e um metro e meio de corpo, como o daquela doidivanas, tão famosa nos anais da galantaria nacional. Esguia e clara, com uns lindos olhos castanhos e uma cabeleira crespa e alourada, era um desses tipos graciosos de parisiense, com que os desenhistas enfeitam, num traço de alegria, a capa das revistas galantes. E mais linda do que nunca parecia naquele momento, mordendo o beicito vermelho e sacudindo a perna escultural, em movimentos de impaciência nervosa pela demora desaforada do médico.

De súbito, porém, abre-se a porta da sala de consultas, sai um cliente, acorre o porteiro, e, de regresso, informa:

— É a vez da senhora... Faça o favor de entrar...

Tomando a bolsa e a sombrinha, a rapariga entra. A porta fecha-se. E sentados um diante do outro, o médico pede-lhe que lhe conte o seu caso.

— É um estado de nervos horrível, doutor. Às vezes acordo, à noite, em sobressalto, e não posso mais dormir, o corpo todo tremendo... Outras, sem motivo nenhum, desato a chorar, como uma doida.

Bigodinho aparado, embora grisalho, cabelo partido ao meio cuidadosamente, o médico é uma bela figura de homem. Os seus olhos de cientista examinam detidamente a cliente, acompanhando-lhe a narração. Ao fim, ordena:

— Bom, vamos fazer um exame... Tire a sua blusa, fique à vontade...

Momentos depois, começou, de fato, o exame atento, demorado, meticuloso. Sentada no divã alto, a moça sentia a cabeça do doutor pousada nas suas espáduas, auscultando os pulmões. Em seguida, passou para diante. E que estremecimento o seu ao sentir aquela cabeça no seu colo, ao mesmo tempo que a mão do facultativo a segurava pelas costas... O perfume da cabeça do médico subia até o seu nariz, atordoando-a. Sentia ímpetos de agarrá-la, comprimi-la, beijá-la. Os suspiros vinham-lhe até à garganta, e era com uma delícia inaudita que fechava os olhos à doçura daquele contacto.

De repente, o médico afasta a cabeça.

— Bom, — diz, — estou satisfeito. Os pulmões, o coração, tudo está bem...

A moça, porém, não ouve nada.

— Doutor — atalha, a voz trêmula, — quanto custa um exame desses?

— Cinquenta mil réis, minha senhora, — informa, frio, o facultativo.

A rapariga estende o braço, toma a bolsa, abre-a, tira de dentro uma cédula de cem mil réis, e estende-a ao médico.

— Doutor... — geme.

E fechando os olhos, num arrepio.

— Examine outra vez... Sim?

XCI

MAGNETISMO

A sessão de hipnotismo oferecida pelo Dr. Augusto Gonzaga a uma fina assembleia de estudiosos, havia tido, naquela noite, uma concorrência incomum. Médicos, engenheiros, bacharéis, homens de letras e várias senhoras, enchiam as duzentas cadeiras da Sociedade Esotérica Professor Mozart, quando o jovem médico alagoano apareceu no pequeno tablado lateral, vestindo a sua impecável casaca de merinó preto debruada com o melhor cadarço de defunto existente nas alfaiatarias de Maceió.

Uma salva de palmas respeitosa acolheu o simpático cientista, o qual começou por explicar o que era hipnotismo, acentuando, entretanto, que este era melhor explicado pela eloquência dos fatos do que pela sonoridade das palavras. E passou, logo, as demonstrações práticas do fenômeno, cercando-as de particularidades impressionantes.

— Vou fazer — disse — com que uma das senhoras se ponha em movimento, a um simples gesto dos meus olhos, fazendo tudo que eu, com eles, lhe mandar.

E encarando uma senhorita da terceira fila, olhou-a longamente, demoradamente, com a fixidez com que o sapo magnetiza a serpente, e com que a serpente, por seu turno, magnetiza a gambá.

Dentro de dois minutos, a moça largou o leque, a bolsa, o espelhinho em que se mirava momentos antes, e, erguendo-se, encaminhou-se, tonta, para o tablado. E aí ficou, durante dez minutos, a dar voltas, obedecendo, automaticamente, à vontade do hipnotizador, que, entretanto, não lhe dava uma palavra, e que lhe ordenava tudo com a simples eloquência dos olhos.

Terminado esse número, que foi coroado por uma nova tempestade de palmas, eu notei que o único indiferente, no meio de tudo aquilo, era um meu vizinho de cadeira, um velhinho mirrado, de pele de múmia e sorriso voltairiano, o qual não parecia admirado com o caso, olhando-o, antes, como a cousa mais natural deste mundo. Irritado com aquela impassibilidade, interpelei-o, batendo-lhe com o cotovelo:

— O senhor não gostou da experiência?

O velhinho encarou-me, alvejando-me com os seus olhinhos miúdos, e luzentes como duas balas de revólver.

— Gostei, sim, senhor, — confessou, com o seu sorriso inalterável. — Mas eu tenho visto melhor; muito melhor!

— Melhor?  — Duvidei, voltando-me para ele.

— Sim, senhor. Aqui mesmo no Rio, o senhor vê isso muito no meio da rua. As mulheres, principalmente, possuem muito essa força hipnótica.

Voltei-me ainda mais para o idiota, e ele explicou-me, documentando o caso:

— Olhe; ainda agora mesmo, eu vi uma prova dessas, no ponto dos bondes, perto da Galeria Cruzeiro. Estavam de pé, aguardando transporte, quatro rapazes e um velho. Perto, uma senhora, que me pareceu estrangeira, bonitinha, pintadinha, esperava, também, o momento de se ir embora. Chegou o bonde. A mulher entrou, e, do banco, pôs-se a olhar, firme, como quem está hipnotizando, os quatro rapazes e o velho. E foi num instante: eles pularam, todos, para o bonde, e lá se foram com ela!

E rindo com os olhos, com a boca, com a testa, com as rugas da face, enfim, todo ele num sorriso de ironia:

— Eu mesmo, sem ter sido olhado, quase vou!

E virou-se para o tablado, piscando.

XCII

O MENINO QUE NASCEU SEM MÃE

Toda a gente sabia do caso, no quarteirão, mas fechava os olhos, para não ver o escândalo. Noivo da Zenaide, a filha mais velha, e mais linda, do desembargador Otaviano, o Dr. Furtado Gomes, desmanchara o casamento por uma futilidade. E como quisesse castigar a antiga noiva com o espetáculo de uma felicidade mentirosa, o rapaz solicitou, duas semanas depois, a mão da Vivina, filha mais moça do velho magistrado, casando-se com ela mais por um capricho do que, mesmo, por um impulso do coração.

Os primeiros meses de casamento bastaram para criar, entre Furtado Gomes e Vivina Moreira, uma estima respeitosa, mas sem amor. E foi essa estima sem amor que tornou possível a reunião, sob o mesmo teto, do casal com a cunhada, a qual não havia dado a menor demonstração de ciúme ou de sofrimento com a perda do noivo e, ainda menos, com a vitória da irmã.

Lentos e compridos, foram passando, assim, os anos. E cada ano que passava, deixava mais um berço na residência do Dr. Furtado Gomes. Até que os primeiros meninos, já mocinhos, foram metidos na escola.

Matriculados, aí, o Joquinha, o Anísio e o Alfredo, iam, diariamente, para a aula, onde estavam inscritos como filhos, que eram, do Dr. Arduino Furtado Gomes. E estavam, já, adiantados, quando, uma tarde, na preleção, a professora, Dona Rosita, começou a explicar:

— O homem, meus meninos, deve honrar aqueles que lhe deram a vida: o seu pai e a sua mãe.

E logo, dirigindo-se a um, para ver se os alunos haviam compreendido:

— De quem você é filho, Luiz?

— Do papai.

— E de quem mais?

— Da mamãe.

E, depois de vários outros:

— De quem você é filho, Anísio?

— Do papai.

— E de quem mais?

O menino titubeou um pouco, passou os olhos em torno, e, baixando a cabeça, humilde:

— Da titia...

XCIII

O SORTEADO

Quando chegou a São Caetano de Cima o aviso do Ministério da Guerra para a mobilização de sorteados, o capitão Saldanha Rocha, comandante do destacamento federal baixou uma ordem do dia que assim terminava:

“Desse modo, sendo os sediciosos que invadiram o nosso Estado em número de 800, nós não precisamos senão de igual número de patriotas para derrotá-los. E como a contribuição é proporcional, São Caetano terá de chamar às armas cinquenta sorteados, que, com a sua bravura, a sua disciplina, o seu amor a ordem e a República, se encarregarão de castigar igual número de inimigos”.

Cinco dias depois estavam, realmente, incorporados à guarnição cinquenta rapazes do município, os quais começaram, logo, a receber instrução e, em seguida, munição de guerra. E entre os mobilizados estava o Tonico, rapagão gabola e metido a corajoso, mas cuja valentia era, ainda, a cousa mais hipotética de São Caetano de Cima.

Espadaúdo e alto, com um braço que duas mãos dificilmente abarcavam, Tonico Soares vivia, pode-se dizer, da fama insensivelmente adquirida. A verdade era, porém, que jamais havia experimentado aquele braço, a força daquele murro, avaliada, mas, nunca, até então, verificada. E ali estava ele, nas fileiras, empertigado e solene, com a farda caqui estalando sob a pressão interna da musculatura poderosa.

No dia da partida, com o contingente formado, os sorteados na fila de frente, o capitão Bocha repetiu, em discurso, os termos da sua ordem. Que cada legalista se encarregasse de um rebelde, de um sedicioso, de um inimigo da lei e do regime. Cumprisse, cada um, o seu dever, e o Estado estaria salvo.

Terminada a sua oração, começou a revista. Diante de cada soldado, o capitão indagava:

— Como te chamas?

— Joaquim Pinto.

— Matarás um inimigo?

— Sim, sr. capitão.

E adiante:

— Como te chamas?

— Alfredo Costa.

— Matarás um inimigo?

— Matarei, sr. capitão.

Antes de chegar ao Tonico Soares estava o Esperidião, pretinho miúdo, seco, magricela, mas que havia servido, já, como voluntário, nas fileiras do governo.

— Teu nome? — Indagou o oficial.

— Esperidião Justino de Souza.

— Matarás um inimigo?

— Matarei dois, sr. capitão! — Respondeu, firme, o pretinho.

A essas vozes, o Tonico Soares, que estava um pouco adiante na mesma fileira, deu um passo em frente, e mão no boné, em continência:

— Licença, meu capitão! Posso ir-me embora?

E indicando o Esperidião:

— Ele mata o meu...

XCIV

CHARITAS

(SOBRE UM CONTO FRANCÊS)

O verão, naquele ano, havia sido violento. Exagerando tudo, os jornais haviam noticiado, já, quatro mortes por insolação, em dois dias. Mesmo que assim não fosse, o Carlos Gonzaga teria de sair da cidade procurando moradia à beira-mar, onde pudesse ter vida livre, respirando a brisa marinha e fazendo um metódico exercício de remo.

Vá para uma praia, — recomendara-lhe o professor Misael Borges, que lhe examinara o organismo. — Você precisa de sol, água e vento!

Um cabotino elegante, desses que enchem a cidade, teria, com certeza, procurado Copacabana, ou pensado em Guarujá. O Gonzaga era, porém, equilibrado. Lembrou-se de Icaraí. Pensou no Saco de São Francisco. Não encontrou, porém, um aposento de pensão ou de hotel, desocupado. E ia pensar em Guaratiba, quando um amigo de Niterói, o Pompeu, lhe lembrou:

— E a Charitas?

— Charitas? Que é Charitas?

— É a praia que fica para além do Saco, antes do Paula Cândido... É um arraial de pescadores, muito singelo, muito saudável, e que está, mesmo, nas condições que desejas. Quem sabe se não acharás por lá uma casinha, ou um cômodo, em qualquer casa de família pobre?

Marcado um dia, uma terça-feira, para irem juntos, atravessaram os dois a baía, tomaram o bonde do Saco, apeando-se no ponto terminal. Em seguida, puseram-se a caminho, vencendo o penedo em que se acha a gruta de Lourdes, até saírem do outro lado, na praia de que o Pompeu falara.

O lugar não podia ser mais bonito, mais sossegado, mais pitoresco. Abrandado pelo morro de Imbuí, o mar, nesse ponto, é mais doce, mais tranquilo, beijando a areia, numa carícia. À orla d’água, estendia-se o casario humilde, pequenas barracas de barro e telha, ou cobertas de zinco, denunciando a pobreza dos moradores. Grandes redes de pescaria secavam ao sol, estendidas em estacas. De longe em longe, à sombra de uma árvore, um pescador sentado, consertando a tarrafa rebentada pelos peixes na véspera.

Ao primeiro que encontraram, os rapazes disseram a que iam pedindo informações. O caboclo que os atendeu fez um gesto:

Ali, na velha Teresa, talvez o senhor ache...

— Defronte daquela amendoeira?

— Essa mesmo! A velha é aquela, que o senhor está vendo lá...

A velha Teresa andava pelos sessenta anos. Gorda, pesada, cara de megera. Informada do que desejavam os rapazes, chamou para dentro:

— “Reimunda...” “Reimunda...”

Em um momento, apareceu à porta da casinha pintada de branco, de janelas azuis, uma rapariga de olhos negros, boca de sangue, amorenada pelo sol e pelo vento do mar.

— Mostra a casa aqui a este moço, — disse, — indicando Carlos Gonzaga, que enveredou, logo, pelo casebre, onde ficou meia hora a ver dois quartos, uma sala e uma cozinha.

Ao regressar, muito vermelho, o rapaz informou:

— Está muito bem... Quanto quer a senhora pela sala? Eu quero ter vista sobre o mar.

A velha pensou um instante.

— Com vista sobre o mar, são duzentos mil réis...

E após uma pausa, acendendo um cachimbo:

— Agora, com vista sobre a “Reimunda”, são quatrocentos!

E chupou a fumaça, com força.

XCV

O PECADO

Padre Gabriel passeava de um lado para outro no adro da matriz, lendo santamente o seu breviário e tomando, de vez em quando, a sua pitada de rapé, quando viu surgir no outro extremo da praça, o chapeuzinho azul a coroar a cabeleira de ouro, a saia curta, feitio da cidade, a fustigar as perninhas de corça ligeira, a Lilizinha, filha da viúva Mendes, recentemente chegada à localidade.

— Esta ovelhinha vai me perder o rebanho! — Murmurou, de si, consigo, balançando a cabeça, o velho sacerdote.

Nascida, embora, na vila, a filha da viúva Mendes podia ser considerada apenas uma visitante. Levada para a capital aos sete anos, lá se deixara ficar em companhia de uma parenta do pai, que tomara à sua conta a educação da menina. E como essa parenta houvesse falecido, correu a Lilizinha a juntar-se à velha mãe, cujo espose havia, igualmente, abandonado a miséria terrena.

A presença da mocinha, que andava pelos dezoito anos, era, por isso, o melhor assunto de Murucutuba. Os seus vestidos, as suas meias, os seus chapéus, eram examinados, discutidos, comentados.

— É uma cômica perfeita! — Diziam as da sua idade, fuzilando-a com os olhos.

— Eu ouvi dizer que ela, na cidade, ia no cinema sozinha! — Comentavam as velhas, escandalizadas.

— Ia no cinema e, no entanto, nunca foi na missa!

A prevenção com a menina, era, dia a dia, mais viva, mais intensa, mais agressiva. Damas havia, das mais íntimas da família, que torciam o rosto, à sua aproximação. Á mocinha olhava-as, sorrindo, num misto de piedade e de zombaria, e continuava o seu caminho, petulante, graciosa, tentadora.

Olhava-a. o sacerdote do alto do adro, quando viu que a menina se encaminhava para o templo, e subia, um a um, os degraus de tijolos, que conduziam à porta central. E foi desconfiado que a sentiu chegar, depositar-lhe um beijo na mão retesada de veias, e pedir, um sorriso na boquinha vermelha:

— Padre Gabriel poderia me confessar?

— Agora?

— Agora mesmo, se fosse possível.

Cinco minutos depois, estavam no confessionário, — ele, do lado de dentro, ouvido no crivo, ela, do lado de fora, com os joelhos no chão, — santo e pecadora.

— Já rezou, filha? — Indagou o reverendo.

— Já, sim, senhor.

— Então, conte os seus pecados.

Olhos na grade, joelhos em terra, com a graça desenvolta de quem pratica um ato elegante, Lilizinha protestou:

— Pecados, não, senhor padre; pecado! É grande, mas é um só!

A essas vozes, o sacerdote estremeu:

— Então, filha, é algum pecado... capital!

— Se é capital, não sei, sr. padre — tornou a devota.

E com aquela garotice inconveniente, mas sadia, das almas alegres, que amam a vida:

— O que sei é que é um pecado...

E estalando a língua de rubi, na boquinha de cravo:

— Capi... toso!

XCVI

O SECRETÁRIO

Enviado pelo presidente do Estado, de quem era secretário, à pequena cidade de São Domingos, onde se ia inaugurar com toda a solenidade o retrato a óleo do “eminente gestor dos negócios públicos”, o Dr. Antônio Valério hospedara-se, conforme a praxe, na residência do chefe governista local, o coronel Saturnino de Mendonça. E desde o momento da chegada, notara que Dona Nenen, esposa do coronel, era uma das mulheres mais interessantes que haviam atravessado o seu caminho.

Viúvo aos cinquenta anos, o coronel Saturnino não se considerava impedido de, pela segunda vez, constituir família. E como era a primeira figura do lugar, com um prestígio eleitoral incontrastável, achou que lhe cabia para esposa a moça mais sedutora da cidade, e que era, então, a Nenen Bastos, filha mais moça do agente dos Correios. E casou com a Nenen, apossando-se daqueles dezenove anos graciosos e frágeis, enfeitados por uns cabelos crespos e negros, por uma rosa em cada face, por uma boca pequena e vermelha, e por um corpo esguio e ágil, que se movia na marcha com a cadência, a harmonia, o ritmo de uma cobra na areia quente.

Durante o almoço oferecido ao representante do chefe do governo, o viajante ilustre não se cansava de admirar a graça, a distinção, a beleza de Dona Nenen. E quando foi à tarde, depois do jantar, estavam, já, tão íntimos, tão chegados um para o outro que Antônio Valério, aproveitando uma oportunidade feliz no momento em que tomavam café na calçada, aventurou, com veneno na voz:

— Amanhã, a esta hora, estarei longe... Será o princípio do meu exílio... E é possível que eu parta sem haver provado, sequer, o gosto do seu beijo?

Mexendo a sua xícara, a moça ficou toda vermelha. E o rapaz insistiu:

— Não haverá um meio de eu vê-la sozinha esta noite? Se me desse essa ventura, pode ficar certa de que seria amada toda a sua vida.

E com a voz trêmula, baixinho:

— Dize, meu amor! Dize! ...

Certo, no coração de Nenen Mendonça havia, já, um sentimento novo e desconhecido, desses que arrastam a mulher a todas as temeridades. E foi dominada por ele, que respondeu, num sussurro:

— Há, sim...

E com uma coragem de que ela própria se não supunha capaz:

— Eu vou dormir, hoje, com a vovó, que está doente.

— Aqui mesmo na casa?

— Sim; aqui mesmo. Depois do quarto onde o senhor está dormindo, tem a primeira porta, que é do quarto do Saturnino. A segunda, é o quarto da vovó. Eu a deixarei encostada, e no escuro. Mas, com uma condição: não dê uma palavra ou faça o menor barulho.

Um aperto de mão, escondido, por baixo da cadeira, foi o agradecimento a essa promessa.

— Mas eu também tenho um pedido a fazer-lhe, — tornou a moça. — Quero que me deixe um retrato seu. Quero tê-lo sempre junto a mim.

— Com dedicatória?

— Não; Saturnino poderia encontrá-lo e me mataria.

— Pois, bem; quando eu for ao quarto, à noite, eu lhe levarei.

No dia seguinte, satisfeito com a aventura da noite, Pedro Valério dormiu até mais tarde. Às nove horas ergueu-se, fez a sua toilette, e saiu do seu quarto. Na sala de jantar, cruzou com Dona Nenen, que não lhe respondeu, sequer, à saudação que lhe dirigiu.

— Está envergonhada, com certeza... — pensou o alto funcionário, intimamente desvanecido.

Pelos corredores foi notando, porém, que a casa estava mais animada do que de costume, com muita gente a mover-se, cochichando, de um lado para outro. No alpendre, encontrou o velho Saturnino.

— Bom dia, coronel!

— Bom dia, doutor!

E após um instante:

— Que atrapalhação, hein? ... E logo hoje, dia da inauguração!

— Que é que houve?

— Então, não sabe? ... A velha Laurinda, avó de minha mulher, morreu esta noite!

— Morreu? ... — fez o rapaz, arregalando os olhos.

— Morreu, sim; ou, melhor, foi encontrada morta... E parece que tinha grande admiração pelo senhor.

— Por mim?

— Sim, senhor. Quando a Nenen acordou, e foi vê-la, estava morta, inteiriçada, com o seu retrato na mão.

E ajuntou:

— Mas, também, coitada! Ela já estava tuberculosa há tanto tempo! ...

XCVII

ELEGÂNCIA MODERNA

(SOBRE UMA “ CHARGE ” DE A. FABRE)

Alta, esguia, quase esquelética, M.lle. Alcina Roberto, era, no Rio, o tipo mais representativo da elegância moderna.

Antigamente, a mulher bonita, formosa, modelar, e que constituía o tipo de beleza, era a de formas proporcionadas, de seios harmoniosos e ancas de linha curva, e, sobretudo, aquela de quem se não viam os ossos. Hoje, não; hoje, o tipo ideal é constituído pela mulher magra, espichada, arquitetura de espantalho, sem carnes na frente nem atrás; pela mulher, em suma, que de costas, fura a palhinha da cadeira e, dançando, não encosta no companheiro porque não tem, mesmo, o que encostar.

As modas atuais, masculinizando a mulher, acentuaram ainda essas aberrações da plástica feminina. Com o vestido frouxo em cima da pele, o cabelo cortado como o dos homens e, até algumas, de bengala, monóculo ou óculos de tartaruga, a impressão que se tem é que o sexo feminino está, quase, a desaparecer.

E M.lle. Alcina Roberto era assim. Era assim, e assim ficou depois do casamento, e, mesmo, depois do filho que lhe nasceu e que foi confiado, de propósito, à ama de leite.

Certo dia, porém, ao chegar em casa, a moderníssima senhora sentiu um esquisito prurido de maternidade. Ao entrar, espetada no seu frouxo vestido de tricoline, foi, logo, atirando para um lado o seu chapéu pequenino, riçando os cabelos curtos, cruzando as pernas, acendendo um cigarro, e pedindo, o monóculo assestado:

— Ernestina, traga o meu filho!

A ama trouxe o pirralhito, um garotinho de três meses, de olhos vivíssimos e boca sem dentes, e madame sentou-o na perna.

— Venha cá, meu filhinho; venha beber o leite de mamãezinha! — Chamou.

E começou a desabotoar-se. Após o terceiro botão, enfiou a mão pelo decote, procurando alguma cousa, e, não a encontrando, ficou desolada.

— Espera aí! — Disse, passando o garotinho à ama.

E, momentos depois, voltava de pijama, cigarrete à boca, monóculo encastoado.

— Tragam o menino! — Ordenou.

Obedecida, abriu toda a frente do pijama, e, oferecendo, em vez de um colo, uma tábua ao pequeno, achegou-o muito ao coração, comprimindo-o de encontro ao lugar em que, outrora, as mulheres tinham dois montes de espuma, coroados por dois botões de rosa.

Espertinho, o garotinho sorriu, primeiro. Ao verificar, porém, que estava logrado, fechou a cara, numa dúvida. E foi, então, quando alguém lhe leu, sutil, nos olhinhos inteligentes, o segredo daquela suspeita.

— Uai! — Teria exclamado.

E desconfiado, olhando o colo sem saliências:

— Isto é mamãe, ou papai?

XCVIII

O DESCRÉDITO DA IMPRENSA

O senador Viana da Rocha era, dos chefes políticos brasileiros, o mais atacado pelos jornais. Raro era o dia em que a imprensa oposicionista não investia contra ele, crivando-o de epítetos desaforados. Acusavam-no de tudo: de falsificar eleições, de roubar o Tesouro, de seduzir a esposa dos amigos, de faltar à palavra empenhada; e de estupidez, de ignorância, de embriaguez, dos defeitos e vícios mais abomináveis.

Pela manhã, metido no seu pijama patriótico, de zefir verde com alamares e debruns amarelos, descia o velho parlamentar à sala de almoço, tomava o seu café, e, sentando-se em uma cadeira de mola, começava a ler, uma por uma, as folhas adversárias. À medida que as lia, passava-as a D. Cotinha, sua jovem esposa em segundas núpcias, a qual, de quando em quando, lhe observava:

— Leste, Augusto, o que diz o Diário? Diz que tu roubaste as apólices de uma viúva de São Paulo.

E minutos depois:

— Viste aqui no Popular? Volta ao negócio da Estrada de São Braz a Vila-Franca, chamando-te de ladrão.

Certo dia, humilhada com aqueles ataques à reputação do esposo, Dona Cotinha não se conteve mais. Falou, claro, ao marido:

— Augusto, isso não pode continuar. Tu não te importas, mas não te fica bem essa indiferença diante de tanto insulto. Não há jornal que não te chame as cousas mais feias, mais agressivas, e tu não dás uma palavra. Isso é horrível!

— Ora, filha! ... — fez o velho político, traçando a perna.

E num gesto de enfado:

— Nunca dês crédito àquilo que vires num jornal... O que sai nos jornais não tem a menor importância... Grava na tua memória, e nunca me fales mais em tal cousa.

Passaram-se os anos. Alquebrado pela idade, o senador estava abatido, vencido, subjugado. Auxiliada pelo tempo, Dona Cotinha estava mais moça, mais alegre, mais linda. E foi por esse tempo que, ao entrar em casa uma tarde, viu o velho parlamentar um molecote que, muito desconfiado, com o susto nos olhos, procurava esconder-se no jardim. Chamou-o, e viu que ele conduzia um embrulho, em papel de jornal.

O moleque, muito assustado, as mãos trêmulas, abriu o invólucro. Era de roupa, ceroula e camisa de dentro, no meio da qual havia um bilhete, que o velho político leu, com raios de sangue na vista, e que dizia assim:

“Julinho: — Aí vai a roupa que esqueceste ontem, na precipitação da saída. Amanhã o Augusto tem reunião na comissão no Senado. Espero-te às duas em ponto. Vem. Beijos ansiosos da tua — Cotinha”.

Amparado ao bengalão de unicórnio, a face grave dos dias perigosos da política, o senador entrou em casa, o bilhete amassado na mão engelhada. Chamou a esposa ao gabinete, fechou-se com ela, e apresentando-lhe o escrito, interpelou, rude:

— Que é isto?

— Isto o quê?

— Este bilhete.

Madame leu as linhas que sabia de cor, franziu os supercílios de mulher dominadora e inteligente, e indagou:

— Onde achaste isto?

— Dentro de umas peças de roupa.

— E essa roupa, onde estava?

— Ia saindo daqui, em um jornal.

A essas palavras, a linda senhora pôs as mãos na cintura.

— Sim, senhor, sr. senador! É o senhor que me vem falar em tal cousa! ...

E a cabeça de lado, num desafio:

— Não foi o senhor mesmo quem disse que não se deve ligar a menor importância àquilo que “sai” nos jornais? ...

XCIX

A SONDA

O vento começou a assobiar nas enxárcias do “Valha-me Deus!”, o pequeno iate que fazia viagens entre Cabo Frio e Rio de Janeiro, quando o garboso barco dobrava, comendo onda sobre onda, a Ponta de Itaipu.

— Vamos ter serviço até a entrada da barra, pessoal — gritou para os companheiros, a mão esquerda no leme, a direita segurando a escota, o velho Pantaleão, piloto do veleiro.

Do lado de terra, de onde a ventania soprava com mais ímpeto, havia no céu, realmente, uma espécie de cortina de chumbo, que marchava para o mar, envolvendo tudo. E o velho marujo, ao vê-la, compreendeu logo que o nevoeiro ia chegar dentro de uma hora, precipitando a noite, envolvendo o iate e as montanhas vizinhas, e tornando difícil, senão impossível, a entrada da barra com semelhante escuridão.

— Vamos apressar, rapaziada! — Gritou o velho, com entusiasmo.

E, dando um jeito na vela, o barco “puxou”.

Quando, pelas nove horas, a ventania amainou mais, o “Valha-me Deus!” estava, já, dentro da barra. A escuridão era, porém, tamanha, que não se via uma luz, sequer, da cidade, ou dos navios surtos no porto. Dentro mesmo do barco, para se entenderem, os homens precisavam gritar, berrar, porque se não viam, e quase que não ouviam, mesmo a um metro de distância.

— Martinho! — Gritou o velho Pantaleão, com toda a força dos pulmões, para dominar ainda o zunido do vento.

— Pronto! — Respondeu uma voz, de que a ventania levara a metade dos sons.

— Larga a sonda da proa!

Passaram-se alguns minutos. De repente, a voz que por último se ouvira, gemeu, plangente, e alta, na escuridão, e na tempestade:

— Vinte e duas bra... a... a... ças... Fundo de la... a... a... ma...

Passaram-se quinze minutos. E a voz:

— Dezessete bra... a... a... ças... Fundo de are... e... e... ia...

Mais doze minutos, e, no mesmo tom, no meio da ventania:

— Doze bra... a... a... ças... Fundo de pe... e... e... dra...

À proa, de pé, o cabelo ao vento, a roupa de marujo molhada, ensopada, grudada ao corpo, Martinho, o marinheiro mais novo do iate, ia lançando de quando em quando a sonda, fazendo-a tocar o fundo do mar. Em seguida, começava a puxar a corda, medindo braça por braça, até que o prumo do ferro aparecia. Então, tomava-o, passava a mão no lado posterior do peso, que pousara no leito da baía, e, de acordo com o que encontrava no ferro, gritava:

— Tantas bra... a... a... ças... Fundo de la... a... a... ma...

Ou, então:

— Tantas bra... a... a... ças... Fundo de are... e... e... ia...

A certa altura, porém, largou a sonda, puxou-a, mediu-a.

— Nove bra... a... a... ças... — gritou, a voz mole.

Passou a mão no fundo do peso. Encontrou uma espécie de lama pegajosa, macia, quase líquida, cuja consistência estranhou. Levou ao nariz. Cheirou. Fez uma careta de repugnância, de nojo, de horror. E com a mão estirada, longe de si, pronta para lavar, anunciou, na mesma melopeia:

— Nite... ró... ó... ói!...

C

OBJETOS DESAPARECIDOS

Não obstante a sua feição fúnebre, de catacumba romana, o Assírio estava animado, naquela noite. Com as suas toalhas muito alvas, sobre cada uma das quais agonizava a luz ensanguentada de uma lâmpada velada pelo abat-jour vermelho, as mesas, compridas ou quadradas, eram como lousas de um cemitério de cidade pequena em noite de Finados. E em torno desses túmulos, senhoras decotadas e cavalheiros encasacados, fazendo tilintar as taças, em que ferve a champanhe?

Era precisamente meia-noite quando, terminado o espetáculo, onde a sua formosura radiara, desafiando os binóculos insolentes, Dona Lucília apareceu no cimo dos degraus que descem para o restaurante. Trajava um lindo vestido azul-claro, fervilhante de pérolas, e justo no corpo, o qual punha em destaque mais acentuado o moreno da pele e o castanho dos cabelos suavemente ondulados. Ao seu lado, arrastando os pés com dificuldade, o comendador Perdigão de Castro, cuja velhice de milionário era atormentada, agora, pela mocidade da segunda mulher.

Sob os olhares espantados daquela gente curiosa e cúpida, a moça desceu, um a um, os degraus daquele trono de pedra. E foi com a mesma imponência, com a mesma arrogância encantadora, que atravessou o salão, indo sentar-se, em baixo, na mesa que lhe estava destinada.

O comendador Perdigão andava, já, pelos sessenta anos. Calvo, o rosto retalhado de rugas, a boca permanentemente aberta por exigência da dentadura postiça, era o muro velho de que se alimentava aquela maravilhosa flor parasitária. À sua passagem, não havia quem não sorrisse. Era um cão de pobre a seguir no encalço de uma rainha impiedosa.

Ao tomarem posse da mesa, o comendador lembrou-se de ir em um lugar, que só ele sabia.

— Espera aí; volto já... — declarou à madame.

Cinco minutos depois, de regresso do lugar aonde fora, ficou, porém, tonto, no meio do salão. Qual seria, daquelas, a sua mesa? Onde estaria a sua mulher, que não via? Atinou com a mesa, mas, a esposa, não a encontrava. Correu ao gerente, aflito:

— Cavalheiro! Ó cavalheiro?

— O senhor não viu, acaso, minha mulher? Eu a deixei aqui... Furtaram-na!

— Furtaram-na? — Fez o gerente. Mas a casa nada tem com isso, meu caro senhor.

Fez um gesto de quem recusa responsabilidades:

— Nós só nos responsabilizamos por objetos desaparecidos quando eles são depositados no vestiário!

E afastou-se, digno.

CI

LIÇÕES DE ECONOMIA

O último verão intenso que tivemos foi, como se sabe, o de 1915. A temperatura subiu a 37° e a 38°, e, como a insolação era novidade no Rio de Janeiro, as ambulâncias da Assistência andavam acima e abaixo, socorrendo vítimas do calor. Os limões, receitados para os refrescos, chegaram a cinco tostões, cada um. As sorveteiras batiam dia e noite, e as praias enchiam-se de gente, de uma multidão suarenta e afanosa, que se comprimia como sardinhas em lata.

Foi por esse tempo que o Samuel Benzalah, comerciante em grosso à rua José Maurício, resolveu, acossado pelo calor, adquirir por mil e duzentos réis, em um armarinho da rua Larga, um pequeno leque de papel. Testemunha dessa violência do vizinho, o Isaac Rotemberg, que tinha ao lado um modesto armazém de casimiras, resolveu fazer o mesmo. E comprou outro leque do mesmo preço e da mesma qualidade, e que diferia, apenas, daquele, pelo desenho e pela cor: o de Samuel, era azul, com dois galos brigando, e o do Isaac, vermelho, com uma cabeça de cavalo.

Dois lustros são passados sobre aquele verão intolerável. Outros verões vieram, mais benignos, mais generosos, mais suportáveis. Até que, este ano, se repetiu o fenômeno climatérico de 1915, com dias de 39°, à sombra, e noites de 38°, no escuro.

Os efeitos dessa temperatura têm sido incontáveis. Um dos mais sensacionais para a colônia israelita do Rio de Janeiro, foi, porém, o aparecimento de Isaac Rotemberg e Samuel Benzalah à porta dos respectivos estabelecimentos, cada um com o seu leque. E esses leques, que eram os mesmos de 1915 — um com os dois galos, outro com a cabeça de cavalo, — estavam, e estão, em perfeito estado, como se fossem comprados na véspera.

Ao ver Samuel com o leque fechado na mão, Isaac Rotemberg saiu da sua porta, e foi à do vizinho.

— Scholem Aleichem!

— Aleichem Scholem!

Trocada essa primeira saudação religiosa a que se haviam habituado, Isaac tomou-lhe o leque, abriu-o, e, vendo que era o mesmo, e em tão bom estado, indagou.

— Samuel, este leque é aquele mesmo, de 1915?

— É o mesmo Isaac... E o teu, não é o mesmo?

— É o mesmo, Samuel. E que fazes com o teu para se conservar tanto tempo?

— Eu te digo, Isaac. É simples: como o vento pode gastar o papel e as cores, eu me abano assim bem de leve... de levede leve...

E pôs-se a abanar-se pausadamente, lentamente, vagarosamente.

— E tu, Isaac? O teu também está novo.

— Eu ainda sou mais prudente do que tu, Samuel.

— Que é que tu fazes, Isaac?

— Eu? Eu faço isto, Samuel: pego, assim, o meu leque, abro-o com cuidado, ponho-o bem aberto diante de mim; na direção do meu nariz, e sem agitar; feito isso, começo então a mexer com o rosto para a esquerda... para a direita... para a esquerda ... para a direita...

E com o leque fixo, em posição, e o rosto em movimento:

— Assim... assim.. assim...

CII

O DEPOIMENTO

A sala do Tribunal estava, naquele dia, movimentada. Os processos instaurados eram numerosos, de modo que o juiz, o Dr. Benevides Júnior, tinha de inquirir, até a tarde, dezenove testemunhas. E uma destas, intimada para depor no caso de homicídio na pessoa do guarda-civil nº 3.781, era a Ernestina B entes, a vista da qual se haviam empenhado em luta de morte, o guarda e o João Cearense que o prostrou, afinal, morto, com quatro punhaladas.

Metido na sua toga de sacerdote da lei, a compoteira do gorro emborcada^ na cabeça encanecida, o velho magistrado era o que se chama, vulgarmente, uma figura respeitável. Corado, bigode branco aparado a americana, os óculos de aros de ouro cavalgando, o nariz curto, não era uma dessas figuras que amedrontam os que são forçados a tratar com a Justiça; infundia, porém, respeito, mesmo quando abrandava a entonação da voz, para conseguir, pela confiança, melhor resultado nos depoimentos.

Foi à presença desse magistrado que a Ernestina teve, naquele dia, de comparecer. Intimada por um oficial de justiça, perguntara a uma vizinha de pensão, a Celeste, o que significava semelhante intimação.

— Nada, menina, — informara a outra. — Isso não tem o menor perigo. Tu vais lá, o juiz faz-te umas perguntas tolas, e tu voltas, depois, para casa.

E com desprezo:

— É uma besteira!

Ernestina Bentes era uma pobre rapariga do interior de São Paulo, seduzida, ali, por um caixeiro viajante. Trazida para o Rio pelo sedutor, fora aqui abandonada, até que um sujeito sem escrúpulos a encaminhou para uma casa duvidosa, onde passou a viver, com outras infelizes. Conduzida ao Tribunal pela amiga, chegara ali no momento, exatamente, em que chamavam pelo seu nome:

— Ernestina Bentes! ...

— Vai, menina; é tua vez... — aconselhara-a a Celeste.

Medrosa, tímida, o passinho ligeiro, a rapariga encaminhou-se para o estrado, onde o juiz lhe indicou, gentil, mas digno, a cadeira das testemunhas.

— O seu nome, minha senhora? — Indagou o dr. Benevides, iniciando o interrogatório.

— Ernestina Bentes, — fez a pobre, baixando os olhos.

— Que idade?

— Vinte e cinco anos.

— Onde mora?

— Rua Joaquim Silva, 308, quarto 5.

E em voz baixa:

— Mas eu vou pedir ao senhor uma coisa.

O magistrado apurou o ouvido. E Ernestina, que interpretara à sua maneira aquelas perguntas:

— Não vá nunca antes das dez da noite... E bata devagarinho, que eu já sei que é o senhor...

CIII

PRATICISMO AMERICANO

A vida movimentada de John Curson, proprietário de quatorze poços de petróleo no México e de uma fábrica de presuntos em Chicago, havia abalado a saúde a esse multimilionário americano. Começara cedo, no trabalho. Aos dez anos vendia jornais em São Francisco. Aos dezoito, era repórter em Filadélfia. Aos vinte e três angariava anúncios para uma grande agência de publicidade em Nova-York, quando se associou a um irlandês do Colorado para a exploração de um poço de petróleo. E negócio foi esse que, em breve, a firma Webster & Curson atravessara a fronteira, adquirindo várias jazidas novas e tornando-se, ali, uma das mais poderosas empresas do gênero.

Foi por esse tempo que, falecendo Patrick Webster, John Curson teve a ideia de, para não dissolver a firma e apartar a sociedade, casar-se com miss Edite, filha do seu sócio, rapariga de uns vinte e oito anos, mas com um espírito prático verdadeiramente assombroso. Miúda e loura, vermelha como um tomate e pintalgada de sardas como um ovo de galinha d’Angola, Edite Webster não parecia o que era: um gênio comercial. E foi com esses atributos e oitenta e nove milhões de dólares que passou a ser, para todos os efeitos, mistress Curson.

Ao contrair matrimônio, John, estava, porém, organicamente aniquilado. O trabalho matara-o. Os seus milhões haviam-lhe custado a saúde, e iam custar-lhe a vida. E foi na certeza disso que, logo após o casamento, entregou a direção da empresa à sua Edite, e partiu, com o seu secretário Herbert, e um livro de cheques, com destino à Europa, onde pretendia consultar as mais reputadas sumidades da medicina.

Ao contrário, porém, do que ele próprio esperava e supunha, a viagem foi-lhe fatal: ao chegar a Paris, e logo no dia seguinte, foi o multimilionário encontrado morto no W. C. do seu apartamento, surpreendido, aí, por um ataque de coração. Ao dar com o patrão morto, Herbert, terminadas as primeiras providências, correu ao telégrafo, e comunicou urgente:

“Edite Curson — Quinta Avenida,

804, 58. ° andar, sala 1.048. — Nova, -York. — John encontrado morto Water Closet. Que devo fazer? — Herbert”.

E, à tarde, recebia a resposta:

“Herbert Smith — American Hotel — Paris. — Puxe cordão descarga Water Closet. Traga livro cheques. — Edite”.

CIV

A ÚLTIMA SURPRESA

Pela cabeça do tenente Felisberto podia passar tudo; menos a ideia de que Dona Licínia, oxigenado pedaço de sua alma, pudesse profanar o seu nome, e, ainda menos, o leito conjugal. Certo, a moça era ardente, desenvolta, apaixonada. Ele, Felisberto, era, porém, um homem novo, sadio, vigoroso, e jamais observara na companheira a menor preocupação. Podia, pois, dormir sem cuidados, porque a sua reputação estava tão alta como o mastaréu do navio. E era com essa convicção que ia, todas as manhãs, para o seu emprego no Ministério da Marinha, de onde ainda se comunicava com a esposa pelo telefone, duas vezes por dia.

O que falta às mulheres em inteligência sobra, porém, em perspicácia. O sexo feminino tem os sentidos muito mais aguçados, mais vivos, mais precisos. O homem tem a ciência; a mulher tem a paciência. É mais fácil à mulher ver um mosquito no sol do que a um homem descobrir um elefante na lua.

Por isso mesmo o tenente Felisberto ignorava, em absoluto, o que se passava na sua casa, nas horas que ele consumia no serviço, estudando mapas, corrigindo cartas marítimas, fazendo cálculos de navegação. E tanto era assim que emborcou o tinteiro numa folha de almaço em que estudava as costas do sul, ao ler, as mãos trêmulas, a carta anônima em que alguém, fazendo pilhéria com a sua desgraça, lhe chama a atenção para o que se passava no seu lar, nas horas em que ele, homem de trabalho, cumpria abnegadamente os seus deveres, mourejando para uma criatura que, absolutamente, não merecia o seu nome.

Eram duas horas da tarde, e o céu estava lindo. A tarde era toda azul e ouro, como se Deus a tivesse enfeitado para cenário daquele infortúnio. E foi envolvido por ela que o jovem oficial tomou o bonde, saltou à esquina da rua, empurrou o portão, e penetrou em casa, evitando fazer barulho. No corredor, que ficava ao lado dos dormitórios, olhou para o quarto de vestir, e estremeceu: pelo espelho do guarda-vestidos, viu que Dona Licínia estava no leito, aos beijos, aos abraços, aos pulos de gatinha eletrizada pela paixão, tendo a seu lado, cínico e à vontade, o seu amigo e colega, o tenente Cantidiano Varela, da Diretoria do Armamento.

O primeiro ímpeto que lhe veio foi surpreender os dois criminosos, e matá-los. O segundo, foi matar apenas a mulher, ou apenas o sedutor. O terceiro foi, unicamente, matar-se. O quarto, afastar-se discretamente, nas pontas dos pés, para resolver com serenidade a sua situação. E foi por este que optou, retirando-se de leve, até o jardim, até a rua, até a cidade, onde chegou, de fisionomia carregada.

Na Avenida, entrou no Café São Paulo, sentando-se a uma das mesas. E mexia, automaticamente o seu café, quando lhe bateu no ombro o tenente Políbio, oficial da sua turma, seu amigo, e que fora o seu melhor companheiro nos belos dias da Escola Naval.

— Estás macambúzio, filho. Que é isso?

— Senta-te, — pediu o desgraçado.

E com a franqueza de quem quer desabafar, desafogar, desoprimir:

— Sabes de uma cousa? Eu estou de posse de todo o segredo. Minha mulher engana-me!

Políbio estremeceu.

Com um dos meus melhores amigos!

Políbio ficou branco.

— Meu colega de Marinha, tenente como eu!

Políbio ia desmaiar, mas teve coragem. E foi resoluto que confessou:

— Perdoa-me, Felisberto! Foi ela quem me arrastou! Quem me convidou! Quem me levou a enganar-te! Perdoa-me!

Dessa vez quem estremeceu, empalideceu, e quase desmaia, foi Felisberto Martins. Não era apenas o Cantidiano Varela: era o Políbio, e quantos mais, talvez, além daqueles.

Fora, na Avenida, o céu continuava todo azul e ouro, cobrindo a cidade feliz.

CV

A BALANÇA AUTOMÁTICA

Toda a vez que o Raimundo Cantídio vinha ao Rio de Janeiro visitar a mulher na residência da sogra, ficava na estação das Barcas, em Niterói, minutos e minutos, a olhar a balança automática ali existente. De quando em quando aparecia um curioso, e subia ao estrado do aparelho. No disco fronteiro, o ponteiro corria, doido, para um lado e para outro, até que se fixava nos algarismos correspondentes ao peso. O indivíduo tomava, então, de um níquel de duzentos réis, introduzia-o no orifício a isso destinado, e logo um estalido anunciava a impressão de um pequeno cartão que saía adiante, por um outro orifício, e que o freguês metia no bolso, como documento do peso registado no disco.

O tempo que a barca levava para chegar e desembarcar os passageiros, gastava-o o Cantídio, ali, de pé, olhando o aparelho automático. Até que, um dia, não a olhou mais, preocupado com a balança do próprio coração, desequilibrada subitamente por uma das leviandades da sua Antonina.

E o caso não era para menos. Modesta, boa, carinhosa, Dona Antonina vivera sempre muito bem com o marido, colhendo as suas couves, dando milho aos seus pintos, na sua chácara de Porto de Caxias, até que, pelo Carnaval, veio passar uns dias com a mãe, no Rio; e tal paixão tomou pela cidade, pela Avenida, pelos cinemas, que preferiu separar-se judicialmente do esposo no dia em que este lhe falou, amoroso, no regresso à fazenda.

— Não voltas mesmo? — Indagou o Raimundo, espantado.

— Não volto, já te disse.

— E se eu exigir que voltes?

— Eu me separo de ti, mas não vou.

Resolvida a separação, os papéis relativos ao processo foram encalhar em uma dificuldade; quem ficaria com a Corina, rebento único do casal?

— A menina é minha! — Declarou Dona Antonina.

— Não, senhora; é minha! — Afirmou o Raimundo.

E era para vencer essa dificuldade que estavam os dois, ali, na presença do Dr. Felicíssimo Viana Lima, juiz de quem dependia o caso.

— Senhor doutor, — dizia Dona Antonina, nervosa, agitando a sua meia dúzia de pulseiras de vidro: — a criança pertence-me. Fui eu quem a trouxe nas minhas entranhas, que a sustentei com o meu leite, que a carreguei nos meus braços. Fui eu que a dei ao mundo, no meio dos maiores padecimentos! Em suma, senhor doutor, eu sou a mãe!

Batendo com o lápis na mesa, o íntegro magistrado ouvia, mecanicamente atento, essas alegações, com a certeza, quase, de que essa era a verdade, e disposto a entregar a menina ao domínio materno, quando o Raimundo Cantídio o interrompeu:

— Senhor doutor, diga-me uma cousa: quando o senhor sobe em uma balança automática, o ponteiro começa a mexer-se no disco... Não é?

— Perfeitamente.

— O senhor pega em dois tostões e mete em um buraco. Com o dinheiro que o senhor bota, vem lá de dentro da máquina um cartãozinho numerado... Não é?

— Exatamente.

— Agora, o senhor doutor me diga: quem é o dono do cartãozinho que sai: a balança, de onde ele saiu, ou é de quem botou os dois tostões no buraco.

E ficou quieto, um sorrisinho ao canto da boca, esperando a resposta.

CVI

ESTRATÉGIA CHINESA

As forças do general Pei-Fu-Wang, do Exército de Tchang-Tso-Lin, haviam deixado Pan-Wu-Yang, quando, após oito horas de marcha, quase ao meio-dia, a guarda avançada retrocedeu, célere, para anunciar vestígios do inimigo. Efetivamente, pouco acima da estrada que vai ter a Kiangvan, encontrava-se, já, a vanguarda do general Kiang-Pao-Te, cujas tropas, de vinte e cinco mil homens de infantaria e nove mil de cavalaria, haviam acampado a quatro quilômetros de Kiao-Tsin, para proteger a cidade contra o ataque das forças da Mand-chúria.

As ordens recebidas em Mucden, onde Tchang-Tso-Lin ainda se achava reunindo as últimas forças para o avanço sobre Pequim, eram que, na sua ausência, nada se fizesse sem a audiência do coronel Yamamoto, do exército japonês, adido ao seu estado-maior. Estrategista consumado, veterano do ataque a Porto-Artur e respeitado em todo o Oriente, o coronel Yamamoto constituía a grande esperança do chefe mandchú, como organizador das batalhas, que se iam travar pelo caminho. E este, informado da proximidade do inimigo, pôs-se, logo, a delinear o seu plano de ataque, o qual devia ser posto em prática logo ao amanhecer do dia seguinte.

As tropas de Pei-Eu-Wang eram inferiores em efetivo àquelas que defendiam Kiao-Tsin. Ao todo, não passavam de vinte _ e dois mil homens de infantaria e oito mil de cavalaria. Isso, porém, não amedrontava o bravo estrategista japonês, cuja proficiência ia fazer com que esses homens se multiplicassem durante a ação, infligindo uma derrota ao inimigo, fazendo-o recuar sobre Tchao-Ping. Às nove horas da noite os planos estavam prontos, e Yamamoto, reunindo na tenda do Grande Estado-Maior todos os chefes de corpos, explicou-lhes, com instruções verbais, o projeto delineado. O ataque devia ser às sete horas da manhã, com três regimentos de infantaria, precedidos por outros tantos de cavalaria. Ao amanhecer, porém, todas as tropas de ataque deviam estar nas posições, para receber ordens. E insistiu, pausado:

— Ao sair do sol, a cavalaria deve estar à direita da estrada, cobrindo a infantaria.

A noite correu serena, como todas as noites que precedem as manhãs de batalha. Movendo as asas invisíveis, os anjos da morte escolhiam, no acampamento adormecido, as suas vítimas do dia seguinte. E era já madrugada alta quando o coronel Yamamoto, insone com a sua responsabilidade, fechou os olhos, e dormiu.

Passava de seis horas quando despertou, e deu um pulo. Fora da tenda, o acampamento formigava de gente. Apertou o cinto, armou-se, pôs o chapéu de campanha, e, ao afastar o pano que servia de porta, deu de frente com o general Pei-Eu-Wang, que o aguardava.

— Pronto, coronel; as suas ordens foram cumpridas!

Yamamoto tomou o binóculo, assestou-o no rumo das formações de tropa, e sorriu. À margem direita da estrada, estendidos em linha, estavam seis mil homens a pé, e seis mil a cavalo. E cada um destes trazia à mão, fazendo sombra para um daqueles, um guarda-sol aberto.

Era a cavalaria cobrindo a infantaria!

CVII

O PADRE INDISCRETO

De pé apertados contra a parede, junto a porta da sacristia, o eminente médico, doutor Galdino fortuna, e sua esposa, Dona Matilde, esperavam o momento de se aproximarem do confessionário, onde o velho padre Matias escutava, com o ouvido no crivo, os pecados mais terríveis e as faltas mais inocentes. Calvo e magro, as guias do bigode pendendo sobre a boca, à semelhança de dois ratos que lhe estivessem entrando pelo nariz, o ilustre professor vivia mais para a sua ciência do que, propriamente, para a sua mulher. Naquele dia, porém, completavam os dois o seu décimo-quinto aniversário de casamento, e daí se encontrarem naquele lugar, para festejar o acontecimento com o piedoso sacramento da confissão.

A igreja estava, nesse domingo, repleta. Junto ao confessionário, mal saía uma devota, chegava outra. De repente, como o número de candidatos rareasse, o conhecido cirurgião tocou no braço da mulher.

— Quando aquela senhora sair, vai tu, — disse.

— Não, eu, não; vai tu, primeiro, — contestou madame, a voz baixa.

— Não; vai, vai... — fez o homem de ciência, empurrando-a suavemente, para aproveitar a ocasião, no momento em que se erguia a gorda matrona que se estava confessando.

Dona Matilde era um tipo de elegância moderna. Estatura mediana, clara, de olhos escuros, trazia o cabelo cortado como o dos homens, e ondeado ligeiramente. A boca era grande, e forte; e ornamentando-a, uma dentadura sadia, esplêndida, vigorosa, que a fazia sorrir quatorze vezes por minuto. Trajava um desses vestidos da moda, leves, primaveris, espalhafatosos, de linho verde, com um gracioso casaco de repes.

Em dois segundos estava a jovem senhora ajoelhada diante do confessionário, esfregando o polegar da mão direita pela testa, pelo queixo e pelo decote, num complicado simulacro de sinal da Cruz. E a confissão começou.

Ao fim de dez minutos, em que eram sussurradas as cousas mais graves e íntimas, que Dona Matilde deixara precisamente para descarregar naquele dia, padre Matias, vencido pela fadiga, adormeceu. Não lhe ouvindo mais a voz persuasiva e conselheira, a moça perguntou:

— Posso ir, meu padre?

E como não obtivesse qualquer resposta, tomou esse silêncio por um assentimento, ergueu-se, e, chegando junto do marido, disse-lhe, num suspiro de alívio:

— Agora, é a tua vez... Vai...

Contrito, a cabeça baixa, o Dr. Fortuna ajoelhou-se no confessionário. Como ouvisse roncar, chamou, leve:

— Senhor padre? ... Senhor padre? ...

— Hein? ... hein? ... — Fez o vigário, despertando, de repente, esfregando os olhos.

E sem dar pela mudança da mulher pelo marido:

— Sim, filha: vamos, continue... Então, como me ia dizendo, é amante do ajudante do seu marido... Não é assim?

CVIII

VIDA DE ARMAS

(CORRESPONDÊNCIA DE UM SORTEADO)

I

“Meu querido pai.

Cheguei ao Rio de Janeiro no dia 2 do corrente, com as outras praças do nosso batalhão, o 15. ° de Caçadores. Tenho me dado muito bem na vida de armas. Diga à mamãe que não tenha cuidado comigo, e que não esqueça de receber os 18$000 que o Antonico me deve. A lata de doces que a Mundica mandou chegou podre. O Torquato, filho de Dona Totonha, apanhou uma indigestão de melancia e está no hospital. Peço-lhe mandar-me 150$000 para uma farda nova, pois o serviço na infantaria rasga muito a roupa da gente.

Dê lembranças a todos os nossos, beijos à mamãe, e abençoe o seu filho.

Frederico”.

II

“Frederico, meu filho.

Recebemos a tua cartinha, e ficamos satisfeitos com o que nos dizes sobre o serviço militar. Tua mãe tem chorado muito com a tua ausência, mas já está mais consolada. A Mundiça vai fazer outra lata de doces para mandar-te.

Remeto-te os 150$000 que me pedes para a farda nova. Lembro-te que, com esse dinheiro, já gastaste, desde a tua partida, 1:250$000. E de estranhar que tenhas de comprar tudo — botina, farda, quepe, sabre, carabina, e até munição, quando os outros sorteados daqui recebem tudo do governo. Tu és o único, até boje, fardado e armado à custa do pai.

Recebe os beijos da tua mãe e um abraço saudoso do teu pai e amigo.

Eleutério”.

III

“Meu querido pai.

Não foi sem alegria, e ao mesmo tempo sem tristeza, que recebi a sua cartinha, em que me dá notícias dos nossos e me faz umas observações injustas sobre o dinheiro que tenho recebido.

Eu sei que há rapazes, entre os quais os que vieram daí, que recebem do governo a botina, a farda, o correame, o armamento e a munição. Acredite, porém, que não há um único filho de boa família que faça isso, pesando sobre o Tesouro do país. Todo sorteado que se preza, veste-se e arma-se à custa do pai.

A propósito, comunico-lhe que o coronel comandante do nosso regimento resolveu passar-me para a cavalaria. É uma honra que poucos têm conseguido. Como, porém, é preciso adquirir um uniforme novo e um cavalo, peço-lhe que me mande mais 1:000$000.

Espero que papai não me falte com essa quantia, exigida pelos progressos militares do seu filho, e que dê muitas lembranças à mamãe e abençoe o seu, de todo coração,

Frederico

IV

“Meu filho.

Aí vai o conto de réis, para compra do cavalo e do uniforme da nova arma em que vais servir.

Agora, meu filho, atende a um pedido, que é meu e de tua mãe: não aceites, absolutamente, a tua transferência para a Marinha. Tu sabes que nós somos pobres, e que não te podíamos comprar um couraçado.

Teu pai

Eleutério

CIX

A PATERNIDADE

Poucas mulheres havia no Rio de Janeiro tão impressionantes. Alta, forte, majestosa, dava a ideia de uma Palas-Atena esculpida por um Fídias meridional. A boca, provida de dentes miúdos e brancos, era como um cofre minúsculo, forrado de veludo carmesim, que guardasse com orgulho as pérolas mais preciosas do mundo. Os olhos, acentuadamente míopes, e a que o lorgnon emprestava maior graça, eram negros e grandes; e o cabelo tão negro como os olhos. Vestia-se com elegância e, mesmo, com luxo. Cada um dos seus beijos custava uma joia; e, por isso, cada uma das suas joias valia, precisamente, uma fortuna.

Foi no atordoamento dessa vida elegante, em que as horas, no relógio do Tempo, eram assinaladas pelo ruído das moedas de ouro no mármore róseo da mesa de cabeceira, que a formosa Maria Cláudia foi surpreendida por aquela acentuada indisposição de corpo e de espírito. Dores vagas, bocejos, alquebramento, irritações, e, ao fim de três meses, a confirmação terrível do médico:

— Vá aprontando as camisinhas, minha senhora! Dou-lhe os meus parabéns: vem gente aí!

— Que me diz? — Exclamou a rapariga, recuando, o lorgnon assestado no especialista.

E após um momento de meditação:

— Bom... Uma vez que já vem, venha!

Ao fim de mais seis meses, vinha, efetivamente, ao mundo, o Flávio, com os seus quatro quilos de gordura e umas perninhas tão grossas, tão cheias de dobras de gordura, que pareciam mais dois montes de roscas da Penha. Lavado e perfumado o pequenito, levaram-no à mãe, para beijá-lo.

— Deixa-me ver o meu filho! — Pediu Maria Cláudia, muito branca, tão branca, mesmo, como o linho do seu camisão de rendas.

E pondo o lorgnon, com orgulho:

— Meu Deus, como ele é bonito!...

Um mês depois, foi o batizado. A igreja estava cheia, e o pequenito vinha tão coberto de fitas que parecia uma prenda de leilão sertanejo. Antes, porém, do sacramento, foram todos à secretaria, para as devidas notas no registo.

— Nome da criança? — Indagou, indiferente, o coadjutor.

— Flávio Augusto! — Respondeu, com ênfase, Maria Cláudia.

— Nome dos pais?

— Maria Cláudia Wilon, — informou a rapariga.

— Esse é o nome da senhora, — observou o sacerdote, suspendendo a pena; — mas, o nome do pai? Quem é o pai?

Ante essa insistência, Maria Cláudia sorriu.

— Ora, senhor padre, que pergunta!... — Fez, muito vermelha.

E, dominando-se, a cabeça de um lado, um sorriso brejeiro à flor da boca, mostrando o custoso lorgnon de madrepérola:

— O senhor padre não está vendo que eu sou míope?

CX

A XÍCARA DE CHÁ

Não obstante a seleção nos convites, ou, talvez, por isso mesmo, as reuniões mundanas do casal Bastos Gomes eram encantadoramente intoleráveis. O piano, com Mlle. Irene Torres, acompanhando as canções napolitanas do professor Boratelli; o violino, com o maestro Pitanga; os recitativos de Mlle. Tourinho e as histórias sem espírito do desembargador Santos Ribeiro, eram legítimas doses de ópio a que não resistia a insônia mais intransigente. Aludindo às festas elegantes que ali se realizavam, o poeta Bernardes Correia costumava dizer:

— Não é um salão: é uma sombra de mancenilha!

Isso não impediu, entretanto, que, naquela noite, toda aquela gente se escandalizasse ao ouvir o ronco soturno, monótono, compassado, de Mme. Luiz Batalha, no momento, exatamente, em que o professor Pitanga arrancava das cordas do violino o último protesto do instrumento contra semelhante profanação. E o escândalo ainda foi maior, quando, calado o violino, ficou a dominar o salão, alta e medida, unicamente a voz gutural, de pulmão adormecido, da ilustre e querida senhora.

O primeiro movimento dos circunstantes, foi, naturalmente, no sentido de despertá-la, sacudindo-a. Tratava-se, porém, de uma pessoa da maior cerimônia, de modo que, o melhor, era que se a fizesse acordar lentamente, sem qualquer constrangimento. Com essa ideia, cada um começou a falar mais alto, sem, contudo, nada conseguir.

Foi por essa altura que, rapariga inteligente, Mlle. Dondon Soares teve uma ideia:

— Esperem aí, — disse: — eu vou buscar a bandeja do chá; encho uma xícara, e, sob o pretexto de oferecer-lhe, toco-lhe no braço. E ela acorda, com toda a certeza!

Momentos depois, chegava a moça junto à dorminhoca, trazendo em uma das mãos a xícara, e na outra o bule de prata. E, para começar a fazer barulho, ergueu o bule a uns três palmos acima da xícara, derramando o líquido:

— Cho-ó-ó-o-o-ró-ró-ró...

Ao ouvir esse ruído, madame remexeu-se na cadeira. E sem abrir os olhos:

— Luiz... Luiz...

E dando de roncar outra vez:

— Tampa o urinol depois... Sim?

FIM