Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Gansos do capitólio, de Humberto de Campos


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

O júri

Os sete anzóis do diabo

A tanga

O que ela não soube guardar

A vingança

A água do mar

O gramático

O chá

A zebra

Sertanejos

O retrato do kaiser

A semente da morte

A bênção da madrinha

As duas torrentes

O sabugo

O ópio

O dossel

Escrúpulo

A ponte de nikko

As pílulas

O fio d’água

Microscópio

O castigo

Mentiroso! ...

O órfão

Modernismo

As borboletas

Filantropia

O conscrito

A química de D. Juan

Fatalismo

No monte branco

O peixeiro

A indústria do cabelo

Fleugma

As abelhas

O confessionário

Pé... dagogia

Ilusão de ótica

O ramo de café

O fantasma

As três lágrimas

Astrologia

A recompensa

Deucalião e Pirra

O senador

A idade e a devoção

Faceirice

A “aliança”

O atoleiro

Os novos deputados

O marido bilontra

O noivo

Maternidade

Represália

O champagne

Os sultões

As pérolas

O tigre e a jumenta

Datiloscopia

Dúvidas

A culpa do vento norte

As formigas

O sócio

Comunismo

A barrette

Maridos de aluguel

Horário de uma pulga

O estrume

Casamento

A linha

Dignidade

O chapeuzinho vermelho

A perna

Serenidade

O carro atolado

O cego

A baixa do câmbio

Fruto proibido

O guia

In extremis

Eugenia

Amáraco

Poligamia

Astronomia

Fidelidade conjugal

O problema operário

O match

Dejanira

Democracia

Padre Samuel

O erro do arquiteto

O solfejo

Higiene

Turfe

Noivos modernos

Direitos adquiridos

Ibraím

Um engano

A ave e o ninho

A juriti

Pudicícia

O capetinha azul

O viajante

O brâmane e a cabra

A ventosa

O visitante

O copeiro

A carne

Nacionalismo

Elegância repugnante

O sábio

A novena

Independência

O percevejo

O “pardal”

I

O JÚRI

Toda a vez que os juízes de fato absolvem um criminoso repugnante, é geral o movimento de indignação, não só na imprensa, como na população da cidade, que arremetem, logo, contra os jurados, e, às vezes, contra a própria instituição do júri. Não sabem os jornais, nem o povo, que os juízes populares desses tribunais também são homens, e que, como homens, devem sofrer as consequências do martírio a que são submetidos, ouvindo, durante vinte, trinta, e, até quarenta e oito horas, os libelos do promotor e dos advogados e assistindo à tempestade de lixo que uns fazem desabar sobre a cara dos outros. Após um suplício de tantas horas, de duas noites de vigília forçada, que mortal será capaz de deter-se em meditação, refletindo sobre o destino do réu? O pensamento do jurado consiste, todo, em ver-se livre daquela estopada, e em chegar em casa, tomar o seu banho, e compensar, pelo sono, as horas de tortura, de insônia, de fadiga.

Sorteado para servir no júri que absolveu, há dias, o Tenente Gotardo do Espírito Santo, assassino da sua esposa, D. Antonina, que ele encontrara no cinema em companhia do Capitão Arnolfo Pedreira, o Dr. Agostinho Melo chegara à casa às nove horas da manhã, cansado, fatigado, derreado, após dois dias de ausência do lar. Casado de novo, o seu regresso foi, para a sua encantadora mulherzinha, um sucesso, uma festa, um contentamento sem nome. Beijos, abraços, carícias, foram as flores dessa homenagem.

— Coitadinho do meu maridinho! — Lamentou Dona Enedina, passando-lhe as mãos pequenas pelo rosto pálido, em que a barba aflorava áspera, dura, arrepiada, como crosta de espinheiro.

E acentuava num muxoxo, franzindo a boquinha jovem, num beijo tentador:

— Dois dias sem a sua mulherzinha, coitadinho! Duas noites acordado, longe dela! ...

Prostrado, morto de fadiga, tonto de sono, o Dr. Agostinho só pensava em uma coisa: dormir. E reclamava:

— Manda preparar a cama... Não deixes que ninguém faça barulho... Não me chamem, enquanto eu não acordar...

E dormiu. Ao meio-dia, roncava, como um porco. Às duas da tarde, estava ainda imóvel, do mesmo lado. Às quatro horas, a situação não mudara. De vez em quando, pé ante pé, Dona Enedina chegava à porta da alcova, e espiava. E como o visse dormir, sem probabilidade de um fim para aquele sono, fazia um gesto de despeito, aborrecida.

Às cinco horas, enfim, dada a última espiadela ao marido, perdeu a pobre senhora a esperança, e desceu, sozinha, ao quintal da chácara, onde dezenas de galinhas mariscavam, ou corriam umas em perseguição das outras, aproveitando as últimas claridades do entardecer. Mordendo, nervosa, a pontinha do dedo, quedava-se a moça a olhar as aves, quando notou que as galinhas, quatro ou cinco, se detinham em torno do galo, o qual, indiferente a todas elas, se mantinha deitado, espojando-se na poeira. Debalde as companheiras o beliscavam, o convidavam, o acariciavam, procurando fazê-lo erguer-se; o bicho mantinha-se inalterável, preferindo a quietude, o prazer de sacudir as penas, àquelas tentações que o cercavam.

Inquieta, Dona Enedina olhava o galináceo, quando, de repente, se levantou, num gesto brusco, do banco em que se sentara.

— Ah! Até tu; hein? — Exclamou.

E, voltando-se para o galo, com ironia:

— Tu também estiveste no Júri?

E entrou em casa, batendo o pé.

II

OS SETE ANZÓIS DO DIABO

Certa vez atravessava frei Bertoldo de Ratisbona uma fria floresta da Alsácia, quando, tomado de fadiga, se assentou na raiz úmida de uma Carvalheira, descansou o bordão e a púcara de madeira em que bebia água pelos caminhos, e encostou a cabeça nas mãos, para adormecer.

O país que o humilde franciscano então percorria semeando a santa palavra do Mestre, era uma das regiões mais perigosas daqueles tempos. Malfeitores fugidos dos povoados erravam, solitários, pelos bosques, surpreendendo os pastores retardatários ou os viandantes incautos. Acossados pelo frio e pela fome, naquele inverno que afugentara todas as presas, bandos de lobos uivavam soturnamente na solidão, tornando-a mais triste, mais horrível, mais pavorosa. A aldeia mais próxima ainda estava, porém, muito longe, e, colhido pela noite e pelo cansaço, o piedoso viajante fechou os olhos, e dormiu.

Dormiu, e sonhou. No seu sonho não apareceram, no entanto, nem os salteadores, nem os lobos. O espetáculo presenciado pela sua imaginação, que a fome tornara delirante, fora, talvez, um pesadelo. Mas ele vira tudo, assistira tudo, mesmo com os olhos fechados. A princípio, era apenas um vulto escuro, alto, horrendo, que se aproximava, embuçado em uma grande capa, mais negra que a própria noite. De repente, ele o reconheceu: era o Diabo, em pessoa! Silencioso, medindo os passos, como um grande corvo, o monstro aproximou-se de uma Carvalheira, e subiu. Uma vez em cima, tirou da cintura um novelo de fios, em cujas sete pontas havia sete anzóis.

— Que irá fazer este pescador maldito? ... — Gemeu, persignando-se, o pobre franciscano. — Irá pescar os lobos da selva, as serpentes da moita, ou os malfeitores que por aqui transitam, procurando os viajores transviados?

Soturno, movendo-se sem ruído, como se fosse feito de sombra, Satanás havia-se acocorado no galho da grande árvore, e estendera para o chão, escuro e retorcido, o primeiro anzol. E não se havia passado um minuto quando se aproximou uma figura humana, que vinha descuidada pela floresta.

— Meu irmão, foge! — Quis gritar, apavorado, frei Bertoldo, prevendo o destino do desgraçado.

A voz morreu-lhe, porém, na garganta, e o homem, que vinha devorando uma perna de javali, foi, de repente, colhido na boca pelo anzol do pescador sinistro, que o suspendeu até o galho da Carvalheira, onde o amaldiçoado o meteu no seu saco.

Trêmulo, aflito, o frade recapitulava, horrorizado, o que acabava de ver, quando se aproximou outra figura de viajante. E outra pescaria foi feita, e mais outra, e mais outra, num total de sete criaturas, correspondentes aos sete anzóis, sendo a segunda, um invejoso, apanhado pelos olhos; a terceira, um preguiçoso, colhido pelas mãos; a quarta, um soberbo, apanhado pela cabeça; a quinta, um colérico, levantado pelo coração; a sexta um avaro, fisgado pelos bolsos; e a sétima, um luxurioso, atingido na carne, que se pôs, de pronto, a sangrar imundície.

Num esforço desesperado, frei Bertoldo tentou, de novo, salvar aqueles infelizes.

— Santo nome de Deus! — Gritou com todas as forças.

E acordou. Em torno dele havia, apenas, rastos de lobos, que lhe haviam farejado os pés, babando-lhe as alpercatas rasteiras. Uma claridade doce acariciava, em cima, a copa das árvores altas. Amanhecia.

Aterrorizado, ainda, com o que vira no seu delírio, o franciscano pôs-se de joelhos, e orou longamente. Em seguida, ergueu-se, tomou a púcara e o cajado, persignou-se de novo, e partiu.

III

A TANGA

Cabelos ondulados e escuros, boca vermelha e pequenina, colo farto, de rôla selvagem, estatura mediana, M.lle. Carmenzita Coutinho era, na opinião geral, o tipo de brasileira encantadora. A sua pele, de um moreno claro e macio, não tinha uma ruga, um sinal, uma espinha, até onde se podia ver. Quando ela ria, mostrando a fieira dos dentes miúdos e iguais, abriam-se-lhe nas faces duas covinhas provocadoras, insolentes, irresistíveis, que eram, no dizer dos poetas que a conheciam, duas flores de pecado desafiando, imprudentes, a abelha de ouro do beijo.

Mais do que a boca, o colo, a pele e as covinhas da face de M.lle. Carmenzita valiam, porém, os seus olhos negros, que iluminavam, com intermitências, todo esse tesouro de formosura. Não eram uns olhos vivos, ardentes, atordoantes de luz, como o são, em geral, os das mulheres morenas; eram, pelo contrário, uns olhos fatigados, lânguidos, moribundos, como só os vi, uma vez, em um carneiro de matadouro, no momento em que lhe retiravam a faca da garganta. Quem os via, tinha ímpetos de correr, de atirar-se, de precipitar-se em socorro da moça, pensando que ela ia tombar sem sentidos.

— São uns olhos de cabra morta! — Diziam as amigas, despeitadas.

— Aquilo não pode ser natural, — afirmavam as inimigas. — Aquilo é com o intuito de tentar os homens, para que pensem que ela está desfalecendo de amor!

De um modo ou de outro, o certo é que M.lle. Carmenzita era um mimo de carne e osso, e que os seus olhos constituíam a tentação, a loucura, a vertigem de quantos a viam. O indivíduo sobre o qual, brandos, leves, vagarosos, eles pousassem como duas aves de sombra, sentia logo, sem que o pudessem impedir, as mais esquisitas sensações do pecado. Fitá-los, naquele abandono, aquela meia luz, naquela síncope das pálpebras semicerradas, era ter na imaginação uma alcova, um divã, dois pares de sapatos sobre o tapete, e, povoando o ar de fantasmas pecadores, um incensório de bronze queimando, docemente, suavemente, languidamente, esquisitos perfumes orientais...

Certo dia, porém, M.lle. Carmenzita morreu. Honesta e boa, o seu coração não comportava a maldade humana, que a perseguia por causa, apenas, daqueles olhos sugestivos, que ela não podia arrancar do rosto. Morreu e, como era pura, encaminhou-se, medrosa, para a dourada porta do céu.

A chegada de uma virgem no Paraíso, é cercada, sempre, de cerimônias excepcionais. Tratando-se de uma festa que se torna cada vez mais rara, aproveitam-na os santos, toda a vez que há oportunidade, para uma série de atos solenes, que põem em movimento a maioria da corte celeste. E foi isso que aconteceu quando os anjos de sentinela nas nuvens anunciaram a aproximação de M.lle. Carmenzita.

Detida à distância, nomeou São Pedro, para irem recebê-la, constituindo, como de praxe, uma comissão de sindicância, três santas da sua confiança. E chamou-as, uma por uma:

— Santa Rosa de Lima!

— Pronto! — Respondeu a indicada.

— Santa Cecília!

— Pronto!

— Santa Áurea!

— Pronto!

Reunidas as santas, mandou o chaveiro celeste que elas fossem ao encontro da recém-chegada. Como, porém, os que morrem chegam ali, sempre, despojados de todos os artifícios mundanos, inclusive a roupa, ordenou-lhes o santo, entregando-lhes uma tanga:

— Tomem; levem. É para velar o que houver de indecente na nova bem-aventurada.

Momentos depois, M.lle. Carmenzita entrava no Paraíso, com a tanga amarrada nos olhos!

IV

O QUE ELA NÃO SOUBE GUARDAR

Ao contrário do que asseveram as Escrituras, a expulsão dos dois primeiros habitantes do Paraíso não foi violenta, nem subitânea. O Senhor ordenou, é certo, que o anjo Gabriel pusesse fora do Éden os dois cúmplices da Serpente, de maneira que eles lá não passassem mais, sequer, uma noite. O anjo foi, porém, condescendente, nobre, generoso, e de modo tal que não só permitiu que os amaldiçoados lá dormissem mais uma vez, como, também, que escolhessem, antes de partir, alguns bens, e alguns males, que lhes fosse de alguma utilidade no desterro.

O depósito em que os condenados deviam escolher a lembrança daqueles dias de felicidade perfeita, possuía todas as virtudes e todos os pecados da terra. Foi lá, mesmo, segundo se assegura, que Pandora encheu a sua caixa, recolhida, depois, pelos gregos. E era diante dessa fartura que Adão e Eva se detinham, irresolutos.

— Leve as Saudades! — Aconselhava o primeiro homem, ensaiando já, os seus pruridos de protetor.

— Não; eu prefiro as Ilusões! — Opinara a companheira.

E, como tivessem ao lado, fornecido pelo anjo, um grande alforje em que iam depositando os bens e os males daquela derradeira seara, puseram-se a metê-los, aos punhados, aí, como recordação daquelas horas de ventura que, com certeza, não voltariam mais.

No dia seguinte, passadas as portas sagradas que não seriam, nunca mais, transpostas, sentaram-se os dois infelizes no areal, e puseram-se a falar das relíquias trazidas.

— Eu, para mim, trouxe, apenas, a Dúvida, o Ódio, a Ambição e os Cuidados.

— Informava o réprobo.

E abrindo o seu alforje onde fervilhava, inquieta, uma bicharia repugnante, perguntava à companheira:

— E tu?

— Eu? Eu trouxe os Ciúmes, os Sonhos, os...

E sem concluir:

— Ora! Escapuliram!

— Que foi que deixaste escapar, filha?

— Indagou o primeiro homem, preocupado.

E a primeira mulher, quase chorando:

— Os segredos...

V

A VINGANÇA

Na pequena mesa para quatro pessoas, na sala de jantar da Frite Multa. O conhecido tesoureiro da filial, no Brasil, do Banco Hamburguês, joga as cartas, displicentemente, além do dono da casa, que é viúvo, os seus compatriotas Wilhelm Klinger, da casa Kurzibold; Hans Koldenbach, engenheiro de minas, e a esposa deste, frau Carolina, cuja beleza cortada em queijo de Nuremberg se tornara, nos últimos tempos, um dos orgulhos estéticos da honrada colônia alemã. Libertos das condições impostas ao Reich, pelo tratado de Versalhes, divertem-se os quatro, à sua maneira, tendo cada um diante de si um chopp duplo, servido pelo criado de Fritz, quando, aproveitando uma polida discussão entre os parceiros, frau Carolina, que não aceitara cartas, se levanta sorrateiramente da mesa, desaparecendo sob um reposteiro, para o interior da casa.

Educados e respeitosos, os cavalheiros mostraram-se indiferentes ao ato. O chopp era bom, e ninguém podia exigir que uma senhora se mantivesse a pé firme, depois de três copos reforçados. Dois minutos depois, porém, uma outra cadeira se arrastava, e Fritz desaparecia sob o mesmo reposteiro, deixando os dois amigos a resolverem um lance complicado, que decidiria, entre eles, a vitória da partida. Concluída esta, percebendo que estavam sós, Wilhelm Klinger olhou significativamente o engenheiro, despertando-lhe, com o exame da situação, o sentimento da honra, posta, talvez, em perigo, naquele momento. Koldenbach não pareceu, entretanto, perceber a eloquência dos olhos do amigo, pregados insistentemente nas duas cadeiras vazias. Baralhando as cartas estava ele, e baralhando-as ficou. E estava quase a distribuí-las, sem contar com os parceiros ausentes, cujos chopps novamente servidos pelo criado ferviam, louros, à luz das lâmpadas fortes, quando o gerente da casa Kurzibold, tomando coragem, resolveu esclarecer o seu pensamento.

— Wilhelm — disse, tomando-lhe da mão, que apertava o baralho; — você viu o que acaba de acontecer?

— Não! — Estranhou o engenheiro. — Que foi?

— Sua senhora estava aqui, — principiou o outro.

— Sim, estava...

— De repente, foi lá para dentro.

— Foi, sim.

— Pouco depois Fritz também se levantava.

— É verdade.

— E desapareceu com ela, por ali!

Rosto sereno, alma tranquila, o engenheiro não se mostrou espantado com o incidente. Procurou, porém, esclarecer mais o episódio:

— Fritz acompanhou minha mulher? — Perguntou.

— Acompanhou.

— Está lá dentro com ela?

— Está, — informa o amigo.

Koldenbach sorri, e, perverso, pensa, logo, com uma frieza germânica, numa vingança sinistra:

— Pois, então, eu... tomo o chopp dele!

E virou o copo.

VI

A ÁGUA DO MAR

A candidatura do Sr. Dr. Artur Bernardes à presidência da República pôs em extraordinária evidência, de novo, o Estado de Minas Gerais, e, em particular, os seus dignos habitantes. Pessoas versadas em história asseguram, mesmo, que, tirando o período da Inconfidência, os gloriosos dias em que se encontravam a espada de Tiradentes e a pena de Tomás Antônio Gonzaga, nunca os mineiros se sentiram tão alto no conceito nacional.

Postos assim em tamanho destaque na República, é natural que alguns deles, que viveram sempre encurralados nas suas montanhas admiráveis, se deem ao trabalho de descer até o Rio, para conhecerem este encantador pedaço dos seus futuros domínios. E desse número foi, nos primeiros dias de maio último, o coronel Epifânio Pereira Gonçalves respeitabilíssimo fazendeiro no município de Uberaba, a doze horas, mais ou menos, da próspera capital do Triângulo.

Informado da evidência em que estavam aqui os mineiros, e, principalmente, o seu ilustre afilhado, Dr. Afrânio de Melo Franco, abandonou o coronel a sua rica propriedade de Santa Celestina, atirando-se para o Rio, com o pensamento de demorar-se alguns dias. Chegado aqui, visitou o que era visitável, viu o que se podia ver, gozou o que havia para gozar, e, trinta dias depois, desembarcava, de novo, em Uberaba, onde os amigos o receberam com as melhores demonstrações de amizade.

Santa Celestina ficava, porém, distante da cidade, e foi com a intimidade de sempre que o capitão Aires, cuja casa o coronel aceitara para pernoitar, censurou a sua conduta: — Mas o senhor, compadre, fazer uma viagem ao Rio de Janeiro, e não, levar a comadre ?!...

— Para ver o que, compadre?

— Ora! Quando nada, para ver o mar ... Acusado de frente, o velho fazendeiro desculpou-se:

— O mar? Para isso não era preciso, compadre. Mesmo porque, agora, de volta, eu levo para ela a amostra do “monstro”. Quer ver?

E, correndo ao quarto em que ia dormir, voltou de lá com uma garrafa de água salgada, que trazia no baú.

— Olhe! — Mostrou ao outro.

— Que é isso?

— Água do mar! — Informou o viajante. — Por aqui, quando nada, ela pode avaliar o que é o “bicho”! ...

O outro tomou da garrafa, sacudiu-a, e, vendo-a quase pelo meio, estranhou:

— Mas, compadre, como é isso?

— Isso o quê?

— A garrafa está quase pelo meio!

— É verdade, compadre! — Confirmou o coronel, intrigado, franzindo o cenho. — Por que será? A garrafa, ontem, estava cheia...

De repente, porém, bate na testa, sorri da sua própria ingenuidade, e esclarece:

— Ah! Já sei!

O outro encarou-o.

— A água do mar é assim mesmo: aumenta e diminui.

E convicto:

— É por causa da maré...

VII

O GRAMÁTICO

Alto, magro, com os bigodes grisalhos a desabar, como ervas selvagens pela face de um abismo, sobre os cantos da funda boca munida de maus dentes, o professor Arduino Gonçalves era um desses homens absorvidos completamente pela gramática. Almoçando gramática, jantando gramática, ceando gramática, o mundo não passava, aos seus olhos, de um enorme compêndio gramatical, absurdo que ele justificava repetindo a famosa frase do Evangelho de João:

— No princípio era o VERBO!

Encapado pela gramática, e às voltas, de manhã à noite, com os pronomes, com os adjetivos, com as raízes, com o complicado arsenal que transforma em um mistério a simplicíssima arte de escrever, o ilustre educador não consagrava uma hora sequer às coisas do seu lar. Moça e linda, a esposa pedia-lhe, às vezes, sacudindo-lhe a caspa do paletó esverdeado pelo tempo:

— Arduino, põe essa gramatiquice de lado. Presta atenção aos teus filhos, à tua casa, à tua mulher! Isso não te põe para diante!

Curvado sobre a grande mesa carregada de livros, o cabelo sem trato a cair, como falripas de aniagem, sobre as orelhas e a cobrir o colarinho da camisa, o notável professor retirava dos ombros a mão cariciosa da mulher, e pedia-lhe, indicando a estante:

— Dá-me dali o Adolfo Coelho.

Ou:

— Apanha, aí, nessa prateleira, o Gonçalves Viana.

Desprezada por esse modo, Dona Ninita não suportou mais o seu destino: deixou o marido com as suas gramáticas, com os seus dicionários, com os seus volumes ponteados de traça, e começou a gozar a vida passeando, dançando e, sobretudo, palestrando com o seu primo Gaudêncio de Miranda, rapaz que não conhecia o padre Antônio. Vieira, o João de Barros, o frei Luiz de Souza, o Camões, o padre Manuel Bernardes, mas que sabia, como ninguém, fazer sorrir as mulheres.

— Ele não prefere, a mim, aquela porção de alfarrábios que o rodeiam? Então, que se fique com eles!

E passou a adorar o Gaudêncio, que a encantava com a sua palestra, com o seu bom-humor, com as suas gaiatices, nas quais não figuravam, jamais, nem Garcia de Rezende, nem Gomes Eanes do Azurara, nona Rui de Pina, nem Gil Vicente, nem, mesmo, apesar do seu mundanismo, o gracioso D. Francisco Manuel de Melo.

Assim viviam, o professor, com os seus puristas, e Dona Ninita com o seu primo, quando, de regresso, um dia, ao lar, o desventurado gramático surpreendeu a mulher nos braços musculosos, mas sem estilo, do Gaudêncio de Miranda. Ao abrir-se a porta, os dois culpados empalideceram, horrorizados. E foi com o pavor nos olhos e no coração que o rapaz se atirou aos pés do esposo traído, pedindo, súplice, de joelhos:

— Me perdoe, professor!

Grave, austero, sereno, duas rugas profundas sulcando a testa ampla, o ilustre educador encarou o patife, trovejando, indignado:

— Corrija o pronome, miserável! Corrija o pronome!

E entrando no gabinete, começou cantarolando, a manusear os seus clássicos...

VIII

O CHÁ

O salão da maravilhosa bailarina russa domiciliada no Rio, enchia-se, naquele tempo, da mais apurada sociedade masculina. Senadores, deputados, diplomatas, capitalistas, homens de imprensa, homens de negócio, — tudo isso convergia, duas vezes por semana, para o elegantíssimo palacete da rua Paissandu, decorado a capricho e custosamente, por velhos admiradores de grande fortuna e jovens artistas de grande gosto. Fernando Mendes, Simões Lopes, Coelho Neto, Domício da Gama, Nilo Peçanha, Fonseca Hermes, Lauro Muller, Alfredo Pinto, Carlos Sampaio, Caetano Montenegro, constituíam, por essa época, o núcleo de íntimos da nova Circe, que nos encantava a todos até a madrugada, fazendo-nos perder a noção do tempo, e, até, das próprias responsabilidades.

Essas reuniões das segundas e sextas-feiras, toda a semana, haviam se tornado, para nós, um hábito que nos parecia, a todos, inextirpável. A palestra de Norma Zaleska era, realmente, deliciosa, e ainda mais delicioso o seu chá, trazido por ela de Londres, onde lhe fora entregue pela própria legação da China por determinação expressa do Imperador. De uma dessas reuniões me resta, entretanto, uma lembrança especial, intensa, inapagável, singularizada por um episódio de que me não esquecerei, jamais, em minha vida.

A sala, naquela noite, estava, repleta de amigos, quando a governante da bailarina a chamou à parte, para comunicar-lhe um desastre: não havia na casa uma gota d’água, nem no filtro, nem nas torneiras, nem na geladeira, sendo impossível, portanto, preparar o chá.

— E na vizinhança? — Indagou a rapariga.

— A vizinhança está toda fechada, já.

Mordendo nervosamente a ponta dos dedos, passeava a encantadora ninfa moscovita de um lado para outro, na sala de jantar, quando teve uma ideia:

— Já puseste fora a água da banheira?

— Aquela em que a senhora tomou banho?

— Sim.

— Não, senhora.

— Tira, então, de lá, — ordenou a dona da casa, contente, e voltando, novamente, a sala.

Meia hora depois sentávamo-nos, todos, à mesa, conversando em tumulto, participando da alegria, tão comunicativa, daquela maravilhosa flor das estepes. E estávamos, já, com a chávena pelo meio, quando, descerrando o escrínio da sua pequenina boca perturbadora, fornalha de sangue fabricada para cozer suspiros e beijos, a nossa divina amiga nos comunicou, rindo:

— Eu chamo a atenção de vocês para o chá que estão tomando. Não é mais aquele antigo, que eu recebi em Londres. Este guardava-o eu como uma relíquia, por tê-lo trazido, eu própria, do Egito, comprado da caravana do príncipe Zenad, quando vinha da índia.

— Oh! É soberbo! — Afirmava, delicado, Fonseca Hermes, saboreando-o na ponta da língua.

— É néctar! — Confirmou Alfredo Pinto.

— Pois, olhem — protestou Simões Lopes, com a sua franqueza de gaúcho; — eu, por mim, não lhe acho nada de especial.

— É magnífico! — Divergia outro — É magnífico!

— É, sim!

— É do interior da índia! — Insistiu um terceiro.

Ia a discussão, mais ou menos, por essa altura, quando Carlos Sampaio, de repente, se levantou, pedindo silêncio.

— Senhores, — disse, — o chá é, mesmo, da índia!

Todos escutaram.

— E veio, mesmo, em caravana! — Insistiu.

Todos olharam.

— Aqui está a prova! — Tornou.

E puxando da boca um fiapo:

— Um cabelo de camelo! ...

IX

A ZEBRA

A luz, branda, cariciosa, localizada sobre a toalha de renda pelo grande abat-jour vermelho, que cobria, quase, a pequena mesa redonda, tornava, naquela noite, os olhos de Dona Consuelo mais vivos, e mais suave a sua cor morena, que eu, durante aquele jantar em família, admirava em silêncio.

Os jantares de Dona Consuelo foram, desde os seus tempos de casada, dos mais elegantes do Rio de Janeiro. Separada do marido, as amizades do casal ficaram todas com ela, não havendo, por isso, na sua vida, outra modificação além da supressão de um lugar à mesa. E era por esse motivo que ali me encontrava sem constrangimento, sentado diante da dona da casa e tendo à direita, e à esquerda, o conde de Fernando Mendes e a Sra. Baronesa de Santa Engrácia.

Procurando nos distrair uns aos outros, veio-me, de repente, uma ideia: convidar Dona Consuelo para um passeio, em qualquer domingo ou dia santo, ao Jardim Zoológico, para onde chegaram, recentemente, alguns tigres da índia, girafas da Pérsia, leões da Nigrícia e zebras da Argélia, os quais têm feito, segundo se diz, o encanto dos visitantes. O meu convite não foi, porém, recebido com simpatia pela encantadora senhora:

— Que ideia, a sua, conselheiro! Que horror!

E com repugnância:

— Eu, tenho, sabe? Uma aversão invencível, a tudo quanto é bicho. A girafa, principalmente, causa-me um mal-estar intolerável. Eu imagino, se ela fosse mulher, o que seria a despesa do marido para ornamentar-lhe o pescoço!

— Isso é a girafa, — objetei. — A girafa é um animal feio, bruto, fenomenal. Outros há, porém, que são lindos. A zebra, por exemplo.

— A zebra? — Atalhou a moça, horrorizada.

E como eu insistisse na minha opinião:

— A zebra! Mas, que é a zebra? Que tem ela de extraordinário?

E definiu-a, rindo:

— A zebra, conselheiro, é um burro de pijama, e nada mais!

Todos nós achamos graça da definição que era, realmente, genial, e o sr. conde de Fernando Mendes interveio;

— A senhora sabe o que é pijama?

— Eu? — Estranhou a linda senhora, rindo com gosto. — Então, eu não fui casada?

— E o seu marido dormia de pijama? — Insistiu o conde.

Dona Consuelo deteve na mãozinha delicada o garfo em que espetava um morango da sobremesa, e contestou, num muxoxo:

— O Leôncio? Não! Dormir, ele não dormia. Depois, o Leôncio não era zebra; era burro.

E mordendo o moranguinho vermelho, dissimulando com um sorriso a sua encantadora perversidade:

— Dormia... sem pijama!

X

SERTANEJOS

(SOBRE TRÊS VERSOS DE TOBIAS BARRETO)

Mesmo durante a sua ausência de seis meses, consumidos em uma viagem ao Rio de Janeiro, o coronel Sebastião de Queiroz era citado, em todo o sertão como o homem mais severo, mais digno, mais intransigente em coisas de honra, de todo o município de Massapé. Fazendeiro rico, possuindo, além do gado de solta e de novecentas vacas de leite, quatro léguas de cafezal no alto da serra, a sua vida, era, toda ela, um culto as velhas virtudes sertanejas. Ponderado e justo, só admitia um código: aquele que os seus antepassados haviam escrito com sangue nas várzeas e serrotes da região, e em que os artigos e parágrafos eram representados por lâminas de punhal e gatilhos de clavinote.

Sofrendo do fígado, desde o tempo em que tivera uma bala encravada à altura da segunda costela direita, agravada, mais tarde, por uma punhalada traiçoeira, que quase lhe alcança o pulmão do mesmo lado, o coronel havia deliberado aquela viagem ao Rio, de onde regressava inteiramente restabelecido, após uma operação sem clorofórmio, e que suportara sem que se lhe ouvisse um gemido. À sua chegada, a vila inteira se movimentara, num verdadeiro entusiasmo de festa. Setenta cavaleiros, de chapéus de couro, gibão, faca na cintura e rifle na lua de sela, haviam ido ao seu encontro, a cinco léguas de distância. E como, além de honrado, era o coronel Queiroz profundamente religioso, o seu primeiro cuidado foi, no dia seguinte, ir ouvir missa na igreja de São Benedito, e visitar, como devoto das almas, os seus defuntos no cemitério.

Chapéu na mão, calva ao sol, barba grisalha exposta aos beijos vadios do vento, que a repartia em dois punhados, ia o coronel por entre as filas de sepulturas modestas, cercadas de grades enferrujados, quando o Dico, seu sobrinho mais moço, e, ao mesmo tempo, seu afilhado, se chegou para ele, tentando uma conversa em voz baixa:

— Meu padrinho já soube do que me aconteceu ... Não?

Grave, cabeça alta, o velho indagou, sem voltar-se:

— Não me contaram nada, não. Foi desgraça?

Tímido, olhos no chão, o rapaz foi contando, a amarrotar o chapéu entre os dedos:

— Foi pouco antes de meu padrinho chegar, que o caso sucedeu. Eu tinha saído para a Varginha, onde devia ferrar o gado, quando me deu no coração de voltar do caminho. Era meia-noite quando cheguei na ponte, junto do cajueiro. Amarrei aí o cavalo, e fui chegando, sem fazer barulho, para junto da casa, onde vi luz no quarto da Gertrudes. Agachado como um gato, botei os olhos na fresta da janela, e vi: dentro, no quarto, estava a Gertrudes, na rede dela, só de camisa, enquanto defronte, sentado na minha rede o Chico Inácio, de camisa e ceroula, tomava uma xícara de café.

Por essa altura da narrativa, o coronel estacou, encarando o sobrinho. Sereno, o moço fitou-o, sem uma palavra mais. O primeiro, porém, a interromper o silêncio foi o ancião, que lhe perguntou apenas:

— Onde é a sepultura dela?

O rapaz estendeu o braço para um monte de terra que amarelava sem uma cruz, e respondeu-lhe, com a mesma serenidade:

— É ali...

XI

O RETRATO DO KAISER

A colônia alemã de Nova Munchen, em Santa Catarina, acabava de construir o seu templo destinado ao culto protestante, quando apareceu no lugar, com a sua grande cabeleira revolta e a sua vermelha gravata esvoaçando, o desventurado boêmio brasileiro Antônio Francisco dos Passos, atirado àquelas paragens pela mesma ventania que deu com Paolo e Francesca no Inferno. Roupa em decadência, barba por fazer, botinas sorridentes, estômago sob protesto, o pobre rapaz viu logo que nada havia a arranjar por ali, entre aquela gente estranha a não ser que simulasse, pelo menos por alguns dias, uma profissão honesta e lucrativa.

Meditava o desgraçado, uma tarde, à porta de uma das vendas do lugarejo, sobre a profissão a escolher, quando um alemão alto, magro, de rosto escanhoado e fortes óculos cavalgando o nariz rubicundo, se aproximou dele, e, examinando-lhe o físico original, indagou:

— O senhor é bindôr?

— Sim, senhor! — Confirmou o boêmio, dando-se intimamente parabéns pela solução providencial das suas graves cogitações do momento.

— Guer bindar um redrado do imberrador?

— Do Pedro II

— Non senhor, Guilherme Segundo! — Acentuou o tudesco.

— Pinto! — Aceitou o malandro, pressuroso.

Conduzido à residência do alemão, que era o pastor protestante da colônia, este explicou-lhe minuciosamente o caso. Partidários do Kaiser, os seus súditos de Nova Munchen queriam prestar-lhe uma homenagem inaugurando-lhe o retrato, não na Associação Germânica nem na Escola Bismark, que haviam sido fechadas por ordem do governo, mas no templo protestante, único lugar em que a colônia ainda se podia reunir livremente. O ato revestir-se-ia, assim, de um caráter quase religioso, escapando à crítica das autoridades locais e revestindo-se de uma significação mais de acordo com os sentimentos daquela gente pelo seu inesquecível soberano.

Combinadas as bases do negócio, dirigiram-se, os dois, para o templo, onde o boêmio propôs uma particularidade. Tratando-se de um trabalho a ser inaugurado solenemente, devia este ser feito em sigilo, convindo, portanto, que se pusesse um reposteiro grande, uma espécie de cortina corredia, em frente à parede em que ele ia pintar o retrato. O próprio Sr. Widmann, o pastor, não devia ver a obra senão na hora da inauguração.

— Mas viga trabalho bom? — Perguntou o alemão.

— Fica trabalho bom, serviço de primeira ordem! — Confirmou logo Antônio Francisco, atirando para trás a farta cabeleira sem pente.

Ao fim de oito dias, que passou atrás da cortina a fumar como o Vesúvio e a dormir como um bem-aventurado, procurou o boêmio o honrado Sr. Widmann, e, recebida a última prestação do trabalho, comunicou que, no dia seguinte, pela manhã, podia ser feita a inauguração.

Ao amanhecer, o templo de Nova Munchen estava cheio, repleto, de uma multidão loura, grave, severa, que olhava, ansiosa, a cortina pesada, por trás da qual devia estar, com os seus alamares, o seu uniforme, os seus bigodes de sabre e os seus olhos de águia terrível, o retrato do seu amado Imperador. O próprio pastor, apesar da sua fleuma, apertava o coração, dominando a custo a sua ansiedade, que era participada, ao lado, pela esposa e pela filha. Estavam as coisas por essa altura, quando Antônio Francisco entrou, colocou Sado da cortina, e segurando, cordão que a faria correr, explicou, com a voz pausada, explícita, para ser compreendida por todos:

— Senhores, Senhoras. Quis, Deus, como prova da sua aliança com os exércitos da gloriosa Alemanha, que o retrato do vosso invencível Imperador fosse a minha obra prima o meu trabalho mais perfeito. E como se honra de pintar Guilherme II não fosse bastante para glorificai um humilde artista, quis Deus, com sua onipotência, servir-se da minha insignificante pessoa para fazer um milagre. Por isso, eu vos previno: por especial revelação de Deus, o retrato do augusto soberano só se manifestara aos olhos das pessoas verdadeiramente felizes, isto é, às esposas que nunca tiverem sido atraiçoadas pelos maridos e aos maridos que nunca tiveram sido enganados pelas esposas. Aos desventurados, as vítimas dessa horrível infelicidade, não será facultada a graça de ver nesta parede a efígie do grande imperador.

E puxando o cordão, fez correr a cortina, fazendo aparecer, nua, lisa, inviolável, a parede do templo, em toda a alvura da cal.

— Oh! ... Oh! ... Oh! ... — murmuravam os colonos, unânimes, de todos os lados.

— Esplêndido! — Exclamavam os homens, entusiasmados, dissimulando o constrangimento íntimo.

— Guê marrafilha! Esta barrezidízimo! — Confessavam as mulheres, sorrindo, com as faces em fogo.

E foi no meio da alegria geral, dissimuladora de um violento estado nervoso, que se ouviu, de repente, um rumor especial, na fila da frente. Todos olharam. Era o pastor, o pobre e honrado Widmann, que, pálido, os óculos faiscando, gemia, de braços abertos:

— Então, que é isso?

E desolado:

— Sou só eu?

 

XII

A SEMENTE DA MORTE

(HISTÓRIA PARA GENTE PORCA)

— Quando Deus fez o mundo — começou o velhinho, cofiando as longas barbas veneráveis, — concedeu ao homem o dom da vida eterna. Repleto de coisas deliciosas, o Paraíso devia ser gozado por ele através dos séculos, dos tempos, das idades. Certo dia, porém, passeava a primeira mulher entre as aleias do Éden, quando ouviu a voz de alguém que lhe chamava pelo nome.

— Era a serpente? Interrompeu o Alfredo, o netinho mais velho, conhecedor, já, dos pontos essenciais da História sagrada.

— Era, sim, a Serpente, confirmou o ancião; — era o Demônio, disfarçado em Serpente. Detendo a mulher no seu passeio, ofereceu-lhe o monstro, com palavras persuasivas, um fruto de cheiro tentador cujo gosto Jeová lhe havia proibido. Tais foram, no entanto, as razões apresentadas pela Serpente, que a Mulher acabou por chamar o companheiro, e por lhe oferecer um pedaço do pomo prodigioso, que ela própria partira nos dentes.

— E comeram? — Indagaram os pequenos.

O velho fez-lhes um gesto com a mão, mandando que tivessem paciência, e reatou:

— Assim, entretanto, que principiaram a saborear o fruto, sentiram na alma o arrependimento da desobediência praticada. E, horrorizados, começaram a cuspir. Cada vez, porém, que um pouco de saliva caía no solo, erguia-se dele um fantasma, representando uma calamidade nova. E assim foi que apareceram, na terra, o tifo, a gripe, a varíola, a caxumba, o tétano, a meningite, e, sobretudo, a tuberculose, destinados a destruir, no futuro, os filhos dos homens!

— Faz mal, então, a gente cuspir no chão, vovô? — Indagou o Pedrinho, amedrontado.

E o ancião, acariciando-lhe a cabecinha loura:

— Faz, meu filho, faz muito mal.

E a todos num conselho:

— Meus netos, não se cospe, nunca, no chão. A saliva, lançada no soalho, em casa, nos carros e em outros lugares em que não dê o sol, é uma das sementes da Morte. Compreenderam?

E, abençoando os netos, afastou-se, para dormir.

XIII

A BÊNÇÃO DA MADRINHA

Na Fazenda Santa Rita, quatro léguas em torno da casa grande, havia ainda o vestígio daquela festa, que fora, realmente a maior que se fizera na comarca. Pelos caminhos, pelo pasto, pelo terreiro viam-se, de fato, por toda parte, as devastações da cavalhada e do povo, que viera de longe, com a banda de música e as canastras de roupa domingueira, para o casamento do Mingote Batista com a Maricotinha Monteiro, filha mais nova do proprietário de Santa Efigênia.

Terminada a semana de festejos, ficaram os noivos na fazenda do pai do rapaz, onde, quinze dias depois, eram evidentes, no Mingote, os sintomas do cansaço, do estorço, da fadiga, exigidos pelo entusiasmo do baile. Pálido, magro, escaveirado, com os olhos muito fundos, cercados de um halo cor de abacate roxo, o moço havia, positivamente, se excedido nas danças. Uma tosse insistente, e seca, principiava a sacudir-lhe o peito. Era patente, enfim, nele, um candidato à tuberculose.

Apreensivos, o pai e a mãe do jovem sertanejo não sabiam mais o que fazer, para impedir um desenlace desagradável.

— Mingote, beba gemada! — Aconselhava o pai, impressionado.

— Tome erva Santa Maria, meu filho; tome! — Suplicava Dona Constância, trazendo-lhe na xícara o sumo verde da planta prodigiosa.

O emagrecimento do moço era, porém, rápido, diário, impressionante. E. em tal caminho ia ele, que, uma tarde, o velho o chamou à parte, aconselhando:

— Meu filho, sua madrinha, Dona Felicíssima, não veio, como você sabe, ao seu casamento. Idosa como está, era razoável essa falta. O que, porém, não é justo, é que você se tenha casado sem tomar-lhe a bênção.

— Vá, meu filho! — Reiterou, maternal, Dona Constância.

No dia seguinte, arrumada alguma roupa de viagem e escolhido o melhor cavalo da fazenda, sobre o qual o escancharam com dificuldade, partia o Mingote, saudosíssimo e sozinho, rumo do Poço Fundo; e era de lá que regressava, gordo, forte, corado, quinze dias depois, ansioso de encontrar de novo os beijos de fogo da sua querida Maricotinha.

Restituído ao lar, o Mingote pautara, novamente, a sua vida de fazendeiro. O campo, as rezes, os carneiros, as cabras, os rebanhos, em suma, da grande propriedade, constituíam o seu cuidado, o seu pensamento, a sua maior preocupação. A fazenda nunca tivera melhor feitor, nem se vira tão limpa, tão farta, em dia com todos os serviços.

Uma tarde, porém, estavam o Mingote e a Maricotinha, um ao lado do outro, em uma das janelas da casa, olhando o gado que se recolhia melancolicamente aos currais, quando, ao observar um rebanho de cabras que pinoteava na relva, o rapaz lamentou, de repente:

— Sabes, Maricota, estou com pena daquele bode.

— Por que, Mingote? — Indagou a moça.

O marido não respondeu. Ao fim de um momento, porém, chama para o terreiro:

— José?

Apareceu um vaqueiro.

E o rapaz, severo:

— Leva aquele bode... pra tomar a bênção da madrinha!

XIV

AS DUAS TORRENTES

Naquela tarde de verão o que preocupava o general não era, com certeza, o destino do seu exército, acampado na planície. O inimigo que ele buscava ainda se achava longe, no centro da Ásia misteriosa, e as notícias que lhe chegavam à tenda eram, até então, as mais favoráveis. Mais que o asiático escondido na montanha íngreme, afligia-o, naquela hora, o destino da sua irmã Helena, cujo corpo ia ser repudiado, talvez, em breve, pela severidade do marido, o seu lugar-tenente Arquelau. Chamando-o, de novo, à sua presença, o grande capitão interrogou-o:

— Que motivo te leva, assim, a repudiar a tua mulher? Ela te é, por acaso, desleal?

— Não; nem eu te disse tal coisa.

— Ela é, acaso, sem beleza?

— Também, não; depois de Eletra, filha de Eleu, é ela, decerto, a mulher mais formosa de Atenas.

— Que é que te leva, então a repudiá-la?

Arquelau foi até à porta da tenda, olhou o céu, para os lados do Ponto Euxino, e, voltando ao leito em que o general se estendia, confessou, com o olhar carregado:

— O culpado da minha resolução não sou eu, nem é a tua irmã. Ela é formosa e jovem. Os seus encantos são incomparáveis. A sua dedicação está, como é sabido, em Atenas, acima de toda a malevolência. E, no entanto, eu prefiro, agora, Atanásia, filha de Simoneu, que não é jovem, nem bela, nem rica.

Xenofonte olhava o seu amigo, espantado com aquela franqueza brutal, quando este, voltando, de novo, da porta da tenda, convidou:

— Anda comigo; vem!

O general saltou do leito, abotoou a cnêmide, e, atendendo ao convite, saiu, em silêncio, com o companheiro. Primeiro, passaram uma elevação, ao pé da qual, deslizava, pura, límpida, convidativa, uma pequena corrente, nascida na montanha. Junto do córrego, Arquelau ofereceu:

— Bebe!

— Não tenho sede — protestou o general.

— Então, continuemos.

Passado o riacho, continuaram a andar. O sol, ao longe, dourava os montes, cobertos de mataria densa, onde as feras uivavam soturnas, anunciando a noite, que se aproximava. E continuaram a andar. De repente, surgiu outra corrente, cortando a planície. Dessa vez, porém, não era tão límpida, como a outra. Arrastando-se por um solo escuro, a água era pesada, feia, turva. Os dois viajantes estavam, porém, agitados pela marcha, e Arquelau ofereceu, de novo:

— Bebe!

Xenofonte curvou-se à margem do córrego, e, mergulhando nele as mãos em concha, bebeu, sôfrego.

— Por que bebeste desta água duvidosa? — Indagou o lugar-tenente.

— Porque tinha sede, — respondeu o general.

— E por que não bebeste da outra, que era tão pura?

— Porque não tinha sede! — Tornou o outro.

Arquelau sorriu e, aproximando-se do companheiro, confessou-lhe, franco:

— Foi esse, amigo, o meu caso. Tua irmã é a água pura, límpida, maravilhosa. Atanásia é a torrente escura que atravessa o meu caminho. A sede é o amor. E que culpa tenho eu de sentir sede, apenas, quando me encontro, como te sucedeu agora, diante da torrente que corre sobre a lama?

Os dois soldados apertaram-se as mãos, e voltaram à tenda.

XV

O MULUNGÚ

O palacete de verão do almirante Ribas, na praia de Icaraí, em Niterói, fica tão junto do mar que as espumas das ondas lhe vêm, às vezes, borrifar, e matar, as flores do jardim. Alcançado pela compulsória, é aí que o velho marujo passa, hoje, a sua velhice inteligente e robusta, ao lado das velhas irmãs que lhe adoçam a vida de celibatário e dos amigos que, como me aconteceu um destes dias, convida, de vez em quando, para um delicioso jantar em família.

O sol já havia transposto as montanhas longínquas, deixando nas nuvens cinzentas os seus enormes rastros de sangue, quando nos sentávamos, os dois, em um banco da praia, diante das ondas que iam e vinham. E olhávamos, silenciosos, a oscilação infindável das águas inquietas, quando, ao voltar-me para ver um bonde, os meus olhos descobriram, no quintal de uma casa próxima, uma árvore toda vermelha de flores, que se destacava, berrante, do verde da vegetação circunvizinha.

— Que árvore é aquela? — Indaguei, admirado.

O almirante virou-se para o lado que eu indicava, semicerrou os olhos de míope para ver melhor, e atendeu:

— Aquela? É o mulungú. É o nosso flamboyant selvagem. Não o conhece?

A resposta que lhe dei, foi, para vergonha minha, negativa, e o meu velho amigo insistiu:

— É uma bela árvore como vê. É bela, assim, toda coberta de flores vermelhas, e tem, também, a sua história.

E como eu lhe pedisse com interesse, acendeu o seu charuto de custo e começou, com a sua virtude de narrador incomparável:

— Antigamente, o mulungu era uma árvore de fruto saborosíssimo, e tão doce, que Tupã o escolheu para o seu alimento. Era debaixo dele que os manitós vinham bailar na calada da noite, e não era de outro pomo que se nutriam os guerreiros valorosos quando tombavam em combate e se recolhiam, mudos e tristes, ao eterno reino das sombras.

E após um instante, para riscar um fósforo americano na sola do sapato marrom:

— Escolhido para alimento das entidades imortais, proibiu Tupan que todos os seres da terra e do ar pousassem, jamais, nas ramas e nas frutas do mulungú. Certo dia, porém, teve ele notícia de um sacrilégio: um enxame de borboletas cor de púrpura estava pousando nos ramos da árvore sagrada. Indignado com a nova, correu o Júpiter dos nossos antepassados ao lugar em que se dava a heresia, e, erguendo a mão poderosa, fulminou, com um gesto, o bando de insetos irreverentes.

E voltando-se, para apontar, com o braço estendido, a copa vermelha da árvore:

— A datar desse tempo, conselheiro, o mulungú ficou assim. Foi a mão de Tupã que paralisou sobre ele, para sempre, o sacrílego turbilhão de borboletas vermelhas.

Do outro lado da Guanabara acendiam-se, multiplicando-se, as luzes da Avenida Beira-Mar. E eu, olhando-as, tão simétricas, tão fúlgidas, tão contínuas, à margem da baía imensa, tive a ideia de uma enorme fieira de formiguinhas de ouro, marchando, disciplinadas, em torno de um pires de água...

XVI

O SABUGO

A maior contrariedade que perturbava a existência pacífica de Dona Felismina era o costume que tinha aquele galo do seu terreiro de saltar o muro para ir cacarejar vitorioso, com prejuízo das galinhas da casa, nos diversos quintais da vizinhança. Aconselhada pelo Sr. marechal Bento Ribeiro, presidente da Sociedade Nacional de Avicultura, ela já lhe havia queimado o bico com ferro quente, cortado as penas da asa, feito o possível, em suma, para que o galináceo se acomodasse com as leghorn dos seus domínios. Tudo havia sido, porém, baldado, porque o Abdul-Hamid de galinheiro encontrava sempre um meio, uma forma, um processo para burlar a vigilância da sua honradíssima proprietária.

Certo dia, estava a bondosa senhora indignadíssima com o seu famigerado sultão de galinhas, quando apareceu na chácara, de visita, o seu compadre, o Sr. deputado Augusto de Lima, o qual, com a sua bonomia de mineiro legítimo, foi, logo, ensinando o específico:

— A comadre quer um remédio pra esse galo se acomodar em casa, contentando-se com as suas galinhas?

—Seria um favor, comadre! — Agradeceu Dona Felismina.

E numa queixa:

— Esse bicho tem me dado tanto aborrecimento...

Sentando-se em um banco do quintal, para onde a dona da casa havia descido, o conhecido parlamentar e brilhantíssimo homem de letras ensinou o processo:

— A fórmula é simples. A comadre pega um sabugo de milho, manda segurar o galo, e esfrega-lhe o sabugo no pescoço, até ficar vermelho. Com esse remédio durante três dias nunca mais ele voará para o quintal do vizinho.

E confirmou:

— É remédio seguro.

Se Dona Felismina aceitou o conselho, ninguém sabe. Tendo de cuidar das eleições federais do 4º distrito de Minas, seguiu o Dr. Augusto de Lima para Águas Virtuosas, e, de regresso, foi visitar, de novo, a sua comadre, que não se achava em casa, mas encontrou aí o Coronel Fabrício, marido dela, que o recebeu com as mesmas demonstrações de contentamento. E como se tratasse de uma família de avicultores impenitentes, um dos seus cuidados foi perguntar pela prosperidade do poleiro:

— Então, como vão as aves?

— Bem — informou o coronel.

— Os galos têm se portado convenientemente?

— Mais ou menos. A não ser o pedrês, que deu, agora, para abandonar as galinhas de casa pelas de fora, os outros, todos, vão bem.

Amigo leal, Augusto de Lima indagou:

— E por que não faz o remédio para esses casos?

— Que remédio?

— O do sabugo de milho. Esfregue-lhe um sabugo de milho no pescoço, que ele acabará, em pouco tempo, com essa mania.

— Como? — Indagou o velho, arregalando os olhos.

E como o visitante lhe repetisse a receita:

— Sim, senhor, sr. compadre! Eu sempre havia de descobrir a origem dessa novidade!

E puxando para baixo o colarinho da camisa:

— Olhe!

O pescoço do coronel estava pelado, de sabugo!

XVII

O ÓPIO

(ÀS SENHORAS ELEGANTES QUE TOMAM COCAÍNA, MORFINA E ÉTER)

No reinado do imperador Tsing vivia em Pequim uma senhora, chamada Linn, notável, em toda a China, pela sua formosura. Seu marido, o mandarim Rotlhang, antigo governador de King-Prang, era tido em grande conta em todo o império, e satisfazia religiosamente todos os desejos da esposa. Amimada, assim, esta, abusando da sua influência sobre o marido, pediu-lhe, um dia, sentada nos seus joelhos, puxando-lhe para baixo numa carícia galante, as duas pontas dos bigodes cerdosos:

— Sabes, estrela da minha vida, qual seria o maior contentamento da tua pequena Linn, humilde escrava do seu senhor?

— Pede as pérolas que semeiam o fundo do mar, e eu irei buscá-las para ornamento da tua formosura, meu amor! — Prometeu, pondo nela os seus olhos de caroço de ameixa, o antigo senhor de King-Prang.

O desejo de Linn era, porém, mais o fruto de um capricho do que a flor de uma vaidade. Ela não queria nem as pérolas do mar nem as estrelas do céu, nem, sequer, os rolos de seda que vira na casa do mercador Wu, ou os diamantes que lhe haviam sido mostrados naquele dia pelo velho Tlhao, o famoso joalheiro do parque das Abelhas. O seu pensamento era outro, e ela o confessou:

— Eu queria que tu consentisses à tua serva, meu amigo e senhor, a fantasia de adormecer, como a famosa Yng-Yng, a esposa de Twesey, entre as delícias de uma casa de ópio. Seria um encanto para a vida da tua flor, provar, uma vez ao menos, esses prazeres de que se gabam em nossos dias tantas mulheres de Pequim.

E chegando a carinha amarela ao rosto áspero do mandarim, enquanto lhe acariciava, com as mãos pequeninas e brandas como dois lotos miúdos, o seu rabicho escuro e longo, que ela havia, ela própria, entrelaçado de pérolas:

— Sim, meu senhor?

Sisudo e experiente, Rotlhang compreendeu, sem custo, os inconvenientes daquela originalidade. A sua boca não sabia, porém, contrariar a vontade daquela pequenina libélula vestida de seda, e foi com a angústia no coração que ele prometeu, retezando para baixo, com ambas as mãos, os dois ponteiros do bigode:

— Será cumprido o teu desejo, loto azul do lago da minha vida. Rotlhang seria o último homem de Pequim se opusesse uma simples folha de bambu à doce correnteza do teu capricho!

Aflito com aquele pedido, o mandarim despediu-se da moça, e correu a consultar o seu velho colega, Liáo, notável em toda a China pelo seu conhecimento de plantas miraculosas. Este ouviu-o, e, tirando de um vaso de porcelana um punhado de ervas secas, explicou-lhe:

— Esta relva, misturada ao ópio, dará à tua mulher a ciência do futuro. Ao adormecer, ela verá em sonho todo o cortejo dos dias que hão de vir, se se entregar ao vício do ópio, como Yng-Yng e as outras mulheres que ela conhece. Vai!

Obedecendo à risca as prescrições de Liáo, meteu Rotlhang, no dia seguinte, a sua Linn em uma liteira, e conduziu-a à famosa casa de ópio de Wang, no cais do Dragão Azul. Aí chegados, preparado o veneno, e adicionadas ao mesmo tempo as ervas trazidas pelo esposo, Linn adormeceu, e teve, num sonho, a visão do seu futuro.

Primeiro, ela se viu arrebatada por um turbilhão de cegonhas vermelhas, que a carregavam pelas alturas, por cima dos rios, dos palácios e dos pagodes. De súbito, porém, as cegonhas a abandonaram nas nuvens, e ela, não sabe como, se viu, sozinha, rota, magra, envelhecida, exposta a execração dos transeuntes em uma das ruas de Pequim. Em torno dela quatro crianças a amaldiçoavam: uma era aleijada; outra era cega; outra era paralítica; outra era idiota e uivava como um lobo das montanhas. E Linn reconheceu nessas crianças os seus filhos!

Despertando do seu delírio, a moça abraçou-se, chorando, com o marido:

— Rotlhang, meu marido, que foi isso que eu vi? Dize! Dize! Pedia-lhe, apertando-o nos braços.

O que viste — explicou-lhe o mando — é o teu destino e o destino da tua raça. O vício que experimentaste é um arrebatamento que leva a um abismo. Odeia-o, se quiseres ser feliz e se não quiseres, tu própria, fazer a infelicidade daqueles que nascerem de ti!

Horas depois, Linn voltava ao seu palácio de porcelana, onde viveu e morreu feliz, cercada de filhos fortes e corajosos, que sorriam, joviais, ao vê-la, com os seus dedos miúdos e trêmulos, puxar para baixo, acentuando-lhe a elegância chinesa, os escorridos bigodes do mandarim.

XVIII

O DOSSEL

A maior desgraça que pode suceder a uma mulher inteligente é, neste mundo tão semeado de infortúnios, ter por marido um homem grosseiro. O esposo estúpido equivale na vida àqueles capetas do inferno dantesco, que tinham por missão espetar os condenados toda a vez que eles punham a cabeça fora do pez fervente. Forçada a acompanhar durante toda a vida o homem que lhe coube por sorte, a senhora em tais condições terá de conformar-se com o seu destino negro, afundando-se no pez, ou de expor-se às iras da sociedade, que representam, no caso, as lançadas dos demônios.

Foi uma situação destas que o acaso ofereceu, logo no segundo dia de casamento, a M.lle. Antonieta Monteiro, moça educadíssima e de nobilíssimos sentimentos, sacrificada pela família, ou, antes, pelo pai, perante a fortuna colossal do comendador Albertino de Miranda Soeiro.

Terminadas as cerimônias festivas que assinalavam a união de dois destinos tão diferentes, haviam os noivos se recolhido, já, aos seus aposentos, quando D. Margarida, mãe da noiva, ouviu um rumor forte, partido do quarto dos recém-casados. O silêncio caiu, porém, de novo, por todo o palacete, afundado na sombra, e a virtuosa senhora adormeceu, feliz, inteiramente tranquila com o risonho futuro da filha.

No dia seguinte a casa do comendador Soeiro encheu-se, de novo, de parentes da sua jovem esposa, convidados, especialmente, para aquele primeiro almoço de núpcias. E, à hora da mesa, tomaram, todos, os seus lugares: o desembargador Monteiro, Dona Margarida, o senador Alfredo Elis, e o deputado Estácio Coimbra, padrinhos do casamento; a Elisinha, irmã da noiva, além desta, e do marido, e de outras pessoas amigas, especialmente distinguidas pelo casal.

Servidos os primeiros pratos, e travada, entre todos, uma palestra animadíssima e pitoresca, lembrou-se Dona Margarida, subitamente, do rumor que quebrara, à noite, o silêncio da casa, e indagou, maternal:

— É verdade, Antonieta, que barulho foi aquele, à noite, no teu quarto, depois que vocês se recolheram? Não foi lá.

A moça enrubesceu ligeiramente, como quem se mostra perturbada. O caso não era, porém, comprometedor, e ela resolveu explicar:

— Ah! A senhora ouviu? Foi o dossel do cortinado que não estava bem preso lá em cima, e que caiu de repente. Eu não chamei a senhora porque, felizmente, não foi nada.

A essas palavras, a grosseria do comendador, que abarrotava o talher, explodiu:

— Como? Não foi nada?

E com a sua franqueza bruta.

— Não foi nada, para ela. Agora, que o diga eu, que levei com ele nas costas.

E entupiu a boca, de novo, de arroz com galinha.

XIX

ESCRÚPULO

Quando, no dia 19, Dona Lilita completou anos, o Armindo Rodrigues, marido dela, prometeu-lhe, entre dois beijos.

— Deixa estar, filhinha; no princípio do mês, quando receber dinheiro, eu te comprarei um presente bem chic, bem lindo, bem digno de ti. Estás ouvindo?

Para Dona Lilita, figurinha graciosa e galante, bonita como uma boneca e irrequieta como um pardal, esse adiamento, por parte do esposo, não tinha grande importância. O Augusto Soeiro, do Ministério da Agricultura, havia lhe dado um anel de ouro com duas safiras; o Souza Mendes ofereceu-lhe um pendentif que era uma beleza; o Dr. Cunha Lustosa tinha lhe mandado o vestido de crepe da China prometido na semana anterior; outros admiradores, e amigos do marido, não se haviam esquecido dela, com pequenos mimos de carinhosa significação. Para que, pois, obrigar o seu pobre Armindo a um sacrifício, que se iria refletir, com certeza, nas complicadas economias da casa?

No princípio do mês, ao receber o ordenado, o moço funcionário resolveu cumprir a promessa: marcou, com a esposa, um encontro na cidade, conduziu-a a uma casa de roupas brancas, e, aí, pediu à vendeuse:

— Calças; traga-me calças de seda, para senhora.

Espantada com aquela ideia do marido, Dona Lilita interrompeu-o pegando-lhe o braço:

— Não, filhinho, não quero. Não compra, não. Tu sabes que eu não gosto dessas coisas de luxo.

— Mas eu quero te dar um presente bom, um presente caro! — Objetou o rapaz.

— Mas, eu não quero; acabou-se! — Retrucou a moça, irritada. — Nós somos pobres, e não se compreende que, com o ordenado que tens, e com a vida modesta que levamos, tu possas comprar calças de seda, de setenta mil réis cada uma!

E mudando de tom, explicando-se, escrupulosa:

— Tu sabes que essa gente fala de tudo que vê...

XX

A PONTE DE NIKKO

Recentemente chegado do Japão, onde exercia, em Kobe, o cargo de cônsul do Brasil, o meu jovem colega Dr. Osório Dutra teve a bondade de trazer-me, para consolar a minha velhice de antigo turista oficial, uma série de cromos pitorescos, reproduzindo aspectos curiosos daquele fantástico país das maravilhas. São fotografias artísticas do parque Myeno, do grande hotel de Iocoama, do templo de Kachiman, em Camacura; do santuário de Shiva, em Tóquio; dos túmulos dos sete Shoguns, da estátua colossal de Daibutsu, do rio Kamogawa, do palácio de Nijo, do museu de Osaca, da estação de Shinbashi, além de uma infinidade de cartões multicores, representando geishas em repouso, sacerdotes passeando em rikishás, e o próprio viajante, comendo arroz com palitos, (hashes) em companhia do príncipe herdeiro.

A tricromia mais interessante que ele me trouxe foi, porém, a que reproduz a ponte de Nikko, obra de engenharia tradicional que constitui, ali, a mais venerável das singularidades. Explicando-me o que era ela, a mim e ao Sr. Ministro Guimarães Natal, o ilustre viajante acentuava, enquanto nos confundia, abusivamente, rabiscando com o cabo da colherzinha uns caracteres japoneses na toalha da mesa de chá.

— A ponte de Nikko — dizia-nos ele, — tem uma particularidade quase inacreditável. Construída há quatro séculos, sobre um pequeno rio, ninguém, segundo se afirma, a não ser o Imperador, lhe pôs, jamais, os pés, atravessando-a. Vedada pelos dois lados, há, em cada um deles, um guarda, que só fecha ou abre a porta para a passagem do monarca. Além deste ninguém mais passa, nem passou nunca.

— Nem para fazer a limpeza? — Objetou o Sr. Ministro Guimarães Natal.

— Nem para fazer a limpeza! — Confirmou o nosso cônsul em Kobe. — É essa, pelo menos, a crença geral, no país inteiro, e, particularmente, do próprio Imperador.

Um sorriso franziu-lhe, porém, o canto da boca, e o meu jovem amigo acentuou:

— Entretanto, uma noite, eu assisti a infração dessa crença nacional.

— Infração? — Estranhei, aguçando a orelha.

— Exatamente. Estava eu nas proximidades da ponte, quando percebi que um vulto a atravessava, disfarçado na treva.

Aproximei-me, e vi. Não era o Imperador, mas o próprio guarda da margem esquerda, atrás do qual passaram, logo, seis ou oito sujeitos misteriosos! ...

Por essa altura, quando eu ia soltar contra aquele sacrilégio uma das minhas exclamações indignadas, notei que o Sr. Ministro Guimarães Natal estava rindo, silenciosamente, brandamente, ironicamente, com o seu ceticismo habitual.

— O sr. ministro acha graça? — Admirei-me.

E ele sem se conter:

— Eu? Não. Eu estou pensando é como o Imperador do Japão, tão solene, tão orgulhoso, se parece, nesse caso, com certos mandos, supondo, na sua boate, que ninguém senão ele, passa pela ponte de Nikko.

E continuou a rir baixinho, miudinho, devagarinho...

XXI

AS PÍLULAS

O espetáculo de uma família numerosa residente nas vizinhanças do seu palacete, fizera com que Dona Clotildinha, casada há poucos meses, tivesse um pavor indizível, um medo inominável, de possuir um lar fervilhante de crianças.

— Que horror, meu Deus! — Dizia a pobre moça, juntando as mãos. — Antes uma boa morte! Só, mesmo, por um castigo!

E punha-se a rezar com fervor, com alma, com sofreguidão, pedindo ao céu que a livrasse de uma prole numerosa, do suplício, que tanto temia, de seis, oito ou dez filhos, chorões, traquinas, rabugentos, no molde dos pirralhos que conhecia. E como precisasse, também, do auxílio da ciência, por intermédio das potestades terrenas, procurou, uma tarde, um médico das relações da família e pediu, em confiança:

— Doutor, eu ando inquieta, agitada, nervosíssima, nestes últimos tempos, e preciso, com urgência, de um remédio! Será isso possível?

Dias depois, ao procurar, em casa, um monóculo que perdera, descobriu o Dr. Alexandre, atrás de um prato de frutas, um vidro de pílulas, cujo rótulo lhe revelou, de pronto, as aflitivas preocupações da esposa.

— Clotilde! — Gritou, para o interior da casa, com simulada energia. — Que significa isto? Que tolice é essa?

E como a jovem senhora corresse a esconder-se, envergonhada, o Dr. Alexandre desarrolhou o frasco e pôs-se a atirar as pílulas, uma por uma, para o quintal do vizinho, que era um afamado criador de galinhas, premiado cinco vezes pela Sociedade Nacional de Avicultura.

Ao fim de uma semana, ia o ilustre advogado descer para a cidade, quando Dona Clotildinha, ao despedir-se dele na sala de jantar, lhe pediu, carinhosa:

— Filhinho, fazes-me um favor?

— Dize!

— Passa aí na casa de aves e manda deixar aqui uma dúzia de ovos. Sim?

Chegado ao estabelecimento indicado, e feita a encomenda, recebeu o Dr. Alexandre uma resposta negativa:

— Desculpe, doutor, mas agora não há.

— Não há?

— Não, senhor, — tornou o criador. — Há oito dias que as galinhas não põem, cousa que nunca sucedeu em nosso quintal. Vivem todas macambúzias, quietas, retraídas, e até já mataram um galo a bicadas.

Dias depois, o estabelecimento fechava, com a greve das galinhas, para a qual a Sociedade Nacional de Avicultura não encontrou, até hoje, a menor explicação.

XXII

O FIO D’ÁGUA

Pelas altas planícies da Eternidade, em que as estreias, à tarde, desabrochavam como rosas, cruzei os meus passos, de repente, com um fantasma de fisionomia doce, que acompanhava, encantado pela harmonia das cousas, o ritmo silencioso do universo. Á saudação que me dirigiu, adivinhei que era um velho amigo do meu espírito, e pedi-lhe o nome prestigioso.

— Michelet! — Respondeu.

Beijei-lhe os dedos imponderáveis como a sombra que se desenha no vácuo, e, trocando o ouro das suas ideias pela moeda falsa dos meus pensamentos terrenos, caminhávamos pela planície florida quando, de repente, parámos diante de um fio d’água.

— Vê como isto é suave, — disse-me o mestre, apontando-me o filete fugidio. — Frágil, tímido, fugitivo, este fio d’água reflete, como vês, todas as maravilhas do céu. As estrelas banham-se nele, como pequeninas aves aquáticas. É nas suas águas, de prata diluída, que a lua se renova, todas as vezes que percorre a imensa planície celeste. E, no entanto, é tão pequeno, tão humilde, que um pássaro o poderia beber!

Versando outros assuntos, discorrendo sobre matéria que era, pelo seu espírito de verdade, um vinho para os meus ouvidos, continuávamos a caminhar, quando, decorrido um tempo que eu próprio não poderia medir, descobrimos que marchávamos, indiferentes, pela margem de um rio.

— Uma torrente, mestre! — Mostrei.

— É verdade. Não a tinha visto... — confessou-me o sábio.

E depois de um silêncio:

— Eu acabo de oferecer-te, meu filho, a própria imagem da vida.

Um instante de meditação, e tornou:

— A vida, como tu próprio verás, mais tarde, no teu caminho, é interessante, não pela sua grandeza, mas, sobretudo, pela soma de pitoresco que encerra. E os homens são como os rios. Perto da fonte a água é límpida, pura, cantante. O céu, as árvores, os pássaros, tudo se reflete nela, como num espelho sem mácula. Adiante, porém, recebido o tributo das águas impuras, o rio torna-se outro. Os detritos, atirados ao seu leito, toldam-lhe a face. O que era um gorjeio, é, agora, um rugido. E como se torna igual, daí em diante, a todos os rios, ninguém mais estaca à sua margem senão quando ele constitui um obstáculo.

Olhou-me de novo, nos olhos, e concluiu, melancólico:

— E é por isso que nós, que atravessamos uma rua sem atentar para os homens que a enchem, não passamos, jamais, indiferentes, por uma janela em que haja uma criança.

E dissipando-se, como sombra, que era:

— A criança, meu filho, é o fio de água das montanhas do céu que será o rio de amanhã, mas que reflete as estrelas e traz, ainda, em si, a doce pureza da fonte...

XXIII

MICROSCÓPIO

Os salões do desembargador Marcelino Pedreira, à rua São Clemente, achavam-se repletos, como poucas vezes acontecia, naquela noite memorável. Políticos, magistrados, médicos, bacharéis, homens de letras e homens de negócios, enchiam os grandes compartimentos do palacete magnífico, de mistura com o que há de mais fino, de mais chic, de mais distinto, nas rodas femininas do Rio. Lauro Müller, Miguel Couto, Pires do Rio, Antônio Azeredo, são silhuetas em evidência. O encanto da reunião está, entretanto, na revoada de moças e senhoras que volteiam pelas salas, e entre as quais se destaca, pela formosura, pela mocidade, pela inocência do olhar e dos modos, M.lle. Júlia Petersen, noiva do Dr. Abelardo Moura e filha única do desembargador Feliciano Mendonça.

De repente, como se um punhado de folhas e flores obedecesse a um redemoinho invisível, faz-se uma roda, em torno a uma das mesas da sala de chá. Homens de ciência e damas inteligentes formam o grupo. Elevada, culta, a palestra versa os assuntos mais variados, encantando as senhoras.

Na sala contígua, dança-se. E, entre os pares, o Dr. Abelardo e a noiva. Súbito, parando, põem-se os dois a conversar.

— Que mãos tens tu, Julita! Elogia o noivo, maravilhado, apertando os dedos miúdos, finos, quase infantis, da sua prometida.

— Acha-a pequena? — Indaga a moça.

— Microscópica!

— Como?

— Microscópica! — Insiste o rapaz.

Intrigada com o vocábulo, que ouvia pela primeira vez, a moça pede licença por um instante, penetra no salão do chá e, com a sua ingenuidade, indaga do Dr. Álvaro Osório:

— Doutor, que significa “microscópico”?

— É um derivado de “microscópio”, Mademoiselle! — Explica o ilustre fisiologista.

— E que é “microscópio”? — Torna a menina, franzindo a testa morena, que os olhos iluminam.

O Dr. Álvaro medita um momento, e, para não perder tempo, explica:

— É um aparelho que faz as cousas crescerem. Compreende?

A menina sorri, agradecida. De repente, porém, pisca os olhos, franze mais a testa, e enrubescendo:

— Ahn! ...

Morde o dedinho róseo, meio brejeira, meio encabulada:

— Sem vergonha! Agora é que eu compreendo porque é que ele diz que eu tenho a mão microscópica...

E saí correndo, vermelha, a abraçar-se com o noivo.

XXIV

O CASTIGO

Dona Idalina Rodrigues Petersen, a distintíssima senhora que o bairro de Copacabana tanto conhece e venera, é uma das damas de mais espírito da sociedade do Rio de Janeiro. Antiga professora com um excelente curso de humanidades e um variado cabedal de leituras desumanas, a sua palestra é sempre interessantíssima e encantadora, principalmente, quando realçada pelos recursos originais do seu temperamento galhofeiro. Festa a que ela compareça é, forçosamente, festa alegre. As suas frases felizes multiplicam-se como flores na primavera, e é, então, uma delícia, um encanto, uma ventura, tê-la como vizinha, de lado ou de frente, no salão de baile ou na mesa de chá.

É sabido, entretanto, que o céu não concede, jamais, aos humanos, triunfos incondicionais. No cálice de licor mais puro há de haver, sempre, uma gota intragável. Entre mil flores que se aspire, uma há de ter, necessariamente, um inseto venenoso, ou repugnante. E foi essa verdade secular que os fados deram a conhecer um destes dias e em má hora, à encantadora Dona Idalina.

A palestra corria animada no jardim de inverno da viúva Leonete Cortes, quando o criado anunciou o jantar, servido, aliás, à brasileira. Rindo, palestrando, as senhoras e cavalheiros levantaram acampamento ao primeiro convite da dona da casa, e foi rindo, e palestrando, que todos se acercaram da mesa, tomando, em algazarra, os respectivos lugares. Entre as damas, uma havia, entretanto, que se assinalava pela jovialidade, pelo barulho, pelo círculo dos admiradores; e esta era, já se vê, Dona Idalina, que, ao tomar o seu posto, se conservou, de pé, mostrando, num grande sorriso, as duas fileiras de dentes maravilhosos. Após o tumulto veio, porém, o silêncio, que precede todos os mistérios profundos, representados, no momento, pelos pratos que se achavam cobertos sobre a toalha. E foi no meio desse silêncio, dessa expectativa deliciosa, que Mme. Petersen, ainda de pé, exclamou, rindo, enchendo, e erguendo nas mãos claras, o seu copo de vinho:

— Este é o meu sangue!

A assistência, composta de cortejadores da linda senhora, achou graça do seu espírito, e riu alto, aplaudindo. Animada pelo sucesso, Dona Idalina resolveu continuar, e insistiu, tomando nas mãos uma terrina coberta:

— E esta é minha carne!

O sacrilégio não devia ficar, entretanto, impune. E foi por mandado de Deus, com certeza, que o Dr. Heitor Silva Costa, um dos comensais, teve uma lembrança admirável:

— A senhora sabe, Dona Idalina, — indagou, — que é que tem nesse prato.

A moça ensaiou um sorriso.

— Descubra-o!

Dona Idalina não se moveu. E como a encantadora senhora se não decidisse, o Dr. Silva Costa descobriu o prato.

Era galinha.

XXV

MENTIROSO! ...

Para o Dr. Severiano Briand fora um dia de preocupações incômodas, aquele em que o ministro mandou chamá-lo à sua presença, insistindo para que ele partisse, com urgência, a desempenhar aquela importantíssima comissão num Estado longínquo. A incumbência era, sem dúvida, muito honrosa, e demonstrava a confiança, altamente invejável, que nele depositava o governo. Antes de tudo estava, porém, no seu pensamento, o cuidado da família, e, principalmente, da sua Julieta, a sua encantadora mulherzinha, cuja educação exageradamente mundana lhe estava causando, nos últimos tempos, uma série de graves contrariedades.

Dona Julieta não era, sem dúvida, uma senhora leviana. Jovem ainda, educada por um pai que lhe fazia todas as vontades e que contribuía, ainda, para exaltar-lhe a vaidade, o amor do luxo, com a generosidade da sua fortuna, a esposa do ilustre jurisconsulto possuía a seu favor a paixão pelo marido, e, sobretudo, a vigilância que ele exercia sobre os seus passos. Com a ausência do esposo a sua conduta seria, porém, a mesma? A rola que, com o seu auxílio, andava impunemente sobre tantos laços que lhe armavam, não cairia, inocente, em algum deles quando se visse longe do companheiro?

Escrupuloso e inteligente, o Dr. Severiano não queria ofender com a demonstração dos seus temores as suscetibilidades da sua Julietinha; fazia-se mister, pois, recorrer a um processo delicado, a um rodeio qualquer, afim de amedrontá-la, forçando-a a portar-se com discrição e sem as facilidades habituais, quando ele andasse por fora. Com esse propósito, chamou-a ele, nas vésperas da partida, no seu gabinete de trabalho e sentando-a nos joelhos, observou-lhe paternal, com a sua doçura costumeira:

— Filhinha, tu não sabes que eu sou muito teu amigo?

Como resposta, a moça lhe estalou um beijo na boca.

— Pois, bem, — continuou o esposo; — como eu não quero senão a tua felicidade, a tua alegria, a tua vida sem remorsos, vou, antes de partir, fazer-te uma revelação, que nenhum marido faz à mulher.

Dona Julieta encarou-o, curiosa:

— Tu sabes, — principiou o doutor — que há senhoras levianas, como a Luizinha, a Leonor, a Dudú, e outras, que se divertem sem conhecimento do esposo, na suposição de que eles não terão notícia do que elas fazem. E é um engano delas. Tudo que a mulher faz, o marido vem a saber!

— Deveras? — Indagou a moça, espantada.

— Deveras. E é o que há de mais simples. Calcula que basta que a mulher cometa uma leviandade longe do marido, para que ele comece a sentir, logo, um calo na cabeça. É científico.

— Deveras? — Insistiu a jovem senhora, com os lindos olhos azuis muito arregalados.

Dias depois partia o Dr. Briand para o Sul, a desempenhar a importante incumbência oficial, e, passados dois meses, aportava, de novo, à Guanabara, onde o esperavam, ansiosos, alegres, joviais, a família e os amigos. De longe, de uma lancha da Polícia, Dona Julietinha saudava-o, satisfeitíssima, com o lencinho de seda branca, à espera do momento em que se desimpedisse o navio. Franqueado este, subiu a escada, quase sozinha, e atirou-se nos braços do marido, cobrindo-o de beijos. E olhava-o, embevecida, encantada, deslumbrada de felicidade, quando teve uma ideia: tirou-lhe, de leve, o chapéu, mergulhando sua mãozinha miúda na cabeleira farta, negra, ondulada. E, sacudindo a cabecinha loura, de canário humano, murmurou-lhe, apenas, ao ouvido, com uma brejeirice encantadora:

— Mentiroso! ...  Cadê? ...

XXVI

O ÓRFÃO

Às senhoras, cada qual mais linda, agrupavam-se, de pé, ou sentadas, em torno da maple em que o almirante Ribas se havia acomodado por intimação delas, quando o velho marinheiro tomou, com as mãos no descanso da poltrona, o fio de ouro daquela história.

— As selvas da Arcádia embalavam-se às primeiras claridades do sol — principiou o narrador, — quando a elas chegou assustada, uma deusa, humanizada no instante pelos prenúncios da maternidade. Altiva como todas as deusas, mas, ao mesmo tempo, medrosa, como todas as mães, amanhou a recém-vinda misteriosa um pequeno leito de rosas, de mistura com as quais havia alguns espinhos, e nele deitou, sorrindo e chorando, o corpo frágil do filho. Feito isto, partiu.

— Que mãe! ... — Obtemperou, escandalizada, Mme. Tavares da Mota, endireitando o decote nos ombros.

Que coração! ... — gemeu, com horror, a condessa de Porto-Verde, aproximando-se do narrador.

Serenada a primeira ameaça de tempestade, o almirante continuou, enquanto limpava, tranquilo, com o seu lenço de seda branca, o pince-nez de aros de ouro.

— À tarde, chorava o pequenito abandonado, quando se chegou para ele, rastejando, uma serpe.

— Minha Nossa Senhora! — Interrompeu, de novo, a condessa, levando as mãos aos ouvidos.

— Chegou, coleando, arrastando-se, deslizando, e, atingindo o leito de espinhos e rosas, enroscou-se vagarosamente em torno do menino, emprestando-lhe, maternal, um pouco do seu calor.

Uma algazarra de risos e protestos encheu o salão, transbordando pelas janelas abertas. O velho marujo pediu, porém, que o não interrompessem, e insistiu na narrativa:

— Pela manhã, desaparecida a serpe, surgiu na clareira uma corça, e, ouvindo chorar o pequenito, deitou-se, amorosa, perto dele, e deu-lhe do seu leite, e ia, talvez, conduzi-lo para o seu esconderijo, quando percebeu, assustada, um ruído, que a fez abandonar a criança e desaparecer, célere, no seio da mata silenciosa.

Uma pausa para pedir um pouco de água e a história continuou:

— Não era, no entanto, um inimigo, que se aproximava: era um casal de rolas selvagens, que pousaram, cândidas, sobre o leito do infante, e se puseram a brincar com ele.

— Que gracinha! — Atalhou M.lle. Edite Toledo, encantada.

— O espaço não é, porém, povoado apenas de rolas. O bem e o mal, a verdade e a mentira, a treva e a luz, alternam-se, perseguindo-se, na terra e no céu. E foi por isso que, mal haviam pousado, foram as rôlas afugentadas por um corvo, o qual grasnava ao lado do pequenino, quando baixou das alturas uma águia, que arrebatou o órfão, rápida, para o seu ninho nas montanhas.

— Meu Deus do céu! — Tornou M.lle. Edite, quase chorando. —? E a mãe dele, por que não vinha? ...

O almirante sorriu, encantado com a ingenuidade da moça, e prosseguiu:

— As águias não são, entretanto, as senhoras únicas da montanha. E tanto assim, que, deixado o pequenito na furna alpestre em que a rainha do espaço fizera o seu ninho, aí penetrou um leão, que, apossando-se da presa, a arrastou, suave, para a sua caverna vasta, na encosta solitária da penedia.

— E comeu-a? — Interromperam as ouvintes, em côro, ansiosas pelo termo imprevisto daquele conto.

— Não, minhas senhoras; a fera não devorou a criança, — informou o velho marujo.

— Todos os animais se aproximaram dela, mas nenhum a queria... No dia seguinte, passando pela falda da montanha, uns pastores ouviram um choro assustado, medroso, de criança faminta. Entraram na caverna, encontraram o pequenito e levaram-no para casa.

E apoiando-se na poltrona, para pôr-se de pé:

— E aí está como os homens conheceram o Amor, o órfão dos deuses — meigo como as rolas, traiçoeiro como a serpe, nobre como as águias, sinistro como o corvo, tímido como a corça, bravo como os leões!

E ergueu-se, como sempre, entre palmas.

XXVII

MODERNISMO

Antigamente, quando uma família casava uma das filhas, o ato era festejado com uma gravidade quase religiosa. Após a retirada dos convidados, os pais da moça levavam os noivos até a porta da alcova nupcial despedindo-se da filha com um beijo, e, não raro, com uma lágrima. Hoje, os costumes são outros. Com a americanização dos hábitos, a festa de casamento acaba sempre em farra, em fuga, em surpresas complicadas e sem espírito, quando não termina em bebedeira grossa, em que a última garrafa de champagne estoura, espumando, à mesa de cabeceira do novo casal.

Não obstante a elegância da filha e a vida a que a formosura desta a arrastara, Dona Guilhermina Ravasco não se conformava com aquelas singularidades extravagantes. E foi por isso que, triste, comovida, não conteve uma lágrima de sofrimento quando a filha, terminada a recepção atordoada com que festejara o casamento, correu para o quarto com o noivo, batendo violentamente a porta e conduzindo à mão uma garrafa de champagne Clicquot.

— Minha Nossa Senhora! — Gemeu a pobre matrona, desolada. — Que irão eles fazer, nesta loucura, meu Deus!

E lamentava:

— Que falta de modos, esta, da minha filha! ...

Terminadas as despedidas dos parentes e amigos, ficou Dona Guilhermina sozinha na sala de jantar, diante da porta dos noivos. E meditava, silenciosa, com a cabeça nas mãos, sobre o destino daquelas duas criaturas tão levianas, tão tolas, tão despreocupadas da vida, quando percebeu rumores no quarto. E ouviu, o que os dois conversavam:

— Desarrolha! — Pediu a moça, rindo.

— Não posso, filha, não posso! — Protestava o rapaz, contrariado. — Só indo buscar um saca-rolhas!

Aflita, agoniada, Dona Guilhermina levantou-se, pé ante pé, foi à gaveta, em que guardava o ferro, e correu a escondê-lo. Para ela, educada na velha escola, aquilo era um desrespeito, uma ignomínia, uma verdadeira profanação.

Era mãe, coitada!

XXVIII

AS BORBOLETAS

Na sua vida de marinheiro destemido, o almirante Ribas não havia encontrado, jamais, em alto mar, um temporal tão violento como aquele, desencadeado, de repente, sobre a sua cabeça de neve, entre as vagas de seda daquele salão.

— De que se vestia Eva, antes do pecado, almirante? — Perguntava Mme. Antoine, sorrindo, batendo-lhe, graciosamente, com o leque nos dedos.

— Ande; responda! — Intimava, desafiadora, a baronesa de São Nicolau, mostrando-lhe os dentes mais mimosos do mundo.

— Engasgou-se? — Indagava, zombeteira M.lle. Toledo Ribeiro, atirando-lhe com intimidade uma bolinha de papel de rebuçado.

A situação era, realmente, delicada. Que poderia ele dizer, em verdade, sobre o assunto, se não havia um livro sagrado, nem profano, que lhe falasse dos figurinos daqueles tempos? Que Adão e Eva andavam vestidos no Paraíso, era indubitável; porque, após a maldição, ficam nus. De que eram feitas, porém, essas vestimentas? De morim? De palha de seda? De musselina? De casimira? De ganga? De veludo? De crepe da China? Era essa dificuldade que paralisava a língua do delicioso mundano, tão querido das senhoras, quando ele aventurou, para salvar a situação:

— De que se vestia o primeiro homem, eu, com franqueza, não sei. Do que não tenho dúvidas, é do traje da mulher.

— Então, diga! — Pediu, esfregando as mãos, a baronesa.

— Diga! — Intimou Mme. Antoine.

— Se sabe, diga! — Duvidou outra senhora, entrando no grupo.

Jovial, como sempre, o velho marinheiro sorriu com os seus dentes magníficos e sentenciou:

— O tecido de que se vestia a primeira mulher, minhas senhoras, era um que é, hoje, quase desconhecido na terra. Vestia-se ela desse tecido, e trazia nos cabelos uma flor. De súbito, porém, após o pecado, o tecido se dissipou como por encanto, e a flor fugiu, rápida, pelos ares. E a Mulher se viu, de repente, completamente despida!

— Mas que tecido era esse? — Teimou, invencível, a baronesa.

— Era o Pudor, minha senhora! — Explicou, respeitoso, o velho marujo, olhando-a fixamente nos olhos.

E para M.lle. Toledo Ribeiro:

— E foi da flor dos cabelos de Eva, senhorita, que nasceu, no Paraíso, a primeira borboleta! ...

XXIX

FILANTROPIA

Era um dos seus sueltos do último sábado, comentando o gesto de um capitalista italiano que legou à Argentina, onde fizera fortuna, diversos estabelecimentos de educação, estranha o “Correio da Manhã” não haja no Brasil quem faça o mesmo, não obstante o número de milionários que aqui têm vivido e morrido. “Exceto alguns membros da colônia portuguesa, os maiores doadores das instituições de caridade que possuímos — escreve o grande matutino, — o que se verifica é o absoluto esquecimento pelo país em que enriqueceram”. E acentuou, a propósito do mau exemplo que a estes fornecem os capitalistas nacionais: “Ainda não há muito, com o falecimento de um dos nossos grandes ricos, o Sr. Gaffrée, os herdeiros fizeram anunciar a construção de um hospital que teria o seu nome. E prometeram uma casa com mil leitos. Passam-se os meses, os trimestres, os semestres e os anos, e quem sequer se sabe do início da construção de um barracão para abrigar dois ou três desgraçados que a Santa Casa despede por falta de lugar”.

Domingo, após a leitura desses comentários amargos, foi o nosso jantar na chácara do casal Cunha Moreira, na Gávea. Aberta sobre o oceano largo, a sala não podia estar mais florida, nem mais linda. E, no entanto, não éramos mais de quinze pessoas, entre as quais se destacavam a graça risonha de Mme. Torres Botelho, a perversidade sisuda de Mme. Pereira Lopes e a ingenuidade, que dizem simulada, de M.lle. Mota Correia, noiva do Dr. Albino Morais, empregado eventual das Docas de Santos.

Entre a sobremesa e o café, servido no terraço vasto, sobre o qual fervia, abrindo uma clareira nas nuvens, como uma abelheira assustada, o louro turbilhão das estrelas, caiu a palestra por perversidade do sr. senador Tobias Monteiro, sobre o suelto do “Correio da Manhã”.

— É verdade, — lembrou o ilustre representante do Rio Grande do Norte; — que ataque violento, aquele, aos Guinle!

— E injusto! — Atalhou, com a sua severidade perversa, Mme. Pereira Lopes. — E injusto!

As senhoras, em torno, ensaiaram um sorriso malicioso, e a linda carioca insistiu:

— Pelo menos, é falso que eles tenham deixado de cumprir a promessa a que se refere o jornal.

Cavalheiros despeitados meteram-se na palestra, contrariando a formosa admiradora dos simpáticos milionários da Avenida:

— Onde estão esses benefícios feitos por eles, madame? Onde? Onde?

— Oh! ... — exclamou a loura brasileirinha, ofendida. — São tantos! ...

E olhando significativamente M.lle. Mota Correia:

— Eles têm oferecido o leito a tanta mocinha pobre! ...

Cadeiras arrastaram-se, rápidas. Era M.lle. que, por descuido, havia derramado café no vestido...

XXX

O CONSCRITO

Para o Alfredo Guilherme da Cunha aquela notícia, publicada por todos os jornais da cidade, tivera o efeito de uma carga de dinamite que lhe estourasse debaixo da cama: o seu nome havia sido sorteado para o serviço do Exército, devendo ele apresentar-se, dentro de quinze dias, a uma das dependências do Ministério da Guerra.

A novidade, para ele, não podia ser mais triste, mais irritante, mais desagradável. Rapaz elegante e divertido, gozando a vida com a volúpia de quem sorve, gole a gole, um cálice de licor delicioso, o seu primeiro pensamento foi, naturalmente, eximir-se àquele dever patriótico, apelando para uma das cláusulas de isenção estipuladas na lei. A qual delas, porém, a sua esperteza se apegaria, como tábua de salvação?

Dias depois desse episódio, parava à porta da Repartição de Saúde do Exército um automóvel particular, do qual saltou, pelo braço de um criado, um rapaz de vinte anos, que tateava no vácuo, patenteando nos olhos vidrados a sua completa condição de cegueira. Era Alfredo Guilherme que se apresentava aos médicos militares, afim de que eles verificassem que havia sido sorteado com aquele nome um infeliz, um inútil, um cego.

A aparência era, realmente, desoladora. Pupilas fixas, olhos abertos, fisionomia parada, tudo denunciava no pobre rapaz uma das maiores vítimas do destino. E era com essa convicção que um dos médicos olhava o desventurado, quando o Dr. Fontainha opinou, desconfiado daquela cegueira:

— Se se trata, mesmo, de um cego, a isenção será lavrada. Nós precisamos, porém, fazer o exame completo, perfeito, rigoroso, de acordo com os regulamentos.

Combinado isso entre os médicos, foi Alfredo Guilherme introduzido no gabinete, onde o exame, de pronto, principiou. Fazendo acender duas lâmpadas de duzentas velas, chegou-as o doutor até o nariz do paciente, experimentando-lhe a sensibilidade da retina. O rapaz conservou-se, porém, firme. De olhos abertos, não se mexeu, não piscou, não pestanejou. Outras provas foram, ainda, tentadas, entre as quais a do dedo nos olhos, mas tudo foi inútil: olhar fixo, vidrado, o cego mostrava, de modo irrefutável, que se tratava, desgraçadamente, de uma grande infelicidade.

O Dr. Fontainha é, porém, exigentíssimo com os conscritos a seu cargo. Sorteado que lhe caía na unha, é virado, revirado, exprimido, e só não vai para as fileiras se estiver, mesmo, completamente invalidado. E foi por isso que, após uma série de experiências negativas, o conceituado médico militar voltou-se para o rapaz, e ordenou:

— Olhe, firme, para diante.

Alfredo Guilherme esbugalhou os olhos como quem não vê nada, e deixou-se ficar. Feito isso, aproximou-se o Dr. Fontainha, sorrateiramente, da porta que ficava por trás do moço, abriu-a, e, fazendo um sinal, mandou entrar, pé ante pé, uma costureirinha que trabalha no Arsenal de Guerra, a qual começou, silenciosamente, a pôr-se à vontade, libertando-se da blusa, do colete e de outras peças do vestuário. Enquanto isso, o médico observava o cego.

De repente, este chamou, sem piscar:

— Doutor, faz favor?

O médico aproximou-se.

E o sorteado, aflito, com a voz trêmula, como quem se não pode conter:

— Eu posso me virar para trás?

XXXI

A QUÍMICA DE D. JUAN

A roda de boêmios era, naquela tarde, das mais largas e barulhentas. Rindo e bebendo em torno à mesa redonda estavam nada menos de cinco pessoas: Alfredo Marques, o próspero bacharel-comerciante, cuja fortuna se multiplicava na proporção das suas despesas com as mulheres; Azambuja Pinto, o conhecido negocista, que passou de empregado de trapiche a milionário, vendendo farinha podre para os países em guerra; Enéias Moreira, o antigo deputado, que enriqueceu na famosa negociata da Estrada de Ferro Petrolina; Prado Dias, que não se sabe quem é, e o forasteiro Tomazo Pinetti, caixeiro-viajante de uma fábrica de licores que nunca existiu em Milão.

Cheios pela terceira vez os copos de pé, em que o absinto, a cerveja e o whisky davam a impressão de esmeraldas, topázios e diamantes liquefeitos, os cinco peraltas continuaram o seu assunto invariável: as mulheres.

— Aquela — afirmava o ex-deputado, limpando o bigode escuro e referindo-se a uma senhora distintíssima, cujo nome fora enunciado no correr da palestra, — aquela é resistente como uma pedra. Depois que se separou do marido, ninguém a viu mais em festas nem teatros. É uma Cornélia, em virtude!

— Se não é, parece, — aparteou, generoso, o vendedor de farinha podre.

Prado Dias e o bacharel sorriam, incrédulos, quando o italiano interveio, fazendo ressoar no pavimento da casa de bebidas o seu inofensivo bengalão de espantar credores:

— E se eu conseguisse provar a vocês o contrário? — Propôs, com o seu vozeirão de cantor que foi engraxate.

— Não o conseguirás! — Assegurou o antigo representante do povo.

— Quer apostar?

— Quinhentos contra quinhentos!

— Está feito! — Concordou o carcamano. — Dentro de quinze dias, aqui estarei para dizer a vocês que andei com ela de automóvel, que ceiamos juntos, e o mais que vocês quiserem. Está combinado?

— Combinado! — Confirmaram os companheiros, levantando-se.

Dez dias depois o aventureiro convidava os amigos para tomarem conhecimento do resultado da aposta. Reunido o grupo, o caixeiro-viajante informou:

— Dou-lhes a minha palavra de honra que fiz o prometido.

— Passeaste com ela?

— Passeei.

— Ceiaste com ela?

— Ceei.

— Levaste-a à tua casa?

— Levei-a.

Os companheiros entreolharam-se, e um duvidou:

— Como conseguiste isso?

— Eu?

Bebeu um gole de whisky, e contou:

— Encontrei-a em um jantar de família, e consegui que ela bebesse uma taça de champagne. Após a primeira, foi a segunda. Na terceira, consegui que saísse comigo, e levei-a para o Assírio, onde ela bebeu, de novo, e partimos para o Leblon, onde ceiamos, de madrugada. E quando ela acordou de manhã, estava em minha casa.

— Em tua casa? — Objetou o bacharel, escandalizado.

— Em minha casa, sim! — Confirmou o miserável.

E acentuou, experiente:

— A honra da mulher, meninos, é um elemento que resiste a tudo: ao fogo, ao ferro, à água, às intempéries, ao próprio tempo.

É preciso, pois, conhecer o seu ponto fraco, para atacá-lo no momento oportuno.

Olhou em torno, como quem tem uma fórmula para uso próprio, e explicou:

— É solúvel... no álcool!

E riu-se, o cachorro.

XXXII

FATALISMO

O fatalismo oriental é uma virtude, ou, antes, um erro, que se vai apossando, dia a dia, da humanidade civilizada.

— O que tiver de ser, será! — Dizem os adeptos da teoria.

E como a lei do menor esforço é, hoje, universalmente obedecida, não são raros os homens, nem raras as mulheres, que não se atiram de bruços na vida, deixando-se arrastar por aquilo que eles chamam, calculadamente, a correnteza do seu destino. E o pior é que as coincidências confirmam, às vezes, essa filosofia perniciosa, tornando-a dia a dia mais inconveniente, por mais seguida e divulgada.

A família Fernandes Batista, do Engenho Novo, era, quando eu a conheci, a mais curiosa instituição doméstica edificada sobre as leis universais da preguiça. Comodista, fiado na inteligência ou na inconsciência dos fados, o velho Batista era de parecer que lhe iria às mãos, mais cedo, ou mais tarde, aquilo que lhe estivesse destinado. E acentuava, como todos os fatalistas incorrigíveis:

— O que tiver de ser, será, gente!

Assentado sobre esses princípios, o seu lar vivia na maior desorganização. A esposa, Dona Carmela, erguia-se da cama às dez horas da manhã, e isso mesmo para deitar-se às onze, dormindo até à tarde, e, às vezes, até o dia seguinte. E se a mulher se conduzia assim, o esposo ainda se portava melhor: passava deitado de manhã à noite, e de tal modo que, às vezes, se sentia tonto, quando, porventura, se punha de pé, andando pela casa.

— Papai, vá trabalhar! — Pedia doce, a filha do casal, a Rosinha, revoltando-se contra tanta indolência.

O velho entre abria os olhos, e objetava, logo:

— Menina, cala-te! Tu não sabes o que estás dizendo.

E sentenciava bocejando:

— O que tiver de ser meu, há de vir às minhas mãos, embora eu as amarre para trás. E o que não tiver de ser, não será, mesmo que eu me esbofe, trabalhando a vida inteira. Compreendes?

E, para justificar a sua filosofia contava, então, coisas espantosas, de pessoas que dormiam pobres e acordavam ricas, por lhes ter caído do telhado o saco de dinheiro que lhes havia de pertencer. E acentuava:

— A fortuna, minha filha, deve ser esperada na cama! Sabes?

Certo dia, ao acordar, teve o velho Batista uma notícia que o contrariou, mas que lhe não deu, sequer, cinco minutos de insônia: a Rosinha havia fugido de casa!

— Esta agora! — Bocejou, aborrecido, passando as mãos pelos olhos.

O sono era, porém; a sua medicina, e ele dormiu, ressonou, e esqueceu a desgraça.

Dois meses depois, estava o ancião dorme não dorme, quando parou um automóvel à porta. E minutos depois entrava pelo quarto, maravilhosa de graça e de joias, a Rosinha, cuja presença perfumou e iluminou, de súbito, a casa toda.

— Minha filha! — Exclamou o velho, tentando sentar-se no leito. — Que é isso?

— Estou rica, papai! — Informou a moça, feliz, aos rodopios, pelo meio da casa.

— Rica? E como enriqueceste? — Gritou o velho, tentando arregalar os olhos, espantado.

E a moça, com uma gargalhada:

— Deitada, papai! Deitada!

O velho piscou os olhos, num sorriso de vitória.

— Eu não disse! — Exclamou, feliz.

A sua teoria, realmente, acabava de ser confirmada. Rosinha, como o velho previra, havia encontrado a sua fortuna na cama ...

XXXIII

NO MONTE BRANCO

Antes da minha ascensão ao Monte Branco, em 1905, eu tinha deletreado tanta memória, tanta descrição, tanta novidade sobre esse gênero de aventuras, que havia perdido, de todo, a curiosidade. Parecia-me que, por mais pitoresca e interessante que fosse a viagem, não me ocorreria nada que eu não tivesse lido, ou, pelo menos, previsto, com os olhos e com a imaginação dos milhares de turistas que me haviam precedido. Destino, porém, de certas regiões do planeta, conservarem em torno de si o mesmo interesse, a mesma virgindade do assunto, o mesmo espírito de surpresa: e entre elas ocupa o Monte Branco, sem dúvida nenhuma, o primeiro lugar.

O dia escolhido por nós para a escalada do monstro amanhecera calmo e promissor. Alto, enorme, formidável, com o cabeço coberto de neve faiscando lá em cima, o gigante dos Alpes enchia-nos, ao mesmo tempo, de respeito e de espanto, de admiração e de terror. E foi admirado, espantado, que chegamos, após três horas de marcha penosa, a uma pequena esplanada de gelo, que assinalava o início do pedaço mais perigoso da montanha.

A comitiva, organizada no hotel, era composta de vinte e sete pessoas, divididas em nove grupos de três, entregue, cada um, à experiência de um guia. Ingleses, franceses, americanos, alemães, japoneses, argentinos, de tudo havia ali, naquela caravana arrebanhada, ao que parece, por um internacionalista, para tripular a Arca de Noé. E como o único brasileiro fosse eu, deram-me para companheiros um casal de argentinos, o Sr. e a Sra. Ângelo De Molina, pessoas conceituadíssimas que tinham, entre outras virtudes pouco nacionais, a de admirarem profunda e sinceramente o Brasil.

O Sr. De Molina era um desses homens que inspiram respeito antes do primeiro conhecimento. Sério, grave, circunspecto, falando pouco e pensando menos, as suas palavras eram como moedas de ouro que a mulher, senhora distintíssima, recolhia ao cofre da memória, antes que alguém apanhasse do chão. Alta, forte, linda, magnífica de graça e de mocidade, Dona Consuelo representava, no capítulo do casal, a parte da poesia de que o marido era, apenas, um dos trechos em prosa.

Não obstante essa companhia, a viagem parecia-me encantadora, pelo menos até à esplanada, onde, detidos pela primeira fadiga, ouvimos esta intimação do guia:

— Daqui para diante, os senhores precisam ir amarrados.

— Amarrados? — Estranhei.

— Amarrados? — Estranhou o Sr. De Molina.

— Amarrados, sim, — confirmou o guia. — Os cavalheiros serão ligados pela cintura, por uma corda, distando um dos outros dois metros. E a corda será presa a mim, que irei na frente.

O argentino mordeu o dedo polegar, mesmo por cima da luva, e inquiriu:

— E a senhora?

— Será também amarrada, como os homens, — explicou o guia.

E sorrindo:

— Eu tenho, porém, a esclarecer um ponto, aos senhores. É crença aqui na montanha, que, nestas ascensões, não há corda, por mais forte, que resista ao peso das mulheres levianas. Os abismos têm, aqui, a missão de purificadores do mundo, devorando todas as damas desleais com os seus maridos. E, como isso possa motivar o sacrifício de pessoas inocentes, nós temos o cuidado, sempre, de amarrar as senhoras por último, na ponta da corda, para que, se esta se partir, seja a mulher a única a pagar o seu pecado.

Ante essa observação, inopinada, os olhos do Sr. De Molina fuzilaram.

— Oh! ... — exclamou, num rugido, avaliando, de súbito, toda a extensão daquele insulto.

— Oh! ... — fiz eu, por minha vez, fustigando o guia com o meu olhar, com ímpetos de meter-lhe pela cabeça o meu cajado de grampos de ferro.

O montanhês começou, porém, a amarrar-nos. E tinha, já, me ligado a mim, quando Dona Consuelo, que se achava à distância endireitando os sapatos ferrados, se aproximou, para ser colocada entre os dois, em sanduíche. O Sr. De Molina aproximou-se, então, dela, afastando-a:

— Agora, filha, sou eu.

E consolando-a:

— Você vai por último, no fim da corda. Nós, assim, lhe seguramos melhor...

À tarde descemos, os três: eu, o guia e o viúvo.

XXXIV

O PEIXEIRO

Uma das melhores instituições cariocas destes últimos tempos é, sem dúvida, a feira livre. Reunindo em um único local os gêneros essenciais ao sustento dos habitantes do bairro, esses mercados não só contribuem para o barateamento da vida, como têm a vantagem, ainda, de tornar mais fácil a sua aquisição.

A maior conveniência das feiras está, porém, na higiene, e, conseguintemente, no serviço prestado à saúde da população. Separando os vendedores do público, isto é, dos consumidores, como se vê no mercado da praça da Bandeira, acaba-se de fato, com um abuso abominável, como era aquele de poder o comprador pegar nos nabos, nas couves, nos pepinos, nos tomates, deixando eles os germes que trazia nas mãos.

Fazendo convergir para um ponto convenientemente fiscalizado pela Saúde Pública, os gêneros destinados ao consumo, põe-se um paradeiro, realmente, a um dos espetáculos mais degradantes da cidade. Haveria, em verdade, cena mais deplorável, mais irritante, mais burguesa, do que essa observada, todas as manhãs, à porta das casas, em torno do cesto dos peixeiros ou do tabuleiro dos vendedores de frutas? Mal o verdureiro arriava sobre o trapézio de madeira a sua grande horta itinerante, quatro, seis, oito, dez mãos mergulhavam nela, mexendo nas cenouras, apalpando as bananas, revirando as berinjelas, com uma falta de limpeza e de escrúpulos que reclamaria, em qualquer outra cidade da terra, a atenção das autoridades sanitárias.

Dessa falta de asseio, tão nociva à saúde do povo, dá ideia um episódio curioso, de que fui testemunha, e de que nunca mais me esquecerei. Certa manhã, vinha eu da praia do Flamengo pela rua Correia Dutra, quando me foi a atenção despertada por uma discussão à porta de uma vila, entre um peixeiro português e uma cozinheira da mesma nacionalidade.

Chamado pela freguesa, o vendedor ambulante arriara o seu cesto de pescado, em que brilhavam, prateadas, as corvinas, as pescadinhas e os badejetes, e em que os “vermelhos” punham uma nota de escândalo, com as suas escamas de ouro e de sangue. Examinando os peixes, que emergiam de um leito de folhas verdes e úmidas, a mulherzinha ora apertava na mão uma tainha, ora alisava um “dourado”, maldizendo sempre:

— Isto lá é peixe ??!... Quem é que come isto? ... Eu, mesmo, é que não comprava!

Paciente, o vendedor olhava a insolente. E esta continuava, enquanto examinava a mercadoria:

— Esta corvina, magra, como está, não vale dois vinténs... Este badejete, tem três dias... Esta pescadinha, então, já está podre!

Ante essa acusação, que lhe desmoralizava o artigo, o peixeiro perdeu as estribeiras:

— Podre? ... — protestou.

— Podre, sim! — Confirmou a cozinheira.

E mostrando o peixe:

— Veja como está duro, duro como um pau!

Uma onda de sangue subiu ao rosto do pobre homem. E foi com a raiva nos olhos que ele, sem se conter, explodiu, indignado:

— Duro! ... Está duro, sim! E não queria que o peixe ficasse duro, se você, e as outras, não lhe tiram a mão de cima?!

E, arrebatando o cesto partiu, furioso.

XXXV

A INDÚSTRIA DO CABELO

Um economista francês dos mais em evidência, que é, também, um dos maiores industriais de Marselha, propôs recentemente ao seu governo uma solução, rápida e fácil, para o problema do vestuário na França: a instituição de um tecido novo, fabricado com cabelo humano, bastando, para isso, que o ministério competente lhe concedesse não só o privilégio de juntar, e aproveitar, todo o lixo das barbearias, como o de exercer o controle das barbas em todo o país.

Justificando o pedido, o conhecido plutocrata, que se chama Edward Dufayel, apresenta uma série de estatísticas verdadeiramente impressionantes. Segundo ele, se se aproveitassem, na fiação, todas as barbas atualmente conservadas em França, estas forneceriam uma quantidade de tecido tão grande, tão vasta, que iria, estendida, de Paris a Marselha. E como os cabelos se renovam sempre com a mesma intensidade, teria o país, em breve, com a obrigatoriedade da tosquia periódica, uma fonte de riqueza inestimável.

Nos argumentos com que fundamenta a sua proposta, o Sr. Dufayel apresenta outros dados interessantes. Pelas observações a que se entregou, chegou ele à conclusão de que o pelo adquire, em quatro meses, na cara do homem, a extensão de vinte centímetros. Tomado por base esse cálculo, cada fio de cabelo poderia fornecer à indústria cerca de quatro metros em dez anos, ou, seja, uma peça de tecido, de cinco em cinco anos, por pessoa mais ou menos cabeluda.

Um jornalista que comentou em Paris essa lembrança do poderoso industrial marselhês, lembrou a conveniência de serem criados prêmios incentivando o crescimento do cabelo destinado a fins manufatureiros. Em vez de depilatórios, usar-se-iam, então, as loções, os tônicos, as fricções incentivadoras do crescimento do pelo. E como seria proibido, nesse caso, manter inútil, isto é, sem aplicação industrial, o cabelo depois de crescido, o governo tomaria providências enérgicas, determinando a depilação obrigatória, toda a vez que aparecessem na rua pessoas como o Dr. Estelita Lins, como o Dr. Abreu Fialho, como o senador Irineu Machado e como o Dr. Arrojado Lisboa, cujas barbas seriam recolhidas, como matéria prima, ao depósito nacional.

Eu vinha, ontem, pela rua do Ouvidor, manuseando a revista francesa que tratava desse assunto, quando me encontrei, quase no canto de Gonçalves Dias, com um grupo de senhoras e cavalheiros, entre os quais se destacavam o Sr. conde Fernando Mendes e a encantadora D. Isabel Girard, viúva, ainda jovem, e sempre linda, do saudoso farmacêutico Emiliano Girard. Falei no assunto, e o conde, sempre cordato, capitulou imediatamente:

— Eu por mim, se o Brasil aproveitar a inovação, não porei o menor obstáculo. Deixem-me os cabelos na cabeça, e, o mais, podem levar. E a senhora, Dona Isabelinha?

A moça, que, parece, não compreendeu bem, concordou com ele:

— Eu? Digo-lhe o mesmo...

E puxou para o pulso, cuidadosa, a manga do vestido...

XXXVI

FLEUGMA

 

Camisa espelhante, rosto escanhoado, olhos muito azuis, John Brocklehurst acabava de sentar-se à sua mesa de seis talheres no grande salão do England-Hotel, quando notou a ausência de mistress Edite, que descera com ele, minutos antes, no mesmo elevador. Um a um, os companheiros de mesa foram chegando, saudando-se com intimidade. E à medida que se iam sentando, observavam, em silêncio, a ausência da jovem esposa de Brocklehurst, tão querida, pelo seu espírito, e tão admirada, pela sua formosura, no seio da colônia.

Constrangidos, embora, com aquela falta, começaram os quatro comensais a desenrolar os guardanapos, abrindo-os no peito ou sobre os joelhos, quando um dos hóspedes da mesa vizinha, George Stanley, que vinha do salão de visitas, se aproximou de John, e, chegando a boca à sua orelha, avisou, cavernoso:

— Você quer ter uma surpresa desagradável?

— Como? — Inquiriu o inglês, erguendo o rosto.

— Você quer ter uma surpresa desagradável? — Tornou o amigo, isolando as palavras.

John encarou-o, mudo, e o outro informou:

— Se quer, vá ao salão de leituras, e olhe, pela fechadura do quarto contíguo, sua mulher em namoro escandaloso com um amigo seu.

— Minha, mulher? — Estranhou John.

— Sua mulher.

— Com um amigo meu?

— Exatamente.

Rápido, como a gravidade que o caso exigia, o inglês desamarrou o guardanapo que lhe ia proteger o peitilho da camisa, atirou-o para cima da mesa, e, sem dizer mais palavra, atirou-se no rumo da sala de leitura, para fazer, precisamente, o que o informante lhe recomendara. Com a surpresa no coração, os companheiros da mesa entreolharam-se, prevendo a catástrofe. E iam trocar ideias sobre o caso delicadíssimo, quando o reposteiro estremeceu, dando passagem, de novo, a John Brocklehurst. Calmo, inalterável, o inglês aproxima-se da mesa, onde um dos companheiros pergunta, logo, indiscreto:

— Era, mesmo, tua mulher?

— Era — confirma o britânico.

— Ela estava no quarto que te indicaram?

— Estava.

Espantado com aquela serenidade, o interlocutor insistiu:

— E o amigo, quem era?

John encara o curioso, e, fleumático:

— Não era amigo, não.

E, como se nada tivesse havido, prende de novo, ao pescoço, o linho do guardanapo.

XXXVII

AS ABELHAS

— A terra começava a reaparecer após o cataclismo formidável. Nuvens imensas, que se haviam acumulado sobre Jerusalém, afastavam-se, lentas, soturnas, pesadas, no rumo do mar ou do deserto, como bandas da mesma cortina que houvessem abafado o último ato de uma grande tragédia. Jesus acabava de expirar. Os músculos, que até então haviam resistido à violência do martírio nefando, penderam, afrouxaram, capitulando diante da morte. O sangue, que lhe gotejava do rosto, das mãos, dos pés e da chaga que o soldado lhe abriu abaixo do peito, parara de correr, coagulado nas veias. A palidez, que já lhe transfigurava a fisionomia, acentuou-se ainda mais, anunciando aos homens compungidos que havia passado, ali, o derradeiro momento de um Deus. O terror alterava ainda o rosto dos centuriões, testemunhas impassíveis daquele crime inominável, quando um enxame de moscas pousou, zumbindo, sobre o cadáver crucificado. Filhos da podridão, aqueles insetos indignos haviam pressentido, de longe, aquela carnificina em nome da lei; e voando, zumbidores, tinham vindo das profundezas do vale, e pousavam, inquietos, ora na cruz, ora no corpo ensanguentado do profeta. À medida, porém, que pousavam, levantavam o voo, precipitando-se, rápidos, em direção aos bosques do Líbano, que azulavam ao longe. E assim iam partindo, isolados ou em bando, até que veio a noite e as mulheres desceram em seus braços, ungindo-o com os seus beijos, o corpo ensanguentado do Salvador... Dias depois, mercadores descidos da montanha longínqua traziam a Pôncio Pilatos uma surpresa, que constituía, no Líbano, o espanto dos homens: havia aparecido nos cedros sagrados uma pequenina mosca brilhante, a qual, pousando de flor em flor, oferecia, depois, aos viandantes famintos, um néctar delicioso e incomparável, que dava saúde ao corpo e fazia bem ao coração...

Monsenhor Abelardo acabava de contar esta lenda às sobrinhas, ontem, no terraço do palacete do seu irmão Godofredo Mendonça, quando concluiu, oferecendo a chave de ouro do conto:

— Foi essa, minhas filhas, a origem das abelhas. Elas nasceram, na terra, das moscas que pousaram na cruz...

XXXVIII

O CONFESSIONÁRIO

Entre os cento e dezesseis vigários da diocese, nenhum havia de vida tão santa, nem de costumes tão austeros, como padre Sebastião. Atirado, porém, para aquela paróquia tão distante, e de vida tão sossegada, foi para ele um contentamento a intimidade do José Gabriel, sacristão da pequenina igreja confiada à Nossa Senhora das Dores, o qual, sendo um rapaz de bons antecedentes, tinha a vantagem de ser casado com a Lauriana, cabocla tida e havida pela morena mais bonita das redondezas.

Honesto e bom, padre Sebastião ignorava, no seu desconhecimento da química, que não se põe fogo, jamais, nas proximidades da pólvora. E tão limpo era de coração, que foi ele o último a surpreender-se, uma vez, com os olhos grudados no lindo rosto da Lauriana, entre o espanto das pessoas presentes, que não admitiam a existência de tamanho pecado em uma alma tão iluminada pelo verdadeiro pensamento cristão.

De um modo ou de outro, por querer ou contra a vontade, por obra da carne ou por obra do peixe, o certo é que José Gabriel começou a desconfiar da fraqueza do reverendo, e resolveu, no mesmo dia, tomar a sua desforra. Qual seria, porém, esta? Denunciar o vigário ao bispo? Furtar-lhe o cofre de madeira em que padre Sebastião guardava as suas economias? Uma ou outra dessas vinganças parecia-lhe excessiva, principalmente para um pecado que não passava, talvez, de pensamento. O melhor seria, pois, limitar a represália ao seguinte: beber o vinho das galhetas antes da missa, de modo que o vigário celebrasse o ato em seco, sofrendo em pleno altar, uma irremediável decepção. Resolvido isso, pôs o sacrista em execução, nesse mesmo dia, e nos que se lhe seguiram, o seu plano, pregando uma série de peças ao reverendo, que, entretanto, não se queixou, nem protestou.

No sábado daquela semana devia-se, entretanto, inaugurar, na igreja das Dores, um confessionário novo, e, como era inteligente, resolveu padre Sebastião aproveitar a oportunidade para tirar a limpo, de uma vez, quem lhe bebia o vinho das galhetas. Sexta-feira, à tarde, estavam os dois, vigário e sacristão no templo, quando o padre teve uma ideia:

— José, — disse — tu não queres estrear este confessionário?

— Eu, “seu” vigário?

— Tu, mesmo.

E entrando na caixa de madeira, separada do pecador, dos lados, por dois crivos:

— Anda; ajoelha-te aí.

Sem opor o menor obstáculo o mulato ajoelhou-se diante do crivo, do lado de fora, benzeu-se, rezou as orações do ritual e esperou o interrogatório. E a primeira pergunta do padre Sebastião, foi, logo, esta, entre dentes:

— Quem é o canalha do sacristão que está esvaziando, antes da missa, a galheta do padre?

Quieto, cabeça baixa, José Gabriel não respondeu.

— Quem é o canalha do sacristão — tornou o confessor, que está esvaziando, antes da missa, a galheta do padre?

Não ouço nada, nada, absolutamente! — Protestou o sacristão. — Vossa reverendíssima está falando daí, mas eu, daqui, não ouço nada! Fale mais alto.

O padre chegou a boca ao crivo, que tinha do lado oposto o ouvido do Gabriel, e berrou:

— Quem é o canalha do sacristão que está esvaziando, antes da missa, a galheta do padre?

— Qual! Não se ouve nada, — insistiu o rapaz. — Este confessionário não presta. Se vossa reverendíssima quer ver como não se ouve nada, nada mesmo, venha se pôr aqui, no meu lugar.

Intrigado com o caso, padre Sebastião saiu do confessionário, dando o seu lugar ao Gabriel, e ajoelhou-se no lugar deste, do lado de fora. Trocadas as situações, e percebendo o ouvido do reverendo junto do crivo, o sacristão chegou a boca, e indagou entre dentes:

— Quem é o padre sem respeito que anda namorando a mulher do sacristão?

Padre Sebastião estremeceu. Levantou-se, porém, calmo, e confirmou:

— É verdade; não se ouve nada, nada, absolutamente!

E sacudiu os joelhos com o lenço.

XXXIX

PÉ... DAGOGIA

 

As pessoas que tiverem de escrever a história galante dos povos, não se devem esquecer, jamais, das “Memórias de Richelieu”, e, em particular, daquele capítulo em que o espertíssimo cardeal se refere à inteligência dos pés, sempre que eles entendem de estabelecer comunicações por debaixo da mesa.

Sob esse ponto de vista, os pés, em verdade, são mais eloquentes do que as mãos. Enluvem duas mãos diferentes, e elas perderão, em absoluto, a eloquência. Os pés, não; os pés, mesmo calçados, conservam a sua sensibilidade, acariciando-se, beijando-se, dizendo as cousas, enfim, que os lábios não quiserem exprimir e que os olhos não puderem dizer.

As convenções sociais têm sido ingratas, e, mesmo, injustas, com essa parte do corpo. Nos namoros começados em bonde, ou em mesa de jantar ou de víspora, são os pés, em geral, que estabelecem o primeiro contacto, avançando os primeiros reconhecimentos. E, no entanto, assim que o namorado se sente seguro do afeto de sua escolhida, dirige-se a ela, ou ao pai, e, — pede-lhe a “mão”.

O que há, porém, de mais admirável em um pé, não é o seu calo, nem o seu dartro, nem a sua unha encravada: é a sua faculdade de conhecer outro pé. Mergulhe alguém a sua botina por baixo de uma mesa a procurar o sapato de uma senhorita que tenha aí o seu noivo; e ela, sem o menor esforço, reconhecerá que aquele pé é um intruso, por distinguir o pé “dele” entre milhares de pés que se apresentem.

Dessa sensibilidade, que tanto eleva os pés, colocando-os, em algumas pessoas, acima das mãos, é documento o caso curioso, que deu ensejo à dissolução do noivado, tão cheio de bons augúrios, do Dr. Samuel Gonçalves Taveira, com M.lle. Guiomar Saavedra Guimarães.

Senhora honesta, educada nos rígidos moldes da velha família brasileira, Dona Florisbela estranhou, naquela noite, que dois pés insolentes procurassem os seus, à mesa do chá. Aborrecida com aquele desrespeito, principalmente por tratar-se de uns pés agressivos, a virtuosa senhora deixou que os convidados se retirassem e interpelou, severa, a menina:

— Guiomar, que costume é esse, então, de seu noivo andar pisando seu pé por baixo da mesa?

— Pisando, mamãe? — Estranhou a moça, escandalizada.

— Pisando sim. E tanto assim que, hoje, pensando que era você, ele quase me rebenta o sapato.

— Então, não era ele, não, mamãe! — Retrucou, a pequena, tranquilizando-se.

E, ingênua:

— Ele, até roça devagarinho...

XL

ILUSÃO DE ÓTICA

O sr. Antônio dos Santos Pereira chegara ao Brasil com seis anos apenas, e não pensara, até os trinta e sete, senão em amassar uma fortuna igual, pelo menos, à do seu tio, o Sr. comendador Manuel Vicente Pereira, dono da “Padaria Obidense”, no bairro de São Cristóvão. Aos trinta e oito anos, porém, com algumas dezenas de contos, abandonou a preta Felicíssima, com quem vivera desde os vinte, reformou a mercearia, montou casa e pediu em casamento, sem mais preâmbulos, a encantadora Maria Teresa, filha única do seu tio e uma das meninas mais prendadas e inteligentes que haviam saído naquele ano do Colégio Santa Mercedes.

O esposo de Maria Teresa era, entretanto, em matéria de inteligência, a antítese da mulher. Honrado e trabalhador, conquistava sem dificuldade a estima, o apreço; a confiança de quantos tratassem com ele matéria de comércio. Fora desse ambiente era, porém, como um pato num pombal: debatia-se, confundia-se, atrapalhava-se sem saber, com certeza, a verdadeira utilidade das asas.

Aos quarenta e três anos estava o sr. Santos Pereira na sua casa comercial palitando comodamente os dentes vigorosos de carnívoro, quando se aproximou dele, chamando-o em particular, o seu amigo Boaventura Teixeira, comerciante por atacado, pessoa a quem votara a mais acentuada consideração. Atrapalhado, após alguns rodeios inúteis, Boaventura explodiu, de chofre:

— Afinal, Antônio, o que eu cá tenho a dizer-te é o seguinte: tu és um homem desonrado!

De vermelho, cor de lagosta cozida, que era, o varejista ficou lívido. O palito, que tinha nos dentes, caiu ao chão, sem que ele sentisse. As mãos contraíam-se-lhe, gordas, sobre o peito da camisa gomada, que tremia, como se tivesse vida própria, aos baques violentos do coração.

— Desonrado, eu? — Exclamou, alvo como a camisa, atordoado, ainda, pela surpresa.

— Desonrado, sim! — Confirmou o amigo.

— Mas, eu deixei de pagar alguma letra?

— Não!

— Eu devo a alguém?

— Não!

— Então? — Indagou o sr. Antônio, esbugalhando os olhos vermelhos e empapuçados, sem compreender que um homem pudesse ficar desonrado, quando não tinha letras protestadas nem devia um vintém à praça.

Ante aquela estranheza dolorosa, o sr. Boaventura achou melhor não insistir: tomou o chapéu de palha, atirou-o ao cocuruto, e saiu, porta afora, deixando que o tempo, a meditação e os acontecimentos pusessem termo à ingenuidade do amigo. Risonho e sadio, o sr. Antônio deu de ombros, continuou a pensar nos seus negócios, no seu estabelecimento, na sua fortuna, até que, uma noite, ao entrar em casa, de regresso de uma reunião da classe, percebeu, depois de deitado no leito de casal, que apareciam, por baixo do lençol, seis pés, em vez de quatro, correspondentes aos dele e aos da esposa. Espantado com o caso, arregalou os olhos e tocou no ombro da mulher:

— Teresa, que é isso? De quem são aqueles seis pés que ali estão?

— Seis? — Exclamou a moça, rindo, embora um pouco nervosa. — Tu estás doido! Ali só há quatro: os meus e os teus!

Com o lençol até o pescoço, o sr. Antônio olhava, de olhos arregalados, os seis pés que apareciam, na outra extremidade da cama, e insistiu:

— São seis, sim!

— São quatro, Antônio! — Tornou a mulher. — É porque tu estás de longe, que enxergas seis. É ilusão de ótica!

Teimoso como um boi, o sr. Antônio resolveu tirar a limpo a questão: pulou do leito, calçou as chinelas de couro, deu volta à cama e, chegando ao lado oposto ao dos travesseiros, contou, tocando-lhes com o dedo, os pés que apareciam sob o lençol:

— Um... dois... três... quatro...

E rindo, tranquilo:

— Tens razão; são quatro mesmo!

E em seguida, deitou-se, e dormiu, feliz, até de manhã.

XLI

O RAMO DE CAFÉ

Sentado em um tronco morto, que o incêndio da mata não devorara, e que era, entre a verdura do cafezal, como um cadáver num grande esquife engalanado, o estudante Valério Couto esfuracava o barro do solo com uma pequena faca de campo, quando lhe surgiu, entre dois ramos carregados de frutos, o rostinho garoto e moreno da Luizinha, a caipirinha mais formosa e querida de toda a fazenda.

— Vem cá, Luizinha — chamou o estudante, chegando-se para um lado do tronco, afim de dar lugar à rapariga. — Senta-te aqui!

Dentinhos miúdos à mostra, olhinhos negros e brejeiros, Luizinha era, com os seus quatorze anos incompletos, o tipo característico da caipirinha nacional, fruto ligeiro e encantador de um precipitado cruzamento de raças. Deslumbrada com o mundo, entrava pela vida com a inocência e o estouvamento com que se atirava, às vezes, morro abaixo, nas alamedas do cafezal: sem olhar as raízes, os espinhos, os ramos atravessados no caminho, os obstáculos, enfim, em que podia tropeçar, estatelando-se tragicamente nas pedras. Era simples, boa e pura, e ia penetrando, assim, na mocidade, entre mil perigos diversos, como quem atravessasse, sob a mão invulnerável de Deus, um campo de batalha retalhado pela fuzilaria.

Risonha e cândida, vestidinho de cassa branca, pés descalços, a menina chegou-se, confiante, lançando para as costas os cabelos escuros e finos que lhe haviam voado para o rosto, e sentou-se ao lado do rapaz, abanando-se com a mãozinha aberta.

— Uf! Que calor... Não?

O estudante concordou que a manhã estava um pouco quente, mas que ela o sentia mais por ter vindo na carreira. E enquanto falava, examinava-a detidamente com os olhos, sentindo, ao mesmo tempo, uma pena, um dó, uma piedade daquela florzinha do campo, tão humilde, tão simples, tão linda e tão exposta, pelo conjunto da sua graça e da sua inocência, aos mil inconvenientes daquela vida sem cuidados. E como fosse bom e honesto, estirou a mão para um ramo de cafeeiro, onde os frutos se amontoavam rubros, redondos, incontáveis, como um rosário de sangue coagulado.

— É bonito; não é? — Disse, quebrando o galho, e mostrando-o à menina.

— Muito bonito! — Confirmou Luizinha.

— Mas é, também, muito triste... — tornou o estudante.

A caipirinha arregalou os olhos muito negros e muito vivos, e o rapaz insistiu:

— Tu não sabes, então, como foi que nasceram aqui estes frutos?

— Plantando; não foi? — Exclamou a pequena, voltando-se, estouvadinha, para ele, como quem acaba de fazer uma grande descoberta.

— Foi, sim, — confirmou Valério sorrindo. — Mas essa plantação tem uma história.

E começou a contar:

— Antigamente, quando meu pai e os outros fazendeiros chegaram aqui, os cafezais não davam frutos vermelhos, como hoje. Eram todos verdes, completamente verdes. Anos depois, porém, foram as mulheres, principalmente as moças, admitidas à apanha do café, durante a qual passaram a ser enganadas pelos rapazes das fazendas, que as beijavam, prometendo casamento. E tantas lágrimas de sangue choraram, depois, as desgraçadinhas, sob os renques de cafeeiros, que estes começaram a desabrochar em frutos vermelhos, sanguinolentos, como esses que estás vendo!

— É verdade isso? — Indagou a menina, acendendo muito os olhos inocentes.

— É, sim. Eu não te estou dizendo?

Um ano depois, nas férias seguintes, regressou o estudante à fazenda paterna, e um dos seus primeiros cuidados foi perguntar, à mesa do almoço, pelo pai de Luizinha:

— E o Pepe, como vai?

— Vai bem, — informou o coronel Couto, servindo-se de feijoada. A tarefa dele, no cafezal, foi, graças à filha, que o está ajudando, um verdadeiro sucesso, nesta safra.

E sem ver que o filho empalidecia:

— Foi a parte do cafezal que primeiro amadureceu, este ano! ...

XLII

O FANTASMA

O Sr. almirante Frontin havia acabado de contar, em uma roda de oficiais, no Clube Naval, um curiosíssimo caso de espiritismo de que fora testemunha quando o comandante Luiz Frederico, adivinhando a incredulidade dos colegas presentes, o secundou, sério:

— Eu por minha parte, creio. Creio que os mortos voltem ao mundo, porque, eu próprio, já vi.

— O senhor? — Interpelou, sorridente, o almirante Sampaio, voltando-se para ele.

— Você? — Inquiriu, com a boca de orelha a orelha, e coçando a cabeça, o comandante Tancredo Burlamaqui.

O antigo comandante do “Deodoro” encarou-os com gravidade, e confirmou, soturno:

— Eu, sim.

A atmosfera de curiosidade em torno do caso adensou-se, fazendo convergir para o digno marinheiro a atenção dos que se achavam no salão. E ele começou:

— Quando eu me casei pela primeira vez, minha mulher, que o senhor almirante conheceu muito...

— Uma santa senhora... — confirmou o almirante Frontin.

— Minha mulher —- reatou o narrador, — era ciumentíssima. E como às vezes lhe viesse ao pensamento a ideia de morrer, era costume seu dizer-me, pilheriando: Olha Frederico, se tu ficares viúvo e te casares de novo, eu não deixarei, absolutamente, que tu te apaixones da tua noiva”. E ameaçava: “Tu vais ver! ”

A roda que ouvia o ilustre marinheiro apertou-se mais, e ele continuou:

— Anos depois, como vocês sabem, eu fiquei viúvo, e, terminado o luto, casava-me com a Belinha, minha esposa atual, filha do almirante Mesquita. Na noite do casamento, minha consorte entrou para a alcova nupcial, fez a sua toilette, e deitou-se. Momentos depois, entrei eu, e ia tomar o meu lugar no leito, quando recuei, atônito: ao lado dela, muito branca, de mãos postas como no dia do seu enterro, estava a minha primeira mulher, que cumpria, assim, a terrível ameaça que me havia feito!

— Que horror — gemeu, assentando os cabelos, teimosamente arrepiados, o comandante Gama e Silva.

— Que cousa sinistra! — Acentuou o tenente Dordswort, alisando a pastinha com as duas mãos.

Pálido, olhos brilhantes de pavor, o simpático oficial reatou, com tremores na voz:

— Não querendo amedrontar minha noiva, que estava muito nervosa, sentei-me em uma cadeira de embalo que havia no quarto, e assim fiquei até de manhã, quando a moça se levantou, e se dissipou do seu lado, como uma bruma que se desfaz, o fantasma da morta!?

— E voltou na noite seguinte? — Aventurou, impaciente, o comandante Burlamaqui.

— Espere aí! — Pediu o narrador.

E continuou:        

— Na noite seguinte, a mesma coisa.

Sentado na cadeira, fiquei até de manhã, vendo ao lado da nova esposa, que também não conseguia dormir, o corpo da defunta. E assim na terceira, na quarta e na quinta noite, quando Belinha teve uma ideia. — “Quem sabe, — perguntou-me ela, — se, indo para o quarto do fundo da casa, ela não nos deixará sossegados? ” Achei boa a lembrança, e fomos. E, de fato, o fantasma não nos acompanhou.

— Vocês dormiram nessa noite? — Indagou, ansioso, o almirante Frontin.

O comandante Carlos Frederico ia responder afirmativamente. De repente, porém, lembrou-se que não devia mentir, desanuviou o espírito, e afirmou, sincero:

— Não, senhor!

E sorriu, sem querer.

XLIII

AS TRÊS LÁGRIMAS

Coelho Neto possui no seu tesouro literário, entre outras gemas faiscantes, um conto encantador, que é a história maravilhosa de três lágrimas:

“Alba, — começa o conto, — a boa fada protetora das noivas, Alba, que mora na pupila azul das virgens sem pecado, passando, uma manhã, junto de uma camélia, ouviu o seu nome pronunciado por três gotas trêmulas. Aproximou-se e, pousando no coração da flor, perguntou, carinhosa:

— Que quereis de mim, gotas brilhantes?

— Que venhas decidir uma questão — disse a primeira.

— Propõe-na.

— Somos três gotas diferentes, oriundas de diversos pontos; queremos que nos digas qual de nós vale mais, qual é a mais pura.

— Pois, sim. Fala tu mesma.

E a primeira gota trêmula falou:

— Eu venho das nuvens altas, sou filha dos grandes mares. Nasci no largo oceano antigo e forte. Depois, de visitar praias e praias, depois de andar envolta em mil procelas, uma nuvem sorveu-me. Fui às alturas onde brilha a estrela e, rolando de lá por entre raios, caí na flor em que descanso agora. Eu represento o oceano.

— Agora é a tua vez, gota brilhante, disse a fada à segunda.

Eu sou o rossio que alimenta os lírios: sou irmã dos luares opalinos, filha das névoas que se desenrolam quando a noite escurece a natureza. Eu represento a madrugada.

— E tu? — Perguntou Alba à mais pequena.

— Eu nada valho.

— Fala: de onde vens?

— Dos olhos de uma noiva. Fui sorriso, fui crença, fui esperança: mais tarde fui amor. Hoje sou lágrima.

As outras riram da pequena gota. Alba, porém, abrindo as asas, tomou-a consigo e disse:

— Esta é a de mais valor! Esta é a mais pura.

— Mas eu fui oceano!

— E eu fui atmosfera!

— Sim, trêmulas gotas, mas esta foi coração.

E desapareceu no azul, levando a gota humilde.

Este conto, que é uma verdadeira maravilha de arte, deu ensejo ao comendador Apolinário Correia, o conhecido diretor-presidente da Companhia Manufatureira de Colheres de Pau, para a imitação de uma pilhéria que eu li, há pouco tempo, em uma revista alemã ou francesa. O comendador estava, um destes dias, em um dos salões mais aristocráticos da cidade, no qual se fazia literatura da mais honesta e música da mais afinada, quando lhe surgiu a ideia de tomar parte, recitando trechos literários, em uma das próximas reuniões elegantes:

— Eu devo aprender a recitar! — Exclamou, em certo momento.

E virando-se para uma senhorita, que se achava ao seu lado:

— Que é que V. Ex. me aconselha para decorar, mademoiselle?

Gentil, a moça atendeu:

— As “Três lágrimas”, de Coelho Neto, é um conto muito bonito.

— Como?

A senhorita repetiu:

— As “Três lágrimas”.

A essas palavras, o comendador desatou a rir:

— As “Três lágrimas”! ... Esta é boa! ... Pode lá ser? ...

A moça olhou-o, espantada, e ele explicou-se:

— “Três lágrimas” ... Mas, se eu só tenho dois olhos?!...

E continuou a rir, segurando a barriga.

XLIV

ASTROLOGIA

Pessoas há, incrédulas, ou ignorantes, que recusam admitir a influência dos astros, que são eternos, sobre o destino passageiro dos homens. Acham elas que os planetas se encontram longe demais para se incomodarem com a sorte das criaturas humanas, acreditando, entretanto, que Deus, que fez as estrelas, e que deve estar mais distante, se preocupa minuciosamente com os nossos atos e, até, com os nossos mais insignificantes pensamentos. A verdade é, porém, que o destino dos habitantes da Terra está infimamente ligado ao movimento dos corpos celestes, e que Múcio Teixeira diz uma verdade quando afirma, com os olhos nos astros, que o que sucede à superfície terrestre já estava, de véspera, escrito nas alturas.

O episódio narrado ontem por um vespertino, de que o astrólogo americano Maccabee descobrira, por intermédio dos signos do zodíaco, quem era o pai de uma criança, deve servir, entretanto, para convencer os mais cépticos. Desconfiado de que o pequeno Gui, nascido de sua mulher Ana Poter, não era seu filho, mas do seu amigo Fred Beauvais, propôs o banqueiro americano James Stilman, presidente do National City Bank, de Nova York, uma ação de divórcio, acusando a esposa de haver quebrado a fidelidade matrimonial. Como saber, porém, se o menino era filho de Stilman ou de Beauvais? Foi para esclarecer esse ponto obscuro, esse enigma aparentemente indecifrável, que a acusada pediu o auxílio de Maccabee, o qual, encontrando sobre o signo do pequeno a sombra do planeta Mercúrio, não teve dúvida de que este era filho legitimo do banqueiro.

Não foi essa a primeira vez, entretanto, que a astrologia interveio nesses casos complicados, resolvendo-os com incontestável sabedoria. O episódio que me foi contado pelo Dr. Miguel Osório de Almeida, basta, suponho, para afirmar a imparcialidade dos astros, e para que se aceite, nos tribunais, o seu luminoso depoimento.

— O senhor não conhece o caso de Dona Evangelina Guterres, sr. Conselheiro? Perguntava-me, após a leitura do vespertino de ontem, o ilustre fisiologista.

E ante a minha negativa:

— Obrigado a afastar-se do Rio para o desempenho de uma comissão do Ministério da Agricultura, o engenheiro Albertino Guterres deixou aqui a esposa, Dona Evangelina, senhora elegantíssima, cuja vida era, quase toda, entrecortada de escândalos. De regresso da sua viagem, que durou um ano, encontrou o engenheiro o seu lar enriquecido com um pimpolho de quinze dias, que a mulher jurava pertencer-lhe. Duvidoso do caso, apelou o doutor Guterres para a astrologia, procurando o Barão Ergonte, para que lhe dissesse, com segurança, que planeta predominava no destino da criança. Consultando os astros, observou o Múcio Teixeira que pairava sobre o destino do pequeno a sombra...

— De Mercúrio? — Interrompi, interessado.

— Não, senhor.

— De Marte?

— Também, não.

— De Saturno?

— Pior!

— De Vénus?

— Qual, nada!

E esclarecendo:

— Da Via-Láctea, sr. conselheiro; da Via-Láctea! Era estreia que não se acabava mais!

E juntando os dedos, indicando a chusma:

— Fervia, assim! ...

XLV

A RECOMPENSA

Ao contrário do que sucede geralmente, o bonde, naquela noite, não ia cheio. Ou porque a tarde tivesse decorrido chuvosa, ou porque não houvesse terminado ainda a segunda sessão noturna dos cinemas, o certo é que, ao chegar o carro à Galeria Cruzeiro, poucas pessoas embarcaram. Pelo menos, ao tomá-lo, o conhecido boêmio viu apenas duas francesas irrequietas e pintadíssimas que iam para a rua do Catete, uma gorda matrona retardatária, carregada de embrulhos, o Sr. Dr. Plácido Barbosa, o professor Oiticica, quatro ou cinco pessoas sem classificação imediata e, no banco da frente, contíguo ao seu, uma linda senhora de grandes olhos claros, que conversava baixo com um pequenito de três para quatro anos.

Rangido nos trilhos, rodando com uma preguiça de funcionário público, o bonde chegou ao largo da Lapa como se não levasse no bojo um único passageiro. Pela altura da Glória, porém, foi o silêncio dos viajantes quebrado pelo menino, filho da formosa senhora, o qual se pôs de repente a choramingar.

— Não chore, Vitinho, não chore! — Pediu a moça, carinhosa, acariciando a criança.

— Se você chorar eu não lhe compro doce amanhã. Está ouvindo?

Apesar do sono irresistível que lhe amolecia o corpo e lhe fazia piscar os grandes olhos castanhos, o pequenito calou-se recostando-se ao braço materno. De súbito, porém, despertou de novo, e recomeçou a choradeira. E a senhora, aflita:

— Cale a boca, filhinho. Não chore; sim? Se você não se calar, amanhã eu não lhe compro o brinquedo que prometi.

Ou porque o brinquedo prometido fosse bonito, ou porque o sono fosse forte, o certo é que o menino se aquietou, esfregando os olhos. O silêncio foi, entretanto, dessa vez, mais curto do que da primeira, porque o choro recomeçou, mais alto, mais insistente, antes do bonde entrar na praia de Botafogo.

Amorosa, doce, maternal, a pobre senhora tentou, ainda uma vez, acomodar o pequenito. E prometeu, com um beijo, animando-o:

— Filhinho, não faça isso! Não chore!

E ameaçando-o, terna:

— Olhe, se você chorar, eu não deixo você ir de madrugada para a minha cama. Está ouvindo?

Por essa altura, o boêmio não pôde mais, e resolveu intervir. Curvou-se para a frente, sobre o banco em que vinham a senhora e o filho, e, com um risinho canalha, cínico, malicioso, que é só dele sussurrou como quem se dá parabéns por haver tirado um prêmio:

— Ainda bem que eu não chorei...

E endireitou-se, firme, no banco.

XLVI

DEUCALIÃO E PIRRA

Óculos na ponta do nariz, livro aberto à distância, o velho e notável catedrático de latim aproveitava a luz das quatro lâmpadas em que Dona Marcelina cerzia, com auxílio de um ovo de galinha, um monte de meias, para deletrear, em voz alta, o seu Ovídio. E lia, pausado, com o respeito de um padre que rezasse missa solene:

“Redditus orbis erat. Quem postquam vidit iannem

Et desolatas agere alta silentia terras.

Deucalion, lacrymis ita Pyrrham affatur obortis...”

— Lê isso em língua de gente, Inácio! — Interrompeu, de repente, a velhinha, pondo no seu pedido um misto de despeito e de bondade. — Nunca mais acabas com essa novena!?...

O velho deteve a leitura, olhou a esposa por cima dos óculos, e tentou explicar:

— Isto é a história de Deucalião e Pirra, que povoaram a terra depois do Dilúvio. É o Noé dos gregos; compreendes?

Dona Marcelina paralisou no ar o voo da sua agulha ligeira, indagando, curiosa:

— Noé?

— Sim, filha!

E como visse a esposa interessada naquela história tão comum, tão conhecida de toda gente, marcou a página do livro com um fio de linha, e passou a contar-lhe, recostando-se dogmaticamente na cadeira:

— À semelhança do que fez o Padre Eterno na Bíblia, Júpiter...

— Júpiter! — Atalhou Dona Marcelina. É nome de cachorro?

— Não; é o pai dos deuses.

E reatando:

— Júpiter fez desabar sobre a terra uma chuva que alagou cidades, campinas, montanhas, enfim, tudo. Sendo as duas únicas criaturas não contaminadas pelo pecado, pela perversidade que então empestava o planeta, foram Deucalião e Pirra preservados, ficando, quando as águas baixaram, como únicos senhores do mundo.

— Sozinhos?

— Sozinhos. A terra precisava, porém, de novos habitantes, e, aflitos com isso, correram, os dois, a consultar o oráculo de Temis o qual lhes deu um conselho: tomarem, um e outro, as pedras do caminho, e atirá-las para trás, por cima da cabeça. Obedientes, os dois fizeram isso, e, à medida que atiravam as pedras, as de Deucalião se iam transformando em homens, e as de Pirra, em mulheres. E, assim, repovoaram eles o mundo.

Ao terminar, com ares sentenciosos, a sua breve lição de mitologia primária, o professor observou, por cima dos óculos, que Dona Marcelina sorria brejeiramente.

— Pensas que é mentira? — Indagou, intrigado.

— Eu não, Inácio! — Atendeu a velhinha, sem deixar de sorrir. — Eu estou achando graça é de tu me contares uma cousa que todas as mulheres sabem!

— Que todas as mulheres sabem? — Estranhou o velho, franzindo a testa.

— Sim; que os homens são feitos de pedra!

E sorriu, bondosa, olhando-o com maliciosa ternura, enquanto apertava, distraída, a meia, com o ovo na mão...

XLVII

O SENADOR

À medida que a sala de espera destinada aos homens, no Senado, se enchia de uma multidão heterogênea, de indivíduos necessitados de emprego ou de gorjeta, o salão contíguo, reservado às senhoras, se ia povoando de figuras femininas geralmente elegantíssimas, que deixavam no ar, à passagem, um rastro de suave perfume. Iam chegando, e iam se sentando nas fundas cadeiras de couro puído, quando não preferiam, por amor aos vestidos caros, ficar de pé, examinando sem interesse os velhos quadros pendurados ao muro.

Às duas horas da tarde a saleta parecia mais um atelier de modista ou uma sala de festa do que a dependência de uma casa legislativa; e foi nesse momento, e nesse recinto de luxo, de graça e de elegância, que penetrou, no seu uniforme azul, agaloado de ouro como um caixão de defunto, o contínuo mais respeitável da casa, perguntando, atencioso, a cada uma das damas, o nome do senador com quem queriam falar. Dado este, o funcionário solicitava, numa curvatura, sorriso nos lábios:

— E o nome de V. Exa., faz favor?

Nesse dia de concorrência enorme, desempenhava o contínuo as suas delicadas funções de introdutor diplomático daquela câmara de anciãos, quando, curvando-se ante uma das senhoras mais chies, indagou, gentil:

— V. Ex. quer falar com quem?

— Com o senador Ernesto, — respondeu a moça.

— E V. Ex.? — Perguntou, diante de outra.

E ela:

— Com o senador Ernesto.

Recolhida essa resposta de cinco ou seis senhoras que se não conheciam, absolutamente, umas às outras, voltou o contínuo ao ponto de partida, pedindo o nome de cada uma:

— O nome de V. Ex.?

— Não é preciso, — respondeu a primeira. — Diga que é a senhora dele.

— E o de V. Ex.? — Pediu à segunda.

— Diga que está aqui a senhora dele. Ele sabe.

Obtida da terceira a mesma resposta, o contínuo achou desnecessário percorrer a roda, até o fim: voltou-se para as outras damas e, com o papel e o lápis na mão, indagou, sincero, numa grande curvatura:

— VV. Exas. também são esposas do Sr. senador Ernesto?

E desapareceu, rápido, por trás do reposteiro.

XLVIII

A IDADE E A DEVOÇÃO

(OBSERVAÇÃO ALHEIA)

O meu conhecimento com M.lle. Elisa Sobreira está resumido nas famosas “Estâncias românticas”, de Olavo Bilac: vi-a criança, via-a quando moça, e vejo-a hoje, no outono, ou, melhor, no inverno da vida, com um pouco de neve na cabeça e um monte de gelo no coração.

A primeira vez que a encontrei, em 1892, tinha ela saído do Colégio, em gozo de férias, com treze ou quatorze anos de idade. A sua fisionomia, as suas maneiras, a doçura da sua voz e a candidez das suas palavras, impressionaram-me, desde logo, profundamente. E foi com o mais puro dos sentimentos que, tomando-lhe nas mãos o rosto moreno, e olhando-lhe carinhosamente os olhos muito grandes, e muito azuis, lhe perguntei, paternal:

— Onde vai, agora, nesta manhã tão bonita?

— Vou à missa, — respondeu-me.

— À missa? E que santa, ou santo, tem a ventura de gozar a devoção de um anjo tão lindo?

— Nossa Senhora de Lourdes, — respondeu-me a menina, banhando-me, ingênua, com a luz inocente dos seus olhos.

E sem que eu lhe perguntasse:

— Ela é a minha protetora e a minha madrinha; tudo que eu penso, conto a ela; e é ela, apenas, que me guia na vida.

Levado pelos deveres da minha carreira, parti para a Europa dois meses depois, demorando-me por lá cerca de nove anos, após os quais tornei ao Rio de Janeiro. Certa noite, passeava eu pelo largo do Machado, quando vejo de súbito uma fisionomia sorridente, que me não era estranha. Saltei.

— É o senhor conselheiro Costa; não é?

— Exatamente.

Eu sou a Eliza, a Elizinha, filha do professor Gabriel. Não se lembra mais?

O meu rosto abriu-se num sorriso largo, expressão real do meu contentamento por aquele encontro. A criatura que eu vira pequena, a flor que eu vira em botão na alvorada maravilhosa da vida, havia desabrochado em uma rosa magnífica, de perfume inconfundível, que me deslumbrava e encantava.

— E de onde vem assim, a esta hora, com esse ar de felicidade e candura?

— Eu? Da novena.

— Foi rezar à sua madrinha, Nossa Senhora de Lourdes?

A moça riu, satisfeita da minha lembrança e da minha memória.

— Não, senhor. Fui rezar ao Sagrado Coração de Jesus.

— Ao Sagrado Coração?

— Sim, senhor. É ele, hoje, a minha devoção única!

E baixando os olhos com tristeza:

— Só os corações que sangram, como o dele, podem compreender os corações que também padecem...?

Levantou o rosto, e, com um santo entusiasmo:

— Depois, é uma imagem tão bonita! Não acha? Aquele ar de bondade! aquela ternura! Aquela pureza!

E juntando as mãozinhas de lírio, apertando com ardor, num júbilo inocente, a madrepérola do breviário:

— Como é lindo o Coração de Jesus! ... Não é?

Agora, passados dezoito anos, encontro a menina de 1892, transformada, apenas, na saudade do que foi, isto é, descendo monotonamente, pausadamente, de olhos baixos, a áspera montanha da existência. Honesta e boa, a Elizinha não casou, e é, hoje, a tia Eliza dos seus sobrinhos e dos sobrinhos dos outros. Não desesperou, entretanto. A religião confortou-a, amparou-a, consolou-a, mudando, embora, sempre, de intensidade e de objeto.

Uma destas manhãs encontrei-a, a caminho da matriz de Copacabana: Com tanta pressa ... Aonde vai, então?

— À missa, conselheiro. Estou na hora...

Detive-a um pouco:

— Orar ao Coração de Jesus?

— Não, senhor. Vou encomendar-me a Deus, todo Poderoso!

— A Deus, diretamente?

— Então? Na minha idade, conselheiro, a gente vai logo a Deus, ao Pai, ao Senhor de todas as coisas.

E com tristeza:

— Parece que nós, quando vamos envelhecendo, nos sentimos melhor com ele. É mais idoso, mais grave, mais respeitável... Não acha? Parece que, como velho, ele nos entende melhor...

E com um sorriso resignado:

— O senhor não quer vir comigo?

XLIX

FACEIRICE

Ao entardecer daquele dia, o Éden aparecera completamente modificado. Os animais, que, ainda pela manhã, se aglomeravam nas clareiras, saltando, correndo, divertindo-se em conjunto, haviam de repente entrado para a floresta soturna, onde, agora, se perseguiam, se dilaceravam, bebendo o sangue uns aos outros. Os lobos que, horas antes, pulavam na relva de mistura com os cordeiros, passaram a perseguir as ovelhas, devorando-as. As hienas miavam sinistramente na sombra, e havia, aqui e ali, nas moitas escuras, o fuzilar das pupilas de um tigre ou de um gato selvagem.

Um susto agoniado enchia, agora, todas as cousas. Fustigadas por um vento agitado, que imprecava, em todos os galhos, amaldiçoando-os, as árvores pareciam querer fugir, em debandada, arrancando as raízes mergulhadas no solo. O Eufrates, inquieto, apressara a correnteza borbulhante, como se pretendesse abandonar, para sempre, aquelas terras de maldição.

Apavorados, espantados, Adão e Eva olhavam aquela convulsão da natureza, como se duvidassem ainda que uma agitação tão grande fosse causada por um crime tão pequeno, tão simples, tão insignificante. E encostavam-se um ao outro, protegendo-se mutuamente, quando a mulher, que se apoiava ao ombro forte do companheiro, indagou, aflita, levantando para ele os seus lindos olhos claros, como duas interrogações luminosas:

— E agora?

— Agora, — respondeu o primeiro homem, sereno e grave, como quem acabasse de aceitar o desafio de todos os elementos da terra; — agora, cuidemos de nos vestir, porque, como vês, o Senhor nos arrancou até a roupa que nos cobria.

Eva baixou o olhar sobre o seu formoso colo nu, em que os seios se mostravam mais túrgidos, mais eretos, arrepiados pelo vento de tempestade que soprava dos lados do norte; desceu-o até o ventre arqueado e alvo; levou-o até às coxas, até os joelhos, até os pés, e, como não visse remédio para a sua vergonha, indagou, curiosa:

— Vestir-nos, com quê?

— Com folhas, filha. Façamos um vestido de folhas, — explicou o primeiro homem.

— Vai tratar de ti, que eu cuidarei do meu.

Meia hora depois regressava o réprobo do interior do bosque. Vinha inteiramente vestido de folhas, ligadas umas às outras por meio de fibras, com o auxílio de uma ponta de espinho. De longe, parecia um espantalho, um monstro, um animal desconhecido.

— Eva! — Gritou, ao chegar no lugar de onde havia partido.

— Já vou! — Respondeu, ao longe, a voz doce, embora medrosa, da companheira.

Adão esperou. Esperou. Esperou... Após uma hora, Eva saiu da floresta. Como vestimenta, que tanto lhe custara escolher e adicionar, trazia, apenas, a folha de parreira.

L

A “ALIANÇA”

A maior ambição de minha velhice é uma viagem muito longa, muito demorada, ao interior do Brasil. Conhecedor das cinco partes do mundo, naquilo que elas possuem de mais requintado em civilização, é curioso, realmente, que eu não tenha, jamais, entrado em contacto com os indígenas do nosso país. E daí o entusiasmo com que sempre ouço falar nos seus costumes, nos seus usos, nas suas originalidades, e a simpatia com que me pus a escutar, ontem, o ilustre etnólogo Sr. Dr. Roquete Pinto, o notável sertanista brasileiro, no jantar com que o Sr. Conde Pereira Carneiro comemorou a restauração dos seus velhos direitos nobiliárquicos.

À mesa, em forma de T, sentavam-se, além de oito ou dez senhoras, o senador Alfredo Elis, o senador Tobias Monteiro, o deputado Efigênio Sales, o deputado Dorval Porto, o deputado Dionísio Bentes, o capitão Mario Clementino, o comandante Souza e Silva e o Dr. Roquete Pinto, quando este principiou a falar na sua visita às tribos selvagens de Mato Grosso, e, em particular, nos casamentos entre os nambiquaras da região.

— O nambiquara — explicava o jovem Cristóvão Colombo das nossas florestas, — tem uma organização doméstica verdadeiramente invejável. A mulher é pacífica, afetuosa, obediente, só faz o que o marido quer, e só vai aonde ele vai.

As senhoras ouviam-no, atentas, com as facas e os garfos paralisados, e o ilustre viajante continuou:

— Há, entretanto, entre eles, certos costumes que se parecem muito com os nossos. O da “aliança”, por exemplo.

— Elas, então, usam “aliança”, como nós? — Interrompeu uma senhora alta, robusta, de dentes muito alvos e olhos muito negros.

— Usam, sim, senhora! — Confirmou o Dr. Roquete. — E uma vez aplicada pelo marido, a mulher acompanha o esposo para toda parte.

— E é uma argola, como a nossa? — Insistiu a dama, curiosa.

— É, sim, senhora. É uma argola, presa por um cordão, de que ele fica com a ponta.

— E usa-se no dedo?

— Não, senhora. Usa-se no nariz.

E retomou o talher.

LI

O ATOLEIRO

Passo a passo, para que os cavalos não tropecem nas pedras do caminho malcuidado, vão os dois viajantes sertanejos, rumo da cidadezinha do interior. Rédea solta no pescoço da alimária mansa e cansada, o da frente, o patrão, fabrica, indolentemente, entre os dedos, o seu forte cigarro de palha de milho. Pouco atrás, deixando-se levar com o mesmo abandono, marcha o areeiro, o guia, o conhecedor daqueles roteiros todos, capaz de enumerar, uma a uma, todas as carnaubeiras do sertão.

— Ainda falta muito, Venâncio? — perguntou o viajante, a acender, fazendo para-vento com as mãos, a extremidade do cigarro.

— Não senhor, patrão; é ali, — informa, o caboclo, apressando o animal.

E olhando o sol, através da ramagem:

— Antes do sol se pôr nós estamos lá.

De repente, o caminho principia a piorar. Em vez da areia pedregosa, áspera, do sertão alto, começa a aparecer terra fresca, úmida, que anuncia as proximidades de uma lagoa ou de um rio. E o viajante desemboca em uma clareira vasta, quase uma várzea, feia, escura, lamacenta, um verdadeiro paul de que emergem aqui e ali, bracejando, como soldados sitiados no momento da fuga, os vultos solitários das carnaúbas perdidas.

Surpreendido pela alteração do caminho, o viajante imaginou que o atoleiro era intransponível. Para além do brejal, recomeçava a estrada, firme, contínua, seguida; como seria, porém, para vencer tanta lama, atirada, assim, de chofre, na suave monotonia daquela viagem?

Esperava ele pelo caboclo, que se deixara ficar para trás, quando este apareceu, à distância, numa curva do matagal:

— Venâncio? — Gritou o bacharel, de longe. — Como é que se chega do outro lado?

— Ué! — Exclamou o areeiro, rindo.

— Seu doutor, então, não sabe o ditado?

E zombeteiro:

— Vossa Senhoria não sabe que o atoleiro é como “muié”?

O viajante sorriu, benévolo, da filosofia do guia. E, como tivesse compreendido o conselho esporeou o cavalo, e atravessou o atoleiro, passo a passo, pelo meio...

LII

OS NOVOS DEPUTADOS

O indivíduo que nasceu e viveu na cidade desconhece uma das emoções mais fortes que pode sentir a alma humana: a surpresa do homem simples, do sertanejo legítimo, ao entrar em contacto com a civilização. Diante dos edifícios de dez e vinte andares, dos trens, dos automóveis, dos aeroplanos, dos carros elétricos, das infinitas comodidades de que a ciência e a indústria têm cercado a vida nas grandes cidades, o habitante do interior deve ter a impressão de que se trata, não de uma verdade, mas de um sonho, de um delírio, de uma vertigem. O espetáculo deve ser, em verdade, tão assombroso, que ele próprio fechará os olhos, para não ver.

No norte do país são incontáveis as anedotas em torno desse deslumbramento da gente bisonha, ocupando, entre elas, o primeiro lugar, o assombro do cearense sedento, diante das águas imensas do mar. Fustigado pelo sol inclemente, que lhe devorou a seara e lhe bebeu, na planície, a última gota do açude, vem Zé Cearense do interior, com a língua ressequida, os ossos sobre a pele, quando estaca, deslumbrado, diante do oceano.

— Minha Nossa Senhora! — Exclama, arrebatado; — que poderzão d’água! ...

Olhos arregalados, boca seca, precipita-se no rumo da onda. Mergulha, nela, os dedos. Enche a mão, leva-a à boca, e, sentindo a água salgada, faz uma careta, cuspindo:

— Que pena! ...

E comenta, penalizado:

— Toda estragada! ...

No Sul, a vítima da ironia litorânea é, em geral, o mineiro. Fui eu próprio, se bem me lembra, quem divulgou aquela história ocorrida com um pequenito, o qual, nascido em Minas, foi trazido, um dia, ao Rio. Uma vez aqui, ia ele, com a sua mamãe, pelo Cais Faroux quando viu, no meio da baía, espadanando água com as rodas, uma barca de Niterói.

— Minha mãezinha! ... — gritou o pirralho, alarmado.

E, indicando a barca, com horror:

— Uma locomotiva morrendo afogada! ...

Era a propósito dessa anedota, que o sr. senador Raul Soares me contava, anteontem, o caso do Sr. Fidélis Reis, o novo representante mineiro, que, como se sabe, nunca saiu de Uberaba, onde possuía uma grande criação de porcos de raça. Desembarcado na Central foi o jovem deputado, em companhia do seu colega Dr. Antônio Carlos, até o cais, de onde descobriu, de repente, um enorme transatlântico que acabava de ancorar. Em torno do monstro, dezenas de lanchas se aglomeravam, atracadas, de proa, ao costado do bicho.

— Olha, ali — exclamou, deslumbrado, e com o dedo estendido no rumo do mar. — Aqueles naviozinhos são filhos daquele navio grande?

— São, — confirmou o Dr. Antônio.

Carlos. — São filhos dele.

O Sr. Fidélis olhou, refletiu, lembrou-se das suas porcas de Uberaba, e, franzindo a testa ilustre, insistiu, intrigado:

— E eles estão mamando?

LIII

O MARIDO BILONTRA

A pequena sala do escritório, à rua do Rosário, mobiliada com dois bureaux, um sofá, quatro cadeiras e duas estantes com livros de Direito, repousava na doce quietude daquela tarde, quando o Dr. Avelino Peixoto, único vivente que animava o recinto, ouviu o frou-frou de um vestido na escada. Interrompendo as razões que escrevia, pousou a caneta no tinteiro e, vendo à porta o vulto elegante da esposa, estendeu-lhe os braços, com alegria:

— Ah! És tu, meu amor? Vens ver o teu maridinho?

E dois beijos grandes, fortes, sonoros, cantaram no ambiente, como o desabrochar festivo e rápido de duas maravilhosas flores de som.

Puxando uma cadeira para junto do marido, pousou Dona Glorinha o braço roliço no ombro do esposo, pronta para ler, ao seu lado, o que ele escrevia, quando o telefone tilintou na mesa fronteira. Procurando disfarçar a sua preocupação, o jovem advogado levanta-se, toma o fone e comunica-se com alguém:

— Ah! É você? ... Sim... Pois, não...

Olha, minha mulher está agora aqui e eu não posso fechar o escritório... Sim... Sim ... Está bem...

Por essa altura, Dona Glorinha, que se interessara, desde o princípio, pela conversa, interrompeu, franzindo a testa:

— Quem é? Com quem tu estas falando?

Afastando o telefone, de modo a não ser ouvido do outro lado, o Dr. Avelino explica à esposa:

— É o Almendra, meu companheiro de escritório, que está me comunicando não poder voltar mais hoje. Ele foi à Gávea, e de lá foi para casa.

E retomando o fone:

— Olha... está combinado ... Irei, sim... Pois, não.... Pois, não... Sim... Sim... Sim ... Sim ...

A conversa ia por aí, com o testemunho silencioso e desconfiado de Dona Glorinha, quando soaram passos na escada. Frio, gelado, o Dr. Avelino empalideceu, atrapalhando-se com o fone. Um minuto mais, e as passadas soaram no corredor. Empurrada, com força, a porta abriu-se.

LIV

O NOIVO

A falta de amor e o excesso de interesse constituem os dois pontos capitais dos casamentos modernos. Um exame, embora ligeiro, do estado atual da sociedade, demonstraria que cinquenta por cento dos divórcios ocorridos nestes últimos tempos são devidos à fortuna das noivas, lançada como isca à ambição dos rapazes sem escrúpulos. E se é tão grande o número de lares desfeitos, destruídos, inutilizados legalmente, que dizer daqueles que se sustentam com dificuldade sobre alguns esteios sem segurança, ameaçados de desmoronamento desde o momento em que se esvaziaram os sacos de moedas em que assentavam?

A ideia de casar com mulher rica existiu, sem dúvida, em todos os tempos. Quando Isaac procurou Rebeca em Haram, não o fez, com certeza, unicamente, pelos seus méritos de violinista ou de aluna do Instituto de Música, mas, também, pelo dote em carneiros, em camelos e em trigo, prometidos por Batuel. Em nossos dias, porém, o sujeito casa é, exclusivamente, e antes de tudo, com a fortuna do sogro. A mulher, essa, ele a recebe a título de gratificação, achando, ainda, que faz uma grande gentileza em não ficar apenas com o dinheiro.

Para se ver como são formados os lares em nossos dias, basta lembrar o caso que obrigou o comendador Feliciano Teixeira a lançar pela escada, de mistura com a bengala e o chapéu, os ossos e o fraque do Pr. Aristides Fernandes, conhecido advogado nos foros do Rio e de São Paulo. Rapaz de sentimentos moderníssimos, o Dr. Aristides, informado da fortuna do comendador, e de que este subvencionaria fidalgamente o homem que tomasse conta das suas quatro filhas trintonas, resolveu entrar no negócio e dirigiu-se, confiante em si mesmo, para a casa do honrado capitalista. Chegado ali, e recebido festivamente, expôs o motivo da sua visita: ia pedir em casamento uma das meninas da família.

Comovido, o comendador não entrou em minúcias, e explicou a sua generosidade:

— As minhas filhas — disse — não irão desacompanhadas de recursos para a casa do homem que as escolher: cada uma delas tem o seu dote, na razão de cinco contos de réis por ano de vida que conte. Assim, a Teodora, que tem trinta e cinco anos, terá um dote de cento e setenta e cinco contos. E as outras na mesma proporção.

Radiante, o bacharel torcia as mãos, quando o velho indagou, feliz:

— É a ela que o doutor deseja? Aristides recolheu os dentes, recolheu o sorriso, recolheu a vergonha, e patenteou a alma nesta consulta horrível, torpe, miserável:

— Ela é a mais velha?

O resto foi com a Assistência.

LV

MATERNIDADE

O fim natural da mulher é a maternidade. Ela veio ao mundo especialmente para perpetuação da espécie, e de tal modo que só se sente bem na vida depois que cumpre dignamente a sua missão. Mulher sem filho é como árvore sem fruto; e não foi por outra coisa que o Nazareno amaldiçoou, em um gesto único, as figueiras e os ventres estéreis.

A maternidade é tão instintiva na mulher, que não há mãe, por mais egoísta, que não dê a vida para salvar a do filho. Mulheres há, mesmo, que preferem morrer, a incorrerem, na terra, pela infecundidade, na dolorosa maldição do Senhor. O caso do casal Souza Guedes é um admirável documento de tão sublime espírito de sacrifício.

Dois dias após o seu casamento, foram o Dr. Luciano de Souza Guedes e sua esposa, Dona Ernestina, surpreendidos por uma notícia fulminante: por motivos que só a ciência podia explicar devidamente, era impossível ao casal a sua perpetuação, isto é, o cumprimento do “crescei e multiplicai-vos”, determinado pelos Evangelhos.

— Sua senhora — explicou o Dr. Arnaldo Quintela ao pobre marido, — não poderá, nunca, ser mãe. Um filho custar-lhe-ia a vida!

— E que devo eu fazer, doutor? — Indagou, com os olhos estalando de pranto, o moço recém-casado.

— Separarem-se! — Confirmou o médico. — A minha opinião é essa. O senhor faça, entretanto, o que lhe ditarem a sua consciência ou os seus interesses.

Por muito tempo, não houve, em todo o bairro de Botafogo, casa mais triste, lar mais afundado em lágrimas, família mais desolada do que a do Dr. Souza Guedes. Se ele não adorasse a esposa poderia, com certeza, desquitar-se dela, recuperando, com o laudo médico, a liberdade que a lei lhe facultava; preferia, porém, à tristeza de uma separação definitiva, o consolo de tê-la a seu lado como companheira, como simples amiga, oferecendo-se, mutuamente, um inocente afeto de irmãos.

O maior heroísmo do ilustre advogado não se limitava, entretanto, ao domínio que exercia sobre si mesmo. Ao lado do sacrifício que fazia intimamente, havia outro maior: disfarçar quanto possível a verdade, vivendo nos mesmos compartimentos e dormindo no mesmo leito com a esposa da sua alma, para evitar o escândalo, as perfídias, os inevitáveis comentários de rua.

E assim iam vivendo: ele, a beijá-la nos lábios puros, fazendo-a adormecer como uma criança sobre o seu braço de Hércules, e ela, a dormir, cândida, junto do seu coração, chorando mudamente, silenciosamente, seu martírio e seu destino.

Ao fim de alguns meses, começava Dona Ernestina a pagar o seu tributo de nervos à sua angustiosa condição. Palidez, olhos pisados, ataques de choro, eram revelações amargas de um irremediável estado patológico. E tudo isso, como era natural, afligia, alarmava, torturava o marido.

Certa madrugada, porém, acordou o dr. Guedes, subitamente, com o choro convulso da mulher.

— Filhinha? Filhinha? — Chamou, agoniado.

— Hein? — Respondeu, ao lado, uma voz afogada em lágrimas.

— Que é isso? Que é que tens?

— Como eu sou infeliz, meu marido! Como eu sou desgraçada! Não poder embalar nos meus braços, nunca, nunca! o meu filho, o nosso filho — respondeu a pobrezinha.

E desolada, sem poder dominar-se:

— Antes a morte, Luciano! Antes a morte! Eu quero... morrer! ...

E abraçou-se com ele, pedindo a morte.

LVI

AS FRUTAS

No quinto dia da Criação a Terra estava quase pronta. Águas, montanhas, répteis, aves, animais, nada faltava no Paraíso, à espera dos seus primeiros habitantes. No alto, coroando tudo, fervia, à noite, o louro turbilhão das estrelas. E quando amanheceu, o sol coruscava entre as nuvens, como uma grande caçarola rutilante, da qual extravasassem ao mesmo tempo, subindo e derramando-se, o ouro e o fumo. Verdes, altas, enormes, as árvores, procurando apanhar o vento viageiro, bracejavam nas alturas, como cegos que procurassem reter alguém, que fugisse. E tudo era alegria, esperança, felicidade.

Contente da própria obra, Jeová tivera, entretanto, desde o amanhecer, uma ideia encantadora: ornar a verdura das árvores com a policromia preciosa dos frutos, os quais servissem não só de enfeite, como de meio para multiplicação das espécies vegetais. E era nisso que trabalhava, ele próprio, entre arcanjos e serafins, que o ajudavam, felizes, naquela faina deliciosa.

A campina, transformada em fábrica nessa manhã, ressoava de asas e risos, no tumulto daquela atividade. Divididos em grupos, milhares de anjos moviam-se ativos, na fatura dos pomos. Uns, ligeiros, escolhiam as sementes, de modo que cada fruto possuísse caroço inconfundível. Outros, rápidos, punham, sobre o caroço, a polpa cheirosa. Outros ainda, pressurosos, estendiam sobre a polpa a casca convidativa, que era vermelha nas cerejas, rósea nos jambos, negra nas jaboticabas, dourada nas mangas, áspera nos araticuns, veludosa nos pêssegos, diferente, enfim, em cada fruto e em cada árvore. As turmas de artífices mais caprichosos inventaram espécies imprevistas, das mais esquisitas variedades. E assim foi que, na distribuição, se verificou, entre risos, que a vegetais de grande porte, como a pitanga, havia cabido frutinhos minúsculos, pequeninos, quase ridículos, enquanto outros, humildes, baixos, rasteiros, como o ananás, o melão, a abóbora, a melancia, se viam sobrecarregados com frutos descomunais.

E estava tudo pronto, e alguns pomos, até, suspensos dos galhos, quando o anjo Gabriel acorreu, aflito, procurando o Supremo Arquiteto:

— Senhor! Senhor! Um erro! Os serafins enganaram-se na composição de dois frutos, e dos mais saborosos!

Jeová franziu o sobrolho, severo, e o anjo explicou-lhe melhor:

— Ao fabricar o caju e o morango, Senhor, eles esqueceram-se de pôr dentro o caroço!

A fronte do Eterno, que se mostrava carrancuda, tornou-se, de súbito, pensativa.

— Onde estão os caroços desses frutos — indagou, ao fim de alguns instantes.

O anjo apresentou-lhe, nas mãos, uma castanha e uma infinidade de sementes pequeninas, miudinhas, quase invisíveis.

— Dá-me o caju e o morango, — pediu.

O anjo entregou-lhe os frutos.

Jeová tomou, então, entre os dedos, o caju e fixou, em uma das extremidades, a castanha. Tomou, em seguida, o morango e polvilhou as sementes por cima.

E aí está porque, entre os frutos mais delicados, são o caju e o morango os únicos, hoje, que possuem o caroço por fora da casca.

LVII

REPRESÁLIA

Namorados desde que abriram os olhos para as promessas da vida, o Aderbal e a Aurelinha chegaram, no caminho de ferro do matrimônio, até a estação do noivado. Pura, bonita, carinhosa, a moça depositava naquele casamento a sua maior esperança de felicidade na terra; e era com o coração em festas que preparava o seu enxoval, fazendo as suas camisas, urdindo as suas rendas, marcando as suas fronhas, com o encanto, a alegria, a jovialidade com que a ave tece o seu ninho.

Certo dia, porém, apareceu no bairro uma senhorita de família rica, e o Aderbal, que ia todas as noites à casa da Aurelinha, começou a ir, a princípio, apenas aos domingos e quintas, e, depois, uma só vez por semana, para, afinal, tornar-se cada vez mais esquivo. E de tal moda as coisas se conduziram que, ao fim de três meses, Aurelinha metia no seu diário as peças do seu enxoval, ao mesmo tempo que o Aderbal partia em viagem de núpcias com a Celeste, a jovem milionária a quem recebera, dias antes, como esposa, com suntuosa solenidade.

Um ano depois, de regresso da sua excursão, vivia o novo capitalista na opulência, no luxo, no conforto, facultados pela fortuna da mulher, mas era, com o conhecimento de toda a gente, o marido mais infeliz da cidade. Voluntariosa e grosseira, Celeste não suportava o esposo, a quem desfeiteava publicamente, e em todas as circunstâncias. E de tal forma o fazia, que, segundo se dizia, só o Aderbal, entre os rapazes da terra, não era, efetivamente, seu marido.

Foi por esse tempo que, em um baile na casa do comendador Paulino Machado, o Aderbal se encontrou, frente à frente, com a sua encantadora Aurelinha, que era ainda o mesmo rosto cândido, e a mesma juventude risonha. Lembrando-se do seu primeiro noivado, do qual sentia saudades tão fundas e tão sinceras, o rapaz aproximou-se da moça disposto a convidá-la para um tango, mas aventurou-se apenas ao convite, com o corpo em arco e o braço em curva, para recebê-la:

— Dona Aurelinha dá-me a honra...

— Como? — Indagou a moça, rindo.

Aderbal gaguejou, trêmulo, e insistiu, sem concluir a frase:

— Queria que a senhora me desse a honra...

— Dar-lhe a “honra”? — Acentuou a moça, irônica. — O senhor já perdeu a sua?

E, zombeteira, dando o braço a um cavalheiro, que se aproximara:

— Pois, olhe: não fui eu...

E afastou-se dançando, deixando o desgraçado diante da cadeira vazia, com o braço em anzol.

LVIII

O CHAMPAGNE

Marta Lefevre, a lindíssima artista que arrebatara de maneira tão inopinada a nossa plateia do Municipal, primara, sempre, no Rio, pela bizarria das suas estroinices. Boêmia por temperamento, foi para ela uma alegria o encontro, aqui, de companheiros para as suas noitadas inesquecíveis, entre os quais se assinalavam, naquele tempo, Antônio Azeredo, Júlio Otoni, Joaquim Murtinho, Álvaro de Carvalho, e, especialmente, o Sr. conde de Leopoldina, que tinha, então, em ouro, no bolso, toda a prata que hoje tem nos cabelos. Extravagante como ninguém, foi para todos nós uma surpresa a proposta que ela nos fez uma noite:

— Se me desse, agora, na cabeça, de tomar um banho de champagne, vocês pagavam a despesa?

— Eu pago! — Prometeu logo o atual vice-presidente do Senado, levantando-se com entusiasmo.

— Eu pago! — Afirmou, disputando-lhe a honra, e coçando a barbicha de Pequeno Polegar, o Pr. Júlio Otoni.

— Quem paga sou eu! — Impôs, de pronto, sem admitir réplica, o antigo incorporador da Superaris.

E como a formosa artista escolhesse, dos três, o último, dez minutos depois estouravam no seu pequeno banheiro de mármore, e esvaziavam-se na sua grande banheira de louça, enchendo-a até o meio, quarenta e oito garrafas de Clicquot, legítimo, que fervia e espumava, louro, numa grande carícia convidativa.

Tomado, pela artista, o banho extravagante, que foi demorado, e de corpo inteiro, deixou ela o banheiro, passando-se para o gabinete contíguo, de onde voltou ao salão, para receber os parabéns dos amigos pela sua originalidade.

No meio de tudo isso, porém, havia uma pessoa que se não conformava com aquela extravagância: era a Genoveva, governante da encantadora boêmia, a qual, ao penetrar no banheiro, não se conteve, lamentando:

— Quanta maluquice, meu Bom Jesus de Braga! Quanta maluquice, quando há, neste mundo de Deus, tanta gente morrendo de fome e de sede!

De repente, meditou:

— E se eu engarrafasse agora este champagne, de novo, quanto eu não ganharia nisso?

Satisfeita com a própria ideia, examinou a Genoveva se a porta estava trancada, sentou-se perto da banheira, e, com um funil e uma tigela, pôs-se, cuidadosamente, a reengarrafar o líquido. E ia contando as garrafas à medida que as enchia.

— Uma.

— Duas.

— Três.

— Sete.

— Dezoito.

— Vinte e quatro.

— Trinta e duas.

— Trinta e sete.

— Quarenta e uma.

— Quarenta e seis.

— Quarenta e sete.

— Quarenta e oito.

De repente espantou-se.

— Uê! Como foi isso?

As garrafas estavam todas cheias até o gargalo, mas havia ainda, na banheira, quase duas garrafas de champagne...

LIX

OS SULTÕES

Um médico eminente, o Dr. Gigoloff, da Universidade de Praga, publicou recentemente, no Athenoeem, a conhecida revista berlinense, um estudo curiosíssimo, demonstrando a decadência física do homem, nestes últimos duzentos anos. O indivíduo, hoje, tem, sem dúvida, a existência mais longa; A média da vida subiu, é certo, de vinte por cento no mínimo. O homem dos nossos dias é incapaz, no entanto, mesmo no Oriente, de manter o regime poligâmico, sustentando os grandes gineceus, os serralhos populosos e atordoantes, como sucedia antigamente.

O ilustre professor eslavo está, porém, no meu parecer, enormemente equivocado. O homem dos nossos dias não tem mais, é verdade, como os sultões turcos e os nossos fazendeiros coloniais, as suas coleções de mulheres, vivendo conjuntamente no mesmo palácio, na mesma casa, na mesma fazenda; possuem-nas, entretanto, separadamente, cada uma num palacete, numa pensão, ou num albergue da cidade, sem que isso diminua, em nada, o seu interesse ou a sua dedicação. A poligamia existe larga, intensa, profunda: a modificação consistiu, apenas, na disposição do gineceu, que não foi extinto, mas, apenas, fracionado e multiplicado.

Essa revolução nos hábitos comuns do homem civilizado pode dar ensejo, no entanto, a confusões lamentáveis, como aquela de que foi vítima, não há muito tempo, o velho e conceituado jornalista, o Dr. Juvenal Pacheco, do Jornal do Comércio.

Homem de recursos modestos, obtidos penosamente na sua advocacia, o Dr. Antonino Cordeiro era um desses desgraçados que só possuíam, no Rio, dois lares: o da rua Barão de Petrópolis, em que residia a sua esposa legítima, recebida perante a lei, e o da travessa Moreira Mota, onde morava Dona Zulmira, senhora encantadora, linda, sem compromissos, recebida por ele perante os vizinhos, com o testemunho, apenas, das fronhas, dos travesseiros, e de alguns móveis mais ou menos domésticos. Vivendo ora aqui ora ali; almoçando na rua Barão de Petrópolis e jantando na Gávea; abençoando de manhã quatro crianças morenas, e à tarde, no extremo da cidade, três outras completamente louras, — o Dr. Antonino acabou, como era fatal, por confundir os lares, e por não distinguir, mesmo, os filhos naturais dos filhos artificiais.

Foi nessa situação que o Dr. Antonino, encontrando-se com o seu amigo Juvenal convidou-o:

— Queres ir almoçar comigo amanhã?

— Onde?

— Em minha casa.

— A que horas?

— Meio-dia, em ponto.

No dia seguinte, à hora aprazada, batia o jornalista à porta do pequeno prédio da rua Barão de Petrópolis, onde Dona Heleninha, que já o conhecia, o recebeu amavelmente, na sala. E pôs-se a palestrar, tratando da crise do papel, da disseminação da gripe, da situação política, do preço dos ovos, e de outros assuntos mais ou menos interessantes. Às doze e meia, com o estômago em alvoroço, o visitante esperava, ainda, o barulho de talheres. E nada. Às duas da tarde, enfim, com a garganta seca de conversar, e sem o menor sinal de presença do amigo, tomou coragem, passeou os olhos em torno, enxugou a testa, acabando com a cerimônia.

— E o Antonino, não vem?

— O Antonino? Não, senhor, — informou, logo, a senhora. — Ele hoje avisou que ia almoçar fora.

— Almoçar fora? — Estranhou Juvenal, dando um pulo na cadeira. — É possível?

Furioso, bofando de indignação e de fome, tocou-se o jornalista para a cidade, onde almoçou no primeiro hotel que lhe apareceu no caminho. E descia pela rua do Ouvidor, meditando na patifaria.do amigo, quando lhe bateram, de repente, no ombro. Voltou-se. Era o Dr. Antonino, que, indignado, o censurava:

— Então, você não foi! ...

— Não foi, o quê? — Retrucou o convidado, franzindo a cara.

— Ao almoço.

— Ora, não fui? Estive em sua casa até as duas horas, e você não apareceu.

— Em que casa, homem? — Atalhou o advogado, percebendo a confusão.

— Na sua, na rua Barão de Petrópolis.

Antonino sorriu. E confessou, cínico:

— Homem, você tem razão. Eu me esqueci de dizer que o almoço não era na casa... civil.

E com uma gargalhada:

— Era na casa... militar!

LX

AS PÉROLAS

A terra ainda fumegava com o sangue dos samurais estripados nas vizinhanças da cidade, quando Ioritomo, proclamado primeiro Shogun, ordenou, entrando no seu palácio de Iocoama, que lhe fizessem vir todas as mulheres.

Trêmulas, amedrontadas, com o pavor estampado nos negros olhos repuxados nas pontas, as mais lindas moças das oito ilhas sagradas começaram a desfilar, uma a uma, ante o trono suntuoso do bárbaro. E à passagem de cada uma, os olhos faiscavam-lhe, sinistros, no rosto mascarado de sangue e poeira, do qual pingavam, aos cantos dos lábios, como as caudas de dois ratos, os raros fios do bigode cerdoso.

Sanguinário e brutal, Ioritomo era para as mulheres o que é, entre as amoreiras de Tsishima, o milhafre para as rolas: atirava-se a elas com toda a fúria dos nervos e de modo tal que, das esposas do seu leito, uma só, em dois anos, não lhe saíra morta dos braços. E era por isso que as moças tremiam, mal se sustendo nos pés minúsculos, ao desfilar, naquele dia, ante os seus olhos injetados de luxúria e de sangue.

Em certo momento, a espada do guerreiro formidável bateu, áspera, na laca escura do trono. Tremendo, os mandarins acorreram. Assustados, os samurais dobraram-se, tocando, quase, com o rosto no chão. As mulheres pararam, e o monstro falou, indicando a mais formosa entre todas:

— Que mulher é aquela?

— Sabeis, filho do Céu, e Senhor Supremo das Oito Ilhas Eternas, — informou, trêmulo, o mais idoso dos mandarins, — que aquela moça é Nakieda, a mais jovem das vossas esposas virgens, mandada à vossa glória pela humildade de Noichan, sacerdote do templo de Benzaiten, em Iedo.

— Por que chora essa mulher? — Insistiu o bárbaro.

— Porque era noiva, Senhor, e a arrancaram, para sua felicidade e vosso gozo, no dia mesmo em que devia dormir, com o seu noivo, à sombra da cerejeira sagrada, — informou o mandarim.

As faces de Ioritomo, ásperas e escuras como os penedos que formam, na ilha de leso, as bases do monte Comaga, tremeram, rápido, como se as abalasse um pequeno vulcão invisível. E foi com tremores na voz que ordenou, erguendo-se com ruído:

— Então, arrancai-lhe hoje mesmo, os olhos, e atirai-os ao mar, do mais alto rochedo da costa.

E voltando-se para o mandarim:

— A tua vida, lobo silvestre, responde pela minha ordem!

Anos passaram-se. Morto, Ioritomo, subiu ao trono outro shogun, que fez, com a sua bondade, cantar os pássaros e sorrir as mulheres. E foi no reinado deste que levaram, um dia, ao palácio real, em Iocoama, duas pequenas conchas, dentro das quais luziam, com uma claridade doce, duas lágrimas petrificadas.

Eram os olhos de Nakieda, a noiva infeliz, que andavam chorando, tristes, entre as ondas do mar...

LXI

O LOBISOMEM

No hall do conhecido hotel familiar da rua do Catete, a virtuosa viúva Dona Cantidiana Guimarães, lia, atenta, na sua cadeira de vime, o volume da “Vida Roceira”, de Leôncio C. Oliveira, que o sr. professor Silva Ramos lhe emprestara na véspera, quando, à página 14, se voltou para as outras senhoras que palestravam em torno e chamou escandalizada:

— Que horror, meu Deus! Vocês querem ouvir uma coisa?

As amigas aquietaram-se, com respeito, e Dona Cantidiana leu, entre o silêncio de todas:

— “Narra a lenda que, sendo uma mulher casada com um lobisomem, só lhe soube a sina quando, certa noite, despertou sobressaltada com enorme cão dentro do quarto. Gritou apavorada pelo marido, que julgava a dormir, e o cão, enfurecido, atacou-a, esfacelando-lhe a dentes a saia de baeta vermelha que vestia. Na manhã seguinte, ao surpreender entre os dentes do marido filamentos de lã de sua saia, compreendeu-lhe horrorizada o desgraçado destino, abandonou-o e levou o resto da vida a penitenciar-se do tempo que coabitou com o terrível duende”.

— Minha Nossa Senhora! — Exclamou, ao fim da leitura, a bondosa Dona Margarida, olhando as companheiras.

— Que horror! — Confirmou, num arrepio, a jovem Dona Linoca, encolhendo-se toda.

Das três senhoras que haviam ouvido a leitura, uma, apenas, e justamente a mais linda, e a mais infeliz, nada havia dito, quando Dona Cantidiana se calou. Pálida, fria, com o beiço alvo, de cera, Dona Julita nada dissera, nada comentara, porque estava quase desmaiada.

— Será possível, meu Deus?!... — Gemeu, logo que pôde falar.

As amigas cercaram-na, carinhosas, reanimando-a.

— Aquele miserável seria, mesmo, além de tudo, lobisomem? — Aventurou, referindo-se ao marido, de quem se achava separada.

As companheiras entreolharam-se, sem compreender o mistério. E Dona Julita adiantou:

— Mas a quem iria ele comer, de noite, para entrar em casa de madrugada, bêbado, com a boca cheia de cabelo?

E estendeu a cabeça entre os braços, numa crise de choro.

LXII

O TIGRE E A JUMENTA

A recepção oferecida ao corpo diplomático por S. M. o Imperador havia levado a Wilhelmstrasse, naquela noite, o que havia de opulento, de chic, de aristocrático, na alta sociedade de Berlim. E foi para mim uma felicidade ficar, dessa vez, ao lado do conde Miguel Walidof, o velho conselheiro da Embaixada Russa, respeitável ancião de setenta e dois anos, cujos bigodes alvos, contrastando com o rosto cor de rosa, o faziam extremamente parecido com o rei Pedro, da Sérvia.

Observador penetrante como um caco de vidro, ao conde não escapou a transformação que se operara na fisionomia de Sua Majestade assim que entrou no salão, aproximando-se do trono, a graça juvenil da duquesa Fernanda, de Hesse, cuja intimidade com o soberano ia perturbando, poucos anos depois, a felicidade doméstica da mais virtuosa corte do mundo.

Olhos muito azuis e muito doces, o conde fitou-me com encantadora malícia, chamando a minha atenção para o caso:

— Ouviu V. Ex., sr. conselheiro, o zurro do tigre real?

Eu o olhei, intrigado, e ele tentou explicar-se:

— Não conhece, porventura, aquele apólogo oriental do asno e do tigre?

À confirmação da minha ignorância, o conde chegou a cabeça mais para meu lado e contou-me, em voz baixa, sem afastar os olhos do estrado em que se sentavam, com o seu luxo atordoante, os membros da casa imperial:

— Certo ferreiro armênio, — começou — possuidor de um asno muito velho, não sabia o que fazer do pobre animal. Sem recursos para engordá-lo, não queria, também, matá-lo, para aproveitamento do couro. Nas proximidades do seu casebre havia um campo de trigo, pertencente a um lavrador poderoso, que lhe não cedia, sequer, um feixe de palha. E foi quando teve uma ideia: arranjou uma pele de tigre real, coseu-a no asno, e soltou-o a pastar no trigal do lavrador. Pela manhã, ao irem para o trabalho, os ceifeiros, ao verem a fera terrível, dispararam para trás na carreira, indo comunicar o fato ao patrão, que também nada fez, atemorizado. E assim ia o asno engordando pacificamente no pasto farto, afugentando toda a gente, quando se deu o inevitável.

— Descobriram o artifício? — Indaguei, a meia voz.

O narrador deixou-me sem resposta, como se me não tivesse ouvido, e continuou:

— Prejudicado na colheita, o dono do trigal presenciava, de longe, de um esconderijo, a impassibilidade do bicho, esperando que ele se fosse embora, quando, uma tarde, apareceu à distância, na extrema do campo, uma jumenta que fugira da estrebaria. Gordo e forte, o “tigre” não demorou em descobri-la. E erguendo a cabeça para o ar desatou a zurrar furiosamente, ao mesmo tempo que, verificando o logro de que estava sendo vítima, o lavrador lhe saía em perseguição com os seus homens, correndo-o barbaramente a pauladas!

Passado um instante de silêncio, em que o olhar, viajando entre o Imperador e a duquesa, supria vantajosamente as palavras, o conde sussurrou-me ao ouvido, piscando os seus olhinhos muito miúdos, e muito azuis, que eram, na sua face lisa, como duas turquesas num bloco de mármore róseo:

— São as jumentas, conselheiro, saiba-o o senhor, que denunciam o asno que está, sempre, sob a pele dos tigres reais!

E espetou os olhinhos, firmes, nos bigodes do Imperador.

LXIII

DATILOSCOPIA

Após alguns meses de exercício interino no Gabinete de Identificação da Polícia, o Dr. Francisco Elias ficara obcecado, inteiramente, pela datiloscopia. Armado de uma lente forte, que conduzia no bolso do colete, mal entrava ele em um bonde era, logo, examinando as marcas dos dedos, os sinais deixados pelas mãos dos passageiros, como se andasse, porventura, dia e noite, em busca de um assassino ou de um ladrão. E, como nos bondes, vivia ele nos cafés, nos restaurantes, nas casas de chá, nas confeitarias, e até na sua própria residência, onde lhe não escapavam ao exame os mínimos vestígios de dedos nos copos, nos pratos, nas xícaras e nos talheres.

Essa obsessão não impedia, entretanto, que o ilustre funcionário policial tivesse outra mania pior: a de ser ciumento até o desespero, de modo a transformar a vida da esposa, a desventurada Dona Guiomar, em um contínuo e horrendo suplício. Desconfiado como todo o homem feio casado com senhora bonita, a pobre moça não saía, não passeava, não se divertia, não ia, sequer, aos cinemas do bairro. Os condenados que apodrecem nas colônias correcionais eram, de certo, mais livres. Se a condenassem ao degredo na costa da África, o seu martírio seria, talvez, menor.

A tempestade do dia 26 de janeiro de 1917, que fez desabar tantas casas em Ipanema, acabou, felizmente, com aquela tragédia ignorada. Começado o temporal, pessoas que passeavam na praia correram, naturalmente, a abrigar-se nas casas abertas; e, pomo entre estas estivesse a do Dr. Elias, foi com os olhos injetados de sangue, a alma injetada de dúvidas, que ele viu, ao chegar, em sua sala de visitas, três ou quatro senhores que lhe eram desconhecidos.

— Que é isto, aqui, então? — Trovejou, furioso, ao saltar do automóvel, enquanto se libertava da capa de borracha e limpava os pés no tapete.

— São pessoas que pediram agasalho contra a chuva, Lili, — informou a mulher, com o sorriso nos lábios e o terror no coração. — Logo que a ventania passe, eles se não embora...

— Não quero saber disso! — Berrou o marido, feroz. — Isto aqui não é estalagem, não é hotel, não é rancho de passar chuva.

E, escancarando a porta, com o dedo estendido para o jardim, onde o vendaval rugia, torcendo as árvores e arrebatando tudo:

— Cavalheiros, rua!

Indignados, embora; com aquela brutalidade, os hóspedes de alguns minutos não relutaram: suspenderam a gola do casaco e desapareceram, um a um, arrastados pelo vento e alagados pela chuva, no horror da noite tempestuosa.

Duas horas depois, a um sopro mais forte do temporal, foi ouvido em todo o quarteirão um ruído de desmoronamento. Algumas janelas abriram-se, afrontando as rajadas, e partiu, de todas as bocas, um grito de horror: o palacete do Dr. Francisco Elias havia desabado sobre os seus moradores, restando de tudo, apenas, um monte de telhas, de vigas, de tijolos, de tábuas, que a chuva desesperadamente chicoteava!

Só no dia seguinte, no entanto, foi possível desentulhar as ruínas para retirar os cadáveres. O primeiro encontrado foi o da arrumadeira, descoberto no quarto do chauffeur. O segundo, foi o deste. O terceiro, o da cozinheira, que foi achado com a cabeça enfiada em uma caçarola.

Os dois patrões foram desenterrados por último, e causaram sensação. O corpo de Dona Guiomar foi encontrado de bruços sobre a cama do casal. Estava inteiramente despido. Ao lado dele, vestido como entrara da rua, estava, inerte, o Dr. Elias. O cadáver tinha o crânio partido, e apertava, ainda, uma lente na mão.

LXIV

DÚVIDAS

Suavemente moreno, olhos grandes e pardos, cabelos castanhos bastos e lisos, penteados para trás, Antonico era um desses rapazolas de dezoito anos que, se vestissem saias, seriam arrolados entre as meninas mais bonitas do Rio de Janeiro. As suas mãos, de dedos finos e longos, eram puramente femininas. A sua boca vermelha, pequena, petulante, de dentes regulares e alvos, fariam o orgulho da senhorita mais vaidosa de si própria. O corpo mesmo, flexível e esguio, tinha, nos movimentos, ondulações graciosas, como se ele estivesse habituado a andar, desde menino, com sapatos à Luiz XV. Aprimorando essas virtudes, esses dons que a natureza lhe dera, Antonico acentuava, sempre, o rubor das faces e o vermelho dos lábios com um pouco de rouge, dando, ainda, aos olhos, uma ternura, um requebro, uma graça verdadeiramente estonteadora.

Apertadinho no seu paletó cintado de casimira azul com risquinhos vermelhos, concerta o rapazola o pequeno laço claro no colarinho da camisa de seda creme, e encaminha-se para o cinema Central, onde pede, no guichet, à moça que vende bilhetes:

— Dá-me uma entrada; sim, criatura?

Chegado à sala das exibições, onde, à sua passagem, as moças riem baixo e os homens suspiram alto, sente-se Antonico repentinamente incomodado, e levanta-se novamente, procurando retirar-se. No corredor de saída, vê, porém, uma porta, no alto da qual soletra, em caracteres firmes: “CAVALHEIROS”. E ao alto da outra, fronteira: “SENHORAS”.

Descobrindo ali o que ia procurar fora, Antonico estaca, e, de mãos na cintura, geme atrapalhado:

— Agora, como é?

E queda-se, de pé, muito frio, corado apenas pelo rouge, a piscar aflitamente as grandes pestanas sedosas, como a Bertini, como a Cavalieri, como a Helena Makowska, — sem saber, ao certo, qual daqueles gabinetes lhe compete...

LXV

A CULPA DO VENTO NORTE

— A coisa que mais me faz mal aos nervos, Sr. Almirante, é ver um homem barbado. O senhor não imagina como eu me sinto mal, quando me encontro, na rua, com o Dr. Barbosa Lima, com o Dr. Abreu Fialho, com o Dr. Estelita Lins, e outros barbudos semelhantes! A impressão que eu tenho, é de que eles não são homens, criaturas humanas, mas leões, gatos, bodes, macacos, não sei o que!

Era com essa irritação nervosa que a viscondessa de São Geraldo se queixava, com arrepios nas alvas espáduas desnudas, ao seu velho amigo almirante Ribas, à mesa de jantar dos Almeida Soeiro, naquele admirável banquete com que eles comemoraram, sábado último, o seu oitavo aniversário de casamento. E insistiu:

— Eu queria só que me dissessem, quem inventou essa moda de ter cabelos fora da cabeça ... Não era, então, preferível que o homem não tivesse esse trabalho de fazer a barba todos os dias, e que as mulheres elegantes se não vissem na contingência de recorrer a depilatórios, a drogas muitas vezes nocivas, para usarem vestidos decotados ou de manga curta? Onde estava, então, a sabedoria de Deus, quando lhe veio essa ideia?

O almirante olhava, sorrindo, a toalha da mesa, dobrando e desdobrando vagarosamente o seu guardanapo quando protestou:

— Mas, isso, não foi culpa do Onipotente, minha senhora...

— Não foi ele, então, quem formou o homem? — Obtemperou, intrigada, a viscondessa.

— Foi, sim, senhora. Mas, nesse caso das barbas, trata-se, apenas, de uma coincidência.

— De uma coincidência?

O almirante olhou para os seus vizinhos de mesa, e, vendo que os outros convivas se achavam empenhados em uma discussão viva sobre cousas de futebol, começou, à meia voz, para a sua linda vizinha da esquerda:

— Quer que lhe explique esse caso?

A viscondessa olhou, no mesmo gesto, para um lado e outro, e, com a mesma entonação, autorizou, íntima:

— Conte, mas em voz baixa; sim?

Animado por esse pedido, o velho marinheiro começou, brando, sem levantar os olhos da toalha:

— Quando Deus formou o homem, fedo, como a senhora sabe, de barro. Fabricado esse boneco, arrastou-o o Senhor para o sol, afim de secar, emprestando-lhe consistência, rijeza, solidez.

— Até aí eu sei... — interrompeu a viscondessa.

— Pois, bem. Estava o calunga ainda um pouco mole, quando Jeová, olhando-o, achou que a sua obra era má, inestética, indigna, por todos os títulos, da fama do artífice. De repente, teve uma ideia: arrancou um fio da própria barba, cortou-o miudinho, e, abaixando-se junto da cabeça do boneco, que era completamente pelado, começou a polvilhá-lo com o cabelo picado, para que este nascesse, e lhe cobrisse a nudez do crânio. Nesse momento, porém, soprou uma ventania do lado do norte, e ...

— Espalhou o cabelo? —Indagou, curiosa, a viscondessa.

As cadeiras, nesse momento, arrastaram-se, resolvendo a situação.

LXVI

AS FORMIGAS

O Alfredo Matias havia comunicado, naquela noite, a Dona Odete, que a festa do casal Armando Fagundes seria, em tudo, uma festa familiar. E não mentia. Os Fagundes eram uma das famílias mais distintas de São Cristóvão, e foi com a maior tranquilidade que a virtuosa senhora concedeu, para que ele fosse a essa reunião mundana, a permissão habilmente solicitada pelo marido.

A festa decorrera, em verdade, de acordo com as recomendações mais rígidas da moral. Dançou-se, tomou-se chá, comeu-se muito pão-de-ló, o Dr. Herbert Moses fez um discurso, o Dr. Alberto de Oliveira recitou uns versos, o professor Nascimento cantou uma ária, correndo tudo, enfim, de tal forma que, antes das duas horas, estavam todos os convidados a caminho de casa, e, entre eles, o Alfredo Matias, levando no bolso do casaco uns doces destinados a Dona Odete e aos meninos.

Entre São Cristóvão e o Flamengo há, porém, uma infinidade de precipícios, de obstáculos que não são vencidos, em geral, principalmente à noite, se não por automóveis poderosos. E tantos são eles que, a vinte passos do seu portão, o Alfredo Matias encontrou, nessa madrugada, outro portão aberto, enveredou por ele, foi recebido por dois braços de seda, tirou a casaca, espetou-a no espelho de uma cadeira, e atirou-se, encantado, à carícia de uma colcha de luxo, sobre a qual bocejou e adormeceu.

A claridade da manhã entrava, já, pelos vidros da janela, quando o Alfredo Matias esfregou os olhos, para acordar. E foi de um salto que, ao certificar-se do lugar onde estava, se atirou sobre as botinas, calçando-as precipitadamente, e, em seguida, sobre a casaca irrepreensível, que saiu, enfiando, às pressas, portão em fora, antes que aumentasse o movimento da rua.

Com oito passadas larga estava o boêmio em casa. E não foi sem desconfiança que estacou, lívido, coçando o pescoço, diante da esposa, que já se achava de pé, quando esta lhe perguntou, encarando-o:

— A que horas terminou a festa, Alfredo?

— Às cinco e tanto. Por quê? — Respondeu o desgraçado, atrapalhando-se e coçando-se furiosamente, com uma comichão que atribuía, toda, ao seu estado nervoso.

— E não dormiste? — Insistiu Dona Odete, apertando o canto dos lábios, na sua expressão habitual de ironia.

— Não.

— Não tiraste a roupa?

— Não! — Confirmou o infeliz, coçando-se ainda mais, com fúria.

— Que quer dizer isto, então? — Tornou a moça, apontando-lhe no rumo do fígado.

O boêmio baixou os olhos sobre o ponto indicado pela esposa, deu um pulo de onça faminta, e partiu a correr pela casa, atirando as roupas, aos safanões, para a frente, para trás, para os lados. Dos bolsos da casaca, as formigas, que ali se haviam aglomerado, durante a madrugada, tentadas pelo doce, partiam em legiões, em fileiras, em punhados, espalhando-se-lhe pelo peito, pelos ombros, pelo estômago, pelos braços, transformando-o, enfim, num assanhado formigueiro ambulante!

LXVII

O SÓCIO

O Sr. Tomé Alves de Oliveira, da firma Oliveira, Gama & Cia., era uma das figuras mais interessantes do comércio atacadista do Rio de Janeiro. Sócio de uma casa próspera, cujos armazéns dirigia de manhã à noite, isso não prejudicava, em nada, a sua qualidade de homem de bom gosto, frequentador de clubes elegantes e admirador incondicional das mulheres.

A prosperidade da firma Oliveira, Gama & Cia., era devida, toda ela, na opinião geral, à capacidade comercial do seu chefe, e, particularmente, à segurança com que este realizava as transações. Homem prático, não admitia ele, nesse ponto, o menor subterfúgio. Palavras eram palavras e negócios eram negócios. E de tal modo cumpria o seu lema que, se alguém lhe oferecia uma partida de feijão, de milho, de cebolas ou de bacalhau, a sua resposta, invariável, era esta:

— Traga para ver ...

Graças a esse processo de não realizar compra sem primeiro examinar o artigo, ou, como diziam os seus sócios, de não comprar nabos em sacos, possuía a firma, sempre, o que havia de melhor no mercado, livre das reclamações dos fregueses, que eram centenas de retalhistas dos bairros mais afastados da cidade.

Baixo, corpo cheio, bigode alourado, aparado à americana, passava o sr. Oliveira o dia na sua carteira alta, entre pilhas de caixas de banha e sacos de arroz, atendendo, de manhã à noite, a sua enorme clientela. De vez em quando, porém, vinha outro comerciante e oferecia:

— Ó Oliveira, queres me ficar com uma fatura de batatas? São trezentas caixas, preço do dia!

Conhecendo o colega pela voz, o Sr. Tomé não levantava, sequer, a cabeça: tirava o charuto da boca, prendia-o entre o fura-bolos e o maior-de-todos da mão esquerda, e, com o lápis no papel, respondia apenas:

— Traz, para ver ...

Aquela resposta era-lhe tão frequente, que se lhe tornara, mesmo, automática. E tão automática, tão espontânea, que ia motivando, este mês, a dissolução da firma.

Estava o Sr. Oliveira, sábado último, na sua carteira alta, fazendo o cálculo de uma partida de toucinho, quando, aproveitando a ausência de fregueses, dele se aproximou, em mangas de camisa, braços arregaçados, o seu sócio Constantino Gama, segunda pessoa da casa. Bonacheirão, e gorducho, encostou-se à carteira, cruzou sobre ela os braços, olhando, quieto, a multiplicação que o outro fazia. E estavam, assim, mudos, um ao lado do outro, quando Constantino quebrou o silêncio:

— Sabes, Oliveira? Eu tenho um conselho a pedir-te. Tu és um homem solteiro, um homem experiente, e podes, perfeitamente, me abrir os olhos.

Absorvido pelo cálculo, o Sr. Tomé não prestou grande atenção ao sócio. Charuto à boca, rosto sobre o papel, continuou, em silêncio, a calcular. O outro achou que o sócio estava, talvez, com escrúpulos, e insistiu, a meia voz:

— Tu não conheces, creio, a minha mulher. É uma menina mais moça do que eu dezesseis anos, e muito inquisitória. A princípio, vivemos muito bem. Era muito simples, muito paciente, muito amiga da casa. Agora, porém, mudou de todo: anda irritada, impaciente, só pensando em passeios, em festas, em vestidos. Isto está me fazendo desconfiar.

Silencioso, charuto nos dentes, olhos no papel, o sócio continuava a multiplicar, a somar, a dividir. O Sr. Constantino olhou-o, à espera de uma resposta. E como esta não viesse, inquiriu-o:

— Que é que achas; hein?

Intimado assim, o Sr. Tomé de Oliveira não caiu das nuvens. Calmo, sereno, impassível, tirou o charuto da boca, prendeu-o nos dedos e, sem levantar a cabeça, respondeu apenas:

— Traz, para ver, filho! Traz, para ver!

E continuou a subtrair.

LXVIII

COMUNISMO

(SOBRE UMA CARICATURA)

Nicolau Bergolef saltou no Brasil com duas fortunas, apenas: as suas enormes barbas negras, esvoaçantes, luzidias, de apóstolo revolucionário, e a sua linda mulher, Vanda Bergolef, cujos olhos grandes e claros eram os dois sóis maravilhosos que iluminavam a vida misteriosa do marido.

Antigo professor em Odessa, Nicoláu fora, na Rússia imperial, um mártir do próprio ideal. Devoto de Prudhom, de Cari Marx, de Kropotkine, ele não compreendia a desigualdade dos destinos, e sonhava para os proletários da sua pátria um regime de fartura, de igualdade, de perfeita distribuição da riqueza. Amigo de Tolstoi e companheiro de Gorki, foi preso com este, uma noite, em Moscou, e mandado para a Sibéria em uma leva de deportados políticos. Evadido de Tobolsk, pôde ganhar a Criméia, passar à China, chegar a Macau, tomar o navio para Lisboa e, dali, chegar ao Rio de Janeiro em companhia da esposa, que a esse tempo ganhava a sua vida honestamente, como espiã a serviço da Alemanha.

No Rio, o primeiro pensamento de Bergolef, ao desembarcar, foi aplicar-se, de corpo e alma, à propaganda da “ideia nova”. A União dos Operários em Construção Civil, à qual viera recomendado por uma associação congênere de Portugal, abriu-lhe as portas, elegendo-o orador. As suas conferências multiplicaram-se, na sede da instituição e no largo de São Francisco. E em breve o mundo operário sabia que a posse exclusiva de um objeto constituía um crime, um roubo feito a outros indivíduos, e que a sociedade caminha para um período de paz, de fraternidade e de abundância.

Entre os discípulos mais aproveitáveis do comunista destacou-se, porém, desde o princípio, Alexandre Bentevi, mulato sacudido e pachola, marceneiro de profissão, mas a quem o torno, a plaina, o formão e a verruma não haviam tirado o gosto pelas cousas deliciosas da vida. Maneiroso e decidido, Alexandre admirava, sem dúvida, as teorias igualitárias do mestre; mais do que às teorias admirava, no entanto, os olhos da russa, que lhe punham tremores inexplicáveis nos arrebatados nervos do mestiço. A eslava não era, por seu turno, indiferente aos galanteios do mulato, e de tal modo, que, em breve, estavam, os dois, em perfeito entendimento.

Certo dia, o escândalo estalou. Preocupado com as suas ideias, com o seu pensamento de aperfeiçoar a sorte da humanidade, Bergolef havia saído a angariar prosélitos quando, de repente, regressou à casa, à procura de um livro que esquecera. Ao empurrar, porém, a porta da sala, recuara, lívido, com tremores na barba: diante dele, com uma intimidade alarmante, estavam a Vanda e o Bentevi, cujos braços se misturavam num abraço escandaloso.

— Miserável! — Trovejou o russo, branco de cólera.

Manhoso, o mulato não se exaltou, não se amedrontou, não teve, sequer, um gesto que indicasse perturbação: limitou-se a sentar-se no sofá, alisar a cabeleira com a mão e, sorridente, protestar, encarando o outro:

— Ingrato, não, mestre. Isto é assim, mesmo!

E, pondo-se de pé, indicando a russa:

— De quem é esta mulher? É sua?

— É, — confirmou, lacônico, o bar- baças.

— Sua, só?

— Minha, só.

Alexandre abriu a boca, num sorriso largo, franco, jovial, mostrando a dentadura impecável. E justificando-se, calmo:

— Então, meu “nego”, “tá” aí!

E passando o braço pela cintura da rapariga:

— A propriedade é um roubo, “seu” Nicolau; a propriedade é um roubo!

E retirou-se, levando a mulher.

LXIX

A BARRETTE

Um moralista afirmou, há dias, na sua campanha contra os cabarets e o pessoal feminino que os frequenta, que as famílias do Rio de Janeiro são prejudicadas em milhares de contos, semanalmente, pela fome de ouro das aves de arribação. Centenas de lares são, todos os dias, desfalcados do indispensável, para suprir do supérfluo dezenas de criaturas sem coração, sem alma, sem escrúpulos. E como se não bastasse essa afirmação atrevida, adiantava que, em um choque entre a mulher honesta e a cocote, é esta, sempre, quem tira o melhor, partido.

Aos meus olhos, que a prudência desanuviou para o exato conhecimento do mundo essa afirmação aparece como um exagero clamoroso. E se os fatos não estivessem por aí em segredo, bastava, para contrariá-lo, aquele famoso episódio ocorrido no Rio há uns oito anos, e por mim divulgado, com a máxima fidelidade, por intermédio dos jornais.

Chefe de família carinhoso e dedicadíssimo, o deputado paulista Filomeno Gonçalves veio para o Rio de Janeiro com a resolução de se não deixar absorver pelas sereias de olhos bistrados, que surpreendem, sempre, neste promontório da vida, os inexperientes argonautas da política provinciana. A sua esposa era linda, boa e honesta, e o seu pensamento estaria com ela, quase todas as vezes que lhe aparecesse, atordoando-o, qualquer demônio de saias.

Dizem, porém, os avicultores, que o homem põe e Deus dispõe. E foi isso que verificou o ilustre representante de São Paulo, quando se surpreendeu um dia abotoando as botinas no boudoir da Ninete, uma encantadora francesinha de olhos de ouro, boca de rubi que escandalizava, então, a Avenida com o luxo dos seus vestidos, e, sobretudo, com o brilho atordoante das suas joias.

Apresentado à rapariga por um jovem colega de bom gosto e de má vida, foi-se o Dr. Filomeno abandonando, aos poucos, aos caprichos na nova Circe, até que, um dia, esta lhe comunicou, entre dois beijos:

— Sabes mon petit, que eu ficaria muito contente se tu me comprasses uma barrette que eu vi, ontem, no Adamo, à rua do Ouvidor?

— Querias que eu te comprasse? — Indagou o deputado, baboso.

A resposta foi um saltinho de gato, no qual a francesinha se pendurou ao pescoço do representante da nação, cobrindo-lhe de beijos a boca, as faces, a testa, os olhos, os bigodes. E com um efeito tamanho que, nesse mesmo dia, à noite, o desgraçado comunicava à rapariga:

— Sabes, filha, quanto custa aquela barrette, do Adamo? Cinco contos!

— E então?

— É muito caro. Se fosse, aí, uns três, eu te oferecia.

Ninete enfiou o dedinho róseo no queixo mimoso, em que havia um fundinho para os beijos de toda a gente, pensou um pouquinho e, de repente, explodiu, jovial:

— Se fosse três contos?

— Eu comprava.

— Quem sabe se ele não deixa por esse preço?

— Eu vou ver ... — prometeu o deputado.

No dia seguinte, cedo, com o seu plano arquitetado, a francesinha correu à cidade, procurou o gerente da joalheria e explicou-lhe o seu caso. O Dr. Filomeno queria oferecer-lhe a barrete, mas só chegava aos três contos. Propunha, portanto, o seguinte: ela pagaria com antecedência os dois contos de diferença e, quando o deputado chegasse para adquirir a joia, a casa deixaria por três, não tendo, assim, nenhum prejuízo. Por esse modo ela possuiria uma barrette que tanto a tentava, o deputado far-lhe-ia um presente de preço e a casa venderia a joia pelos mesmos cinco contos, recebendo dois de um e três de outro.

À tarde, pagos já os dois contos da rapariga, passou o deputado e, entrando na joalheria, ofereceu três contos pela barrette.

— É uma diferença grande, — confessou o comerciante, dissimulando a transação; — sendo, porém, uma joia que poucas pessoas poderão adquirir, sou forçado a aceitar a proposta do Sr. Dr., embora com um prejuízo de quase dois contos de réis!

E, mandando embrulhar a joia, entregou-a pelos três contos ao Dr. Filomeno, que a meteu, radiante, no bolso, pensando na noite, quando a entregaria à Manete. Ao chegar, porém, ao seu quarto no hotel começou a meditar, examinando a barrette:

— É uma beleza, mesmo.

E após um instante:

— Mas eu, um pai de família, devo dar uma joia destas a uma leviana, que, amanhã, com certeza, não se lembrará mais de mim?

E, resoluto:

— Não; não dou, vou levar para minha mulher!

E no dia seguinte, pela manhã, tomava o trem com destino a São Paulo, levando para a esposa a barrette de cinco contos, dos quais, dois haviam sido pagos pela Manete.

LXX

MARIDOS DE ALUGUEL

Um tipo curioso que os modernos costumes instituíram é, nos dias que passam, o dos maridos comanditários.

O marido comanditário é uma entidade quase estranha à família a que ele próprio dá nome. Convidado a casar com uma senhorita rica, ou dotada largamente por um parente ou por um amigo milionário, um rapaz pobre aceita, um dia, a missão de figurar como esposo, aos olhos exigentes da sociedade. Uma vez casado, assume o desgraçado um compromisso: morar, como hóspede, na casa da senhora que dizem sua esposa, e receber uma mensalidade cômoda, fechando ouvidos, completamente, ao que dele disserem na rua.

Esta classe de maridos tem se multiplicado no Rio, ultimamente, de modo assustador. Há indivíduos que alugam o seu nome para legitimação de um lar como havia farmacêuticos, outrora, que emprestavam o seu para funcionamento de uma farmácia. Esses lares, conhece-os toda a gente, como as autoridades conhecem, uma a uma, as farmácias em que o farmacêutico figura apenas como responsável pela manipulação das receitas alheias. A sociedade não olha, porém, o conteúdo, mas apenas os rótulos, e daí a indiferença com que aceita todos os pares, embora fictícios, que pedem inscrição no seu registro.

Esse processo de constituir família está assumindo, nos últimos tempos, um caráter alarmante. Antigamente quando um rapaz ambicioso condescendia em ceder seu nome para rotular a casa clandestina de um parente ou de um amigo milionário, a moça dissimulava, sempre, a delicadeza da situação, tratando o seu marido de aluguel com algumas deferências consoladoras. Hoje, não: hoje, o infeliz é tratado com desprezo, com desdém, quase com hostilidade, desde o dia do casamento, sem que se guarde, sequer, a menor conveniência, emprestando ao contrato matrimonial a aparência de uma aliança entre dois corações.

Ainda um destes dias tive eu de testemunhar um episódio desse gênero, que sinceramente me contristou. Ajustado para casar com uma senhorita formosíssima, protegida de um antigo senador da República, o bacharel Antônio Cantidiano combinou tudo com o protetor da moça, e correu, no dia aprazado, à Pretória e à igreja, afim de ratificar em público o seu contrato particular. Terminada a cerimônia religiosa, em que o sacerdote desejou, na pureza do seu coração, as maiores venturas àquele lar cristãmente constituído, começaram os abraços, as flores, os parabéns. ” Indiferente àquilo tudo, o rapaz recebia os cumprimentos dos convidados, consciente da comédia de que era o mais lamentável dos protagonistas. A moça, pelo contrário, sentia-se feliz. E tão feliz que, ao encaminhar-se para a porta do templo, voltou-se para o marido, indagando:

— Você não vai?

Ele foi. Agora, se ficou, é que não sei.

LXXI

HORÁRIO DE UMA PULGA

“DIA 6:

Seis horas da manhã. Esta vida, aqui, em Catumbí, está se me tornando insuportável. A minha maior ambição, quando criança, era viver entre fios de uma fina meia de seda, alimentando-me de sangue vermelho e doce, desse que só têm as mulheres aristocráticas, e que se lhes adivinha sob a pele branca e macia. E tem sucedido exatamente o contrário: vivo apertada entre malhas de meias de algodão grosseiro, que me incomodam, me oprimem, me asfixiam.

Nove horas — Parece que, afinal, raiou o dia em que devo mudar de sorte. Chegou hoje aqui em casa uma senhora das vizinhanças, moça chic e bem tratada, que tem as sonhadas meias de seda. Dentro de alguns minutos estarei entre os fios daquela trama delicada, sugando aquele sangue, beijando aquela pele, aspirando aquele perfume!

Onze horas — Se existe a felicidade na terra, esta consiste na realização absoluta, na mocidade, de um desejo que se alimentou na infância. E é esta ventura que eu sinto, hospedada nesta meia de seda branca, tendo do outro lado, a apertar-me docemente, uma pele tão suave quanto a meia. Sou, finalmente, feliz, como sempre desejei!

Duas horas da tarde — Mas, aonde vou eu, minha Nossa Senhora! A dona desta perna e desta meia mora nas proximidades da casa onde eu nasci; e, no entanto, há meia hora que me sinto bafejada pelo ar livre, como se estivesse em plena rua. Estaremos viajando?

Três horas — Efetivamente, estamos de viagem. Este barulho, este vozerio, este tumulto, só pode ser do centro da cidade. Tudo isto faz-me entontecer, atordoa-me. Parece que tudo em torno de mim está girando. Para maior segurança, vou subir mais um pouco.

Quatro horas — A vida das pulgas é, positivamente, como a dos homens: mais vale a modéstia em lugar conhecido do que o luxo ao acaso. Para que deixei eu a meia de algodão onde vivia obscura, mas garantida? Onde estou eu? Que país é este, tão escuro e sacudido por terremotos e tempestades?

Seis horas — Positivamente, foi um pesadelo. Respiro, de novo, o ar livre. Quando eu adormeci, estava tonta, na escuridão. E agora, que é isto? Para onde me levam? Sete e meia horas — Compreendo tudo. Estou em Botafogo, em casa de um deputado que me trouxe no cavaignac. Como a gente viaja depressa agora! ...

“DIA 7:

Três horas da tarde — Volto hoje para a cidade, com Madame, esposa do cavalheiro que ontem me trouxe. Quem sabe se, à noite, o marido da moça de meias de algodão não me terá levado no bigode, para Catumbí?”.

LXXII

O ESTRUME

(SOBRE SEIS VERSOS DE TOBIAS BARRETO)

Aquele casamento, pelas suas tendências e origens, havia sido quase um acontecimento religioso. Rebento suave de uma família sinceramente católica, M.lle. Florzinha nascera e crescera num ambiente quase sagrado, e em que tudo era pureza, doçura, candidez, em suma, integração da alma em Deus. Árvore alimentada pela mesma seiva, isto é, filho de família igualmente chegada à igreja, o Dr. Álvaro Guedes compreendia a noiva, e era por ela convenientemente compreendido. Puros e bons, eram, pode-se dizer, dois anjos que se casavam, e que se haviam reunido, apenas, para o exercício comum da perfeição.

Seis meses após o casamento, Florzinha era ainda a mesma criatura. Não mudara de corpo, de vida, nem de maneiras. Mal amanhecia, levantava-se do leito, tomava o seu banho, bebia uma xícara de água quente com açúcar e encaminhava-se para a matriz de S. João Batista, onde ficava até às dez horas. Se era dia de jejum, deixava-se ficar até mais tarde; se não, voltava à casa, almoçava uma perna de frango, e saía a visitar estabelecimentos de caridade, regressando ao anoitecer, depois de uma peregrinação por vários conventos e templos de Botafogo.

Ao marido sucedera, entretanto, cousa contrária: andava triste, taciturno, cabisbaixo, em suma, inteiramente mudado. A missa, a novena, as obras pias não o interessavam mais. E como aquelas maneiras preocupassem Dona Amarília, mãe de Florzinha, esta chamou, um dia, a filha, e indagou, maternal:

— Dize-me uma cousa, filhinha: por que é que o Álvaro anda tão triste, tão mudado, tão diferente?

Vermelha, perturbada, a moça baixou os olhos, com vergonha.

—Dize-me, anda! — Insistiu Dona Amarília, abraçando-a.

Animada pela boa senhora, Florzinha contou. O Álvaro andava aborrecido porque queria sair do sério e ela não consentia, quando tinham ficado noivos, eles haviam combinado que se amariam como irmãos, e como irmãos viveriam perante Deus. Ele prometera não manchar, nunca, a sua pureza, para que ela, quando morresse, fosse, como virgem, uma das esposas do Senhor. Por algum tempo haviam vivido assim, dormindo, embora, na mesma alcova. Ultimamente, porém, o marido havia lhe falado de um modo estranho, e ela repelira, com energia. Era isso, com certeza, o motivo daquelas maneiras dele.

E concluía, indignada:

— É possível, então, que duas criaturas não possam viver juntas, amando-se, adorando-se de coração, sem pensar em cousas grosseiras, indignas, materiais?

E rubra, toda vermelhinha, num conjunto humano de orgulho e despeito:

— Eu só quero ver se pelo fato de eu não ceder às suas exigências, o amor que ele me vota desaparecerá.

E batendo o pezinho:

— Eu quero só ver!

Aquela revelação, como era natural, impressionara vivamente Dona Amarília. Senhora experiente, temia ela pela felicidade da filha, que dependia, inteira, daquela intransigência mal compreendida. E como era inteligente, teve, no dia seguinte ao dessa explicação, uma ideia.

— Florzinha? — Chamou.

A moça atendeu.

— Vamos plantar umas roseiras?

Aceito o alvitre, foi Dona Amarília ao salão de visitas, trouxe de lá um vaso de ouro lavrado, presente feito ao seu querido marido pela Confraria de São José, encheu-o de água e mergulhou, nela, o ramo de roseira, cortado no jardim.

Oito dias depois, Florzinha, que estava encarregada de velar pela planta, comunicava:

— Sabe, mamãe? A roseirinha não vingou!

— Não vingou?

— Não, senhora.

— Então, vamos fazer outra experiência. Vai buscar o vaso.

Trazido o jarro de ouro, Dona Amarília foi, ela mesma, ao jardim, tomou um bocado de terra estrumada, encheu com ela o vaso e, cortando outro galho de roseira, mergulhou-o na terra umedecida. E oito dias depois era Florzinha, ela própria, quem corria a comunicar à velha senhora.

— Mamãe, sabe? A roseirinha está brotando!

— Pegou?

— Pegou!

Aproveitando o entusiasmo da filha, Dona Amarília passou-lhe o braço pela cintura virgem, tomou, com a outra mão, o vaso precioso em que a plantinha tenra desabrochava em brotos mimosos, que eram como olhinhos tímidos que espiassem medrosamente a vida, e sentenciou, com sabedoria:

— Viste, minha filha, a lição que a natureza te deu?

A moça olhou-a, espantada.

— O coração da mulher virtuosa — tornou Dona Amarília, — é um vaso de ouro puro. O amor do homem é uma haste de roseira. Para que essa haste viva, e floresça, não basta o vaso precioso: é preciso que dentro dela haja um pouco de terra imunda, isto é, de sentimentos terrenos, humanos, materiais. Compreendeste?

Florzinha baixou a cabeça, sem uma palavra.

— Vai. Sê feliz! ... —acrescentou Dona Amarília, beijando a moça na testa, e empurrando-a com doçura.

É passado um ano. O casal vive felicíssimo entre a terra e o céu. O menino chama-se Daniel.

LXXIII

CASAMENTO

Fiado na notoriedade do meu bom-senso, na fama, talvez imerecida, do meu conhecimento da vida e dos homens, pediu-me um dos meus leitores que eu lhe dissesse com a minha experiência de septuagenário, se ele encontraria, como alguns lhe asseguravam, a felicidade no casamento. Em síntese, eram estas as suas consultas:

— Devo casar-me? Arrepender-me-ei algum dia, se ficar solteiro? Encontrarei a felicidade no casamento?

Eu creio que, se a Esfinge me fizesse essas mesmas perguntas à porta de Tebas, ela me devoraria sem que eu lhe desse respostas convenientes. Porque o casamento e, em verdade, uma espécie de compartimento misterioso, que só se verifica se é forrado de seda, ou de pregos, depois que se está do lado de dentro. Um caboclo amazonense que eu conheci em Paris, na comitiva do saudoso governador Ramalho, ofereceu-me, certa vez, um símbolo, que me espantou pela propriedade.

— O casamento, senhor Conselheiro, — dizia-me ele, com os dois olhinhos chineses faiscando no fundo das órbitas; — o casamento é como a castanha do Pará.

— Como a castanha do Pará, Domiciano? — Estranhei.

E ele:

— Sim, senhor, senhor Conselheiro, como a castanha do Pará.

E explicou:

— O senhor pega um litro de castanhas e espalha no chão. Olhando assim, todas são iguais. E só depois que a gente quebra, é que sabe qual é a podre e qual é a boa.

E mostrando os seus grandes dentes de tupinambá, daqueles que comera a santa carne do padre Francisco Figueira:

— O casamento é assim, senhor Conselheiro; é preciso experimentar para saber se ele é bom, ou mau.

Eu podia me limitar a essa comparação nacional, deixando respondida com ela a consulta do meu leitor timorato. Ao seu caso aplica-se, porém, melhor, a resposta indireta daquele médico parisiense, que mostrava a um jornalista curioso as várias secções de um hospício de alienados. Interessado em registar as múltiplas modalidades do desequilíbrio mental, ia o jornalista perguntando, diante de cada grade:

— E este aqui?

O médico explicava-lhe, minucioso, a feição da loucura, as origens e a marcha da moléstia, até que, em certo momento, particularizou com interesse, indicando um louco morigerado, manso, pensativo, que se quedava a um canto da cela:

— Aquele que ali está — disse, — é um pobre diabo que perdeu o juízo porque a mulher que ele amava casou com outro.

O jornalista examinava o infeliz, penalizado, quando lhe foi chamada a atenção para a cela fronteira, onde um louco furioso, colérico, desesperado, se debatia, aos murros, atirando-se contra os varões de ferro que o detinham:

— E aquele ali? — Indagou, horrorizado.

— Aquele? — Perguntou o médico.

E apontando o doido varrido:

— Aquele... é o que casou!

LXXIV

A LINHA

Não obstante o grande número de mulheres barbadas que estão aparecendo no Rio, mesmo nas altas rodas sociais, o homem continua a ter, em todos os países, o privilégio da barba. E era isso que se comentava, uma destas tardes, na última recepção elegante do casal Martins da Cunha, quando Dona Enedina interpelou, imprudente, o conselheiro Abelardo de Vasconcelos, sobre esse ponto delicadíssimo da fisiologia:

— Mas, por que é, conselheiro, que os homens, em geral, possuem barba, e não a possuem as mulheres?

O antigo professor da Faculdade de Medicina sorriu com a sua costumada bonomia, olhou em torno, encaixou o monóculo na órbita em que fulgia a sua grande pupila de gato selvagem, e aventurou, com simulada gravidade:

— A explicação é fácil, minha senhora; facílima. Depende, apenas, da concepção que se tenha, do mundo e da humanidade. A senhora não sabe, porventura, como apareceram no Paraíso o primeiro homem e a primeira mulher?

— Foram feitos de barro, os dois. Não foram? — Observou a moça.

— Não foram, não, senhora, — atalhou o conselheiro. — O homem e a mulher foram feitos como se fazem bonecos de pano: com agulha e linha. Compreendeu?

Mme. Martins da Cunha arregalou os olhos e o ouvido, para ver e ouvir melhor, e o querido gentleman começou:

— Quando o Éden ficou, no sétimo dia da criação, em condições de ser habitado, chamou Jeová duas turmas de serafins, dos mais peritos e fiéis, e, entregando-lhes duas agulhas e dois bonecos talhados em pano, determinou-lhes que costurassem os dois calungas, que seriam, no mundo, o homem e a mulher. Feito isso, tomou um carretel de linha, e ordenou aos artífices que o dividissem em duas partes iguais, uma das quais seria para coser a mulher, e outra, para o homem.

Reencaixando o monóculo faiscante, que havia caído da órbita, o venerável mundano reatou:

— A divisão era, porém, difícil, e, ao fazê-la, fizeram-na os serafins de maneira desigual. E atiraram-se ao trabalho, dia e noite, costurando ativamente os dois bonecos, que seriam os senhores do Paraíso.

Uma pausa para um copo de água, e continuou:

Acabado o homem, viram os serafins que se haviam enganado na divisão da linha: esta havia sobrado em tal quantidade, que eles, para não a estragar, comprometendo-se aos olhos do Senhor, resolveram aproveitá-la no rosto do boneco, deixando-lhe aí uma infinidade de pontas de linha!

A assistência aplaudia, sorrindo, aquele curioso capítulo do novo Gênesis, mas Dona Enedina, ingênua, quis ir mais longe:

— E a mulher, conselheiro? E a mulher?

O antigo professor da Faculdade olhou, primeiro, em torno, e esclareceu:

— A mulher? Sucedeu o inevitável. Se a linha, que era apenas a indispensável para costurar os dois, sobrou na manufatura do homem, para ela...

E, baixinho, rindo, ao meu ouvido:

— Faltou linha...

E piscou o olho, cínico.

LXXV

DIGNIDADE

Recostada na sua cadeira de braços, na sala de jantar, Dona Lucindinha fazia vagarosamente o seu crochê manejando a pequena agulha de cabo de osso, quando, ao levantar os olhos do trabalho, notou que o esposo havia desaparecido do gabinete contíguo. A cadeira em que ele manuseava os jornais da manhã estava deserta, e foi com um sorriso bom, de resignação ou de misericórdia, que ela se deixou ficar, por um instante, olhando o gato que ronronava no tapete, e, mais longe, o novelo de lã, que havia corrido para debaixo do guarda-pratos.

A Dona Lucindinha era o modelo das esposas sofredoras, que, fatigadas do seu tormento, acabam por votar ao marido a maior indiferença. Pervertido de gosto, o conhecido magistrado manifestava um pendor especial pelas mulheres de baixa condição, e de tal modo que não parava em casa uma criada. Arrumadeiras, copeiras, cozinheiras, gomadeiras, a todas se atirava o ilustre homem de leis, criando para Dona Lucinda uma situação verdadeiramente constrangedora. E como lhe não conviesse perturbar o seu outono com o pesadelo de um divórcio judicial, resolveu a pobre senhora fechar os olhos a todos os abusos do esposo, cerrando para este, igualmente, as portas do coração.

Ao dar pela falta do marido, Dona Lucindinha imaginava, logo, o que havia acontecido. Deixou-se, pois, quieta, manejando a sua agulha e urdindo o crochê, até que, de repente, estacou, com a alma no olfato. Dona de casa experiente, aspirou, alto, o aroma que partia da cozinha, e, conhecendo-o, colocou de lado a agulha e o crochê, partindo, ligeira, para o fundo da casa.

Ao chegar à cozinha encontrou, porém, um quadro que lhe gelou o sangue nas veias: junto à pia, os pés fora das chinelas, o desembargador lutava com a cozinheira, uma crioula de dentes muito alvos e carnes muito rijas, vergando-a amorosamente para trás, e babujando-lhe o rosto, o pescoço, o colo, a gaforinha.

Ante aquele espetáculo, Dona Lucindinha quedou-se, estarrecida. Pálida, trêmula, as pernas lhe falharam, numa vertigem. Súbito, porém, lhe afluiu ao coração uma onda de orgulho, de altivez, de dignidade soberba, e foi com uma serenidade que lhe custava, talvez, metade da vida, que gritou para a cafusa:

— Maria, que é isso?

E abafando no coração a dor terrível que a dilacerava:

— Você não vê que o arroz está queimando?

E correu, de chaleira na mão, a deitar água na panela.

LXXVI

O CHAPEUZINHO VERMELHO

Acabava a encantadora Mariazinha de amarrar sob o queixo moreno o seu lindo chapeuzinho de palha vermelha, quando sua mãe, vendo-a pronta para sair, lhe recomendou, prudente:

— Minha filha, tua avó está doente. Toma o bonde, e vai à sua casa levar-lhe este pacotinho de doces, que eu própria lhe preparei. Tem cuidado, porém, ao atravessar a Avenida para tomar outro bonde. Não dês atenção a ninguém e segue, direito, o teu caminho.

Recebida a bênção materna, Mariazinha empoou-se, mirou-se mais uma vez e partiu. Ao chegar, no entanto, à Avenida Central sentiu ao seu lado os passos apressados de alguém, que a seguia teimosamente. Olhou, e viu. Era um homem de meia idade, corretamente vestido, que a olhava, sorrindo, com dissimulado interesse.

— Boa tarde, Chapeuzinho Vermelho!

— Boa tarde, Dr. Lobo! — Correspondeu a mocinha.

— Para onde vai a estas horas, tão linda e fresca?

— Vou à casa da minha avó levar-lhe estes biscoitos, que minha mãe preparou.

— E onde mora sua avó?

— Na rua Conde de Bonfim, na Tijuca.

— Não é engano seu? — Objetou o Dr. Lobo. — Eu conheço muito sua avó. Ela está residindo, agora, na rua do Rezende. Não sabia?

E, tomando o papelinho que a menina trazia na mão, e que a mãe lhe dera em casa, entregou-lhe outro, com endereço diferente. Feito isso, chamou um automóvel, dirigiu-se para a casa que indicara à ingênua, enfiou na cabeça uma touca de dormir, meteu-se na cama, e esperou. Momentos depois bateram.

— Entra, minha netinha! — Ordenava de dentro.

A moça entrou, desconfiada, e, aproximando-se do leito, sentou ao lado e começou a agradar o vulto que ali se achava. E ia perguntando:

— Avozinha, para que a senhora tem o bigode tão aparado?

— É para te fazer cócegas, minha neta!

— Para que a senhora tem o cabelo tão curto?

— É para tu alisares, minha neta!

— Para que a senhora tem o nariz tão grosso?

— É para te cheirar, minha neta!

— Para que a senhora tem a língua tão vermelha?

— É para te comer!

E, dizendo isso, avançou e comeu a menina, que nunca mais voltou para casa.

Sua mãe foi, porém, procurá-la, e só encontrou no local, no dia seguinte, uma grande mancha vermelha.

Era o chapéu.

LXXVII

A PERNA

A moda da saia comprida, que tanto vem empolgando a opinião universal, tem sido objeto em todo o mundo das críticas mais desencontradas. Maridos, esposas, velhas, senhoritas, anciãos e crianças, não há quem não a condene. E o mais interessante é que, condenando-a, e sendo por ela prejudicadas, há, já, senhoras que a adotam, e que atravessam a Avenida, em pleno dia, arrastando arrogantemente as sete caudas do seu vestido.

Eu, por mim, não concordo com as saias pelo joelho, mas não acho louvável, igualmente, as que vão ao tornozelo. Penso que elas nada têm com a marcha do câmbio, descendo a 6 e subindo a 17, e, como tal, sou de parecer que se lhes regule a situação, procurando, para felicidade de todos, uma estabilidade equitativa.

A saia com o câmbio a 10, por exemplo, traria vantagens incontáveis: rejuvenescera as moças quarentonas, poria em evidência a plástica das pernas bem feitas, com a circunstância, ainda, de facilitar a solução de certas dúvidas em relação à anatomia feminina. Um caso há, para não ir mais longe, que seria imediatamente liquidado se as cariocas se não tivessem apressado em seguir os últimos conselhos das modistas parisienses: o de M.me. Peixoto Simas, cujos tornozelos desapareceram, há dezoito dias, sob a nuvem pesada, e cercada de franja, de uma bainha de crepe da China.

Admiradores da ilustre e encantadora senhora, referiam-se a ela, um destes dias, à porta da Livraria Leite Ribeiro, os Drs. Plácido Barbosa e Miguel Osório de Almeida.

— Posso assegurar — afirmava o primeiro, — que é um curioso caso de anatomia: a perna direita é mais grossa do que a esquerda!

— Mas a esquerda, embora mais fina, é mais bem torneada, — opinava o Dr. Miguel.

— A direita é mais bonita! — Insistiu o Dr. Plácido.

— Qual! É à esquerda! — Sustentou o Dr. Osório.

— A direita!

— A esquerda!

— É!

— Não é!

Apaixonados pelo assunto, sustentavam, os dois, o seu ponto de vista, dispostos a não transigir, quando se aproximou o Dr. Agenor Porto, e interveio:

— Que é isso? Que é que se discute? O Dr. Plácido explicou a matéria em debate. Tratava-se da perna de madame Peixoto Simas. Ele achava que a mais bonita era a direita, mais grossa; Dr. Miguel Osório opinava pela esquerda, mais fina. O recém-chegado, que conhecia a moça decidiria:

— Você vai desempatar. Diga: qual é a mais bonita: a esquerda, ou a direita?

O Dr. Agenor coçou a cabeça, atrapalhado:

— Homem, o caso é difícil de resolver!

Pensou, porém, um instante, como quem consulta reminiscências, e confessou, sincero:

— Sabem de uma coisa? Entre les deux...

E oscilando a mão, significativamente:

Mon coer... balance! ...

LXXVIII

SERENIDADE

Tendo dançado na véspera até pela madrugada, Mine. Gouveia Fabre adormeceu sem querer, sem poder prevenir, sequer, o comandante Nataniel, que conversava defronte dela, no canapé, em visita de carinhosa intimidade. Encantado com a palestra, o ilustre marinheiro foi se deixando ficar pouco a pouco, e de tal modo que, ao dar por si, o Dr. Fabre vinha subindo, já, as escadas do primeiro andar, que iam ter, exatamente, à porta do dormitório. Espantado e aflito, o jovem marinheiro, que se surpreendeu conversando sozinho, sacudiu a moça, despertando-a:

— Mimi? Mimi ? O teu marido chegou. O teu marido!

— Hein? Hein? — Gemeu a moça, estremunhada.

E compreendendo a situação:

— Esconde-te! Esconde-te! Mete-te debaixo da cama! Depressa! Depressa!

O comandante Fabre não era, entretanto, um ingênuo, um tolo, um iludido. Maneiroso e experiente, percebeu, naturalmente, o que se havia dado na sua ausência. Como, porém, não visse vantagem nenhuma em fazer escândalo, em dar tiros, em fazer público pregão da sua infelicidade, despertou a esposa, que fingia dormir, e, sentando-se a seu lado, começou a falar de cousas sem o menor interesse no momento. De repente, estirou o braço no rumo da cabeceira da cama e apertou, displicente, o botão da campainha. A criada apareceu.

— Traga meia garrafa de champagne, aberta, e três copos, — ordenou.

— Três copos? — Estranhou dona Mimi, franzindo a testa clara sob a fina touca de rendas, levantando ligeiramente a cabeça do travesseiro.

Sem dar importância à observação o antigo herói da Ponta do Boi continuou a falar, pausadamente, sossegadamente, tranquilamente, sobre os assuntos mais inoportunos. E contava ainda uma história sem Propósito nem espírito, quando a criada bateu à porta do quarto.

— Entre! — Mandou.

À claridade suave da lâmpada de cabeceira, velada por um abat-jour cor de rosa com arabescos verdes e azuis, faiscaram as três taças de champagne, cheias até o meio e cujo conteúdo fervia, espumando como topázio liquefeito. Impassível, o moço oficial acabou de enchê-las, tomou a primeira, delicado, entre o indicador e o polegar, ofereceu à esposa:

— Toma!

— Champagne a esta hora, José? Tu estás doido?

— Toma! — Ordenou Fabre, autoritário.

A moça empunhou a taça. Com a mesma fleuma ele empunhou a outra. E, virando-se para a criada, que, de pé, sustentava a bandeja, com a terceira taça:

— Agora, abaixe, e ofereça a outra ao Comandante Nataniel, que está, aí, debaixo da cama!

E virando a sua, desceu a escada, pela última vez.

LXXIX

O CARRO ATOLADO

Com a terminação da guerra e a desvalorização de certos produtos da lavoura, os negócios da Fazenda Bom Princípio, do major Sebastião Tavares, passaram a preocupar seriamente o conhecido agricultor. O milho, o arroz, a batata, o feijão, que encontravam comprador com facilidade, começaram a voltar da feira de Uberaba, por falta de quem os quisesse. E isso em uma época de dificuldades assoberbantes, quando se iam vencer alguns compromissos volumosos, contraídos com o seu vizinho e compadre, o coronel Paulino Benevides, que passava, então, por ser a primeira fortuna do município.

Noites e noites atravessou o agricultor acordado, pensando na situação. E foi na sexta, ou sétima, que, com o espírito fatigado pelas vigílias, os seus olhos pousaram, tristes, no corpo ainda jovem da sua segunda esposa, a sua virtuosa Marianinha, que dormia, tranquila, com a boca semiaberta, na vasta cama do casal. O espetáculo, em tal momento, da juventude viçosa da companheira, pôs, de repente, na escuridão do seu horizonte, um relâmpago de esperança criminosa. E foi olhando-lhe o colo pudicamente velado pelo lençol de alvura impecável, em que a respiração compassada punha ondulações de vaga, que o major, desnorteado, por tantos pensamentos contraditórios, se pôs a meditar:

— E se eu mandasse Marianinha à casa do compadre Benevides contar-lhe a minha situação e arranjar um prazo para pagamento do que lhe devo?

Quedou-se, de mão no queixo, no meio do quarto, olhando a mocidade da companheira, cuja cabeça a luz baça da lamparina tornava mais sonhadora e mais linda, e agarrou-se, como um náufrago, à tábua que lhe surgia. O Benevides sempre olhara a Marianinha com olhos ternos, e era notório, que, na sua paixão de sexagenário, daria, para vê-la a sós, aquilo que a rapariga lhe pedisse. Por que, pois, não lançar mão daquele último recurso, mandando-a à Santa Agueda, onde o milionário vivia sozinho, incumbindo-a de tratar, com ele, da liquidação ou do adiamento da dívida?

Ao amanhecer, chamou Sebastião a mulher e, alegando a impossibilidade de afastar-se do serviço, propôs-lhe a viagem à fazenda do coronel.

— Eu, Sebastião? — Estranhou a rapariga, admirada.

E decisiva, num muxoxo:

— Eu, não!

Duas, três, quatro vezes, tornou o agricultor à carga, insistindo com a esposa para que fosse à Santa Agueda, liquidar o negócio. E como nada conseguisse, abriu de uma vez o coração, contando-lhe tudo: a visita ao coronel Benevides era uma questão de vida ou de morte: ou ela ia ajudando-o a salvar a propriedade ameaçada pela hipoteca, ou tudo aquilo teria de passar a outro dono, sendo ele e ela atirados à estrada, como cães!

A eloquência sinistra do major não conseguiu, entretanto, modificar a resolução da moça. E era ela inabalável quando, uma tarde, ao olhar um carro de bois que subia do valado, notou que a junta de animais não conseguiu arrancar o veículo do atoleiro. Penalizada, Marianinha consultou o marido, que se achava ao lado, coçando compassadamente a cabeça:

— Que junta é aquela, Sebastião?

— É o “Malhado” e uma vaca do curral. Para poupar os bois, é preciso, agora, que trabalhe um de cada vez.

— E para tirar o carro do atoleiro? —Insistiu a rapariga, interessada.

— Para tirar o carro é preciso encangar mais um boi.

E dando ordem para que assim se fizesse, a sertaneja viu, momentos depois, o carro desembaraçar-se do obstáculo, ganhando a planície, rangendo, aos solavancos. Absorta, Marianinha olhava o veículo, quando, de repente, indagou:

— Quando o carro está atolado, Sebastião, é preciso, sempre, que o puxem dois bois?

— Decerto — acudiu o major. — Quando um só não pode, encarrega-se o outro.

Marianinha enfiou o dedo moreno na covinha do queixo, pensativa. E pensou toda a noite. E no outro dia. E no seguinte. No terceiro dia, à tarde, os cachorros de Santa Agueda latiam, ouvindo o bater, da porteira e o trote de um cavalo na estrada.

Era Marianinha que chegava, sozinha, procurando o coronel.

LXXX

O CEGO

— Uma esmola, pelo amor de Deus, cristão de Deus! — Era esse o grito monótono, triste, cantado, que se ouvia, de porta em porta, naquela rua elegante, no coração mesmo do bairro de Botafogo.

E batucando o cajado, tateando com a mão direita, cabeça alta, olhos parados e brancos, lá se ia, de portão em portão, o pobre Antônio João do Sacramento, o cego mais simpático e humilde entre quantos estendem a mão trêmula à generosidade carioca. De vez em quando, uma recusa dolorosa partia de um interior suntuoso, pela voz de um criado, de uma criança, ou mesmo da dona da casa; a maior parte das súplicas eram, porém, atendidas, com um pedaço de pão, um resto de almoço, um níquel e, não raro, um chapéu velho ou uma roupa.

Naquela manhã, entre as esmolas recebidas, uma lhe havia particularmente agradado: era uma, ceroula e uma camisa, dádiva generosa de uma senhora compadecida, a qual tendo enviuvado recentemente, e achando-se noiva outra vez, não queria guardar a menor lembrança do primeiro marido. De posse das duas peças de vestuário, que apalpou detidamente, examinando-lhe o estado e o tamanho, resolveu o pobre cego mudá-lo mesmo naquele dia, utilizando-se do primeiro corredor deserto que descobrisse no seu caminho.

À sua perspicácia duvidosa não foi difícil encontrar o que desejava. Bordão na mão esquerda, com a camisa e a ceroula penduradas no braço, ia o ceguinho apalpando os gradis, as paredes, as portas, até que deu com uma, aberta, da qual não vinha o menor rumor. A temperatura, o ar úmido, o silêncio, tudo denunciava aos seus sentidos apurados um desses corredores de casa antiga, fechados ao fundo por uma segunda porta discreta. Seduzido por essas vantagens, Antônio João entrou tateando e, chegado a um canto, começou a tirar a camisa, a calça, enfim, toda a roupa que o cobria, para vestir a que lhe haviam dado; e estava já em trajes verdadeiramente paradisíacos, quando Dona Amelinha o descobriu do fundo da casa, correndo, pressurosa, a impedir a continuação daquele escândalo.

— Meu cego, que é isso? Você está doido?

Trêmulo, aflito, atarantado, Antônio João rodava, tateando, no meio do corredor, sem atinar com a roupa. E achava-se nessas viravoltas, doido de vergonha, quando a moça o amedrontou inquieta:

— Vá-se embora, ande! Se meu marido lhe vê, dá-lhe uma surra, e atira-o à rua, seja como for!

Atordoado pela ameaça, o cego não sabia o que fizesse; e foi nesse momento que Dona Amelinha, querendo ver-se livre dele quanto antes, apanhou a roupa toda que estava no chão, juntou o bordão, e, entregando tudo ao desgraçado, gritou:

— Minha Nossa Senhora! Lá vem meu marido! Depressa, esconda-se aqui! Esconda-se.

E puxando o cego pelo braço, pô-lo fora, na rua, encostado à parede, inteiramente despido, com a roupa nas mãos.

Não obstante a aragem que corria, Antônio João, atordoado como estava, não desconfiou de nada. Ele se achava, com certeza, em algum recanto do jardim, e o seu dever, de acordo com a ordem de quem lhe falava, era ficar quieto, calado, até que o perigo se dissipasse. E estava encolhido, imóvel, encostado à fachada da casa, quando um garoto, que passava, gritou para outro: — Olha! Olha ali! Olha o cego nu! Antônio João estremeceu, horrorizado.

O dono da casa iria, com certeza, descobri-lo.

E foi apavorado, trêmulo, branco de terror, que gemeu, deixando cair a roupa na calçada, e juntando as mãos:

— Cala a boca! Pelo amor de Deus, não diz nada!

E pedindo misericórdia:

— Eu estou aqui escondido!

LXXXI

A BAIXA DO CÂMBIO

Pago, como sou, em ouro, por força de uma disposição orçamentária, ainda não senti, até hoje, o efeito da crise financeira, que atravessamos, e de que tanto se queixa todo o país. Recebendo os meus vencimentos de ministro em disponibilidade, ao câmbio do dia, a diferença que sinto e toda a meu favor, da qual, entretanto, não tiro proveito evidente, pelo preço a que chegaram em compensação, os objetos de uso e consumo cotidianos.

De que me serve, realmente, receber seis contos de réis por mês, em vez de dois, se tudo me está custando cinco vezes mais do que custava? Se a mim, porém, o encarecimento da vida é indiferente, por ser pago a mais à proporção que as mercadorias se valorizam, o mesmo não se dará, certamente, com aqueles que, pagos em moeda nacional, não tiveram na receita, no ordenado, nos vencimentos, um aumento proporcional da despesa.

Examinado, entretanto, calmamente, o problema, a conclusão que se tira é que esses aumentos mais um fruto do pânico, da confusão, da balbúrdia em que nos debatemos, do que do fenômeno econômico propriamente dito. Produtos há, mesmo, que nada podiam sofrer com a queda do câmbio, e que, no entanto, estão, hoje, pela hora da morte. O câmbio é desculpa, atualmente, para tudo, e de tal modo que até hoje nos servimos dele inadvertidamente, como o verificou, há dias, o meu ilustre amigo Sr. Dr. Heitor Silva Costa.

Católico militante, desses que compreendem os altos destinos da religião, o ilustre advogado brasileiro lamentava, há dois anos, não se poder confessar, ocupado, como andava, com o monumento a Cristo Redentor, no alto do Corcovado. Resolvido, porém, esse problema, o seu primeiro pensamento foi procurar o seu antigo confessor, o padre Ricardino Seve, a quem, como outrora, contou o seu pecado, que é só um, e que não é, aliás, dos mais graves. Terminada a confissão, o sacerdote estabeleceu a penitência:

— Seiscentos padre-nossos, seiscentas ave-marias, quatrocentos creio-em-Deus-Padre, e trezentas Salve Rainhas.

— Quantas? — Interpelou o confessando, franzindo a testa, com espanto.

O reverendo repetiu, firme, a penitência.

—Mas, há dois anos, esse mesmo pecado só me custava cinquenta padre-nossos, cinquenta ave-marias, trinta creio-em-Deus-Padre, e vinte Salve Rainhas! — Justificou o Dr. Silva Costa.

— Isso era há dois anos, filho, — obtemperou, sereno, o ilustre sacerdote. — Há dois anos você entrava no Céu até por menos. Mas, hoje...

E desolado, abanando a cabeça:

— Com o câmbio abaixo de 7? ...

LXXXII

FRUTO PROIBIDO

Não há nada que denuncie tão positivamente a maldade do homem como o desejo, que ele alimenta, de desviar dos caminhos da virtude as senhoras que pertencem a outros. O indivíduo pode ser casado com uma mulher linda, jovem, incomparável; ao alcance da sua carícia, pode haver, na rua, centenas de cocotes formosíssimas e provocantes; passe por diante dele uma senhora, sem encantos, sem beleza, sem a menor graça, mas que seja casada, e ei-lo abandonando tudo para segui-la, até que esta se confesse rendida e se entregue, inteira, aos horrores da tentação! O homem faz isso, pode-se dizer, menos pelo desejo brutal de ter uma mulher mais, pois que as mulheres livres são aos milhares, do que pela ideia de tornar um outro homem infeliz. A selva está cheia de árvores frutíferas, pertencentes a toda a gente; ponha-se, porém, uma destas árvores em uma propriedade particular, e eis os gatunos pulando o muro da chácara para roubarem o fruto, unicamente porque tem dono!

O Sr. Carolino Camargo é um homem casado, que apurou, no outono da vida, essa vocação dos seus semelhantes. Dona Hilária, esposa dele, era o que se chama, fora de quaisquer cerimônias, uma mulher feia. Gorda, baixa, redonda como um barril, não tinha um encanto, uma particularidade que seduzisse. O próprio Carolino ficava, às vezes, horas e horas, a olhá-la, examinando-lhe o cabelo raro e curto, o nariz chato e vermelho, a boca de lábios insuficientes para a dentadura monstruosa, e quedava-se a pensar como a Natureza perdera o seu tempo, e o seu material, modelando aquele monstro. Era, porém, marido dela, e acarinhava-a, tratando-a bem, facultando-lhe sem reservas todas as suas regalias de esposa.

Dona Hilária possuía, no. entanto, no meio de tudo isso, uma qualidade, que despertava a cobiça dos homens: era mulher do Carolino, isto, uma senhora que pertencia a um homem, ao qual se podia atirar, com a desonra, um punhado de lama. Era assim, pelo menos, que pensava o Dr. Emiliano Siqueira, o conhecido advogado da rua do Rosário.

Certo dia, tendo saído mais cedo do seu estabelecimento comercial, chegou o Sr. Carolino à casa antes da hora habitual, e sem ser esperado. Despreocupado como sempre, tão cuidou de fazer, ou de não fazer barulho, e foi subindo, passo a passo, os quatro degraus da escada do corredor. Em cima, notou que a porta da sala estava apenas encostada, e, supondo tratar-se de gatuno, empurrou-a de leve, sem fazer rumor. E estacou, com o que viu; dentro, na sala, estava Dona Hilária nos joelhos do Dr. Siqueira, que a beijava perdidamente, gostosamente deliciado!

Ante aquele quadro que nunca imaginara, o Sr. Carolino abanou a cabeça, desolado:

— Sim, senhor, sr. Dr. Siqueira! Nunca pensei! ...

Apavorado, o bacharel deu um pulo, pronto para matar ou morrer. Carolino tranquilizou-o, porém, com a mão no portal, sorriso nos lábios:

— Sim, senhor! ... Que eu faça isso, vá, porque sou obrigado; mas você!?...

E puxou a porta, enojado.

LXXXIII

O GUIA

O sol incendiava, no Oriente, as últimas nuvens da noite, acendendo a fogueira do dia, quando o moço, olhando para a margem do caminho, descobriu, aí, um vulto que o maravilhou. Era um anjo de asas luminosas e leves, como aquele que apareceu a Tobias, o qual lhe estendeu a mão radiosa, convidando-o:

— Vem. Eu serei o teu guia, o teu companheiro, o teu confidente, através da vida. Nenhum homem na tua idade recusou o meu auxílio, a minha assistência, o meu conselho, bom ou mau. Anda. Vamos!

— Quem és tu? — Indagou o moço, espantado.

— Eu sou o Amor! — Informou a visão.

Deslumbrado com aquela aparição, que lhe tornaria, com a sua presença, o caminho menos áspero, e o dia menos longo, o mancebo apertou a mão luminosa que lhe era estendida, e partiram, os dois, lado a lado, para a grande aventura. Guiado pelo companheiro encantado e caprichoso, o viajante sentiu, no correr daquelas horas, as emoções mais esquisitas: alcançou, com as mãos, as nuvens mais altas; ensanguentou os pés nos espinhos; atravessou planícies geladas; penetrou a cratera dos vulcões; até que se encontrou, com o sol em declínio, à margem de um paul, com o corpo coberto de lama e a cabeça resplendente de estrelas.

Fatigado, sentindo-se diferente de si mesmo, o viajante chamou o anjo e pediu-lhe o auxílio prometido no princípio do dia.

— O meu auxílio? — Espantou-se a visão, rindo. — E sabes tu, mesmo, quem sou eu?

— Sei, sim. Tu és o Amor.

Silencioso, o anjo começou a despojar-se de tudo que lhe dava aquele aspecto maravilhoso. Arrancou, primeiro, uma a uma, as penas das asas. Atirou ao lameiro o manto azul e resplandecente, cosido com os raios do sol e cortado numa nesga do céu. E aos olhos do mancebo, cuja cabeça se tornara de neve, apareceu um esqueleto polvilhado de terra, que ria para ele sinistramente.

Era a Morte!

LXXXIV

IN EXTREMIS

— Não foi o senhor, sr. conselheiro, que contou aquela história do Azeredo no céu, narrando como ele abandonou, um dia, o Paraíso, para ir “aperuar” um poquerzinho no Inferno? — Perguntou-me, segurando-me pela manga do jaquetão, o meu ilustre amigo sr. senador Francisco Sá, roendo nervosamente as pontas do bigode grisalho.

Como era natural, eu protestei. A história que relatei uma vez, foi a repetição, apenas, do que me disse, no trem de Petrópolis, o sr. Dr. Luiz Soares, cônsul da Bolívia. E como eu insistisse em afastar de mim qualquer soma de responsabilidade, o ilustre representante cearense correu em meu auxílio, tranquilizando-me:

— Não se aflija, homem; não se aflija! Você contou como ele chegou ao céu, depois de morto; o que não sabe, porém, é como ele morreu!

E como eu esbugalhasse desabridamente os olhos, espantado com a promessa, o eminente senador pelo Ceará peneirou na mão esquerda um punhado de fumo de Barbacena, manipulou um cigarro de palha de milho, e começou, com a sua dição de mineiro:

— Certo dia, desenganado pelo Miguel Couto, pelo Aloísio de Castro, pelo Austregésilo e outros especialistas, pediu o Azeredo, com a voz quase sumida, que lhe chamassem um padre, um ministro de Deus, pois desejava reconciliar-se com o Supremo Arquiteto na hora do desenlace fatal. E assim se fez: meia hora depois penetrava o rico palacete da praia de Botafogo o virtuoso monsenhor Gonzaga, vigário da Glória, o qual se preparou, grave, rítmico, silencioso, para ouvir os segredos daquele coração tão nobre, mas tão cheio, ainda, dos feios venenos da terra.

Paramentado solenemente, o respeitável sacerdote chegou-se para a cama larga, coalhada de lençóis e cobertores, sob os quais desaparecia, pálido, magro, cadavérico, o enfermo, cujas condições eram realmente, alarmantes. Paternal, o confessor começou a passar-lhe a mão pela cabeleira prateada e revolta, procurando animá-lo com palavras de carinho. E como o doente se mostrasse, de repente, um pouco mais sereno, mais tranquilo, menos opresso pela dispneia, passou a interrogá-lo sobre os pontos essenciais da doutrina cristã, preparando-o para o sacramento da confissão. E com a mão nas suas, principiou, a meia voz:

— Filho, quantos são os mandamentos da Lei de Deus?

O doente fez um esforço, inchou o peito estertorante e respondeu, quase num cicio:

— Cinco!

— Cinco, não, filho! — Atalhou o sacerdote, escandalizado.

E mostrando-lhe duas vezes os dedos da mão, para fazer dez:

— Cinco, e mais cinco!

A essas vozes, o ilustre senador arregalou um dos olhos, cujas pálpebras haviam caído, já, no prenúncio da morte, e, com a língua presa, gemeu delirando:

— Mais cinco... e ... e ...

E expirando, com a voz estrangulada:

— A banca... é ... minha!

LXXXV

EUGENIA

Um dos contos mais formosos das “Mil e uma noites”, cujo título me não vem à memória, narra que, certa vez, em Bagdá, uma senhora muito linda pediu ao marido, rapaz vigoroso e encantador, que lhe fosse buscar uma maçã. Adorando a mulher, e satisfazendo-lhe todos os desejos, o moço ficou aflito, por ser estio cerrado e não haver, em tal estação, uma simples maça, na antiga cidade dos Califas; fechou, porém, o bazar, afundou no bolso todo o dinheiro disponível, e partiu para Damasco, de onde regressa, semanas depois, trazendo a única maça que, a peso de ouro, conseguira adquirir. Mal, porém, reabrira o estabelecimento de comércio para retomar o trabalho honesto, viu passar, horrendo, asqueroso, repelente, um pretalhão muito sujo, de carapinha emaranhada, boca sem dentes, beiços de alguidar, olhos injetados de sangue e pés calçados de lama, o qual mordia com as gengivas, deliciadamente, uma grande maçã madura. Espantado por ver em tais mãos tesouro tão precioso naquela época, chamou o mercador aquele monstro e indagou:

— Onde achaste, por este tempo, essa maçã, ó imundo?

O macacão sorriu, escancarando a boca de abismo, em que os cacos de dentes apareciam como as negras sementes de uma melancia podre, e informou:

— Esta maçã! Quem me deu foi minha amante, uma das mulheres mais lindas de Bagdá, a qual, para satisfazer o meu desejo, a imposição que eu lhe fiz, mandou comprá-la pelo marido, a peso de ouro, no mercado de Damasco!

O Sr. Amadeu de Morais Pinto, riquíssimo comerciante em títulos do governo, é um desses homens de Bagdá que o destino escolheu, por ironia, para enviar frequentemente a Damasco. Esposo de uma senhora encantadora, deu-lhe o céu, logo nos primeiros anos de matrimônio, três crianças de uma beleza impressionante, maravilhosa, verdadeiramente incomum, e que assim eram por se parecerem enormemente com os pais. A partir, porém, do quinto ano de casamento, a vida do casal mudou de modo radical. Vaidosa, amando o luxo, os chapéus caros, as joias de preço, os vestidos suntuosos, Dona Beatriz achou que as suas despesas constituíam muito peso para um marido só, e tratou de intercalar na família, como amigo íntimo, o comendador Abelardo Figueira, cujo físico era a contradição, exatamente, do seu esposo. E tanto olhou, embevecida, a corcunda, os olhos convergentes, a dentadura ostensiva e os pés formidáveis do audacioso capitalista, que o novo fruto da família, o Bidico, veio ao mundo com a corcova, os olhos, os pés, e, quase, com a dentadura do comendador!

Arguto, fino, inteligente, ao comerciante em títulos, não escapou essa alteração na estética da sua descendência. E era com o coração penalizado que, às vezes, gemia, à mesa do jantar, abandonando repentinamente o talher:

— Sim, senhora, Sra. Dona Beatriz! Há certas amizades que só servem mesmo, para dar desgosto à gente!

E, com o pensamento no comendador, balançando a cabeça, desolado:

— Sim, senhor! Estragou-me a raça! ...

LXXXVI

AMÁRACO

Nós voltávamos, os três, do conhecido Colégio de freiras situado na Tijuca entre o tumulto da estrada e a quietude majestosa da serra, quando Dona Margarida Pedreira, que havia ido visitar as filhas, ali internadas, observou, externando um pensamento que a preocupava:

— Eu não me posso esquecer, nem um instante, da madre Superiora. Com que paciência, com que doçura, ela trata as meninas!

E após um pequeno silêncio:

— Agora é que eu compreendo porque as moças que daqui saem, são, em geral virtuosas e boas. É a influência, com certeza daquela velhinha. Não é por outra coisa!

Céptico e irreverente, o desembargador Fontenele concordou:

— É engano de Vossa Excelência, senhora Dona Margarida; é engano de Vossa Excelência. Talvez se dê, no caso, o contrário, exatamente, do que Vossa Excelência supõe. O que sucede ali, é o episódio do Amáraco, da grega. A senhora Dona Margarida não o conhece?

A bondosa senhora procurou desviar a conversa, para fugir à caceteação do venerando magistrado, mas ele insistiu, tomando posição na cadeira do landaulet:

— Quando Cianaras dirigia os destinos de Chipre, encarregou dos seus depósitos de perfumes, que eram os mais famosos da antiguidade, o jovem Amáraco, mancebo de beleza incomum e de honestidade incorruptível, habituado, desde criança, a manejar essências asiáticas, importadas pelo bom gosto do pai.

Dona Margarida fingiu prestar atenção ao caso, e o magistrado insistiu:

— Certo dia, porém, ao examinar as riquezas do seu soberano, observou o guardião que os vasos de essências se haviam partido, inutilizando completamente o conteúdo. Penalizado com a ocorrência, Amáraco recolheu-se em uma tristeza tão funda, em uma dor tão amarga, em um pesar tão sincero, que se finou ao cabo de alguns dias. Os deuses, então, se compadeceram dele, transformando-o em manjerona, planta que resume o aroma das essências de que ele fora, na vida, o guardião incorruptível.

Dona Margarida mostrava-se, já, mais complacente com a mitologia do desembargador e este concluiu:

— A freira que Vossa Excelência viu, minha senhora, é o Amáraco daqueles perfumes, que são as meninas sob a sua guarda. Não é a sua bondade que torna as meninas inocentes: a inocência das meninas é que lhe embalsama a velhice, com o suave perfume da candura.

E, com tristeza:

— São essas as manjeronas da vida, senhora Dona Margarida. E a senhora já viu que a manjerona perfuma o dedo que a esmaga?

LXXXVII

POLIGAMIA

A imprensa tem comentado largamente, nestes últimos dias, o caso policial de um cavalheiro, o qual, casado em 1914 em um dos subúrbios da Leopoldina, contraiu novas núpcias, em julho do corrente ano, em uma das pretórias da capital. Indignados, os jornais atacam o desventurado cidadão, cujo crime consiste em ser, perante a lei, e com lucros para os cartórios, aquilo que os outros são clandestinamente, prejudicando o fisco e mentindo à sociedade.

Sujeito às influências do tempo e do meio, eu participava da opinião comum relativamente à bigamia, quando, um destes dias, fui seduzido por teorias melhores, emanadas de um escritor francês, cujo nome não me vem, de pronto, à memória. E tais são as ideias desse mormon gaulês que, em vez de considerar o Dr. Sanches um criminoso, um bandido, um celerado, tenho-o, eu, hoje, pelo contrário, na conta de um herói.

— Que é, efetivamente, o bígamo, o trígamo, o polígamo? — Indagou o moralista francês.

E ele próprio responde:

Se a nossa legislação pune, hoje, severamente, os celibatários, considerando-os traidores a pátria, desertores do dever conjugal, por que não considerar verdadeiros heróis, concedendo-lhes as palmas acadêmicas ou a legião de honra, os indivíduos que suprem com a sua coragem a covardia dos que abandonam o seu posto no front matrimonial?

E insiste, com a gravidade de um Leopoldo de Bulhões, em matéria econômica:

— O homem está sujeito, como os artigos de consumo, às leis da oferta e da procura. Se a mulher aceita para esposo um cavalheiro que já é marido de outra, é porque não encontrou artigo melhor no mercado. E, nesse caso, a primeira não pode privar a segunda de um direito constitucional que lhe assiste, sob pena de ser considerada uma egoísta, uma inimiga da pátria e como tal, perseguida pelos severos ditames da lei.

O ilustre economista anônimo sugere, entretanto, um processo que, na sua opinião, resolveria suavemente o problema.

— As Mulheres — diz ele — contentam-se, geralmente, com pouco. Ao contrário do homem, que quer uma mulher só para si, e as vezes duas, três, quatro, e mais, a mulher satisfaz-se tão facilmente que até se contenta com uma parte, apenas, do marido das outras. Verificado isso, isto é, que várias mulheres se podem considerar venturosas como esposas, in partibus, do mesmo homem, por que não modificar a legislação atual, permitindo-lhes oficialmente esse meio de encontrar a felicidade?

E conclui, experiente:

— Permitido isso, quatro ou cinco mulheres poderiam casar com um só homem, entrando apenas em acordo para evitar conflitos de atribuições sobre o pedaço do marido que, na distribuição, coubesse a cada uma. A esta competiria a cabeça; àquela, o tórax; àquela outra, os braços; às outras, as mãos, os pés, os joelhos.

A felicidade estaria, toda, na escolha do pedaço.

LXXXVIII

ASTRONOMIA

Quem empurrasse cuidadosamente a porta daquela sala de jantar de família burguesa, fechá-la-ia docemente, de novo, observando a paz inocente que, naquela noite, como sempre, reinava ali dentro.

Suspenso do teto alto, o abat-jour de seda azul, com ramagens vermelhas, concentrava a luz, num grande feixe, sobre a toalha de pelúcia verde da mesa redonda. A claridade espraiava-se, porém, o bastante, para que Dona Ritinha, apesar dos seus cinquenta e quatro anos, pudesse fazer o seu crochê e para que o coronel Felicíssimo, do outro lado da mesa, lesse, sem óculos, alguns dos jornais do dia.

Sem filhos, nem parentes na casa, o coronel Felicíssimo atravessava os seus sessenta e seis anos com a tranquilidade dos velhos capitalistas. A esposa adorava-o com desmedida ternura, e era assim que eles deslizavam para a morte, gozando em silêncio, um defronte do outro, os prazeres da leitura e dos trabalhos domésticos.

Nessa noite, entregavam-se um e outro à sua distração predileta, interrompidos apenas pelo tic-tac do relógio de parede e pelo ronronar de um grande bichano preto, enroscado sobre uma cadeira próxima, quando o ancião, abaixando o jornal, se voltou para a esposa, indagando:

— Leste a ideia deste astrônomo americano que inventou um telescópio para trazer a Lua a quinze metros da Terra?

— Não, — respondeu Dona Ritinha, sem levantar o rosto do crochê; — não li, não.

— Pois, é uma cousa assombrosa, — tornou o velho, remexendo em outros jornais. — Imagina tu que a Lua está a 384 mil quilômetros de nós; o aparelho é, porém, tão poderoso, tão forte, que a Lua vai aparecer a quinze metros da nossa cabeça, isto é, à altura mais ou menos, de um desses sobrados de dois andares!

— E não haverá com isso algum inconveniente, não, Felicíssimo? — Objetou, preocupada, Dona Ritinha, suspendendo o rosto e interrompendo a atividade da agulha. — A Lua, como tu me disseste uma vez, é tão grande...

— Lá isto é ... — Confirmou o velho.

— E então?

— Bom; mas, nesse caso, eles tomariam as suas precauções, quando tivessem de aproximá-la tanto da Terra.

— E que precauções seriam essas? — Insistiu a velhinha, interessada no caso.

— Ora, é simples! — Tornou Felicíssimo, ligeiramente atrapalhado.

E retomando o jornal, como quem quer acabar com a conversa:

— Em vez de aproximarem a Lua quando estiver cheia, deixam isso para quando estiver nova, ou no quarto minguante.

— Só se é assim... — Concordou Dona Ritinha.

E baixando a cabeça, retomou, tranquila, a teia do seu crochê.

LXXXIX

FIDELIDADE CONJUGAL

Em admirável artigo de imprensa o eminente pregador e escritor católico padre José Maria Natuzzi fez, ontem, uma série de considerações sobre os deveres conjugais, mostrando que a formação de um lar constitui, sempre, o sacrifício de vários prazeres mundanos, não só por parte da mulher, que aí oferece em holocausto a sua mocidade e a sua inocência, como por parte do homem, que aí imola, para sempre, a sua liberdade.

Os compromissos que assumem, ao se ligarem perante o juiz e o sacerdote, são, sem dúvida, recíprocos, no homem e na mulher. Mais sinceras, mais tímidas, mais leais por temperamento e por educação, muitas destas cumprem, religiosamente, a sua promessa. A proporção que era, antigamente, grande, está, sem dúvida, muito reduzida, como efeito da educação moderna, que lhes faculta uma liberdade excessiva. E se isso acontece com um sexo que é honesto por natureza, que dizer dos homens, expostos, como vivem, a toda sorte de seduções?

Quando eu comecei, em 1865, a entender a vida e os seus perigos, só existiam no Rio de Janeiro, segundo era voz corrente, dois homens rigorosamente fiéis ao pacto matrimonial. Eram pessoas respeitáveis, cândidas, morigeradas, que ninguém vira, jamais, fora de casa sem a companhia da família. O primeiro desses cavalheiros, foi, lembra-me bem, encontrado pela esposa, morto, no quarto da criada, tendo o outro acabado os seus dias na ponta de uma faca de cozinha, no momento em que descia precipitadamente uma escada de corda, suspensa por duas mãos femininas à janela de um vizinho ciumento.

Depois desses, só apareceu, no Rio, um marido verdadeiramente fiel à esposa, e foi o Dr. Antônio Gabriel de Oliveira, antigo engenheiro do Ministério da Viação. Chefe de família incomparável, amando a mulher, e adorando os filhos, o ilustre funcionário era, positivamente, o esposo mais puro da cidade. E isso não só por princípio e por índole, como pela vigilância que sobre ele exercia a cara metade, cujo amor o acompanhava, dia e noite, nos menores passos. Virtuosa, pura, honesta, como o são, felizmente, as senhoras educadas nos moldes da antiga família brasileira, Dona Janina acreditava, como a cidade inteira, na fidelidade do marido. Não passava ele os dias em casa? Não era tão seu amigo, a ponto de não sair senão na sua companhia?

As esposas ciumentas são, porém, incrédulas, mesmo diante das verdades mais evidentes. E daí o fervor, a veemência, a devoção, com que a pobre senhora pedia, um dia, de joelhos, diante do altar da Virgem, na matriz de Copacabana:

— Ah minha Nossa Senhora! Fazei com que eu tenha conhecimento, na vida ou na morte, de qualquer traição que o meu marido me faça. Anunciai-me, por um modo visível, mesmo depois dele morto, qualquer infidelidade ao nosso amor!

E após um instante de meditação, como quem deseja uma certeza, com sinais positivos:

— Se ele me tiver enganado, minha Nossa Senhora, fazei com que, no dia da sua morte, para que eu saiba as traições que ele me fez, e o tamanho delas, o mar atire bem perto da nossa casa, no Leme, tantas ondas quantas tenham sido as infidelidades dele!

Anteontem faleceu na Avenida Atlântica, de um ataque de gripe, o Dr. Antônio Gabriel de Oliveira.

E começou a ressaca.

XC

O PROBLEMA OPERÁRIO

No momento atual, em que o mundo inteiro procura, aflito, uma solução para o problema operário, harmonizando os interesses do trabalho e do capital, são dignas de nota, em São Paulo, as boas relações existentes entre essas duas forças que constituem, podem-se dizer, as duas hélices impulsionadoras dos povos. O mundo inteiro, das maiores cidades as menores aldeias, é perturbado, de vez em quando, por movimentos grevistas, que paralisam toda a atividade, prejudicando a riqueza coletiva. E enquanto isso acontece, as indústrias paulistas prosperam, com as fábricas em produção constante, com o seu povo cada vez mais rico, mais sadio, mais feliz.

Era essa condição singular de São Paulo que eu acentuava, um destes dias, em uma roda de amigos, quando o Dr. João Dente, o conhecido e ilustre advogado paulista, me interrompeu, explicando:

— É isso, senhor conselheiro, devido a um homem, a um homem só!

— A um homem só? — Duvidei.

— A um único homem, sim, — acentuou o jurista; — ao velho Penteado, que o senhor tanto conheceu.

Uma curiosidade súbita, e tão em desacordo com meu temperamento, mordeu-me; e como o Dr. Dente percebesse o meu interesse em desvendar o mistério, fincou os cotovelos na mesa, e, inclinando o corpo sobre a toalha, chegou-se mais para mim, para contar melhor:

— Antigamente — começou — as fábricas de São Paulo eram tão morosas como as de qualquer outra parte do Brasil. Havia sempre greves, a produção era sempre pequena, reinando, sempre, entre operários e patrões, a mesma desarmonia, as mesmas desinteligências, a mesma prevenção. Dono de uma fábrica de aniagem, o velho Penteado, homem inteligentíssimo, compreendeu o que podia fazer nesse terreno, e passou a estudar o problema. Por que motivo o operário produzia tão pouco? Por que razão não vivia satisfeito? Que é que o levava, tão frequentemente, a insurgir-se contra o patrão? As respostas a essas três perguntas foram, logo, encontradas: o operário vivia desgostoso unicamente porque ganhava pouco; ganhava pouco porque produzia menos do que podia; e produzia menos do que podia porque perdia, diariamente, duas ou três horas de trabalho, retirando-se da oficina sob o pretexto de ir a partes reservadas da casa!

— Admirável! — Interrompi.

O Dr. João Dente segurou-me do braço, para deter-me o entusiasmo, e continuou: Conhecido o mal, era preciso descobrir o remédio. E foi isso que o velho Penteado inventou.

— Inventou? Qual foi?

— Espere lá. Isto vai devagar... — atalhou o meu ilustre amigo.

E explicou-me:

— Conhecido o mal, e verificado que o essencial consistia em impedir que o operário se afastasse do trabalho, fez o velho industrial o seguinte: instituiu uns cartões de duzentos réis e outros de quinhentos, que eram entregues, um de cada, a cada operário, à entrada da oficina. Esses cartões que correspondiam, os primeiros, a uma “pequena necessidade”, e os segundos, a uma “grande necessidade”, deviam ser arrecadados à porta das “repartições” convenientes, daqueles que os quisessem utilizar; os operários, porém, que se não tivessem servido deles durante o dia, os devolveriam à tarde, na porta de saída, recebendo aí a importância correspondente!

— Estupendo! — Exclamei.

— Por esse modo, — continuou o Dr. Dente, — o Penteado normalizou todo o serviço nas suas fábricas, prendendo o operário na oficina, aumentando com isso a produção e, o que é mais, reduzindo a zero a mortalidade pela tuberculose.

— Não morre mais ninguém de tuberculose nas fábricas dos Penteados? — Indaguei, arregalando o nariz.

— Ninguém! — Confirmou o meu amigo.

E sob palavra de cavalheiro:

— Morre tudo... de infecção intestinal! ...

XCI

O MATCH

Aquele casal tão amigo, tão apaixonado, tão agarradinho, tinha regressado do cinema, onde se havia exibido o filme sensacional da semana, representando, com todas as particularidades, o match de box entre Carpentier e Dempsey. E comentavam, os dois, pelo caminho, sob a capota do automóvel particular, a brutalidade do jogo, patenteando, com essa insistência no assunto, o seu interesse pelos dois jogadores.

— É bonito, não há dúvida, — observou a moça, chegando-se muito para o seu maridinho. — Mas não deixa de ser brutal, estúpido, desumano. Não achas?

— Quanto mais se tu visses o jogo, tal como ele foi, — atalhava o marido. — A revista americana que eu recebi anteontem, descrevendo o match, apresenta fotografias horríveis dos jogadores. Uma dessas, mostrando o corpo dos dois rivais, deixa ver, mesmo, como podia ter sido fatal, para qualquer deles, um daqueles socos.

Chegados em casa, acabava a linda e jovem senhora de vestir o seu roupão de dormir, quando o marido, já de pijama, entrou no quarto, com uma revista na mão.

— Olha aqui, — disse, sentando na cama de casal.

Pequenina, loura, graciosa, a moça chegou-se, muito fresca e muito formosa e, passando a mão sobre o pescoço do seu querido companheiro, pôs-se a ver, com ele, a conhecida publicação esportiva. E rompia, a cada página, numa exclamação:

— Oh! Que horror!

Ou então:

— Olha, aqui ele caiu.

E lamentava Carpentier:

— Coitadinho!

Quase no fim da revista, apareceram, em dois quadros, os dois campeões. Busto nu, musculatura em evidência, mostravam, um e outro, por meio de sinais pretos, os pontos em que haviam sido atingidos pelo adversário. E o marido explicava:

— Cada uma destas bolas feitas com tinta, representa um murro.

E contando:

— Dempsey levou um, dois, três, quatro, cinco, seis, no rosto, e doze no resto do corpo. E Carpentier, um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, no estômago e no peito. É o que está mais marcado; estás vendo?

Dona Lisete olhava atentamente as figuras da revista contando os pontos negros postos sobre o busto dos dois lutadores formidáveis, quando o marido, tomando-lhe entre as mãos o rostinho mimoso, observou, rindo:

— E se eu pusesse, agora, no teu corpo, um sinal destes, marcando cada lugar em que eu te tenho beijado?

A moça enrubesceu, de súbito, com a lembrança esquisita, protestando num muxoxo:

— Ah! ...

Mas ajuntou, logo:

— Que horror! ...

E com a cabecinha de um lado, sorrindo, galante, para o seu maridinho:

— Ficava toda preta ... Não era?

E começaram o round.

XCII

DEJANIRA

— O Sr. desembargador quer água? — Indagou, gentil, a encantadora dona da casa, recostando-se galantemente nas almofadas do canapé.

E como o desembargador Mendes Ferreira confirmasse o pedido, ordenou para a sala contígua, onde a mocinha, vivamente interessada com o episódio, lia as últimas páginas de um romance de amor.

— Dejanira, traze dois copos d’água.

Trazida a água, e despedida a menina, o desembargador indagou:

— Chama-se Dejanira, a sua sobrinha?

E como Dona Beatriz confirmasse:

— É um lindo nome. Um nome formosíssimo, e conhece a lenda?

— Que lenda?

Versado nos latinos e nos gregos, lendo original, a Odisseia, a Ilíada, as Metamorfoses, a Eneida, os poemas fundamentais da literatura greco-romana, o antigo magistrado fluminense tinha a mania, que alguns julgavam excelente, e muitos intolerável, de patentear, a propósito de qualquer cousa, ou sem propósito nenhum, as maravilhas da sua cultura. E foi sem cerimônia que, afastada a menina, começou logo:

Tendo de atravessar o rio Evena, em companhia de sua esposa Dejanira, encontrou Hércules, à margem da torrente, o centauro Nesso, que se ofereceu para transportar a moça sobre os ombros. Aceito o oferecimento, o centauro tomou Dejanira nos braços e, em vez de vadear o rio, deitou a fugir. E ia, já, na carreira, quando Hércules, percebendo a insídia do monstro, disparou uma seta, que lhe deteve prontamente os passos. Ferido, sentindo-se morrer, Nesso teve, então, um gesto, que o tornou famoso através dos séculos: despiu a túnica ensopada de sangue e entregou-a a Dejanira, dizendo-lhe que, graças àquela vestimenta o seu marido nunca mais a abandonaria para se afeiçoar a outras mulheres.

— E surtiu efeito? — Indagou a linda senhora, curiosa.

— Surtiu, sim.

Com a túnica ensopada de sangue ela prendeu, mesmo, o esposo?

— Inteiramente.

E continuou a contar pausadamente, calmamente, monotonamente, a lenda famosa, que lera em Ovídio, enquanto Dona Beatriz, muito apreensiva, pensava num velho centauro, de cara raspada, que lhe havia dado, na véspera, uma dúzia, não de túnicas, mas de finas camisas para o marido...

XCIII

DEMOCRACIA

Um dos cinemas desta capital ofereceu, há oito dias, um filme de Frank Keenan, pondo em foco um dos mais graves problemas modernos: as exigências dos pequenos trabalhadores, representados, no caso, por uma cozinheira insolente, que reclamava, para empregar-se, uma soma de comodidades como as não tinha, na casa, os próprios patrões.

O assunto desenvolvido no filme e especialmente, a parte relativa à criada, constitui, de fato, um caso mais sério do que geralmente, se supõe. As criadas dos nossos dias são, em verdade, exigentíssimas. Essa atitude, assumida por elas, será, entretanto, o resultado de leituras subversivas ou de propaganda revolucionária? Absolutamente, não. As criadas não têm, como os proletários masculinos, sociedades de classe associações secretas, institutos destinados a despertar-lhes, como aos pedreiros, aos padeiros, aos alfaiates, o sentimento de solidariedade. Qual a origem, pois, da arrogância de que se revestem, diante das patroas? Quem lhes injetou no espírito a noção de uma suposta independência, tornando-as tão atrevidas? Leem elas jornais? Deletreiam boletins maximalistas? Conhecem, porventura, a marcha das reivindicações operárias?

Nada disso. O responsável pela arrogância da cozinheira, da arrumadeira, da ama seca, não é Marx, não é Kropotkine, não é Trootkine, não é Trotsky: é o dono da casa, é o patrão sem a consciência das suas responsabilidades, é o chefe de família que não respeita o pessoal da sua copa ou da sua cozinha, aplicando-lhe beliscões, piscando-lhe o olho, dirigindo-lhe pilhérias inconvenientes, dando-lhe, enfim, uma situação que discorda, em absoluto, dos princípios fundamentais da disciplina.

Um caso pitoresco, documenta flagrantemente esta verdade. Empregada como copeira na residência do Dr. Bernardo Fernandes, à rua São Clemente, em Botafogo, a Honorina, mulatinha pernóstica, andava, ultimamente, a dar-se ares de importância, olhando com desprezo os outros serviçais da família. Um destes dias, ficou tudo esclarecido. Estava a mulatinha na copa, a enxugar a louça do café, quando, de repente, ao virar-se, bateu com o braço em Dona Ernestina, dona da casa, que havia entrado na ocasião. Sem olhar, a pequena desculpou-se:

— Perdoa, coração; não foi por querer. Estranhando aquele tratamento tão íntimo, Dona Ernestina protestou:

— O que? Que apresentamento é esse, Honorina?

A mulatinha empalideceu, isto é, ficou cinzenta. Voltando-se, porém, para a patroa, justificou-se:

— A senhora me desculpe; mas, eu pensava...

E limpando os olhos no avental:

Eu pensava... que fosse... o patrão! ...

XCIV

PADRE SAMUEL

(DE UM CONTO DE ROUSSEAU)

Padre Samuel da Encarnação, vigário da paróquia de Santa Margarida, era, talvez, pelas suas virtudes sacerdotais, a primeira figura do clero, naquele bispado. Puro de coração, singelo de maneiras, casto de pensamento, era tamanha a sua fama entre a gente simples, que já lhe atribuíam qualidades de santo e, como consequência, a faculdade de realizar milagres. E, tudo isso, no meio da modéstia mais comovente, que mais aumentava, nas redondezas da vila, o prestígio da religião.

Bondoso assim, e com essa fama de perfeição, era natural que padre Samuel inspirasse a maior confiança aos pecadores. E inspirava-a, realmente, em tal grau, que até o Luiz Pé-de-Bola, o mais famigerado vagabundo da localidade, lhe caiu, naquele dia, aos pés, revelando, diante do confessionário:

— “Seu” vigário, eu cometi um pecado; e um pecado grande!

— Que foi, filho? Confesse. Tenha confiança em mim! — Animou o reverendo com a sua voz branda, persuasiva, paternal!

Olhos baixos, ajoelhado em cima do velho chapéu de feltro, o malandro acordou tímido, a consciência cataléptica, e confessou: eu entrei, “seu” vigário, de namoro com a mulher do Saturnino e aproveitando a ausência dele, passei cinco noites com ela!

— Cinco noites, filho? — Indagou o sacerdote, abismado.

— Sim, senhor, “seu” vigário.

Torcendo as mãos, aflito com o destino daquelas almas pecadoras, pensava padre Samuel no meio de salvar aquelas ovelhas das garras de ferro do lobo infernal, quando, após alguns cálculos, sentenciou:

— É horrível, filho, o que você me conta. É horrível. E para ser perdoado, para obter o perdão do céu, você precisa de uma penitencia. Você vai para sua casa, e, chegando lá, reze, de joelhos, um rosário inteiro. Ouviu? Olhe, lá!

E mandou-o com Deus.

Mal, porém, o caboclo saiu pela porta da frente, entrou no templo, pela porta da sacristia, um pretalhão de dois metros de altura, que se ajoelhou, contrito, diante do confessionário. Era o Paulino Saúva, outro desocupado da vila, que desejava ser ouvido pelo sacerdote. Paciente, bondoso, sem um gesto de enfado, padre Samuel tomou de novo a sobrepeliz, passou a estola, e, após as orações do ritual, ordenou ao pecador que abrisse a sua alma, escancarasse o seu coração, patenteando-lhe as feridas que o faziam sofrer.

— O meu pecado, “seu” vigário, é uma malvadez que eu fiz.

— Uma malvadeza, filho? Que horror! Que foi que você praticou?

Certo de que padre Samuel não diria, jamais, uma palavra a ninguém, Sebastião baixou mais a voz e revelou:

— É pecado grande, “seu” vigário. Eu seduzi a Joaninha, mulher do Sebastião, e há nove noites que pulo o quintal dele, por causa dela.

— Nove noites, filho! Que pecado horrível! Você não tem medo do Inferno? Você não sabe que cada noite que se passa com a mulher dos outros é um século de tormentos que se padece na outra vida?

Silencioso, quase com medo daquelas ameaças, o preto ouvia o sermão do vigário e aguardava, inquieto, a penitência. Mais inquieto do que ele, estava, entretanto, a consciência do padre Samuel. Que castigo, realmente, devia dar àquele pecador? Se ao Luiz Pé-de-Bola, que passou cinco noites com a esposa do Saturnino, ele impusera um rosário, era evidente que aquele, que passara nove com a mulher do outro, merecia penitencia maior. Qual seria ela, porém? Dois rosários? Mas dois rosários seria muito, porque, nesse caso, ficava o pecador prejudicado, uma vez que ia rezar um rosário por quatro noites, quando o outro rezara por cinco? E debatia-se nesse caso de consciência, enrolando-se nos algarismos da conta, quando, de repente, teve uma ideia, que resolvia o problema:

— Diga-me uma cousa, filho: no quintal do Sebastião já tem cachorro?

— Não, senhor, “seu” vigário, — informou o preto.

— Então, ordenou o reverendo — você faz uma coisa: volta lá hoje, passa mais uma noite com a Joaninha, e, amanhã de manhã, reza dois rosários de penitência. Ouviu?

E suspirou, aliviado.

XCV

O ERRO DO ARQUITETO

As oficinas do Éden haviam trabalhado naquele dia mais do que habitualmente. Uma agitação, uma atividade, uma pressa incomum, animavam os anjos, os arcanjos, os querubins, artífices da grande fábrica maravilhosa. Trabalhava-se na formação do Homem, competindo a cada secção de operários celestes, o fabrico de uma peça do soberbo organismo. Manejando martelos, serras, tornos e instrumentos imprevistos, alguns arcanjos curvavam-se, ágeis, torneando braços, pernas, tornozelos e outras peças complementares. Com os dedos pequeninos, grupos de serafins estiravam fios de ouro, destinados à cabeleira da nova criatura. Sorrindo e brincando, querubins se distraíam, sentados em grandes folhas de lótus, fabricando unhas, orelhas de neve, pupilas fugitivas e outros atributos ornamentais do corpo humano. Concluído tudo isso, terminada a fatura delicada de todas as peças, foram cientificados, para a montagem da grande máquina, Jeová e Lúcifer.

Como todos os edifícios, a montagem começou pela base, isto é, pelo pé. Em seguida vieram os novos andares dos monumentos, até que, à altura do peito, o Demônio fez uma consulta ao Senhor.

— Onde pretendes tu, na tua sabedoria agasalhar os sentimentos que regem a vida?

— No coração, é claro. Foi para isso que o mandei fabricar, — informou o Criador.

— E onde pretendes colocar o coração?

— No cimo do edifício, no ponto mais alto do homem, para que todos possam vê-lo e compreendê-lo.

O Diabo sorriu, assentindo. Assim, porém que Jeová se afastou, ele fez, exatamente, o contrário: escondeu o coração no recesso do peito, lançou-lhe por cima uma rede de músculos, de ossos e de veias, pondo-o ao abrigo de todos os olhos.

Quando o Homem surgiu para o mundo, surgiu, com ele, a Mentira.

XCVI

O SOLFEJO

O bonde, que descia do Largo dos Leões, corria desabaladamente pela rua Voluntários da Pátria, quando, quase ao desembocar na praia, parou, rápido, ao gesto de uma pequena mão feminina, estendida, de súbito, no meio da rua.

Não sei se alguém já meditou sobre esse aspecto da civilização constituído pelo prestígio do homem sobre a energia prodigiosa das máquinas. Na sua força e no seu tamanho, o bonde sobreleva o elefante, a baleia, os monstros, enfim, da terra e do mar. No seu ímpeto, na sua fúria, na sua carreira poderosa, ele pode lançar ao chão uma parede, uma torre, um edifício. Apareça-lhe, porém, no caminho, no instante da correria, uma simples criança com uma insignificante moeda de duzentos réis, e ei-lo parando de chofre, bofando e trepidando, para receber, humilde, sobre o dorso cômodo, a pequena portadora do níquel.

Foi esse milagre que eu presenciei quando a mocinha estendeu a mão, e subiu para o veículo. E este se pôs, logo, em marcha, levando-nos, no mesmo banco, a mim, um cavalheiro mais idoso do que eu, uma senhora que acompanhava a senhorita que fizera parar o bonde, e, no meio, ao lado da mocinha, um rapaz elegante, bem vestido, com uma vassoura de cabelos por baixo do nariz, como quem acaba de espirrar o bigode.

Curioso por índole e por miopia, pus-me, logo, a examinar a jovem passageira. Era uma boneca humana de uns dezessete ou dezoito anos, morena como um jambo e leve como uma borboleta, a qual trazia sobre os joelhos uma grande pasta de música.

— Que horas são, mamãe? — Indagou, de repente, a criaturinha.

— Duas, em ponto.

E grave:

— Vais chegar atrasada ao Instituto.

Para aqui, corre acolá, embarcando ali um passageiro, desembarcando outro adiante, descia o bonde para o Largo do Machado, quando a mocinha começou a bater no soalho do carro, descompassadamente, com o pé que ficava ao lado do rapaz. Com a pasta sobre os joelhos, e alcançando, ainda, o do seu vizinho, a linda passageira batucava, encantada, quando a matrona interrompeu:

— Que é isso, Lalinha? Tem modos!

E a mocinha, com a voz sumida:

— Não é nada, mamãe.

E trêmula, pálida, quase num suspiro:

— É o solfejo...

XCVII

HIGIENE

A civilização brasileira é assinalada por três marcos principais: as “bandeiras”, ou “entradas”, que nos deram a posse de um sertão imenso e riquíssimo; a remodelação do Rio de Janeiro, que estabeleceu o nosso crédito de povo culto no conceito leviano do mundo; e, ultimamente, a campanha de saneamento, iniciada no interior do país por meio de conferências, sulfato de quinino e farta irrigação de mercúrio. Usados em conjunto, esses remédios estão arrancando o Brasil das cinzas em que se havia sepultado, fazendo sair, delas, uma pátria nova e forte, capaz de exercer, no futuro, o supremo domínio da terra.

As conferências dos novos Anchietas da vassoura e da creolina, obedientes à palavra do eminente Dr. Belisário Pena, têm encontrado, entretanto, adversários formidáveis. Uma oposição violenta, sistemática, insistente, vem prejudicando, nestes últimos tempos, o benemérito apostolado. E com argumentos tão sérios, tão graves, tão poderosos, que há quem sinta abalado, já, pelos alicerces, o formidável monumento.

Não há muitos dias, foi o Sr. Dr. Plácido Barbosa combatido, e de modo insólito, na própria tribuna, por um positivista impenitente. A sala em que se realizava a conferência estava cheia, repleta, de gente distinta, limpa, educada, capaz de compreender o orador. E o ilustre higienista pregava:

— Senhores, sede cautelosos e extremados na limpeza. Evitai o menor contato com as impurezas do solo. A poeira do chão está fervilhante de micróbios. O homem que respirasse com o rosto na terra não viveria um ano!

— Protesto! — Bradaram, de súbito, da plateia.

Todos olharam. E a mesma voz:

— A tartaruga não sai da poeira, e vive duzentos!

Um rumor de cadeiras arrastadas, de censuras polidas, foi em auxílio do orador, interrompido, assim, pelo positivismo do Sr. Dr. Bagueira Leal. Restabelecido, porém, o silêncio, o doutor Plácido continuou:

— A higiene, senhores, é a base da vida longa. Higiene no vestuário, higiene na respiração, higiene no trabalho, higiene na alimentação. Vesti roupa limpa; respirai ar puro; trabalhai em recinto arejado; comi alimento sadio. O alimento deteriorado, senhores, encurta a vida!

— Protesto! — Brada, de novo, do auditório, o Dr. Bagueira Leal.

E fulminante:

— O urubu só come do podre, e vive cem anos!

E fugiu.

XCVIII

TURFE

Terminada a reunião da Sociedade Beneficente dos Cavalos de Raça, a diretoria tomou, reunida, o elevador, discutindo complementarmente os assuntos debatidos em sessão. Ao chegarem, porém, à rua, tiveram os ilustres homens de turfe e de fortuna a atenção voltada para um laudalet que passava, e em que fulgia, como santa de ouro em rolante oratório de ébano, uma encantadora silhueta feminina.

— É a Costa Bordalo! — Informou, voltando-se, rápido, o Dr. Lineu de Paula Machado.

— Está lindíssima! — Acentuou, estalando a língua, o Major Carlos Eiras.

A passagem daquela mulher de luxo, cuja vida suntuosa e bulhenta vinha interessando, nestes últimos tempos, os salões elegantes da cidade, fizera com que aqueles homens esquecessem completamente os cavalos, os prêmios, os programas de corrida, que lhes haviam tomado a tarde inteira. E como aquela figura lhes tivesse entrado violentamente pelos olhos, iam conversando sobre ela, à medida que caminhavam, à pé, e em grupo, Avenida acima.

— E o marido? Não sabe de nada? — Indagou, interessado, esticando a cabeça para a frente, o deputado Macedo Soares.

— Sei lá! — Opinou o Dr. Lineu — E se souber, que vai ele fazer?

Esse aparte foi como um espanador inesperado, o qual tirasse à conversa todo o seu caráter pessoal. E isso mesmo compreendeu um do grupo, respondendo à observação:

— Nada! A mulher, quando é inteligente, fina, sagaz, faz o que bem entende, e o marido acha, sempre, que está direito!

— Isso é conforme! — Opinou um.

— Depende! — Secundou outro.

— No caso de Bordalo, por exemplo, — tornou o que primeiro falara — o marido não podia fazer nada. Ela é bonita, inteligente, e, no meio de tudo isso, voluntariosa. O caminho a ser tomado por ele só podia ser, pois, esse: concordar com ela!

Foi por essa altura que o Sr. conde de Frontin, que caminhava em silêncio, interveio, esfregando o lenço no rosto:

— Qual, filho! Isso, agora, é tolice.

Os outros olharam-no, mudos.

— É o que lhes digo, — tornou o velho titular. — Mulher é como cavalo de corridas!

Encarou os companheiros e concluiu:

— Depende do jóquei

E passou o lenço, de novo, pela barba.

XCIX

NOIVOS MODERNOS

Desde os quatorze anos de idade, o Antonino Benevides começara a manifestar o que seria, mais tarde, como temperamento. Criadinha da casa que lhe passasse ao alcance, não se afastava sem soltar um grito, surpreendida por um beliscão. A marca da sua dentadura forte, sólida, poderosa, andava no braço das primas, das copeiras, da cozinheira, da lavadeira da família, e, até, por perversidade do dono, na perna das galinhas de raça. Aos quinze anos, tinha ele no rosto, e no corpo, as cicatrizes de um coice de vaca, de duas mordidelas de cachorro, de seis arranhões de gato, de uma dentada de macaco, sem contar outras menores, que lhe davam à pele o aspecto de um mapa da Europa, com as suas cidades, os seus rios, as suas montanhas e as suas estradas de ferro.

Homem feito, com dezenove anos, o rapaz já havia desmanchado três casamentos: um, por haver cortado, a dente, uma das orelhas da noiva; outro, por ter quebrado dois dentes de uma senhorita, na violência desesperada de um beijo; e outro, o último, por haver tirado um pedaço do braço, com uma dentada, à normalista que lhe prometera o seu afeto de esposa. E foi nessa idade que Antonino se tornara noivo pela quarta vez.

— Pobre moça! — Lamentava, escutando a própria consciência, Dona Joaninha, mãe do rapaz.

E gemia desolada:

— Deus se compadeça de ti, minha filha! ...

No dia seguinte ao do noivado do filho, estava Dona Joaninha sentada na cama, desfiando, remexendo, os lábios murchos, o seu rosário de contas de âmbar, pedindo a Deus que preservasse a sua futura nora das brutalidades amorosas do noivo, quando tilintou na porta, chamando as famílias da vizinhança para verem o escândalo, o carro da Assistência Municipal. Trêmula, arranjando os cabelos brancos na touca de dormir, a velhinha precipitou-se para a janela, aflita. E quase desmaiou: estendido na padiola, o seu pobre filho gemia, imóvel, enrolado em gaze sangrenta, como se tivesse vindo de uma mesa de operações.

— Minha mãe! ... — Chorava o desgraçado, sem poder enxugar as lágrimas que lhe corriam pelo rosto enrolado em panos.

— Meu filho! — Soluçava a pobre velha, correndo ao seu encontro.

A quarta noiva do Antonino era, no dente, pior do que ele!

C

DIREITOS ADQUIRIDOS

Uma das leis mais sábias que possuímos, é, dizem os homens do foro, a que investe nas funções de proprietário o indivíduo que, tendo encontrado um objeto, o guarda certo tempo, sem que ele seja reclamado por quem o perdeu. A dona de um cachorro, de um gato ou de um frango perde-o, para quem o encontrou, se ela o não procurar, creio, no prazo de um ano. Ao fim de doze meses, a pessoa que achou um anel, uma carteira, ou um papel de valor, e o levou à polícia, pode reclamá-lo desta, que lhe entregará, caso não tenha aparecido o respectivo dono. A senhora que, ao fim de dois anos, não reclame seu marido “perdido”, encontrado por outra, pode considerar-se livre dele por força da lei. Quem acha na rua qualquer coisa, tem, em suma, o direito de ficar com ela ao fim de certo prazo, caso não surja qualquer reclamação.

O dr. Gabriel de Matos, bacharel inteligentíssimo e jovem ainda, havia feito desse assunto a sua especialidade. Questão dessa ordem que lhe confiassem, era questão triunfante, qualquer que fosse o tribunal. E daí o aumento da sua clientela, constituída, sempre, por velhos ou moços, matronas ou senhoritas, que houvessem, na vida, achado ou perdido alguma cousa. E era no exercício da profissão que se achava, naquele dia, no seu elegante escritório da rua Buenos-Aires, o famoso advogado, quando lhe enveredou porta a dentro, com a fisionomia transformada pela emoção, uma das suas numerosas namoradas, a graciosa Elisabete, filha única da viúva Carvalho Moreno.

Nervosa, agitada, a moça chegou-se à secretária do rapaz, curvou-se sobre ela e, olhos fuzilantes, pediu:

— Quero falar, já, contigo. É urgentíssimo!

Habituado a esses pequenos espetáculos da alma feminina, Gabriel descavalgou o pince-nez de aros de ouro, limpou com o lenço de seda os olhos avermelhados pelo trabalho e, ordenando ao empregado que se retirasse para a sala contígua, pediu à moça que se explicasse, falando claro:

— Que há de novo? Conta.

Pálida, olhos negros aprofundados pela vigília, Elisabete estava encantadora, no seu nervosismo. Delicada de corpo, era o tipo mesmo da moreninha brasileira, de andar felino, boca pequena, sorriso doce, dentes magníficos, formando, com tudo isso, um conjunto de graças provocantes. Solicitada pelo rapaz, a menina esclareceu a situação, e concluiu:

— Eu quero saber, em suma, que é que devo fazer. Tudo depende de ti!

— E, torcendo o lenço nas mãos, aflita, quase desatando em choro:

— Anda, dize!

A revelação, como era de esperar, fora, para Gabriel, uma estopada. O caso não era, sem dúvida, o primeiro na sua vida.de conquistador sem escrúpulos; a ingenuidade da pequena, que nele confiara, forçava-o, porém, a um gesto violento, que devia ser, ou de honra, corrigindo a sua falta, a sua leviandade, a sua infâmia, ou de cinismo, transformando aquele ato de tragédia em uma pilhéria brutal, terrível, desumana, que desnorteasse a rapariga. Em um momento, pensou ele, mentalmente, as suas ambições, o seu destino, o seu futuro, as probabilidades de um casamento rico, e resolvendo-se pelo segundo alvitre, escanchou, de novo, tranquilo, o pince-nez sobre o nariz aquilino, estendeu a mão para um livro que estava sobre uma estante, folheou-o, folheou-o, leu seis ou oito linhas e, ao cabo, virou-se, calmo, para a moça:

— Minha filha, o teu caso é um caso comum, no Código Penal.

A rapariga encarou-o, o beiço trêmulo.

— Se ao fim de nove meses, — continuou Gabriel, frio, — ninguém reclamar o pequeno...

E levantando-se, impassível:

— O filho é ... teu!

CI

IBRAÍM

Os judeus do Rio de Janeiro tiveram a semana passada um dos seus dias de festa religiosa. Jeová recebeu, durante vinte e quatro boras, as preces do povo de Israel desgarrado no mundo, o qual jejuou, comovido, em honra de Jacó, de Moisés, de Abraão, de Isaac, e de outros patriarcas veneráveis e carrancudos. E todos pediram ao Senhor que lhes multiplicasse, na terra, a fortuna, embora isso lhes fosse descontado, depois, a juro módico, do tesouro porventura acumulado no céu.

A propósito dessa comemoração, veio-me à lembrança, repentinamente, um caso por mim encontrado, dias antes, em uma velha publicação europeia. Fiel às tradições da raça, Ibraím Benoliel havia se estabelecido em Paris com uma casa de penhores, na qual recebia, com ágio elevado, objetos de ouro, prata, pedras preciosas e tudo que representasse valor. Com esse gênero de vida, enriqueceu, envelheceu e, afinal, adoeceu, sem deixar, entretanto, um só dia, de dirigir a sua casa de negócio.

Magro, escaveirado, barba esquálida derramada sobre o peito esquelético, Ibraím era o tipo clássico do usurário judeu. Olhos vivos, ardentes, profundos; nariz recurvo, como um bico de ave de rapina; barrete à cabeça e, encadernando-lhe o corpo magro, um sobretudo gorduroso e pesado, — errava o agiota entre as suas preciosidades como a sombra mesmo da usura. E assim perambulava ele, uma tarde, quando, acometido subitamente pela moléstia que o minava, tombou pesadamente no chão.

Alarmado com a queda, um freguês, que se achava no balcão, precipitou-se, aflito, em busca de socorro. E como visse que o caso era irremediável, e que se tratava mais de quem ajudasse o doente a morrer do que a viver, atirou-se ao primeiro padre que encontrou no caminho, arrastando-o, entre súplicas, para a casa de Ibraím.

— Venha, padre-mestre, venha! — Gemia. — É uma obra de misericórdia. Venha!

Ao chegar à casa do usurário, onde o desgraçado jazia, inerte, sobre umas tábuas, o sacerdote reconheceu logo a gravidade do mal. Era um caso de morte e o melhor seria, com certeza, abrir-lhe as portas do céu, para substituir as da vida, que se lhe fechavam. E, na sua preocupação de salvar aquela alma, pediu, ansioso:

— Um crucifixo! Tragam-me um crucifixo! Depressa! ... Depressa! ...

A essas palavras do sacerdote, uma senhora, residente nos altos do prédio, correu, célere, ao quarto, exumou de uma caixa de joias um crucifixo de ouro,' que lá estava, e desceu, rápida, a entregá-lo ao reverendo, que depois de beijá-lo, o meteu, contrito, entre as mãos de Ibraím.

Nesse momento, porém, o judeu melhorou, entreabriu os olhos, fixou-os no símbolo de ouro que tinha entre as mãos e, sacudindo-o entre os dedos como quem lhe toma o peso, gemeu, a voz fraca, olhando o padre:

— Dou-lhe oito francos ... Quer?

E fechou os olhos, morto.

CII

UM ENGANO

Após uma transação vantajosa que lhe rendera algumas dezenas de contos, resolveu o comendador Benedito Fortuna tomar o vapor na Baía e vir gozar, no Rio, com a sua jovem esposa, dona Adelaidinha, as vantagens daquele dinheiro inesperado. Sem filhos nem sobrecarga de família ou de criados, era-lhes fácil a viagem. E tão simples foi tudo que, cinco dias depois, estavam os dois hospedados no quarto n. 43, único disponível entre os cento e tantos do Paris-Hotel, à praia do Flamengo.

Cidadão de bons costumes, o comendador Fortuna era, na sua própria opinião e na opinião de toda a gente, um excelente marido. Adorando a esposa, dando-lhe o conforto que os seus rendimentos permitiam, uma cousa, apenas, reclamava da dedicação matrimonial: decoro, pudor, zelo de si mesma, por parte da moça, a ponto de não a querer ver, jamais, em trajes menores.

— Minha filha, — recomendava-lhe ele, paternal; — sê cautelosa consigo mesma. Não deixes que ninguém veja, nunca, o teu corpo. Nem eu mesmo! Ouviste?

Jovem e linda, educada na escola da obediência, Adelaidinha não opôs nenhuma objeção à ordem do marido. E de tal modo que, à noite, antes de dormir, ele não penetrava, jamais, na alcova matrimonial, sem perguntar, primeiro:

— Posso entrar?

— Pode! — Respondia a moça, embrulhando-se.

Ou, então, se ainda não havia concluído a sua toilette noturna:

— Espera um pouco; sim?

O Paris-Hotel, único em que o casal encontrara, no Rio, um quarto desocupado, era um desses estabelecimentos que alugam compartimentos por dia, e que não fornecem ao hóspede senão a cama e a água. Em outra ocasião, o comendador o teria, com certeza, recusado; tratava-se, porém, de uma ligeira viagem de recreio, e foi para ele, até, um encanto, uma novidade, sentir-se em um casarão de tal ordem, repleto de hóspedes, quase todos sem família, à semelhança daqueles milionários americanos que ele conhecia através das peças de cinema. E como estivesse deslumbrado com a cidade, era de alma leve, de espírito sereno, de coração sossegado, que deixava aí a sua mulherzinha enquanto ele ia, para ganhar o tempo, efetuar alguns negócios urgentes.

Sábado último, com a temperatura amolecendo o asfalto da rua, teve o comendador necessidade de sair, para visar, no Lloyd, as passagens de regresso. E foi enxugando a calva e bufando como um automóvel, que recomendou à sua Adelaidinha à saída:

— Olha, filha, tranca a porta do quarto. Eu estarei de volta, mais ou menos, às quatro horas. Adeus!

E despegou-lhe, despedindo-se, um grande beijo na boca.

Ao chegar, porém, pelas alturas da Lapa, lembrou-se o comendador que, com a precipitação, se havia esquecido da carteira no bolso do outro paletó. E foi para levá-la que voltou, célere, ao hotel, subindo, degrau por degrau, as escadas do segundo andar. Chegando aí, aproximou-se da porta, e bateu, fazendo soar os nós dos dedos.

— Entra! Respondeu a moça, de dentro.

Bateu outra vez.

— Empurra a porta, filho; está encostada ... — informou, de novo, com uma doçura especial, a voz da Adelaidinha.

Àquela ordem, que lhe causava estranheza, pois o quarto devia ter ficado trancado por dentro, o comendador empurrou a porta. E recuou, de olhos esbugalhados: com o calor que fazia, a moça havia se posto à vontade, libertando-se de toda a roupa, estendendo-se, muito alva, muito linda, sobre a colcha de fustão branco. Ao vê-lo aparecer na moldura da porta, Adelaidinha soltou, por sua vez, um grito, procurando, aflita, a camisa que estava no espelho da cama.

— Sim, senhora! Você! ... — Exclamou o comendador, sacudindo a cabeça. — Eu não lhe disse que nunca me recebesse nesses trajes?

Sentada na cama, apertando a camisa de encontro ao coração, a moça debulhava-se em lágrimas, desolada. E foi em pranto, com o corpo maravilhoso sacudido pela choradeira, que se justificou, cortando as palavras com a navalha dos soluços:

— Eu não sabia... que era... você...

CIII

A AVE E O NINHO

— É uma falta de caráter! Um homem de bem não mergulha a mão na lama!

— É uma indignidade! Uma vergonha! Uma ofensa à sociedade!

Era assim que, no fumoir do grande clube mundano, se comentava, naquela noite, o gesto do visconde de São Vicente, recolhendo em casa, novamente, a filha que havia abandonado o lar para entregar-se, de modo notório, a uma vida de inconcebíveis desregramentos.

— Um homem de bem — afirmava o senador Agostinho — não vai buscar na rua, para emporcalhar a sua casa, uma criatura que traz na alma todos os estigmas do vício!

— Não vai, absolutamente! — Confirmou o dr. Valeriano.

— Absolutamente, não vai! — Secundou o desembargador Otaviano Moreira.

O dia seguinte ao dessa palestra de cavalheiros foi um dos mais belos daquele ano. O céu era azul, a temperatura suave, e, como tudo convidasse à alegria, à atividade, ao movimento, o austero magistrado empunhou o seu bengalão de unicórnio, penteou o cabelo e a barba grisalha, e saiu, como raramente acontecia, a fazer o seu passeio pelas magníficas alamedas do parque.

Lavado pelo sol da manhã, o arvoredo cintilava, como se as árvores estivessem ornadas de diamantes para aquela festa da Natureza. Contentes, inquietos, buliçosos, centenas de pássaros voavam de fronde em fronde, de ramo em ramo, agitando as folhas, beliscando os frutos, perseguindo os insetos, enchendo o céu de uma grande música harmoniosa.

Calmo, com a felicidade nos olhos, percorria o desembargador aquele enorme labirinto verde, parando aqui e ali para participar melhor da alegria das cousas, quando ouviu uns gritos agudos, aflitos, de ave agoniada, partidos de uma árvore próxima. Levando a luneta aos olhos, sondou a folhagem do lado de onde vinham os apelos aéreos, e viu: voando de galho em galho uma avezinha cercava um passarito implume, atirado ao solo pela fúria da ventania. Em cima, na árvore, o ninho balouçava, seguro, com outros passarinhos do mesmo tamanho; os cuidados da ave eram, porém, para aquele que estava no chão, e que ali ficaria desamparado, e exposto a tudo, sem o socorro providencial da ave que o pusera no mundo!

Ante esse espetáculo de bondade paternal, o velho magistrado sorriu, compadecido. E, sacudindo a cabeça venerável, comentou, de si consigo, num arrependimento que lhe caía, lento, no coração:

— É assim mesmo. O visconde tem razão. O passarinho que mais precisa de socorro paterno não é o que está na árvore, garantido contra os perigos e contra a morte; é o que está no chão, na poeira do solo, exposto a ser esmagado pelo primeiro pé que passe pelo caminho!

E, abaixando-se com cuidado, tomou nos dedos trêmulos o passarito implume, tímido, sem defesa, colocando-o, de novo, no ninho...

CIV

A JURITI

A pequena cidade de Marataí, em Minas, é, talvez, a mais desinteressante do Estado. Sem teatro, sem cinema, sem vida social digna desse nome, os naturais e forasteiros só têm, ali, três passatempos apreciáveis: o gamão, jogado na farmácia entre o vigário e o farmacêutico; a política, em que tomam parte homens e mulheres, e, finalmente, a caça, reservada aos mais afortunados, devido ao preço da bala e do chumbo.

Chegando a Marataí, acompanhado de sua jovem esposa, para exercer o cargo de promotor público, o dr. Gaudêncio Palhares optou, entre os três gêneros de diversão, pelo último, que era, realmente, o mais propício aos adventícios. A população era retraída, cautelosa, desconfiada e, como as juritis, os jacus, os joás, as cotias e os veados não exigissem apresentação, foi com eles que, de espingarda ao ombro, o casal travou as suas primeiras relações. Depois destas vieram, então, o vigário, o médico do lugar, o delegado, o chefe político e poucas outras figuras de relevo do estreitíssimo cenário local.

A caça em Marataí não era, porém, tão abundante que dispensasse, para ser apanhada, certos processos clássicos ou modernos; e assim era que o dr. Palhares tratara, logo, de adquirir uma coleção de assobios de caçador, imitando o canto da juriti, do joá, do jacu, da araponga e da rola do mato, os quais serviam para enganar, em chamados falsos e traiçoeiros, esses desprevenidos habitantes da selva.

Certo dia, de viagem pelo sertão mineiro, chegou a Marataí, hospedando-se na casa do promotor, o dr. Veiga Miranda, atual ministro da Marinha. Acolhido com a intimidade em que se esmera a boa gente do interior, entrava o ilustre viajante, horas depois, no conhecimento das particularidades da família, inteirando-se dos hábitos do casal e de que o maior prazer do dr. Palhares era, naquelas alturas, a caça, a perseguição à bicharia de pena, a devastação intensa daquele imenso viveiro selvagem.

— Por estas alturas, doutor — informava o atencioso representante da justiça local, — o divertimento é esse. Quando não tenho o que fazer, já sabe: ganho o mato, e quando volto, à tarde, venho carregado de quanto bicho há por estes cerrados.

— E estes assobios chamam, sempre, a caça? — Indaga o futuro deputado por São Paulo.

— Sempre, mas com uma diferença: e que entre as juritis, o macho tem a voz diferente da fêmea: de modo que, para atrair aquele, tem-se de soprar o assobio com a voz desta; e para chamar aquela, sopra-se o assobio que tem a voz do companheiro.

— Sopre este; faz favor! — Pediu o dr. Veiga Miranda, indicando-lhe o apito de voz “masculina”.

O moço quis relutar, desconfiado; mas, enfiando o apito na boca, soprou três vezes. E três vezes se ouviu, reboando pelo quintal arborizado, a voz da juriti macho. E iam os da casa mudar de conversa, quando bateram, de repente, no corredor.

— Quem é? — Indagou, trêmulo, o dono da casa.

E uma vozinha, branda, tímida, medrosa, que madame reconheceu, pálida, como a da mulher do farmacêutico:

— Você me chamou?

CV

PUDICÍCIA

A virtude fundamental da mulher pura é, positivamente, o pudor. Natural ou adquirido, é ele que dá maior encanto à formosura, emprestando à criatura que o possui, duas asas invisíveis, que a aproximam insensivelmente do céu.

Mulher sem pudor é menos, ainda, que flor sem perfume, pássaro sem voz ou fruto sem sabor. E era na consciência dessa verdade que dona Carmen Viterbo não se cansava de recomendar à filha:

— Eu não te quero, Belinha, como essas meninas que andam por aí de pernas à mostra e blusa escancarada até o estômago. Enquanto eu for viva, tu hás de ser uma menina discreta, direita, bem-comportada, como eu fui, no meu tempo. O corpo de uma virgem, minha filha, é como a hóstia consagrada: deve viver escondido no relicário do vestido para que ninguém o macule com os olhos.

Obediente e boa, M.lle. Belinha ouvia sem protesto o conselho materno, sobre o qual não emitia, no entanto, opinião pessoal. De vestido, aberto ou fechado, com o tornozelo à vista ou escondido, havia sempre, na Avenida, quem a olhasse com interesse. Loura, pequenina, graciosa, corpo harmoniosamente desenhado, era bonita, sabia que o era, e isso lhe bastava. Um defeito, apenas, a preocupava: era míope, grau 12, de modo que, para reconhecer alguém, tinha necessidade de levar aos olhos azuis, contraídos como duas violetas em botão, a lorgnette de aro de ouro e cabo de madrepérola, de que jamais se separava. Esse defeito emprestava-lhe, porém, uma graça nova, um encanto novo, um cunho de elegância tão esquisitamente mundano, que a deliciosa criaturinha se habituou facilmente com ele.

As recomendações de dona Carmen sobre o zelo que a mulher deve ter consigo mesma foram, entretanto, tão insistentes, que a menina se tornou rigorosamente cuidadosa nas suas atitudes, nas suas palavras, nas suas roupas. Na Avenida, nas casas de chá, nos estabelecimentos de modas, não encarava homem nenhum: olhava apenas as senhoras, as moças, as meninas, coando sobre elas, irreverente e risonha, a claridade doce dos seus olhinhos perscrutadores. E do extremo a que levou a sua pudicícia, teve a prova, comovida, um dia, a própria dona Carmen.

Residente em Copacabana, possui a família Viterbo, em uma casa ao lado, uma “república” de rapazes, a qual tem janela, exatamente, para o lado do dormitório de M.lle. Belinha. E era aí que a encantadora menina tirava, uma a uma, as peças do seu vestuário, para experimentar um vestido novo, quando dona Carmen, olhando pela janela aberta, exclamou, escandalizada:

— Minha filha, que horror! Uma porção de rapazes, ali defronte do quarto, olhando para cá!

E ia correr para fechar a janela escancarada, quando a moça a deteve, segurando-a pelo braço:

— Deixe estar, mamãe! Não faz mal...

E como a velha arregalasse os olhos:

— Mamãe, não sabe, então, que eu sou Míope?

E continuou a despir-se, de janela aberta.

CVI

O CAPETINHA AZUL

Aquele pequenino demônio azul, de olhinhos vermelhos e faiscantes, foi quem me contou, com a voz trêmula, o episódio triste, que os homens, até agora, ignoravam:

— Ah, meu senhor! — Gemia o mísero, assustado, olhando para um lado e para outro, escondendo-se, como quem foge a um inimigo invisível, entre as quatro folhas de um tinhorão. — A luta foi enorme, horrenda, terrível! Por mais que vivam os homens, e progridam, e se odeiem, nunca se empenharão em combates como aqueles que travaram na terra e no céu, os anjos de Jeová e as legiões de Belzebu!

Compadecido do inofensivo diabinho de olhos vermelhos e chifres de ouro, pequeninos como dedos de uma criança, cheguei-me um pouco para ele e tranquilizei-o:

— Não temas nada; ouviste? Acalma-te, e conta-me o caso, como ele sucedeu. Eu velarei pela tua segurança. Fala!

Miúdo como um macaco comum, pele sedosa e azul, cauda de trinta centímetros, fisionomia quase humana, Liliel era um daqueles duzentos capetinhas encantadores que se haviam espalhado pela terra, após a dispersão dos anjos rebeldes, comandados por Lúcifer. Perseguidos pelas hostes celestes, cento e oitenta e cinco foram, já, detidos, e encarcerados no Vesúvio, no Etna e no âmago de outros vulcões. Dos quinze restantes fazia parte o pequenino Liliel, que me ia revelar, amedrontado, a parte comovente da formidável conflagração que cobriu de fogo e de sangue a infância inocente do mundo.

— Foi horrível, meu senhor, o que aconteceu, — recomeçou o diabinho, coçando, com a mãozinha delicada como uma violeta, o seu pequenino chifre dourado. — E o pior foi quando, após a expulsão dos primeiros habitantes do Paraíso, se combateram, frente a frente, o poder de Jeová e a inteligência de Belzebu.

E como visse em meus olhos a pena sincera do seu destino sem remédio o pobrezinho encolheu-se mais entre as folhas e contou:

— Expulsos do Éden o homem e a mulher, ordenou Jeová que eles vivessem como desconhecidos, como estranhos, como seres que nunca se tivessem visto. Seria esse, para eles, o castigo maior, que teria como consequência, naturalmente, a extinção da espécie, por falta de multiplicação. Informado da severidade da pena, Belzebu procurou, como era justo, proteger os condenados, acendendo em um e outro a paixão, o desejo, a ânsia do abraço nupcial. Mas isso de nada valeu aos desgraçados, porque Jeová, dispondo de forças numerosas, espalhou pelas alturas, por todos os recantos do céu, milhares, milhões de anjos, de arcanjos, de serafins, com a missão de impedirem a aproximação dos infelizes!

— E então?

— Então, Belzebu venceu!

— Venceu! — Exclamei, quase num grito, assustando o diabinho.

— Venceu, sim. Apiedado do infortúnio dos proscritos, inundou Belzebu o céu inteiro, o espaço inteiro, com a escuridão da noite, facilitando, assim, o beijo do homem e da mulher!

E, baixinho, apontando, com o dedinho sujo, a primeira estreia, que aparecia, ao longe, no céu:

— Vês? São eles, os pequeninos espiões celestes, que aguçam os olhos de ouro, procurando os condenados, os quais, sabendo-se mais garantidos do que à luz do dia, escolhem exatamente o domínio da treva para se encontrarem, para se amarem, para se beijarem...

E empurrando-me docemente, como quem tem consciência do tempo, que passa, e da vida, que foge:

— Vá, meu amigo; aproveite... vá!

CVII

O VIAJANTE

(SOBRE UM SONETO DE LÚCIO DE MENDONÇA)

Quando, na véspera, aquele viajante pedira pousada, o velho roceiro correra a ajudá-lo a apear-se, pegando no estribo e segurando o cavalo pela rédea. Hospitaleiro, e simples, não perguntara, sequer, de onde vinha, para onde ia e, ainda menos, quem era. Tratava-se de um homem de boa aparência, rosto escanhoado e olhos inteligentes, e isso bastava à sua curiosidade de roceiro, cuja porta não se fechara, jamais, a quem passava na estrada. E tanto isso lhe era suficiente, que, meia hora depois, estava o desconhecido abancado à mesa tosca do casebre, enquanto dentro, na salinha humilde, a Mariquinhas, encantadora moreninha de quinze anos, filha do dono da casa, arrumava a cama do hóspede, exumando do pequeno baú da família o lençol branco, cheiroso de ervas silvestres, guardado especialmente para semelhantes emergências.

Antes de se recolherem todos, quis o velho Antônio Guilherme apresentar ao simpático viajante, cujo nome ele substituíra pelo simples título de doutor, o lindo anjo da sua velhice. E foi com a presença da Mariquinhas, e dos seus grandes olhos inocentes, que a palestra se estendeu ainda por meia hora, procurando o hóspede multiplicar-se em amabilidades, em gentilezas, em galanteios, que umedeciam de comoção e de orgulho os olhos imprevidentes do pobre pai sertanejo.

Ao amanhecer do dia seguinte, foi de um salto que o roceiro se ergueu do girau em que dormia, e onde o fora despertar, banhada em lágrimas, a sua querida Mariquinhas.

— Onde está esse miserável? Onde está ele? — Trovejou, com a cólera na sua voz e nos olhos, o pobre velho, saltando sobre uma garrucha carregada, que pendia da parede.

— Está na sala, meu pai; está na sala preparando-se para sair! — Gemeu, entre soluços, a rapariga, com o rosto escondido nas mãos.

Em um minuto, com os olhos de tigre faiscando nas órbitas fundas, estava Antônio Guilherme a dois passos do viajante, apontando-lhe ao peito a arma, e rugindo, de dentes cerrados:

— Cão! Peste! Miserável! É assim, então, que se paga a pousada a um pobre? É desonrando-lhe a filha, matando-lhe a alma, arrancando-lhe o coração?

Amedrontado, branco de medo, o hóspede cosia-se com a parede, trêmulo, sem uma palavra de defesa ou de protesto. A língua paralisava-se-lhe de terror, na quase certeza da morte. E o velho rugia, com a arma engatilhada:

— Cão! Peste! Miserável! Encomenda a tua alma, para morrer, desgraçado!

A essa intimação, o hóspede toma coragem, dá um passo em frente, estende, enérgico, a mão aberta e, num recurso extremo, intima, por sua vez:

— Alto lá! Em nome de Deus, desgraçado!

E arrancando da cabeça o gorro de viagem que até então não havia tirado, apresentou aos olhos do sertanejo a coroa aberta, reveladora da sua condição. Pálido, trêmulo, horrorizado, Antônio Guilherme escancara os olhos, como quem não acredita no que vê. A boca entreaberta, é muda no terror daquela surpresa. Súbito, porém, voltando a si, atira para um lado a garrucha carregada, junta as mãos grosseiras, calejadas pelo trabalho honrado, e cai de joelhos, gemendo, entre soluços: — Me perdoe, padre!

E desata a chorar, humilde, a sua desgraça.

CVIII

O BRÂMANE E A CABRA

(APÓLOGO INDÚ)

— Por menos arguto que sejas, meu filho, acredita mais no que verificarem teus dois olhos do que no que te disserem duzentos lábios alheios!

Foi assim que me deteve, à margem do caminho, o ancião solitário. E como visse a curiosidade em meus olhos, cristalizou neste apólogo toda a sua experiência do mundo:

— Certo brâmane, homem piedoso e bom, projetou, um dia, um sacrifício e, correndo ao mercado, longe do seu tugúrio, adquiriu, aí, uma cabra. Comprada esta, colocou-a aos ombros, e pôs-se de regresso. Em determinado ponto da estrada estavam, porém, três ladrões, que se puseram, logo, de acordo, para roubar o caprino.

— Temos que lhe tomar a cabra! — Sentenciou, carrancudo, o chefe dos salteadores.

E ministrando, em voz baixa, algumas ordens aos companheiros, penetraram, os três, no mato, correndo a postar-se, distantes uns dos outros, em diferentes pedaços do caminho.

Ia o brâmane pela estrada com a sua cabra às costas quando, ao defrontar o primeiro celerado, que se encolhia humildemente como um mendigo, este o deteve, de olhos arregalados:

— Aonde vai a esta hora, meu santo, com este cachorro aos ombros?

O brâmane sorriu do engano daquele falso mendigo e, explicando-lhe que não se tratava de um cachorro, mas de uma cabra, continuou a caminhar. A certa altura, porém, foi interrompido por outro pedinte, que perguntou:

— Que tem o seu cachorro, meu santo, para que seja levado, assim, às costas?

— O meu cachorro? — Estranhou o brâmane, desconfiado. — Mas isto é uma cabra; não vê?

Pouco adiante, um terceiro pedinte, que era, apenas, o terceiro ladrão disfarçado, indagou:

— Meu santo, aonde vai com esse cachorro?

Ante essa insistência, o brâmane deu mais alguns passos, parou, colocou no chão o caprino e, olhando-o detidamente, pôs-se, austero, a meditar:

—Mas isto será, mesmo, uma cabra? Ou será um cachorro? Eu, por mim. Vejo que é uma cabra; mas, se três pessoas acham que é um cachorro, é que é mesmo um cachorro, e, nesse caso, quem está enganado sou eu!

E assim dizendo, abandonou, no caminho, a cabra, de que os salteadores tomaram conta e comeram.

Terminado o apólogo, o solitário insistiu, olhando-me com benevolência:

— Por menos arguto que sejas, meu filho, acredita mais no que verificarem teus dois olhos do que no que te afirmarem duzentos lábios alheios!

E baixou a cabeça, arrastando a barba no chão.

CIX

A VENTOSA

Se havia no mundo um marido absolutamente fiel ao pacto matrimonial, este era o dr. Matias Epaminondas Almendra, engenheiro da Repartição Geral dos Telégrafos. Temperamento frio, exercendo funções que o separavam dos círculos sociais em que o sangue ferve nas veias dos homens, o ilustre servidor do Estado era um funcionário que completava, em tudo, o chefe de família. Ninguém o via na rua em estroinices e palestras, perdendo o seu tempo e consumindo o tempo dos outros. A vida parecia-lhe curta para servir o governo, e, em matéria de mulheres, ele sabia, apenas, que existia uma chamada Teresa, que lhe dera um filho, chamado Sebastião, e uma dezena de beliscões, que não tinham nome nenhum.

A cidade, para ele, consistia unicamente, nas ruas que as suas pernas atravessavam, no caminho entre a casa e a repartição. Como, porém, o destino é imutável, sucedeu, uma tarde, ao desventurado funcionário ser apanhado por um automóvel e atirado à distância, abalado mais, talvez, pelo susto do que, propriamente, pelo choque do veículo.

Socorrido pela Assistência, foi o pobre engenheiro conduzido ao Posto, colocado sobre uma mesa de vidro, virado, e revirado, e, afinal, intimado pelo médico:

— O senhor está ameaçado de uma congestão pulmonar: e o remédio é a aplicação imediata de ventosas e sanguessugas, que lhe restabeleçam quanto antes a circulação.

Pacífico, sereno, amando a vida, não por ela mesma, que nada valia, mas pelo contacto com a esposa, que a permanência no mundo facilmente lhe facultava, Matias atirou para um lado a camisa, descobriu o tórax e estirou-se de bruços, de novo, sobre a mesa de vidro.

— Aplique! — Gemeu o mísero.

A essa ordem, o médico não esperou mais: pediu ao enfermeiro um copo, um guardanapo, a caixa em que formigavam as sanguessugas famintas, e, passada uma hora de suplício, abandonava a Assistência, com o tórax, o peito, os braços, o pescoço, marcados de nódoas vermelhas, cinzentas ou violáceas, feitas pelas bichas ou pelas ventosas. Chegado em casa, não quis dizer nada. E foi pior; porque, mal havia ele tirado a camisa, dona Teresa lhe saltou em cima, com as mãos nas ancas:

— Matias, que é isso?

E caindo sobre o desventurado, aos murros:

— Miserável! Infame! Canalha! Traidor!

De repente, mudou de tom, desabafando:

— Mulheres cínicas! Desavergonhadas! Fazerem isso com um homem casado! ...

E desatou em soluços.

CX

O VISITANTE

Suavemente morena, com dois olhos tristes, lânguidos, desses que morrem e ressuscitam a todo o instante, M.lle. Marianita era uma das moças mais admiradas do bairro em Copacabana. Linda de rosto, com uns negros cabelos de seda e uma boca pequenina e vermelha, sangrando risos e beijos, não era, entretanto, formosa. Os braços, lisos, de linhas impecáveis, eram, sem dúvida, esculturais e dignos, em tudo, das mãos delicadas e macias, flores mimosas daqueles caules. O seu andar, mesmo na intimidade, parecia regido por uma doce música silenciosa. E tudo isso era iluminado por uma graça estranha, por uma simpatia esquisita que dela irradiava, prendendo, encantando e cercando-a de uma atmosfera de maravilhosa espiritualidade.

Contrastava, no entanto, com todas essas perfeições, um defeito que a entristecia: a falta de busto, que lhe prejudicava a elegância e a harmonia do corpo, e que lhe dava ao colo muito liso, muito baixo, uns jeitos de rapaz.

— Usa massagens, Marianita! — Aconselhavam-lhe as amigas mais experientes.

— Por que você não experimenta a “Pasta Russa”? — Indagava outra, penalizada.

E acentuava:

— Experimente!

Assim vivia a encantadora criatura, chorando intimamente a fragilidade do seu colo sem ondulação, quando, naquela festa dos Diários, a foi tirar para um tango o delicioso poeta dr. Goulart de Andrade, tão famoso pela inspiração dos seus versos quanto admirado pela agudeza da sua ironia. Aceito o convite galantemente feito, saiu o lindo par a descrever hieróglifos coreográficos pelo salão, mas tão unidos, tão juntos, os dois, que pareciam uma pessoa só.

Quem estivesse por perto havia de notar, entretanto, o esforço do cavalheiro para oferecer, de encontro à sua dama, um apoio ao peitilho da casaca. Tudo era, porém, debalde, porque, como lá diz o provérbio, onde não há, el-rei o perde.

De repente, para a música. Palestrando, rindo, abanando-se, cavalheiros e senhoras dão-se os braços, procurando cadeiras em que se assentem. O dr. Goulart faz o mesmo com M.lle. Marianita, mas, ao sentá-la, tem um gesto, que algumas pessoas notaram: exuma do bolso da casaca uma carteira de ouro, tira daí um cartão com o seu nome, e, vendo aberto o decote da moça, deixa-o cair lá.

— Que é isso? — Exclama a pobre menina, escandalizada, mergulhando a mão no decote. — Que foi que o senhor fez?

— O que a cortesia me ordenou que fizesse, minha senhora, — explica o poeta. — Quando eu vou fazer uma visita, e não encontro ninguém em casa...

E concluiu, sério, numa curvatura cerimoniosa:

— Deixo lá o meu cartão!

E afastou-se, teso.

CXI

O COPEIRO

O Bonifácio, copeiro do dr. Carlos Augusto, possuía todos os característicos do criado nacional: era preto, desleixado e, sobretudo, de uma estupidez comovedora. Empregado há dois anos naquela casa de família, não havia dia em que não levasse uma repreensão. E tais eram a sua paciência, a sua obtusidade, a sua resignação, que se habituou a ser censurado não só pelas suas próprias faltas como pelas da cozinheira, do jardineiro, da arrumadeira, e de quanta gente passava, de dia ou de noite, os limites do portão. Tudo que havia de mau, de torto, de mal feito, havia de ter sido obra do Bonifácio. Se o padeiro trazia o pão queimado ou malcozido, a culpa era, necessariamente, dele.

— Este moleque não se endireita! — Reclamava dona Ninita, irritada. — Tu não viste que este pão não prestava, Bonifácio?

Se o vento abria a janela, desarrumando a cama, vinha logo a censura:

— Por que não fechaste direito a janela, Bonifácio? Tu não tens vergonha moleque? Meu Deus, este moleque é o meu castigo! ...

E assim era tudo. Repreendiam-no pela carne sem tempero que a Margarida havia preparado. Repreendiam-no pela morte das plantas, a cargo do jardineiro. Repreendiam-no pelo desvio de uma peça do automóvel, confiado ao Evaristo. Era ele, em suma, e sem protesto, o bode-expiatório da casa.

Certa madrugada houve, porém, um movimento desusado naquele suntuoso palacete do Leme: dona Ninita havia tido, às duas da manhã, o seu bom-sucesso, brindando o casal com o seu primeiro filho, que era, por sinal, um menino sadio, forte, vigoroso, pesando quase cinco quilos.

Ao amanhecer, satisfeitíssimo com o acontecido, desceu o dr. Carlos Augusto à sala do café, e mandou chamar à sua presença, conjuntamente, toda a criadagem. E veio, toda ela: veio a Margarida, cozinheira; veio o Evaristo, chauffeur; veio o senhor Antônio, jardineiro; veio a Rosa, arrumadeira; veio a Maria, lavadeira, e veio, atrás de todos, pretíssimo, carapinha de pimenta do reino, e dentes muito brancos, o Bonifácio. Formado o pessoal, o dono da casa irou-se para o grupo, guardanapo ao peito, engolindo o último biscoito, e informou, visivelmente feliz:

— Comunico a vocês, que têm, desde esta madrugada, um patrãozinho: dona Ninita teve, às duas horas da manhã, uma criança. É um rapagão forte, robusto, bonito, enfim, um homenzarrão!

Numa curvatura humilde, o grupo resmungou uns parabéns ao patrão, desejando muitas felicidades ao pequeno. E iam retirar-se todos, quando o Bonifácio se pôs a sapatear, contente, estalando os dedos, dentes à mostra, numa alegria incontida.

— Ainda bem, patrão, que o menino é bonito e forte, como o patrão! —Exclamou o moleque, ante o olhar interrogativo do dono da casa. — Porque se o menino nascesse feio, ou aleijado...

E rindo alvarmente:

— A culpa havia de ser do Bonifácio...

Não era?

CXII

A CARNE

Afirmava um moralista inglês que as sepulturas, com raras exceções, são cavadas, na terra, com uma faca e um garfo. A moléstia, manifeste-se ela na cabeça, no pé, no coração, nos rins, no fígado, tem, em noventa e oito casos sobre cem, a sua origem no estômago. As enfermidades, quase todas, mesmo as mais extravagantes, são finalmente, na opinião dele, efeitos de alimentação.

Essa teoria é, hoje, universal. A carne, o peixe, o pão, os legumes, o leite, os ovos, os alimentos mais inocentes, são motivo, atualmente, para os males mais esquisitos. E daí as dietas rigorosas, os jejuns forçados, as imposições feitas pelos médicos aos seus clientes, nos casos de hepatite, de arteriosclerose, de albuminuria, de diabetes, de tabes e, mesmo, de tuberculose.

Entre os clínicos mais exigentes da cidade está, como se sabe, o ilustre sr. dr. Silva Melo, cuja ciência vem constituindo, ultimamente, um dos orgulhos mais legítimos da alta sociedade carioca. Formado nos moldes mais rígidos da moderna ciência alemã, o notável médico brasileiro assenta todos os seus diagnósticos, pode-se dizer, sobre o fundo de um prato.

— Dize-me o que comes, e dir-te-ei a moléstia que tens!

Assim diz ele, e a prova de que o seu lema tem fundamento é o número de curas assombrosas que assinalam, hoje, a sua brilhante carreira de médico.

Entusiasmada pelas notícias que as amigas lhe levavam, mme. Costa Penedo resolveu ir, também, com os seus vinte e dois anos e a sua neurastenia elegante, consultar o assombroso benfeitor dos enfermos. Sentia-se aborrecida, triste, com crises de choro e desejos de morrer, e tinha certeza, quase, de que o eminente cientista a curaria imediatamente e, talvez, sem drogas, sem pílulas, sem medicamentos intoleráveis.

No consultório deram-lhe um cartão de entrada. Entrou, saudou o conhecido homem de ciência e contou-lhe, palavra por palavra, a sua história de senhora nervosa.

— É um horror, sr. doutor, esta minha vida. Sofro, enormemente, com sintomas os mais esquisitos e inquietantes. E queria curar-me; queria ficar boa!

Cabecinha caída sobre o ombro esquerdo, num jeito encantador e provocante, a moça continuava a explicar, com os olhos fixos no médico, a infinita legião dos seus males impressionantes. E prometia ir longe, quando ele a interrompeu:

— A sua moléstia, minha senhora, depende, toda, da sua mesa de jantar. Alimente-se bem, mas de cousas leves: frutas, leite, ovos, queijo, carne...

— Carne, doutor! — Exclamou a criaturinha, espantada, olhando-o com brejeirice e mostrando, num sorriso maravilhoso, a miúda fieira dos dentes.

E com o rostinho de um lado:

— A carne, então, não é forte, doutor?

Vermelho até à raiz dos cabelos, o dr. Silva Melo pôs-se de pé, e fechou os olhos. E foi de olhos fechados, grave, sustentando dentro de si o mais violento dos combates, que confirmou a sua opinião, insistindo:

— Não, minha senhora!

E com a voz trêmula, quase num soluço, despedindo-a:

— A “carne” ... é fraca! ...

E abriu a porta.

CXIII

NACIONALISMO

O eminente escritor sr. dr. Coelho Neto, que eu considero a figura máxima das nossas letras, publicou, anteontem, n’A Noite, uma crônica literária que deve ter confortado, e sinceramente, os verdadeiros patriotas. Amigo, embora, da Grécia e das suas criações legendárias, achou o glorioso estilista imperdoável o ato do sr. ministro da Guerra mandando adotar a folha de acanto como distintivo de certos uniformes militares.

“Deixe por um dia a cidade — escreve o grande romancista, — e vá o mais exigente artista à mata, leve pincéis e paleta bem composta e não lhe será fácil combinar tintas que deem certos coloridos e reproduzam matizes que encontrará em flores e folhas; e as formas serão tantas a desafiarem-lhe a preferência que os olhos antes de se fitarem detidamente em uma, muito hão de gozar na hesitação volúvel em que a beleza os fará andar, ora de rastos pelas alfombras, ora subindo aos ramos ou remontando às grimpas onde se entregam ao sol voluptuosamente as aérides que vivem como em êxtase, alimentando-se do ar e da luz. Desde os fetos, que são verdadeiras rendas e certas parasitas, que pendem em corimbos e em cadilhos de ouro; desde as folhas que parecem fantasias de lavrante até as flores dos mais bizarros feitios, tudo é beleza no imenso mostruário verde e, onde quer que a vista pouse um breve instante, achará encanto em que se maravilhe”.

Entusiasmado com as expressões e, não menos, com o civismo do admirável escritor, fui, ontem, procurá-lo pessoalmente para assegurar-lhe a minha solidariedade nessa campanha pela nacionalização dos nossos símbolos. E esta solidariedade ainda se tornou mais sincera, mais franca, mais profunda, quando percebi na sua palestra maravilhosa a ideia de um trabalho intenso, firme, seguro, em prol de uma estética nacional.

— Nós temos elementos, sr. conselheiro, — dizia-me o assombroso homem de letras, levantando as mãos nervosas, magras, trêmulas de emoção; — nós temos elementos para uma estética nacional, inspirada no recorte das nossas folhas, no talhe das nossas palmeiras, no perfil das nossas montanhas. Que temos nós com a folha de louro? Que significa, para nós, a palma de acanto? Que expressão têm, na nossa história, o tronco do carvalho, a sombra do álamo, o fruto da amoreira, o canto do rouxinol? Falemos do jequitibá, da mangaba, da bananeira, da pitanga, do sabiá, da graúna, do corrupião. Arranquemos do frontispício do Catete aquelas águias sem significação que o coroam, e ponhamos, como expressão da nossa grandeza, do nosso gênio, do nosso espírito, sete urubus-camirangas, moldados em bronze. Coroemos os nossos poetas com folhas de café ou ramos de melão São Caetano. Isto, sim, é que é nosso, é que é brasileiro, é que é nacional!

Arrebatado pela própria palavra, Coelho Neto discorria, assombrosamente, quando, de repente, exclamou, batendo-me na perna:

— Quer saber de uma cousa? Eu acho que mesmo a História Sagrada devia ser por nós refundida, emprestando-lhe nós uma feição nacionalista. Para que, por exemplo, contar à criança brasileira que Adão e Eva tiveram como única vestimenta, depois do pecado, a folha da parreira? Que interesse temos nós em fazer a propaganda de uma planta que aqui está por adaptação, por empréstimo, quando possuímos centenas de vegetais nossos, legitimamente brasileiros, puramente nacionais?

— Mas que folha acha o senhor que devíamos pôr no lugar da de parreira? — Indaguei, interessado.

— Ora, sr. conselheiro, há tantas! ... — Obtemperou o grande romancista.

E virando-se para meu lado:

— A urtiga, por exemplo ... Não acha?

E coçamo-nos, os dois.

CXIV

ELEGÂNCIA REPUGNANTE

Há muito tempo vinha eu percebendo que a minha velha amiga, a sra. baronesa de São Nicolau, evitava beijar no rosto e, principalmente, nas proximidades dos olhos, as damas e mocinhas que lhe festejavam a velhice veneranda. Muito asseada, cabelos muito alvos, face muito lisa, muito clara, muito macia, a queridíssima titular não dissimulava, jamais, a sua repugnância toda vez que algumas das nossas elegantes de hoje ofereciam o rosto ao carinho maternal do seu beijo. Essa aversão à formosura feminina causava-me estranheza, especialmente por tratar-se de pessoas de educação fina, cujo apuro se manifestava na correção das maneiras, no brilho das joias, na riqueza atordoante das toilettes.

Anteontem, ficou, enfim, esclarecido esse pequeno mistério, que me preocupava mais, talvez, do que os profundos mistérios universais. E do resultado foi testemunha eventual o meu eminente amigo sr. desembargador Ataulfo de Paiva, que nos dava a honra, a mim e à baronesa, de participar do nosso chá.

Estávamos, os três, na Lalet, na segunda mesinha, à esquerda, entre a do sr. almirante Índio do Brasil e a do dr. Galeno Martins, quando entraram na sua algazarra habitual, m.lles. Pinto Pereira, que correram, logo, a abraçar e beijar a nossa queridíssima contemporânea. E como me não contivesse ao vê-la dar um beijo em falso em cada uma das recém-chegadas, rompi com os meus hábitos de discrição, e indaguei:

— A sra. Baronesa é da Liga contra o Beijo?

— Eu? Por quê? — Espantou-se a minha ilustre amiga.

E como eu lhe explicasse a minha curiosidade, e o motivo que a determinava, confessou, sincera:

— Com franqueza, conselheiro; eu tenho repugnância em beijar essas meninas elegantes de hoje, pela falta de higiene que manifestam.

E como eu arregalasse os olhos, no meu espanto:

— Imagine o senhor que elas viram, não sei em que filme francês ou americano, uma artista qualquer molhar o dedo na boca para alisar as sobrancelhas. E a moda pegou de tal forma, que não se pode beijar, hoje, certas senhoras e meninas da alta sociedade: fedem a cuspo que se chega, às vezes, a engulhar!

— Assim? ... — Exclamei, numa careta, sem conter o meu asco, a minha repugnância, o meu horror.

E foi quando o desembargador interveio, pausado, com a sua gravidade característica:

— É isso ... É isso... Fedem a cuspo!  

E acentuou, horripilado, num gesto largo, que ilustrava a palavra:

— Da cabeça aos pés! ...

CXV

O SÁBIO

Beati pauperes spiritu, quoniam issorum est regnum caelorum. — MATEUS, 5,3.

País riquíssimo, possuindo grandes montanhas, enormes campinas, rios soberbos e vastas cidades populosas, a República da Pitecolândia, era, naqueles tempos, a mais poderosa do continente. A sua esquadra, constituída de belonaves possantíssimas, era o terror e, ao mesmo tempo, a segurança dos povos vizinhos. Oitocentos mil homens garantiam-lhe, em tempo de paz, a integridade territorial e a estabilidade das instituições. As suas minas de ouro eram inesgotáveis, concorrendo, na opulência, com o progresso das indústrias, do comércio, da cultura do povo, e nos demais aspectos de uma civilização bem compreendida e perfeita.

Nenhuma dessas vantagens enchia, porém, de tanto orgulho os habitantes da Pitecolândia, como o nome, dez vezes ilustre, do seu eminente concidadão Isidoro Pelópidas, cuja palavra reboava, como a de um profeta, por todas as cavernas do mundo.

Isidoro Pelópidas era, realmente, uma grande individualidade. Poeta maravilhoso, jurista profundo, romancista genial, orador empolgante, político de espantoso descortino, via-se nele o gigante, por todas as faces do seu talento. Ele era, mesmo, pode-se dizer, a encarnação viva da pátria, em todas as manifestações da sua mentalidade. Governo, povo, imprensa, magistratura, comércio, academias, indústrias, lavoura, instituições religiosas — tudo recorria às suas luzes, à sua cultura assombrosa, ao seu saber formidável, consultando-o sobre administração, sobre filosofia, sobre jurisprudência, sobre finanças, sobre literatura, sobre montagem de máquinas, sobre plantio de cenouras, sobre questões de ensino, sobre problemas do espírito, sobre ciências naturais. Se os deuses ainda estivessem na terra, ele se assentaria entre eles, ao lado de Atena, senhora da suprema sabedoria. Um dia, Isidoro Pelópidas teve uma síncope, e morreu. E tal foi a emoção nacional, tamanho foi o abalo do povo, das classes eruditas, do país inteiro, no conjunto das suas forças vivas, que a Pitecolândia quase morre com ele.

Desagregado da carne, foi Isidoro bater, em espírito, à porta de ouro do Paraíso. Bateu uma vez. Bateu duas. Na terceira, São Pedro acudiu.

— Quem és tu, filho? — Indagou o chaveiro celeste.

— Sou Isidoro Pelópidas, meu santo.

— Isidoro? E que foste tu na terra, nos anos que lá viveste?

O sábio sorriu, penalizado de tamanha ignorância, estranhando que o seu nome não tivesse ressoado naquelas alturas, e esclareceu:

— Eu fui, no meu tempo, — o homem mais culto, mais erudito, mais inteligente não só do meu país, como do mundo inteiro. Astrônomo, descobri novas estrelas, verifiquei a rotação de novos astros, constatei a marcha de novos planetas. Literato, escrevi romances, publiquei versos, construí monumentos da imaginação. Jurista, interpretei as leis, tornando-as mais claras, mais simples, mais compreensíveis. Orador, deixei frases imortais, que o povo repete, maravilhado. Filósofo, tracei novos rumos ao espírito humano, orientando-o para a verificação dos mistérios em que se debate. Cataloguei plantas; dissequei aves; estudei metais. Enriqueci, em suma, o cabedal dos conhecimentos da humanidade, aproximando-a, pela ciência e consciência das cousas, dos olhos sapientes de Deus.

Indiferente, calmo, sereno, mastigando os próprios dentes, São Pedro ouvia do sábio o relato das suas pesquisas, dos seus triunfos, das suas descobertas. E quando o recém-chegado o supunha maravilhado com tantas conquistas, virou-se para o interior da divina mansão, e chamou:

— Gabriel?

Apareceu um anjo resplendente de beleza e claridade.

E o chaveiro, tranquilo, apontando-lhe Isidoro:

— Leva esta santa alma para a estrebaria ...

CXVI

A NOVENA

A festa de Nossa Senhora das Neves, na Paraíba do Norte, prometia, naquele ano, uma afluência incomum. As nove noites que constituíam a novena em louvor da santa iam ser distribuídas pelas nove maiores fortunas do município, para que o encarregado de cada uma se esmerasse em dar maior brilho, maior suntuosidade, maior esplendor profano e religioso à noite que lhe coubesse. Não havia fogueteiro, nem costureira, nem doceira em disponibilidade naquelas trinta léguas mais próximas. Era corrente, mesmo, que, há vinte anos, não se tinha notícia, nas redondezas, de festejos tão animados.

— Vai sair cinza! — Prognosticava o Joaquim Ribeiro, comentando o movimento desusado da vila. — O coronel Chiquinho já disse, e jurou, que ninguém há de fazer noite melhor do que a dele. Nem que ele venda todo o gado do “Poço Fundo” e a casa grande que está levantando na várzea do Sabiá.

— Vai ser uma festa de papouco — informava, adiante, à porta do mercado, o Antônio Bentevi, sacristão do lugar. — O coronel João de Brito já recebeu vinte caixas de vela de libra, quinze grosas de foguetes de duas bombas, dez ancoretas de vinho, e diz que ninguém, neste distrito, bota o pé adiante da mão dele!

E com as mãos nos quadris:

— Vai ser o diacho, meu Deus!

O coronel João de Brito era, realmente, o fazendeiro mais opulento e orgulhoso de quantos havia naquelas cem léguas de sertão. Amansando mil e quinhentos bezerros e possuindo, por meio de aquisições lícitas, vinte e duas léguas de bom pasto, uma cousa, apenas, o contrariava: não ter filhos. Esse inconveniente foi sanado, entretanto, pelo aparecimento da Lilina, filha de um seu compadre, a qual, tendo ficado órfã de pai e mãe, fora trazida para casa, como pessoa da família. Acima da amizade votada à Lilina, estava, porém, no coronel, o seu orgulho de fazendeiro rico, expresso no desejo de não consentir, jamais, que outro patrocinasse a primeira novena da Senhora das Neves, nem fizesse noite mais suntuosa, mais concorrida, mais ruidosa do que a dele.

Naquele ano, que fora de bom inverno, estava o coronel João de Brito mais resolvido do que nunca a escandalizar o sertão com a sua noite de festa na novena das Neves. E andava empenhado exatamente nessa campanha, interessado em abrir a série de novenas, iniciando estrondosamente a festividade, quando o surpreendeu um ataque de enxaqueca, retendo-o no leito, na sua fazenda da “Vargem Grande”. Com a cabeça estalando, o rosto metido nos travesseiros, o velho fazendeiro bofava e gemia, como um touro, quando lhe anunciaram estar na sala de jantar, ao lado da alcova, o promotor da comarca, dr. Alexandre Gonzaga, que pretendia falar-lhe.

O dr. Gonzaga era, nos últimos anos, o encarregado de organizar a festividade da Senhora das Neves. Solteiro e gentil, conduzia todas as questões com habilidade, com jeito, com diplomacia, a ponto de tornar-se a pessoa mais estimada do município. Aquela visita ao coronel João de Brito nada tinha, porém, com a festividade religiosa: o que ele desejava daquela vez era a mão da Lilina para sua esposa, devendo o casamento realizar-se no último dia da festa.

No estado em que se encontrava, cabelo desgrenhado, barba revolta, fisionomia devastada pelo sofrimento, era impossível ao coronel receber o visitante. Isso era, entretanto, dispensável, uma vez que, na sua opinião, a visita não era motivada senão pelo assunto de todos os anos, isto é, a comunicação de que lhe cabia uma das novenas. Foi, pois, com a cabeça mergulhada no travesseiro que ouviu a voz de dona Teodora, sua esposa, que, sabedora da verdade, lhe anunciava, carinhosa:

— João, o dr. Alexandre está aí, e quer falar contigo. Ele mandou te dizer que deseja...

— Já sei! Já sei! — Atalhou o coronel, rude, sem ouvir o resto. — Eu falo com ele, daqui mesmo.

E para fora, alto:

— Doutor, está combinado. Eu aceito! Mas com uma condição.

— Diga, coronel! — Atendeu, feliz, da sala vizinha, o promotor, com o pensamento na Lilina.

E o velho, de dentro:

— A condição é a seguinte: a primeira noite, é minha; a segunda, é do coronel Cazuza; a terceira, é do capitão Venâncio; a quarta, é dos músicos; e que só a sexta, ou a sétima, seja do coronel Chiquinho!

CXVII

INDEPENDÊNCIA

Amavam-se, os dois casados há seis meses, adoravam-se profundamente, mas passavam brigados a maior parte do tempo.

— Isto ainda acaba em escândalo! — Vociferava o Artur, indignado, a andar de um lado para outro da casa. — Ou esta vida se modifica, ou eu rompo definitivamente contigo, vivendo aqui como um estranho!

— Tu? — Duvidava, zombeteira, dona Ninita, espichando o beicinho vermelho, em sinal de desprezo. — Tu?

A encantadora senhora abusava, sem dúvida, do seu prestígio sobre o marido. Sabia-se adorada, desejada loucamente pelo rapaz, e era fiada nos seus próprios encantos e, sobretudo, no temperamento dele, que insistia, perversa, separando as sílabas:

— Du-vi-do! ...

Certo dia, quase igual aos outros pela normalidade dos acontecimentos, estalou uma nova discussão no casal. E as ameaças vieram, como sempre acontecia.

— Não me procure mais! Você me é, de hoje em diante, estranha, indiferente! — Gritava o Artur possesso.

E num gesto brusco, violento, brutal:

— Não me fale mais! Sabe? Não me fale mais!

Confiada nas duas grandes armas de que dispunha, e que eram a sua formosura e a têmpera amorosa do esposo, a moça acalmou-se, na certeza de que, à noite, aquilo tudo acabaria. O marido não dormiria sem beijá-la, sem abraçá-la, sem amimá-la, e tudo ficaria, como sempre, liquidado.

À noite, recolhidos, os dois, cada um no seu quarto, estava dona Ninita estranhando a demora do rapaz em ir para o seu lado, para o seu carinho, para a sua meiguice, quando ouviu, na cama dele, um estalar de beijos, misturado de promessas, de gemidos, de suspiros, de palavras de amor. Intrigada, ergueu-se pé ante pé e, abrindo a porta, viu o marido abraçado com o travesseiro, no qual dava beijos afetuosos, profundos, apaixonados.

— Artur, que é isso? — Exclamou a moça, espantada com aquela maluquice. — Que é que você está fazendo aí? — Tornou.

Grave, solene, inquebrantável no seu orgulho, o marido, que não queria dar o braço a torcer, sentou-se, teso, na cama:

— Eu quero lhe provar, — gaguejou, indignado com a intrusa, — que eu posso... viver... independente. Ouviu?

D. Ninita soltou uma gargalhada enorme, sonora, reboante:

— Sim, senhor! Bela independência! ... Bela independência! ...

E, sem deixar de rir, zombeteira

— Pode limpar as mãos à parede! ...

CXVIII

O PERCEVEJO

Um dos abusos que vão, pouco a pouco, desaparecendo das crônicas nacionais, é a arrogância com que os estrangeiros se portavam no Brasil. Franceses, alemães, portugueses, turcos, polacos, gregos, italianos, não sentiam o menor constrangimento em nos ofenderem grosseiramente referindo-se de modo depreciativo a tudo que nos pertencia. O inglês, então, considerava isto uma colônia de Sua Majestade Britânica, supondo ainda que nos dava uma honra excepcional em quebrar, aqui, com as suas botinas de quatro solas, os sólidos paralelepípedos do calçamento. Era preciso estar com vinte e dois whiskies no estômago para que um deles consentisse na sua naturalização, ou, mesmo, no registo de um filho nas pretórias brasileiras. O inglês, onde nascia, era inglês sempre. E toda a gente ainda se recorda daquele famoso John Hughes, a quem estranharam não considerar brasileiro um seu filho de doze anos, nascido e criado no Rio de Janeiro.

— Seu filho não é brasileiro, John? — Perguntou-lhe, um dia, um patrício nosso, que o conhecia há alguns anos.

— Não, senhor, — informou o “bife”, apressado; — minha filha estar inglês.

— Mas ele não nasceu no Brasil?

— Nasceu, sim, senhor.

— Então?

John Hughes sorriu com o seu sorriso enigmático, superior, e obtemperou, zombeteiro:

— Então, porque pinto nascer na estrebaria nascer cavalo?

Charles Evans Moore, o antigo diretor da Companhia do Gás, era um desses hóspedes habituados a depreciar, em tudo, a nossa terra. Nada, aqui, lhe causava admiração, nem entusiasmo, porque tudo lhe parecia chato, medíocre, abaixo do comum. A própria natureza, que a outros causava espanto, e que arrastava de longe as luzidas caravanas dos sábios, parecia-lhe vulgar, sem interesse, sem beleza, sem qualquer soma de originalidade.

— Você já viu o corcovado, Evans? — Indagava alguém.

— Corcovada? — Repetia o inglês. — Vi, sim; vi.

E antipático:

— Inglaterra tem corcovado muito maior!

— E o Pão de Açúcar?

— Oh! Inglaterra tem Pão de Açúcar muito maior.

— E a baía? Já passeou na Guanabara?

E o patrício de Nelson:

— Oh! Sim! Sim! Inglaterra tem Guanabara muito maior!

Essa teimosia antipática ia contribuindo, dia a dia, como facilmente se imagina, para que nascesse uma prevenção surda, profunda, quase insopitável, contra o orgulhoso saxão. No hotel em que ele residia, pouca gente lhe suportava, já, aquelas maneiras hostis. E foi a represália que, um dia, estalou, por iniciativa do próprio hoteleiro, que era um desses brasileiros intransigentes em matéria de patriotismo.

Indignado com aquela insistência do inglês em achar insignificante, pequeno, mesquinho, tudo que era nosso, imaginou o Antônio Fernandes, o dono do hotel, a desforra nacional. Certa noite, aproveitando a ausência de Charles Evans, foi Fernandes ao quarto dele, suspendeu os cobertores e meteu, debaixo, uma tartaruga de bom tamanho, que havia adquirido no mercado. Em seguida, desligou a luz para que o hóspede se deitasse no escuro, e aguardou os acontecimentos.

À meia-noite, entrou Evans. Chegou, e, como não houvesse luz, despiu-se, mesmo às escuras, e meteu-se, tranquilo, entre os lençóis. Mal, porém, se deitara, soltou um urro, e pulou, como um tigre, da cama revolucionada, chamando, aos berros, pelo dono da casa. Este ligou a corrente elétrica e penetrou, alarmado, no quarto do inglês.

— Que é isto, senhor? Que é isto? — Gemia Evans, apavorado, andando no quarto, nu, de um lado para outro.

O hoteleiro acendeu a lâmpada e, suspendendo os lençóis, mostrou-lhe, sorrindo, a tartaruga:

— Isto? Então o senhor não conhece percevejo?

Evans olhou-o, espantado. E, de olhos arregalados, curvando-se, despido, sobre a cama, para examinar o bicho:

— Oh! Mas Inglaterra tem percevejo muito... menor!

CXIX

O “PARDAL”

Atirada à correnteza do inundo após a morte do marido, o saudoso engenheiro Viana Leal, a encantadora Maria Teresa deliberou tornar-se, para melhor beber o vinho capitoso da vida, uma das mulheres mais chics da cidade. Clubes elegantes, casas de chá, praias de banho, arquibancadas de futebol, tudo teve, em pouco tempo, a delícia da sua presença maravilhosa, atordoando a ingenuidade dos homens. Chegada, porém, que foi a primavera, e, com esta, a abertura da estação hípica, foi para ela uma surpresa quando observou, a si mesma:

— É verdade! Eu nunca fui, na minha vida, a uma corrida de cavalos! E, no entanto, dizem que é um divertimento chic!

Dias depois, no primeiro domingo, entre os automóveis que rodavam pela rua São Cristóvão, rumo do Derby-Clube, estava o grande laudalet da formosa mundana, presente de um capitalista que se contentava, segundo se dizia, em beijar-lhe os pés pequeninos e desnudos, uma vez por semana. E foi um deslumbramento a sua chegada ao prado. Levemente morena, olhos azuis, cabelos castanhos, Maria Teresa estava, em verdade, atordoante, de graça, de encanto, de beleza. Vestido azul claro, chapéu e sombrinha da mesma cor suave, tinha-se a impressão de um pedaço_ do céu, muito leve, muito puro, quase fugitivo, que houvesse baixado sobre a terra. E foi cumprimentando e sorrindo, ora para um lado, ora para outro, que tomou o rumo das arquibancadas, onde a gentileza do dr. Lineu de Paula Machado lhe havia reservado, a pedido do dr. Eduardo Guinle, um dos melhores lugares da frente.

De repente, porém, compreendeu que à sua elegância faltava uma cousa: as poules, a aventura na corrida, o jogo em um dos cavalos do primeiro páreo. E como não quisesse manifestar a sua condição de estreante, de caloura naquele divertimento chic, encaminhou-se, ela própria, para o lugar em que podia fazer o jogo, pedindo, serena, ao empregado:

— Vinte, no “Pardal”!

Atendida, ia a moça a caminho do seu lugar, quando, de súbito, indagou de um jóquei, que ia no mesmo rumo:

— Diga-me uma cousa, moço: pode-se ver os cavalos que vão correr?

— Pode-se, sim, senhora, — informou o rapaz.

— O senhor poderia, por favor, mostrar-me este?

O jóquei examinou os papéis que a interlocutora lhe mostrava e, prontificou-se:

— O “Pardal”? Pois não. Pode vir comigo.

No encilhamento, Maria Teresa ficou, a princípio, ligeiramente atordoada. Era preciso, porém, fazer-se forte, serena, desembaraçada, e foi já com o sorriso nos lábios vermelhos, deixando aparecer os dentes miúdos e impecáveis, que ouviu o rapaz dizer-lhe diante de um gradil, onde relinchava um sólido e magnífico parelheiro:

— É este, minha senhora.

Coradinha do sol, revirando na mão enluvada o seu riquíssimo binóculo de madrepérola e ouro, a linda senhora pôs-se a olhar, atenta, o fogoso animal, que passeava, impaciente, de um lado para outro, relinchando, nitrindo, castigando com o casco forte as tábuas sujas do solo. Meticulosa, a rapariga olhou em torno, e viu: aquela agitação do animal era devida, toda, à proximidade de umas poldras luzidias, encurraladas em uma estrebaria vizinha.

Ao ver as poldras, Maria Teresa enrugou a testa, abriu a sombrinha, e voltou, ligeira, à casa das poules.

— Faz favor? — Pediu.

Ó empregado atendeu. E ela:

— O senhor não me poderia trocar estas poules?

— Trocar, posso, sim, senhora. Mas a senhora faz mal em jogar em outro cavalo. O “Pardal” é, hoje, o favorito: ele vai ganhar.

Maria Teresa protestou, com desfastio:

— Não creio, não.

E num muxoxo, convicta:

— Não ganha, não. Eu já fui ver lá.

Ele não está pensando, hoje, nada em corrida!

E trocou as poules.

FIM