Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Últimas Crônicas, de Humberto de Campos


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

A posse e a ilusão da felicidade

Não faças a outrem...

Os romances que o diabo escreve

A inscrição da caverna

Meu boi morreu

Os historiadores e a história

Pré-história

A verdade e o boato

A guarnição de Tiflis

Quebremos os copos!

Direito de matar

Dona Júlia

Carmen de Assis

A sombra do Manuel Antônio

As aves brasileiras

O tupi na universidade de São Paulo

“Copeba, Aricobê, Cobé, Pahy...”

Panteon, para quê?

Operários e camponeses

Um paladino do parlamentarismo

O discípulo de Diógenes

Identificações

O dia do pescador

A revolução de 1940

Maldita seja a lei!

Carmelita - homem

A sentença do faraó

Pelos filhos do Libório

A morte do Dalai-Lamá

A glorificação do café

O cinema, o prazer e o pecado

“Elas” e o destino

Viva o rei!...

Le Hoela

Carnaval!

Glorificação!

Junho, mês das alegrias

O abismo

A POSSE E A ILUSÃO DA FELICIDADE

Desde a descida da árvore, isto é, desde que no símio posto em posição vertical se manifestou o primeiro raio de consciência sapiente, preocupou-se o homem com o problema da sua felicidade. À proporção que evoluía colocava ele esse ideal em ponto mais alto, e mais inacessível. E, assim tem vindo até hoje a correr atrás dessa miragem, que se afasta à medida que ele a persegue.

Às vezes, coloca o homem essa felicidade no domínio puramente moral, acessível por meio de conquistas abstratas. Surgem os filósofos. Levantam-se os profetas. Formam-se as religiões. Mas a desilusão vem antes da posse. E o homem, que procurava a felicidade fora da vida, passa a procurá-la dentro da vida, em conquistas práticas e materiais, criando problemas políticos e econômicos para os quais busca, debalde, a solução.

É essa forma de ilusão eterna que determina a complexidade dos fenômenos sociais, à margem dos quais se bate a humanidade na sua luta pelas conquistas positivas. A posse do ouro, a posse da terra, a ideia do conforto, a arquitetura econômica do mundo, a formação política da sociedade, tudo isso não passa de fórmulas visando à paz, a tranquilidade do espírito humano, a obtenção, em suma, da felicidade sonhada pelo homem, desde o alvorecer da sua consciência.

São essas as reflexões que acodem ao filósofo toda a vez que examina a inquietação humana em torno da posse de alguma coisa na terra. E é a elas, que é conduzido, ainda, o espírito perquiridor, ao ler, por exemplo, o primeiro capítulo do Direito das Sucessões, obra clássica e monumento das nossas letras jurídicas, em que o Sr. Clovis Bevilaqua estuda a história e evolução da herança, e as razões que determinaram a instituição da hereditariedade da posse, e as suas variações através dos povos e dos tempos.

Os espíritos impregnados de ideias novas, especialmente das teorias marxistas puras, ou modificadas na Bússia revolucionária e revolucionada, têm a impressão, parece, de que toda essa tradição econômica e social ali consubstanciada vai ruir, e de que foi encontrada por eles, afinal, a chave do problema da felicidade humana. Trata-se, porém, e apenas, da renovação de uma ilusão. O Direito soviético poderá ter, nesse ponto, aplicação universal? A História é, sempre, a melhor pitonisa, quando se trata de por frente a frente o Passado e o Futuro.

Toda a economia russa girou desde os tempos mais remotos em torno da propriedade territorial, base de todas as fortunas privadas ou públicas. Vitoriosa a Revolução, a primeira preocupação dos legisladores, ou melhor, dos ditadores, consistiu na expropriação das terras, e na sua volta ao domínio do Estado. Isso constituía, porém, uma ideia aconselhada pelas condições gerais do mundo, ou, apenas, a solução de um simples problema nacional? É aí que a História intervém, com a sua sabedoria. Esse ponto do programa comunista tem a sua origem em uma tradição puramente nacional. A terra, na Rússia, foi, sempre, e em oposição ao que se praticava na Europa desde o período medieval, propriedade do Estado. O direito à sua exploração, desde Wladimir, O Grande, no século X, era concedida à nobreza, por serviços prestados ao Czar personificação do Estado, a título precário, revertendo a este, após a morte do beneficiado isso determinou, evidentemente, a falta de benfeitorias, por parte da nobreza, que evitava levantar construções duradouras em uma terra que não era sua.

Só nos fins do século XVIII, com Catarina II e Paulo I, começaram as doações definitivas, as quais, todavia, suscitaram sempre uma oposição intensa da parte dos mujiks, habituados a lavrar terras do Czar e não terras da nobreza, que, como se disse, só as possuía eventualmente.

A expropriação das terras na Rússia constitui, assim, uma simples volta ao passado, à consagração de um velho sonho dos trabalhadores rurais, o reatamento de uma antiquíssima tradição nacional.

Estabelecendo a investidura do Estado, como dono de todas as terras, a Rússia volta a ser o que era dantes, imitando-a nesse particular, o mundo ocidental vai ser o que nunca foi, ou o que foi em épocas de que não ficou a memória.

Lendo o Direito das Sucessões, do eminente mestre que é o Sr. Clovis Bevilaqua, especialmente na sua parte histórica, veem-se as raízes profundas, de quase trinta séculos, da atual estrutura econômica do mundo e o seu contato subterrâneo com a organização social que se tenta destruir. A integridade das raízes explica a resistência da árvore.

E é uma bela e forte ocupação para o espírito contemplar esta árvore mostrada por este lenhador vigoroso, o qual em vez de a decepar, se limita a expô-la à contemplação das novas gentes, reclamando atenção para a sua solidez e respeito para a sua ancianidade.

NÃO FAÇAS A OUTREM...

Carecido de uma estação de águas na Tcheco-Eslováquia, foi Leon Trotsky recusado pelo governo desse país, que o considerou, a princípio, hóspede indesejável. Os médicos insistiram, porém, em nome da piedade humana. Era a última porta a que o enfermo batia. A Itália, a França, a Alemanha, não obstante o aforismo segundo o qual não se deve negar a água a nenhum inimigo, tinham fechado as fronteiras à sua padiola, e as fontes ao seu caneco. E o gabinete de Praga, finalmente, a cedeu, contanto que a estação de cura não exceda a um mês, que o doente não se afaste da localidade em que vai buscar a saúde, e, sobretudo, que não receba jornalistas nem partidários do seu credo político. Deve chegar beber a sua água, limpar o beiço, e partir.

É singular a vida que atualmente vive esse grande homem. Escorraçado do governo que o seu pulso de ferro consolidou, para arrastado, como um criminoso, para o trem que o devia conduzir à fronteira da Mongólia, pelos soldados que comandara como general; posto, como um réprobo, à margem da civilização e da atividade política no seu país e no mundo — Leon Trotsky constitui, hoje, a mais terrível das lições divinas à soberba e à ferocidade humanas, e o mais eloquente aviso aos homens que se supõem eternos e intangíveis na majestade do poder. Ninguém foi, no seu tempo, mais onipotente do que ele. Ninguém, sem exceção de Lenine, exerceu tamanha autoridade sobre os direitos e as vidas na Rússia revolucionária. Mandava como Átila e era obedecido como Tamerlão. Dois milhões de homens armados erguiam-se à sua palavra e moviam-se no ritmo do seu gesto. Deus se compraz, porém, quase sempre, em demonstrar a potência do seu fôlego derrubando com um sopro os cedros das montanhas.

E Trotsky, o Comissário do Povo que fez deportar centenas de milhares de compatriotas, foi, por sua vez, degredado e banido, para errar, sem saúde e sem tranquilidade, de país em país, de cidade em cidade, escutando, em cada lugar a que chega a voz que põe em marcha o mau homem de Jerusalém:

— Caminha, Ahasverus! ... Caminha! ...

Leon Trotsky é, assim, o “senhor sem sossego” da história moderna e das futuras. Ligado, novo Mazepa, ao corcel do seu Destino, galopa hoje pelo mundo, encontrando em cada pouso do caminho, não quem o detenha, mas quem espante e chicoteie o seu cavalo, para que ele parta de novo, na viagem atormentada e sem fim... E por que isso? De onde esta sina? Quem lhe lançou esta maldição?

Entre os contos orientais que eu me dei, um dia, o trabalho de divulgar com um pseudônimo de narrador persa ou árabe, um havia que poderia ser contado, hoje, a Trotsky, e a outros homens que não acreditam nas sentenças lavradas no céu e executadas na terra. Certo beduíno, jovem ainda, sentindo que o seu velho pai, de quem era arrimo forçado e único, impedia o gozo inteiro da liberdade, resolveu desfazer-se do octogenário, abandonando-o num oásis, no coração do Deserto, à fome dos lobos e das hienas. Pôs o ancião à garupa do seu cavalo e partiu. No oásis, fê-lo descer, e esporeando o seu ginete, galopou, de regresso, sem olhar para trás. Ao perceber, porém, o objetivo do moço, o varão estendeu os braços magros no seu rumo, gritando-lhe:

— Meu filho! Por Alá e pelo Profeta, não me deixes aqui! Não só por mim, meu filho; é por ti mesmo. Escuta-me! Escuta-me! ...

O moço voltou:

— Meu filho, — continuou o ancião, — a mim pouco me importa a morte. Eu não quero, entretanto, morrer aqui, com pena de ti, para que te não aconteça na velhice o que me está acontecendo nesta hora.

E apertando-o nos braços trêmulos: — Foi neste mesmo lugar, meu filho, que eu, há sessenta anos, abandonei o teu avo! ...

Lá no alto há, dizem, um Grande Homem com um grande livro, fazendo as contas do mundo. E esse contabilista, ao que parece, não erra...

OS ROMANCES QUE O DIABO ESCREVE

Escrevendo para o Brasil sobre Disraeli por ocasião da sua morte, Eça de Queiroz recordava o desassombro, a coragem impertinente e jactanciosa com que o futuro lorde Beaconsfield meteu o primeiro pé nos domínios da política inglesa, feita exclusivamente por aristocratas e penetrada do mais rigoroso espírito nacionalista. Era o jovem israelita simples e calada figura dos salões do conde d’Orsay, quando lorde Melbourne, então primeiro ministro, lhe perguntou o que pretendia na vida.

— Ser o primeiro ministro da Inglaterra! — Foi a resposta do rapazola judeu.

Anos depois, entrava Disraeli para a Câmara dos Comuns. O seu primeiro discurso é um desastre. As chufas, os gritos, os doestos e as batatas partem das bancadas dos tories. O orador detém-se. Antes, porém, de descer da tribuna, profere esta ameaça tremenda:

— Hoje não me quisestes ouvir. Dia virá, entretanto, em que eu me farei escutar!

“E um dia veio, — escreve o romancista português — em que não só a Câmara dos Comuns, mas a Inglaterra, todo o Continente, a terra civilizada, escutavam com ansiedade as palavras que iam cair dos seus lábios, e que traziam consigo a paz ou a guerra na Europa”.

Quando, porém, a 19 de maio de 1881, esse formidável homem de Estado deixou pender os braços, na sua casa de Curzon Street, num último gesto de orador aparteado pela Morte, a convicção, mesmo na Inglaterra, era de que as sombras do olvido pairariam, em breve, sobre seu nome. A sua glória havia sido fictícia. O seu prestígio, artificial. O seu talento oratório, uma invenção de amigos. Os seus méritos de escritor, um milagre de prestidigitação. E, por isso, Disraeli passaria. Passaria como o chá, para imitar, na substância e no símbolo, a frase em que se dizia que Racine passaria como o café.

Disraeli imprimira, todavia, à sua vida, o cunho da imortalidade. “A sua existência foi tão episódica, tão cheia, tão emocionante, — assinalava o romancista d’ Os Maias, — cuja ela ficará como o seu melhor romance”. E esse romance, reeditado por todas as formas, vem fazendo, em nosso tempo, a ressurreição desse criador do Império das índias, obra titânica e genial, cujo desmoronamento se prenuncia.

A vida de lorde Beaconsfield tornou-se, na verdade, um dos grandes temas do nosso tempo. Escolhido, de súbito, por um escritor francês, entre as figuras da época vitoriana, para inaugurar fora da Inglaterra o método empregado por Strachey na feitura das biografias, a personalidade de Disraeli tornou-se, de novo, universal. Maurois arrancou-o, pode-se dizer, dos porões escuros da História. E é de lá, ainda, que acaba de trazer o que dele restava, uma poderosa empresa cinematográfica, reencenando-o num grande artista, para reconstituição de um dos acontecimentos mais sensacionais da política europeia no último século.

O filme que se está exibindo atualmente no Rio de Janeiro constitui, sem dúvida, um drama vigoroso, uma das páginas fortes da história diplomática da Europa na segunda parte do século XIX. Mas esse episódio que daria nomeada a outro homem foi, e tão somente, um incidente na vida de Disraeli. Mas incidente característico. Minuto que vale uma existência. Triunfo que vale um Império. Drama em que entram gigantes. Batalha em que se chocam leões. Combate em que se medem titãs.

Dia a dia, vai o público se interessando, e cada vez mais vivamente, não pelas obras dos homens, pelos romances que eles escrevem ou pelos edifícios que eles levantam, mas pelo edifício da sua própria vida, pelo drama ou pelo romance do seu próprio destino. E Disraeli soube, na terra, escrever esse romance.

Romance escrito com sangue, com ouro, e, também, às vezes, com lama.

A INSCRIÇÃO DA CAVERNA

“Foi decifrada a inscrição deixada pelos fenícios em

uma caverna, no alto da Gávea”. — D’ A NOITE.

Vencida a travessia do deserto, as tropas do faraó haviam alcançado as Escadas Tírias, aproveitando a noite. As sentinelas da opulenta cidade marítima, surpreendidas durante o sono, tinham sido mortas. Habituadas à vida do mar, de que eram senhores, ignoravam elas os perigos e as surpresas da guerra nas montanhas. E eis que de súbito, a cidade amanhecera cercada pelas tropas egípcias, que haviam consumido sete luas, na marcha entre Tebas e os rochedos da costa.

A resistência, naquela época do ano, tornava-se impossível e inútil. Aproveitando os ventos da primavera, as galeras de Tiro haviam partido já, com os homens válidos da cidade, a exercer o comércio por todos os mares conhecidos. Àquela hora, quatro mil embarcações de cinquenta remadores cada uma, achavam-se em viagem, ou ancoradas em Pafos, em Sabrata, em Olea, em Erix, em Patara, em Ábila, ou em Onoba e Gades para além das Colunas de Hércules. Algumas, partidas de Sidon e de Gubul, teriam ido para além do Grande Mar, deixando-se levar pelas correntes que as arrastavam para as costas ocidentais da Líbia. Restavam, todavia, no porto, quatrocentas galeras, que podiam recolher a parte da população que desejasse abandonar a cidade.

Após as preces no grande templo de Baal, reuniu-se o Conselho dos Anciãos. Nabusomidino, o mais velho deles, ergueu-se e propôs:

— A vida de um fenício, sem a liberdade, é mais triste que a morte. Acostumado a percorrer o mundo pelos caminhos do mar, ele não se conformará jamais, com a escravidão. Se capitularmos, ou formos vencidos, seremos levados como prisioneiros para Tebas, e nunca mais veremos as ondas nem escutaremos o vento soprar na trompa de pedra dos rochedos. Morramos, pois, com a cidade, sepultados dentro dela com as suas riquezas. Sidon e Gubul não nos poderão socorrer, e talvez estejam, também, sitiadas. Incendiemos, pois, a cidade, e pereçamos com ela.

Tamuz, que subira numerosas vezes o Nilo, vendendo púrpura e peles, aventurou: — E se tentássemos negociar a paz? Os egípcios vêm em busca, não dos nossos marujos, mas das nossas riquezas. Poderíamos, com a fortuna, comprar a liberdade.

— Seria em vão, Tamuz, — volveu Nabusomidino. — O egípcio é traiçoeiro como seu rio. Recebidas as riquezas de Tiro, reclamaria os escravos para levá-las a Tebas. E os escravos seríamos nós.

Foi então, quando Uruk, antigo piloto, famoso pelas suas expedições demoradas e atrevidas, se levantou no meio dos companheiros, tão idosos quanto ele, e falou assim:

— Por que havemos de propor a capitulação, entregando as riquezas de Tiro em paga da liberdade, quando poderemos conservar a liberdade e as riquezas? E por que morrer, quando poderemos viver ainda, e levar bem longe daqui a glória das nossas velas e dos nossos remos? As galeras que nos restam podem nos conter a todos. Eu conheço, para além das Colunas de Hércules, uma formosa terra sem dono que poderá ser nossa, se o quisermos. Não tem Desertos, como a Líbia ou a Arábia, e possui montanhas frescas, mais deliciosas que as do Líbano. Iremos estabelecer-nos lá. Eu sei o caminho. Tiro, sem os seus marujos e sem as suas riquezas, nada será para os egípcios, que não sabem viver nas proximidades do mar. Se aceitardes a minha proposta, eu vos asseguro que, ao fim de oito luas, viveremos todos na fartura e na paz.

— A tua proposta é a de um sábio, Uruk, — opinou Tamuz. — Terás o meu apoio.

— Iremos todos contigo. Iremos todos contigo! — Exclamaram os demais anciãos.

Quando, à noite, sopravam os ventos do Deserto, as quatrocentas galeras de Tiro abandonaram o porto, em silêncio, levando a população e tudo que, de precioso, possuía a cidade. E trinta sóis após a partida saíam, com as velas e os remos, as Colunas de Hércules, e afastavam-se do litoral, rumo ao desconhecido.

Certa manhã, os remeiros da galera em que ia o velho piloto anunciaram terra próxima. E, no dia seguinte, os fenícios desembarcavam em uma grande praia de claras areias, diante de montes majestosos, que pareciam altares de pedra para imolação de vítimas, num culto de gigantes. E a nova Tiro foi fundada, e prosperou, e cresceu. Duas vezes por ano, vinham mercadores de Sidon e de Gubul, comprar para vender nas ilhas e costas do Mar Interno as madeiras, as cascas destinadas à tinturaria, as peles, o ouro e as pedras preciosas. E traziam o trigo, e o vinho, e o azeite, e os objetos manufaturados. A vida era doce e amável. E o povo transplantado escolheu o seu Rei. Chamou-se ele Ishtar I, e era teimoso como um urso e confiante como um leão.

Um dia, porém, os habitantes da nova Tiro se insurgiram contra o seu Rei, e o depuseram. Para substituí-lo interinamente, escolheram o antigo depositário da riqueza pública, homem morigerado e bom. E levaram Ishtar I para o alto de uma das montanhas diante do mar, e o encerraram em uma caverna, de onde o retiraram mais tarde, deportando-o para Sidon, em uma galera carregada de madeiras preciosas. Nessa caverna, porém, ele traçou na pedra, com uma ponta de espada, no idioma do seu povo, algumas palavras, as quais decifradas querem dizer, literalmente, o seguinte:

— “Em nome de Baal todo poderoso. Eu Ishtar I, vos digo: não ambicioneis, jamais, o governo, mesmo o do povo mais manso da terra. Se tiverdes um inimigo e quiserdes fazer-lhe mal, elevai-o ao trono. Louvados sejam os que me depuseram. Baal lhes dê, na terra e fora dela, a perpétua felicidade”.

Um século depois a Nova Tiro desaparecia. Abandonavam-na, voltando à Fenícia, os descendentes dos lírios que tinham vindo com Uruk. Regressavam à pátria dos seus maiores. Mas, no alto de uma grande pedra em frente ao mar, no fundo de uma grande caverna, ficara, aos homens do futuro, em palavras singelas, uma profunda lição de sabedoria.

MEU BOI MORREU

Terminaram, em fim, os festejos populares de junho, que trouxeram à capital da República milhares de turistas dos Estados, romeiros da Saudade e da Tradição. No tempo em que Roma estendia os seus tentáculos imperiais sobre o mundo, arrastava para a Itália o ouro e a prata dos povos vencidos, como a parte válida desses mesmos povos, escravizados pelo vencedor. No cativeiro, conservavam, porém, os vencidos, a religião e os costumes da pátria subjugada, a qual, todavia, sob o domínio dos generais e dos governadores romanos, ia perdendo as suas características nacionais, para tomar as dos invasores. De modo que, para conhecer o hábito e deuses da velha Germânia e da velha Armênia, tinham, às vezes, germanos e armênios, de ir a Roma. A metrópole imperial tornou-se, mesmo, mais intransigente na defesa da civilização grega do que os próprios gregos. E foi esse fenômeno que determinou, em grande parte, a revolta de Juvenal.

No Brasil caminha-se, talvez, para a reprodução do fato. Costumes e tradições provincianos que desaparecem no interior do país, começam a ressurgir no Rio de Janeiro. E foi isso, evidentemente, que trouxe à capital do país os visitantes de junho, os quais aqui vieram rever algumas das festas da sua infância, emigradas da sua vila ou da sua pequenina cidade natal.

Para que os festejos cariocas de junho se tornassem integralmente brasileiros, tornava-se preciso, todavia, que tivéssemos aqui, também, uma reprodução do Bumba-meu-boi. Porque não há, em todo o norte do Brasil, São João sem esse complemento tradicional, que é, mesmo, a parte mais pitoresca da comemoração religiosa.

Em alguns Estados, especialmente no Ceará, no Piauí, e no Maranhão, o Bumba-meu-boi, ou o Boi-bumbá, é quase todo o São João. Dois, às vezes três meses antes, começam os ensaios, todas as noites e, aos domingos, durante o dia. Organizado por trabalhadores, empregam eles todas as horas de folga no aperfeiçoamento do conjunto, harmonizando as vozes e a parte mímica do espetáculo. E na véspera de São João é a saída do cortejo. Espelhinhos redondos faíscam encastoados nos chapéus de carnaúba ou de couro, batidos ao lado na frente. As burrinhas galopam adiante, na ilharga ou atrás do grupo, afugentando os moleques. E, no centro, o boi, o dorso de pano preto coberto de estrelas de papel dourado e prateado, um espelho na testa, o chifre largo enfeitado de fitas, e que dança, e ginga, e dá voltas e reviravoltas, e simula chifradas agressivas nos vaqueiros e populares que mais se aproximam.

Na rua, a multidão o espera. Como há mais de um boi na cidade ou na vila, o objetivo dos que esperam o cortejo é queimar o boi. Para isso, os adversários e partidários de cada um deles acumulam a maior quantidade possível de bombas e busca-pés, para o ataque e para a defesa. Em uma rua estreita por onde o boi tem de passar, de acordo com o itinerário traçado, reúnem-se os amigos do outro boi. Chegado o cortejo no meio do quarteirão, dá-se o cerco. Uma chuva de fogo desaba sobre o boi que está encurralado. Mas o cortejo tem de passar. E dá-se a investida, com as mesmas armas, para rompimento do cerco, havendo, todavia, não raro, o recurso para outras, de que resultam ferimentos graves, e até mortes, na defesa do boi. Nesses encontros, o Bumba quase sempre pega fogo. Como, porém, os bois de pano quase sempre são mais inteligentes do que os de carne e osso, o animal incendiado parte na carreira no rumo do mar ou do rio, atirando-se à água, para apagar as chamas que o envolvem.

Em geral, molha-se o boi antes da saída do cortejo, para torná-lo invulnerável, ou menos inflamável. Pouco a pouco, em consequência do calor, a humidade do couro vai desaparecendo. E o boi se transforma em fogueira, que às vezes o destrói, ameaçando a vida do caboclo valente que vai debaixo dele.

As medidas policiais já terão, provavelmente, acabado com isso lá pelo Norte. Não o encontrando mais por lá o nortista correu para o Rio, neste mês de junho de festas populares, a ver se ele ressurgiria aqui. E, não o encontrando, desabou, com certeza, em choro triste, gemendo como os vaqueiros e como o Pai Francisco do meu tempo:

— Meu boi morreu! ...

E o pior é que, ao contrário do que se diz na canção, não temos, agora, onde ir buscar outro!... Nem no Piauí!

OS HISTORIADORES E A HISTÓRIA

Os grandes feitos militares registrados pela História não serão, acaso, mais uma criação dos narradores do que dos capitães a quem são atribuídos? Que seriam, o cerco de Tróia sem Homero, Salamina sem Heródoto, e a Retirada dos Dez Mil sem a colaboração literária de Xenofonte? É conhecido o caso do historiador francês Antoine Varillas, autor de uma História das Heresias, publicada em 1690. Acusado de haver alterado a verdade histórica para maior interesse do assunto, desculpava-se ele:

— Que importa se tenham os fatos passado de outro modo, se assim fica melhor?

Albert sim, que registra essa anedota, conta, igualmente, o episódio ocorrido com Vertot, que escreveu no século XVIII a História da Ordem de Malta. Havendo ele pedido a um pesquisador informações seguras sobre o modo por que se levara a efeito o cerco de Rodes, e como o informante demorasse, resolveu o historiador imaginá-lo, e descreveu-o. Com o livro pronto, chegam-lhe os esclarecimentos pedidos. Mas ele recusa.

— Chegaram tarde, — diz.

E devolvendo-os:

— Agora o cerco já está feito!

A história do cerco de Rodes escrita por Vertot seria, talvez, hoje, a verdadeira, se não se tivesse divulgado a anedota. Pausânias era considerado na antiguidade, e ainda o é em nosso tempo, uma das mais puras fontes de informação em geografia e história. A sua Periégesis é o melhor dos roteiros para conhecimento do mundo antigo. É sabido, entretanto, que, ao escrever sobre a guerra da Messênia, ele preferia orientar-se pelo poeta Riano, que a celebrou em verso, do que pelo historiador Miron de Priena, que a relatou em prosa. O ouro da imaginação recebia dele, assim, a forma e o cunho, transformando-se em moeda da Verdade.

Essa convenção, de imaginar o passado com os elementos fornecidos pelos historiadores, não escapou, aliás, à ironia de Swift. Em uma das viagens do capitão Gulliver, vai ele ter à ilha de Glubbdudbrid, onde vão ressurgir todos os indivíduos que passaram por este mundo. Curioso da História da Inglaterra procura o viajante conversar com alguns varões eminentes ali refugiados, pedindo-lhes informações dos acontecimentos do seu tempo. E verifica boquiaberto, que estes se haviam desenrolado de modo tão diverso daqueles narrados nos livros, que nem pareciam os mesmos. E pior, foi ainda, quando quis conhecer pessoalmente os fundadores das casas reinantes da Europa, isto é, as sementes mais remotas da mais pura nobreza do continente. Ao enunciar o seu desejo, surgiram-lhe os antepassados dos soberanos do século. Eram dois cardeais, um abade, um prelado italiano, dois cortesãos, um barbeiro e dois tocadores de violão!

A História é, assim, menos o reflexo dos acontecimentos do que uma obra de imaginação. Por isso mesmo, o Presente sempre sente saudades do Passado. Mas o Futuro há de sentir, por sua vez, saudades do Presente, porque os historiadores hão de inventar homens que o ilustrem e fatos que o enfeitem, de modo que tenhamos sempre a ilusão de que já houve, na vida, alguma coisa de grande, de puro, de heroico e de bom.

PRÉ-HISTÓRIA

Vai para dois ou três anos, um sertanista audacioso, a cujas descobertas e ideias a ciência oficial não quis emprestar o seu cunho, realizou uma viagem de estudos pelo rio São Francisco, levando em sua companhia um operador cinematográfico. E de lá regressou com alguns quilômetros de um filme, com que procurava demonstrar a velha crença de que os fenícios e os cartagineses andaram, realmente, perdidos por aquelas paragens.

Em 1900, por ocasião do centenário da descoberta do Brasil, um espírito curioso, o Sr. Cândido Costa, que eu não sei se ainda é vivo ou se anda a estas horas a explorar outros mundos mais afastados, publicou um livro interessante, As duas Américas, em que pretendia provar que as madeiras para o templo de Salomão haviam sido levadas do vale amazônico. Estribando-se em Platão, em Orígenes, em Teopompo, em Estrabão, em Plínio, em Plutarco, em Macróbio e em Pompônio Mela admitindo ou recusando a existência da Atlântida, chegava ele à conclusão de que houve, outrora, um entendimento, por terras ou por via marítima, entre a América e os povos de espírito mercantil extravasados do Mediterrâneo. Creio que era esse escritor que se referia, nesse livro, ao encontro de um túmulo à beira-mar, no Rio Grande do Sul, o qual devia conter os ossos de um antigo general de Alexandre Magno.

O Brasil está destinado a constituir o último reduto da fantasia humana nos domínios da geografia e da História. À medida que os ingleses forem penetrando nas regiões misteriosas da índia, e os franceses forem cortando com os seus automóveis e com os seus aviões os desertos e o céu africanos, convencendo-se de que tudo por lá é apenas floresta, areia e vento, irão se refugiando nas nossas selvas todas as possibilidades da descoberta de um segredo pré-histórico. Já Wells colocou no planalto amazônico o seu Mundo Perdido. A ciência e a literatura vão se apossando, aos poucos, da lenda do coronel Fawcett, a quem os índios do Peru teriam fornecido o roteiro de uma cidade escondida na mataria da Hylea. Enganando-se a si mesmos, os homens vão transferindo do sonho para o domínio das possibilidades as criações da sua imaginação. A Atlântida, de Pierre Benoit, e a cidade das Amazonas, de Gastão Cruls, preocuparão os espíritos, com esses ou com outros nomes, enquanto restar no planeta um quilômetro de terra a ser desbastada e percorrida.

Em entrevista concedida à imprensa carioca por ocasião da exibição do seu filme, reproduziu o sertanista do São Francisco alguns hieróglifos que diz haver encontrado nos pontos mais remotos da Bahia e de Goiás e que provam, na sua opinião, a presença, ali, do fenício ou do cartaginês. E o que vinha à lembrança de quem contemplava aquelas figuras, era, sublinhado por um sorriso, aquele humorístico episódio de Charles Dickens, nos Pickwick papers. Percorria o sábio Pickwick, com a sua solenidade acadêmica, não sei que região da Inglaterra, quando descobriu numa planície uma grande pedra, em que se viam sinais cabalísticos e misteriosos. Fê-la encaixotar, embarcou-a para Londres, trancou-se no seu gabinete, e ao fim de alguns meses anunciava uma conferência sobre a ancianidade da emigração dos normandos para as ilhas Britânicas, de acordo com as inscrições que acabava de decifrar. Toda a Inglaterra proclamou a erudição de Pickwick. Um sujeito céptico entendeu, porém, de visitar o lugar de onde fora retirada a pedra. Encontrou aí um pastor analfabeto e travou conversa com ele.

— Diga-me uma coisa: o senhor lembra-se de uma pedra que havia aqui?

— Uma que um homem levou?

— Essa mesmo.

— Lembro-me.

— Ela estava aqui há muitos anos?

— Há muitos. Quando meu pai se entendeu, ela já estava aqui. E meu pai dizia que era em cima dela que meu avô se deitava quando trazia o rebanho a pastar.

— Aqueles riscos foram, então, feitos por seu avô?

— Ah, os riscos? Os riscos, não, senhor. Os riscos quem os fez fui eu. Eu me deitava em cima, e, como não tinha nada para fazer, ia riscando a pedra por distração. Mas, aqueles riscos não querem dizer nada, não senhor. Eu não sei nem escrever!

É talvez o caso dos hieróglifos do Alto São Francisco, dos quais se volta a falar. Procure-se com cuidado, que o fenício, ou o cartaginês, deve andar por lá mesmo, de alpercata e chapéu de couro.

A VERDADE E O BOATO

Que é a Verdade? — Perguntou Pilatos a Jesus.

E diz o Evangelho, segundo João, que, assim interpelado, o Senhor não respondeu. Guardando silêncio não quereria, porventura, o filho de Deus, que os homens a ignorassem eternamente?

Já alguém imaginou, com efeito, o que seria o mundo se nele imperasse exclusivamente a Verdade? Já alguém avaliou a insipidez da vida, a tristeza de cada hora, a contrariedade de cada instante, se não pudéssemos dissimular os nossos pensamentos e cada palavra fosse, na sua limpidez, a expressão de um sentimento ou de uma ideia? Já alguém calculou, mesmo, que amontoado de horrores e de baixezas seria a História, se os fatos tivessem ocorrido como realmente se desenrolam, e não como os historiadores os descrevem? Há uma passagem de Swift, nas Viagens de Gulliver, que dá a ideia do que seria a crônica humana, se não se estendesse sobre a vida vulgar das criaturas o manto de ouro da mentira e da ilusão. É quando ele, na sua segunda viagem aventurosa, visita Glubbdudbrib, a cidade dos mortos. Apresentado aí a Homero viu ele que o grande poeta não era cego, possuindo, antes, olhos brilhantes e negros, de extrema vivacidade. E maior foi o seu espanto quando, pedindo para ver os antepassados dos Reis da Inglaterra, se encontrou, de súbito, na presença, não de cabeças coroadas, figuras heroicas celebradas pelos historiadores ingleses, mas diante de um barbeiro, um cardeal, três criados graves e dois tocadores de violão. À luz da Verdade o mundo se lhe apresentou inteiramente às avessas.

Anatole France, com a ironia elegante em que era mestre, procurou nas suas letras, por mais de uma vez, mostrar o que teria sido a História se ela fosse o reflexo dos acontecimentos. É modelo do gênero a possível reabilitação de Barba Azul. Ao contrário de matador de sete mulheres, mostra Anatole que ele podia ter sido, perfeitamente, uma vítima de todas as sete. O seu herói chama-se, no caso, e historicamente, Bernard de Montragoux, senhor de vastas terras entre Compiègne e Pierrefonds. Homem honrado, de grande coração e costumes dóceis, corre-lhe a vida com a tranquilidade dos regatos na planície, quando lhe acontece casar-se com uma senhora de nome Collet Passage — recentemente estabelecida nas cercanias do seu castelo de Guillettes, e que realizava fortuna fazendo dançar um urso.

Apaixonado e leal, o senhor de Montragoux dá-lhe tudo: fartura, o luxo, e o coração. A alma leviana de Collet não se conforma, porém, com aquela monotonia aristocrática; e, uma noite, ao acordar, vê o fidalgo que o leito da esposa se encontra vazio; arrastada pela ancestralidade do espírito havia está abandonado o castelo para correr mundo, de novo, agarrada à corrente do seu urso!

Inconsolável na sua viuvez pensa o castelão de Pierrefonds que melhor fora tivesse permanecido solteiro. A solidão, depois de uma vida em companhia, duplica em torno de nós a tirania do silêncio. E para libertar-se desse tormento, Bernard de Montragoux pede em casamento, pouco depois, Jeanne de La Cloche, filha de uma autoridade de Compiègne. E se da primeira vez fora infeliz na escolha, da segunda sucede pior: Jeanne tem mais amor ao vinho do que ao marido, e dia não há em que não tome uma bebedeira, rolando, embriagada, de salão em salão, atirando-se por cima de todos os móveis.

Mesmo assim, estava o esposo disposto não só a suportá-la, mas, ainda, a ter-lhe afeição. Era uma infelicidade de que ninguém na terra tinha culpa, e ele a olhava com tanta comiseração que não reagiu nem, sequer, se revoltou, no dia em que ela, aos trambolhões, lhe enfiou na barriga um pedaço da faca da cozinha. Tudo encontra, porém, neste mundo, o seu termo. Não há bebedeira que sempre dure nem mulher que nunca se acabe. E Jeanne, e as suas carraspanas, tiveram fim no fundo limoso de um tanque, onde a mísera se atirou, ébria, uma noite, misturando a água com o vinho na tragédia de um afogamento irremediável!

O viúvo, penalizado e saudoso, chorou, inconsolável, três dias e três noites. Como, no entanto, poderia ele viver sozinho, se os seus lençóis eram, todos, de casal? Como poderia viver de lábios fechados, se passara dez anos a comunicar-se com alguém por palavras, murros e beijos? Discreto e escrupuloso, Bernard de Montragoux resolveu o seu problema em casa: esposou Gigogne Traignel, filha do seu feitor, dando-lhe uma parte da fortuna e dispensando-lhe, generoso, um olho, que ela trazia vazado e o pedaço de uma perna, de que ela claudicava. Não obstante isso, a moça, no seu novo ambiente, começou a murchar de vaidade e de estupidez, até que se partiram, um dia, nos duros braços da morte. O marido levantou-lhe um túmulo magnífico, diante do qual rezou contritamente durante algumas semanas, e de onde só se afastou para casar-se com Blanche de Gibeaunex, filha de um oficial de cavalaria.

Esta era, porém, tão leviana, que enganava o marido dentro do seu próprio castelo com dois, três, quatro e mais amantes de toda a ordem. E fazia-o tão desastradamente que um deles, com ciúme dos outros, atravessou-a com sua espada de cavaleiro, deixando-a a debater-se, menos vestida do que despida, nas ondas quentes de um lago de sangue. O senhor de Montragoux esposou ainda sua sobrinha, Ângela de La Garandine, criatura ingênua até a brutidão, que os lobos comeram no bosque; Alice de Pontalsim, menina das vizinhanças, órfã e pobre, cujo casamento foi anulado pelo excessivo pudor da nubente, e, enfim, Jeanne de Lespoisse, a dama do conto de Perrault, a qual, de acordo com o amante, o cavaleiro de Merlus, e com os seus dois irmãos, assassinou o desventurado Bernard de Montragoux, para apossar-se da fortuna que ele pacientemente acumulara.

Se a Verdade reinasse pura sobre a Terra, não seria esta, acaso, a legítima história do Barba Azul?

— Que é a Verdade? — Perguntou Pilatos a Jesus de Nazaré.

Jesus poderia, porém, ter atrapalhado o procurador romano, perguntando-lhe, em represália:

— Que é o boato?

A GUARNIÇÃO DE TIFLIS

Entre os jornais publicados em língua estrangeira nos Estados Unidos, destaca-se, menos pela sua tiragem do que pela qualidade da colaboração, o Dik-ech-Chark, folha árabe editada em S. Francisco da Califórnia, e cuja tradução é, mais ou menos, O Galo do Oriente. Dirigido por Amin-ben-Assan-el-Holvani, antigo conservador da Santa Kaaba, em Meca, esse órgão de publicidade está, já, no seu 22° ano de existência e é da imprensa árabe espalhada pelo mundo, uma das mais belas expressões e cura da raça.

Dessa folha, que é de publicação semanal, faz parte, como colaborador, usa Musafá Kamil, jornalista e professor conheci o em todo o Oriente, cuja atuação política se tornou famosa por ocasião da Grande Guerra, com o seu manifesto advogando a em 1 de Constantinopla aos povos de origem árabe, afim de ser tentada a restauração do califado com a absorção da antiga Turquia é desse jornalista desdobrado ultimamente em historiador, o estudo curioso publicado pelo Dik-ech-Chark de 14 de março último, e de que o New York Herald deu uma tradução no seu suplemento internacional de 17 do mesmo mês.

Nesse estudo, narra Mustafá Kamil a situação de indisciplina a que chegaram as forças regulares da Turquia aquarteladas em Tiflis, na Geórgia, em 1915, quando o general alemão Liman von Sanders decretou, em nome do sultão, a mobilização de todos os turcos de 18 à 50 anos.

Ao manifestar-se a Turquia a favor dos Impérios Centrais, estava ela, como se sabe, dominada por um grupo de beis e pachás, que viviam mais ou menos folgadamente, mas que ofereciam a vantagem de, utilizando a força emanada da tradição, conservar o país dentro da ordem, embora lançando mão, de vez em quando, do terror e da violência. Conhecendo a índole dos povos que foram escravos por longo tempo, essa aristocracia muçulmana levava às forças do império, uma vez por outra, algumas dezenas de agitadores que perturbavam a tranquilidade nacional. Essas sangrias populares aliviavam, porém, a cabeça da nação, que prontamente voltava a submeter-se às autoridades legítimas, e a desfrutar as conveniências da renúncia e da submissão. A entrada na guerra criou, todavia, no país, outra mentalidade. As guarnições conheceram a utilidade das suas armas. O sultão, isolado em Constantinopla, ignorava a situação verdadeira do Império, deixando que o espírito de rebeldia se infiltrasse nas classes armadas e no seio do povo. E foi esse espírito que dominou, desde 1915, na guarnição de Tiflis, da qual faziam parte nada menos de nove generais, heróis mais ou menos convencionados das guerras balcânicas, em que a Turquia fora sempre batida.

Certo dia, — conta Mustafá Kamil, — os coronéis turcos, comandantes de batalhões de Tiflis, reuniram-se num dos quartéis da cidade, e resolveram não prestar mais obediência aos velhos generais. Uma intimação foi redigida, e começava assim: “Nós, abaixo assinados, coronéis comandantes dos batalhões turcos da guarnição de Tiflis, vos comunicamos, a vós, generais elevados a esse posto à sombra do trono em Constantinopla, que não cumpriremos mais as vossas ordens, para que se salve o que ainda resta de bravura e de brio nas forças de terra aquarteladas na Geórgia”. E assumiram, discricionariamente, o comando das tropas.

Ao fim de dois meses era evidente, porém, a desinteligência entre eles. A ruptura do princípio da autoridade determinara a quebra da disciplina. E de tal modo que, três meses depois, os majores da guarnição promoviam uma reunião secreta, e lançavam, por seu turno, um manifesto, que terminava com estas palavras: “E uma vez que não há harmonia entre vós, coronéis indisciplinados e sem coragem, nós, majores do exército da Turquia, vos damos seis horas para que abandoneis a cidade de Tiflis, e corrais a esconder nos fogões domésticos o rosto que escondestes sempre diante do inimigo”. Feito isso, assumiram o comando das forças, mas para serem, quatro semanas mais tarde, depostos por uma conspiração dos capitães, que assim os intimaram: “Não deveis usar a gloriosa farda do exército otomano, mas o véu das odaliscas e das hurís do Profeta. Não vos corremos dos quartéis com as nossas espadas para que elas se não manchem com sangue de poltrões. Mas poderemos obrigar-vos a abandonar o comando que tão indignamente exerceis, com o chicote dos nossos criados”. E tomaram conta dos quartéis.

Esse domínio foi, entretanto, precário, pois que não durou dois meses. Uma noite, após uma conferência tumultuosa no casino do estado-maior, os tenentes se apresentaram diante dos capitães, e um deles leu, alto, uma declaração, em que havia este período: “Sois uns capitães de borra. Não valeis nada, e a vossa espada não serve, sequer, para apanhar tâmaras. Tendes vinte minutos para sair daqui. Já!” E ficaram senhores da situação. Mas, por um dia apenas, pois, vinte e quatro horas depois, os sargentos invadiam o estado-maior, e um deles, trepado na mesa do tenente comissionado em general, lia uma descompostura, em que havia isto: “Tenentes de uma figa! Puxem daqui! Vão pentear macacos no Cáucaso ou vender tapetes na feira da Trebizonda! Deem o fora, ou não fica nenhum vivo!” Assumiram, em seguida, o comando, e puseram fora de Tiflis todos os militares de patente superior à sua.

À noite, porém, os cabos fizeram com os sargentos o que estes haviam feito com os tenentes, com acentuada agravarão do vocabulário, mas para receberem, instantes depois, tratamento ainda pior dos soldados, que os desalojaram a coronhadas, gritando, por não saberem escrever: “Tratantes! Vagabundos! Vadios! Vão para o diabo que os carregue! ” Mas foram, também, por seu turno, desalojados pelo pessoal da faxina, que não disse nada, mas os debandou a baldes d’água e a golpes de estopa molhada.

Contando essa história dolorosa, Mustafá Kamil, conclui, com melancolia, por este conselho, que só tem oportunidade, mesmo, na Turquia:

— “Generais, ilustres e bravos, homens de armas e de comando, respeitai os vossos superiores constitucionais e respeitai-vos, para poderdes merecer o respeito dos vossos subordinados. Daí vós próprios, o exemplo da ponderação e da disciplina!”.

E numa imagem, em que há um conceito à maneira oriental:

— “A disciplina é um tecido de malha, em que tudo depende de um fio. Roto o primeiro, todo o tecido se desfaz...”.

QUEBREMOS OS COPOS!

Iniciou-se anteontem, nesta capital, a semana antialcoólica, promovida pela Liga de Higiene Mental. A cidade amanheceu, segunda-feira última, coberta de cartazes expressivos mostrando, pela imagem e pela palavra, os inconvenientes da embriaguez. E alguns homens eminentes, sacerdotes do Bem e da Ciência, acham-se, há três dias, na tribuna, realizando conferências contra o álcool, inimigo do indivíduo e inimigo da sociedade, praga do mundo, veneno do corpo, corrosivo da alma, criação do Demônio para destruição gradual da obra de Deus.

Olho melancolicamente esses cartazes, e volvo os olhos para o passado. Há um ano, por esse tempo, havíamos sido designados, cinco cientistas e professores e eu, para representar a cultura brasileira no Uruguai. Entre os designados achava-se o Dr. Ernani Lopes, da Liga de Higiene Mental. Marcamos a viagem. Encomendamos passagens.

— Não; eu não posso embarcar agora, — declarou-nos o ilustre psiquiatra e filantropo. Não me afastarei do Rio enquanto não encerrar a semana antialcoólica.

E nós, seus companheiros, esperamos por ele. Esperamos, e fomos testemunhas, no Prata, do seu devotamento a esse aposto! Ado, da sinceridade da sua fé, e da pertinácia, da tenacidade, com que se erguia sozinho, contra o mais terrível dos vícios civilizados, combatendo-o com a palavra, com a pena e com o exemplo.

Pregar contra o álcool em Montevidéu e em Buenos Aires, é, todavia, temeridade tão grande, e esforço tão corajoso, como doutrinar contra o uso da carne em terra de antropófagos. O Dr. Ernani Lopes, entretanto, não esmorecia, não fraquejava, não recuava diante do insucesso ou das possibilidades do ridículo. E ao vê-lo, vinham-me à lembrança os apóstolos antigos, os emissários de Paulo, que iam levar a sua palavra aos gentios da Ásia, onde os aguardava o martírio, ou aqueles evangelizadores que desembarcavam na índia ou no Japão no século XVI, para converter e batizar o indígena, fortalecido desde o berço na doutrina de Buda ou na crença do Maamede. Às vezes, ao vê-lo partir do hotel Florida, na capital uruguaia, ou do Magestic, na metrópole argentina, a minha imaginação lhe vestia um hábito da Companhia de Jesus ou de dominicano, e eu o via entrando a selva brasileira, como Anchieta, como Nóbrega, como Luiz Figueira, levando como armas únicas a sua esperança, a sua convicção e o seu crucifixo. A ciência, a bondade, o altruísmo, repetiam no século XX os velhos milagres da confiança e da fé.

O Brasil tem o dever de não ignorar o espírito apostólico deste seu filho. O Dr. Ernani Lopes não fora ao Uruguai com a missão oficial de evangelizar as tribos civilizadas contra as tentações do cocktail e do uísque. Mas todas as suas horas vagas foram cheias dessa atividade meritória. Em Montevidéu, ia para o estádio falar aos atletas. Recomendava-lhes a temperança como elemento conservador das energias físicas e morais. Pregava aos espectadores nos grupos que se formavam. E, quando se calava, era para ouvir a voz estentórica dum alto-falante, trovejando à multidão.

— “Não vos quereis constipar? Quereis ter alegria e saúde? Ao sair do estádio tomai o bom conhaque marca Urso. Em todos os bares de primeira ordem. Não esqueçais: Conhaque marca Urso!

E outro, em voz ainda mais alta, na outra extremidade do campo:

— “Quer dar a vitória ao seu clube? Tome antes e depois do torneio uma dose do bom uísque Cavalo Branco, no botequim fronteiro ao estádio. O bom uísque dá força! O bom uísque dá mocidade! o bom uísque dá alegria!”.

O Dr. Ernani Lopes detinha-se um instante, refletindo com melancolia sobre os recursos do inimigo que lhe cabia enfrentar. E, de novo, com a sua voz baixa, mas insinuante e infatigável, investia, como Lohengrin, com a sua lança de cavaleiro, contra a couraça do dragão.

Em Buenos Aires, era ele como Pedro em Roma, Jonas em Nínive, Daniel em Babilônia. Após o jantar, munido de livros e notas, consultava os porteiros sobre os bondes para determinados subúrbios. Ia à procura de uma associação de operários temperantes, levar-lhes a sua palavra de solidariedade. Apeava-se num deserto, e, perguntando a direção aos raros transeuntes que moram para os lados em que reside a virtude, ia ter a sedes obscuras de ligas proletárias contra o álcool, as quais eram encontradas, quase sempre, sob a guarda de meia dúzia de sonhadores como ele. Nada, porém, o desanimava. Nada o fazia recuar. Porque o Dr. Ernani Lopes luta contra o alcoolismo com o pensamento no dever, e não na vitória. Esta não caberá à nossa geração. Mas é preciso que alguém se sacrifique lançando os alicerces do edifício, para que este apareça, alto, soberbo, monumental e definitivo, desafiando os povos e os séculos. O antialcoolismo é um cristianismo novo. Terá os seus apóstolos, os seus mártires. Mas acabará conquistando o mundo.

— De onde vem o nome Lacrima Christi, dado a este vinho? — perguntou, um dia, uma senhora judia, a Henrique Heine, que era judeu.

E o humorista, tomando-lhe o cálice:

— Lacrima Christi quer dizer Lágrima de Cristo; e a sua origem é a seguinte: é que Cristo chora todas as vezes que um judeu o bebe.

Mas o Cristo deve chorar sempre. Deve chorar todas as vezes que um cristão bebe qualquer vinho. Quando ele transformou a água dos cântaros nas bodas de Caná, e fez do vinho o símbolo do seu sangue, não imaginou, com certeza, que o homem fizesse de um alimento um veneno e de um refrigerante um vício, fonte de degradação e de crime. Debilitando o homem, reduzindo-lhe a capacidade do pensamento e da ação; modificando-lhe o caráter; corrompendo-lhe o destino; acumulando nos pais uma herança trágica para os filhos; rebaixando a índole dos indivíduos e o espírito das nações; enchendo os cárceres e os manicômios, — o álcool constitui a mais terrível das calamidades humanas.

E é uma calamidade que o homem, ele próprio, organiza e procura. O mundo é, de vez em quando, assolado por uma peste. Vindos do Oriente semibárbaro ou da África misteriosa e selvagem, o cólera, a bubônica, o tifo, a influenza, a febre amarela, a varíola, percorrem periodicamente a superfície da terra, matando e devastando. As nações policiadas armam-se com a higiene preventiva. Fecham-se portos. Prejudica-se o comércio. Interrompem-se as relações internacionais. Paralisa-se quase a circulação humana na epiderme do globo. É preciso anular, vencer, dominar, destruir o inimigo cego e inflexível. Vencido, porém, este, cria o homem, ele mesmo, com o alcoolismo, o seu flagelo, matando mais gente, causando devastações maiores, e mais duradouras, do que as da peste que Deus mandara! No seu orgulho, na sua presunção, na sua altivez ridícula e miserável, combate ele o castigo anônimo vibrado por um braço invisível; mas inventa, e alimenta, e deifica, ele próprio, o flagelo que o destruirá!

Está inaugurada, e em andamento, a Semana Antialcoólica no Rio de Janeiro. Temperante por um milagre da vida, abstêmio que encontra nessa ventura, e na ausência de outros vícios o segredo da resistência do cérebro a um trabalho insano, e a de todo o organismo ao ataque de enfermidades implacáveis, eu venho trazer este aplauso, e este depoimento, aos promotores dessa obra patriótica e humanitária.

Erga-se o Brasil, destruindo os copos. Que nenhum brasileiro de amanhã habite o hospício ou o cárcere por culpa da intemperança do seu pai.

DIREITO DE MATAR

A 9 de julho do corrente ano, precisamente à hora em que se trocavam em São Paulo os primeiros tiros inaugurando a guerra civil, realizava o professor Ari Azevedo Franco, na Faculdade de Direito de Belo Horizonte, uma conferência interessante, tendo por tema, e título, O Direito de Matar. Proferidas, ou lidas, nesta hora militar da República, essas palavras darão, talvez, a ideia de batalhas sangrentas, de massas humanas atirando-se contra massas de ferro, da chacina estilizada que permanece, como um tumor maligno, reminiscência dos tempos primitivos ou da pura animalidade, enquistado na Civilização. E não é disso que se trata, mas da eutanásia, da morte caridosa, do homicídio piedoso, do direito, em suma, que se deve, ou não, conferir ao médico, de abreviar e suavizar a morte do enfermo de cuja salvação se perdeu inteiramente a esperança, e em quem o prolongamento da vida corresponda ao prolongamento desumano do sofrimento.

Dissertando longamente sobre a matéria, o ilustre magistrado carioca historia a revolução do pensamento que a cristaliza, os debates que têm determinado, a sua interpretação entre os povos antigos, e o seu estado atual, isto é, o modo por que a encara a mentalidade jurídica e o espírito científico do nosso tempo. E conclui como jurista, recusando ao médico o direito de matar. Tendo de optar, optou pela escola conservadora. A morte artificial, in anima nobile, continua a constituir, aos seus olhos de homem da lei, um crime, e não, ainda, um direito.

A bibliografia em que se podem apoiar os partidários das duas teorias é, conforme se conclui da conferência de Belo Horizonte, vasta, e complexa. Exumada, é restituir o problema às suas origens, levar à boca da serpente a cauda do próprio réptil, estabelecendo um círculo vicioso. Examinemo-lo, pois, diretamente, sem consultar o passado, enunciando uma opinião de leigo, mas sincera e pessoal. O assunto é da atribuição de médicos e juristas. Mas interessa, sobretudo, aos doentes. Nos debates judiciários, fala o promotor, falam os advogados, mas concede-se, também, às vezes, a palavra ao réu, ao indivíduo cujo destino depende da discussão entre aquelas entidades. Eu sou, aqui, o réu. Peço a palavra.

A eutanásia vem descrevendo, historicamente, no tempo, uma parábola que nos dá quase a segurança da vitória, não remota, do princípio que ela encarna. Ordinariamente adotada pelos antigos, sofreu uma flexão considerável com o espírito católico, na Idade Média, quando o corpo humano se tornou inviolável, rigorosamente vedado às sacrílegas investigações da ciência. Pouco a pouco, porém, a ponta do arco vem flectindo, e de tal modo que alguns códigos já não consideram um crime a morte caridosa. Os mais severos, estabelecem, para o caso, pena de homicídio atenuado. E outros, como o das Repúblicas Soviéticas, reconhecem, francamente, o direito de matar, quando se trata de por termo a um sofrimento inútil e desnecessário.

A reação contra essa faculdade constitui, assim, o remanescente de uma superstição católica, e tende a desaparecer. É espantosa a sua resistência, mas terá de ser vencida. E, se me não engano, uma das causas da lentidão na marcha dessa ideia generosa e humanitária, tem sido a interferência excessiva dos juristas em um assunto cuja orientação inicial devia caber exclusivamente aos médicos. A supressão do sofrimento pela precipitação da morte é matéria médica. Ao jurista cabe, apenas, assegurar os direitos da sociedade contra os exageros da ciência. À medicina compete decretar a eutanásia. Aos juristas, regulamentar o seu emprego. O jurista é o advogado da sociedade. O médico, o da humanidade. Mas o direito social não deve prevalecer sobre o direito humano. A sociedade, não pode, em suma, recusar ao médico, de modo absoluto, o direito de matar.

A regalia que se arroga a sociedade, de condenar a morte caridosa é, ademais, uma hipocrisia. Senão, vejamos. A sociedade impede que um médico mate um homem que se acha condenado a morrer dentro de alguns dias, e cuja resistência é um tormento para ele próprio e para os demais. Nas dores desesperadoras que o afligem, o enfermo pede a morte, e o médico não lhe pode dar. Mas essa sociedade que condena esse ato de caridade humana é a mesma que mantém o direito de matar milhares de homens sadios, fortes e jovens, atirando-os à fogueira da guerra! O médico, homem de coração, que, para pôr termo a um sofrimento sem remédio, matar docemente um doente de mal incurável e cuja vida não iria além de alguns dias, será, pela nossa legislação, preso, julgado, e condenado a dez ou quinze anos de cárcere. O general, porém, que matar vinte mil homens vigorosos numa batalha, esse será considerado herói nacional, e glorificado por essa mesma sociedade... Que autoridade tem, assim, um instituto, que pune severamente um homicídio praticado em nome dos mais nobres sentimentos humanos, e louva e aplaude, e festeja as chacinas coletivas, em nome da vaidade humana?

A dor é, sem dúvida, uma necessidade, e um dos fatores do aperfeiçoamento moral do homem. Admitamos a teoria do Andrei Etimytch da novela de Tchekow, em que ela figura como fator principal na ascensão da alma cristã. Mas o sofrimento é, mesmo nestes casos, moeda com circulação unicamente dentro da vida. Que importa ao moribundo aperfeiçoar-se para a vida, se ele não voltará mais a ela? De que lhe serve a dor nos dias que antecedem a morte, senão para que ele morra em danação, amaldiçoando a dor e a vida?

Entregue-se, pois, à medicina a função de resolver esse problema, que os juristas vêm debatendo, fora de tempo e lugar. E estou certo que eles opinarão pelo direito de matar. O bom em da ciência é que acompanha o desfazer-se da carcaça humana, e sabe quanto ela sofre para integrar-se na morte. O homem da lei só conhece do morto, em geral, o testamento e o espólio.

Armemos, finalmente, a ciência do direito de suprimir a dor nos casos irremediáveis. Só votarão contra isso os que nunca viram a Morte de perto. E eu voto a favor porque a conheço.

Conheço-a, e a tenho aqui, agora mesmo, a meu lado, prendendo a pena na minha mão.

DONA JÚLIA

Dona Júlia Lopes de Almeida morreu e não soube, nunca, da admiração que eu lhe votava, e do bem que eu lhe queria. No tumulto da minha vida não encontrei, jamais, uma hora de folga para lhe dizer isso. Ela faleceu ignorando essa verdade. E eu me não quero ir, porém, por minha vez, sem a confessar aos que ficam.

Essa admiração, e essa estima, possuíam raízes sentimentais e profundas: estavam ligadas a dois acontecimentos da minha própria existência, e achavam-se assinalados por dois episódios felizes da minha mocidade. Datava o primeiro, de 1911. Eu tinha vinte e cinco anos e acabava de pedir em casamento uma formosa e risonha menina de dezesseis. E cantavam-me no coração todos os passarinhos do mundo quando, certa manhã, em Belém do Pará, entrei em uma livraria, à Rua João Alfredo. Em um mostruário próximo à porta havia uma porção de livros de luxo, para presente. Passei os olhos por eles, e detive-me diante de um volume elegante, encadernado em percalina azul, com letras de ouro cercando um lírio de pétalas derramadas. Era o Livro das Noivas, de Júlia Lopes de Almeida.

Adquiri o único exemplar existente, e mandei embrulhá-lo em papel cor de rosa, amarrado com uma fita estreita, da cor do meu sonho. E, à noite, levei-o à minha noiva. Ela o abriu, e começámos a folheá-lo, os dois. Os capítulos eram finamente ilustrados, e constituíam conselhos encantadores e proveitosos às moças que vão constituir o seu lar. De repente, chegámos a uma página em que uma jovem mãe, tendo no rosto lindo um sorriso quase do céu, se debruça, docemente, sobre um berço em que dorme um pequenito recém-nascido. A dona do livro quis passar o capítulo sem lhe ter, sequer, lido o título. Eu segurei a mão fina e morena que ia voltar a folha. Entreolhamo-nos. Ela estava toda vermelha, como se o dia fosse amanhecer no seu rosto. Anos mais tarde vi-a reproduzir a estampa maternal do livro de Dona Júlia. Três vezes, em nossa vida, encheu-se um berço, em nossa casa...

O outro episódio traz, na minha memória, o carimbo de 1912. Eu acabava de chegar ao Rio de Janeiro para amassar pão com o bico da pena. Desembarcara trazendo na mala dois fraques, dois chapéus-coco, e uma bengala de muirapinima com cabo de ouro falsificado. Tendo M. Nogueira da Silva publicado um artigo sobre o meu primeiro livro de versos quando eu ainda me encontrava em Belém, fui à Gazeta de Notícias, de que era ele secretário, dar-lhe um abraço provinciano. Apresentações. A Paulo Barreto, a Carlos Góis, que se achava também em visita ao jornal. E a um rapagão fino, alto, que se dobrava lá em cima como um poste que tem um braço para sustentar uma lâmpada.

— Afonso Lopes de Almeida... — dissera Nogueira da Silva.

Chegámo-nos para um canto da janela, à Rua do Ouvidor. Em baixo, a cidade fervia na sombra da noite, que descia. Falou-me ele dos meus versos. Lisonjeou-me com habilidade inteligente. E concluiu:

— Você hoje vai jantar conosco... Tenha paciência... Vou telefonar para casa, comunicando à mamãe... Foi ao telefone. Voltou. E, meia hora depois, atravessava eu, pela primeira vez, os arcos monumentais e pisava, olhando a metrópole imensa que fulgia, paralelepípedos de Santa Teresa.

Filinto de Almeida e Dona Júlia moravam, então, na atual Rua Almirante Alexandrino, em uma casa admiravelmente situada, para a qual se entrava por uma espécie de túnel, que conduzia ao jardim. Lá dentro, a alegria, a graça, a elegância, a distinção. Dona Júlia e Filinto receberam o caboclo nortista como a um velho amigo que tornasse do exílio. À mesa, que os linhos bordados alegravam, apareceu “um mistério verde”, que nunca mais provei em casa de carioca. E, em seguida, foi à palestra diante da janela escancarada sobre a cidade que faiscava lá em baixo, e que, pela primeira vez, me oferecia o seu bizarro aspecto de joalharia encantada.

Dona Júlia queria que eu lhe contasse todas as coisas espantosas que a Amazônia me havia mostrado. E eu lhes descrevia: descrevia-lhe os costumes, as originalidades da Natureza, a luta do Homem contra a Terra e a represália da Terra, destruindo o Homem. E Dona Júlia indagava, perguntava, insistia, com uma ansiedade alegre e gentil como a da criança que pede a narração de uma festa fantástica ou a descrição de uma caixa de brinquedos. Desejava imensamente ir ao norte, conhecê-lo, e escrever um romance que se desenrolasse naquele cenário monstruoso. E essa ideia a tornava quase infantil na sua curiosidade, que se manifestava não só na indagação como no mover inquieto de sua formosa cabeça grisalha.

Por isso tudo, e pela arquitetura nobre dos seus livros, eu queria bem a Dona Júlia Lopes de Almeida. Nunca mais voltei à sua casa. Agora, porém, ela está em São João Batista. Quando me restabelecer, hei de aparecer por lá, a fim de levar-lhe o ramo de rosas que lhe devo desde 1911 — as quais esperaram tanto que ficaram roxas e, agora, se chamam saudades...

CARMEN DE ASSIS

Quando, em 1903, eu cheguei ao Pará, uma das figuras mais importantes da capital e, consequentemente, do Estado, era o advogado pernambucano Pais Barreto, que ali havia chegado, dez ou doze anos antes, atraído pelas irresistíveis tentações do foro amazônico. Vivia ele, então, como um sibarita do espírito, em um palacete para os lados de Nazaré, e era famoso, na cidade, pela sua biblioteca e pelas suas coleções de quadros, adquiridos na Europa. Antigo jornalista, com um papel considerável nas campanhas pela libertação do negro na sua província natal, publicara um volume sobre a Abolição e trazia, inédita, uma obra de vastas proporções, intitulada História da Arte, de que divulgou, na imprensa, alguns capítulos pesados de erudição.

Pais Barreto, ganhava muito dinheiro, e vivia só. Mas o dinheiro que os constituintes lhe traziam desaparecia no cofre dos livreiros e dos colecionadores, trocados por livros e quadros. Os seus vinte mil volumes escolhidos e os seus duzentos quadros de mestres eram citados como um tesouro fabuloso. As causas vultosas tornaram-se, porém, dia a dia, mais esquivas. Para conservar os quadros, vendeu os livros. Mais tarde, para conservar a vida, começou a vender os quadros. Suspeitando que um destes era de Ticiano, vendeu os restantes, e embarcou para a Europa. Os peritos franceses e italianos tiraram-lhe, todavia, essa ilusão, que consubstanciava seus últimos sonhos de fortuna e de glória. De regresso, foi residir, com duas ou três telas salvas do naufrágio, em uma pequena casa térrea, de duas janelas e uma porta, à travessa Dr. Morais. E foi aí, no declínio da vida e no crepúsculo da notoriedade, que eu, amigo dos vencidos, conheci esse homem, e, em uma visita que lhe fiz, ouvi da sua boca, esta opinião:

— Você escreveu, há dias, que a arte mais espiritual e sugestiva é a música. É engano seu. A arte mais capaz de despertar emoções profundas e delicadas é a pintura. Quer uma prova? Olhe aqui... Veja esse quadro.

Era uma cabeça de velho, tendo à boca um cachimbo. Havia, sem dúvida, na fisionomia do ancião, uma felicidade maliciosa, e, por trás, uns efeitos de luz em que se adivinhava qualquer coisa de estranho. A impressão não me foi, entretanto, além dos olhos, ao passo que, em Pais Barreto, ela se manifestou numa gota límpida e tênue, que lhe desceu, lentamente, pela face... A nossa sensibilidade era diversa. Ele adorava Apoio. Eu, consoante à definição nietzschiana, sentia ressoar, instintivamente, dentro em mim, a primeira oração a Dionísio...

É a música, na verdade, de todas as artes, a que exerce, sobre meu cérebro e sobre meus nervos, influência mais funda e decisiva. E é o violino, dos instrumentos, aquele cuja voz me penetra mais agudamente o coração. Daí, a emoção com que, nos primeiros dias de dezembro último, ouvi em uma exibição toda íntima, na pequenina sala da minha casa, a jovem artista baiana Carmen de Assis, que havia obtido grande sucesso, semanas antes, no Municipal. O pai de Carmen, ilustre médico brasileiro que viveu muitos anos na Europa, recebera da sua esposa, que ficara em S. Salvador, uma carta, em que esta lhe dizia:

— “Sabe-se aqui na Bahia que Humberto de Campos está doente. Leve Carmen, com o violino, à sua casa, para distraí-lo um pouco...”.

E Carmen de Assis veio à minha casa. Com quinze anos, e parecendo não ter mais de treze, a sua figurinha de menina pálida e sem artifícios revela aos olhos, antes de revelar-se ao ouvido, o seu temperamento excepcional. Antes de empunhar o seu violino, é, ainda, a adolescente estouvada, a meninota gentil e vadia, inteiramente alheia às coisas graves da vida. Chegado, porém, o momento de tornar-se sacerdotisa do seu culto, verifica-se a transfiguração. Uma gravidade profunda e doce toma-a toda, e o seu rosto de criança se torna em rosto de imagem. Os olhos descidos sobre o instrumento a que se irmana o mento pousado nele, a sua silhueta possui alguma coisa de seráfico, e muito daquelas Virgens talhadas em marfim antigo, que fizeram a glória anônima dos imaginários da Renascença. A menina de há pouco desaparece. A adolescente de há pouco tem, agora, um traço místico na figura. A artista, e o seu violino, são um só corpo, uma entidade só. As cordas se tornam nervos. A madeira se torna carne. A violinista, integrada no seu instrumento, é toda ela música viva, sonoridade palpitante, vibração harmoniosa. E enquanto a artista, imóvel, com o braço apenas a descrever grandes arcadas corajosas, se conserva transformada em cândida imagem cristã, a sua alma se dissolve em gemidos de fé ou em gritos de revolta, que sobem, e descem, e se isolam, e se apagam, e se misturam, interpretando, num milagre do instinto, as mil inquietações do espírito e os incontáveis anseios do mais aflito coração humano.

Termina, porém, a peça. O último grito ou a última queixa acaba num suspiro. E Carmen de Assis, atirando para um lado o violino e o seu arco, volta a ser a menina vadia e trêfega, uma espécie de diabinho alegre, inteiramente esquecida do anjo, ou da santa, de que tomava, há pouco, o sentimento e a figura.

Quando a minha graciosa visitante se despediu com o seu pai, e regressei à pequena sala do apartamento, lembrei-me da minha opinião de há trinta anos, no Pará. E exclamei, comigo mesmo:

— Quem estava enganado eras tu, Pais Barreto!

Pais Barreto já se acha, porém, muito longe daqui. Está no outro mundo, e como foi um abolicionista devotado, deve estar no céu, lugar de boa música. Não esperou, para convencer-se, pelo meu desafio, nem, tampouco, pelo violino encantado da minha amiguinha Carmen de Assis.

A SOMBRA DO MANUEL ANTÔNIO

Com o pensamento em Manuel Bomfim, que há dois dias dorme o sono da morte, manuseio lentamente o meu Diário, em que fixei as nossas palestras sob a vasta latada de parreiras, no hotel D. Pedro, em Correias. E encontro, no meio de muitas outras, as notas que vou transcrever, num culto do meu espírito à sua memória.

Sexta-feira, 10 de fevereiro de 1928 — Professor de psicologia, Manuel Bomfim contava-me, há dias, em Correias, uma história, para demonstrar o efeito do medo sobre os indivíduos, mesmo os mais corajosos”.

— No caminho que unia a fazenda de meu pai a outra fazenda vizinha, e que era o mesmo da vila, em Sergipe, começou, — havia um trecho que, no dizer do povo era mal-assombrado. Segundo era corrente, alta noite, principalmente nas sextas-feiras aparecia aí a alma de um caboclo o nosso Manuel Antônio, se bem me lembra o nome, assassinado ano antes nas imediações. Dezenas de pessoas já haviam visto o fantasma, e desistido de franquear a estrada, à noite, voltando do caminho. Ha fazenda havia, porém, um caboclo, o Raimundo, que era, como se costuma dizer no sertão, “valente como as armas”. Bravo, decidido, desassombrado, a sua fama era das melhor firmadas entre todos os valentões das redondezas. Tinha fama, e era valente mesmo.

— Uma noite, um sábado, — continua Bomfim, — terminados os trabalhos da fazenda, depois do jantar, por volta das sete horas, apareceu o Raimundo com o cavalo selado, pronto para ir à vila, que ficava a umas três léguas de distância.

— “Olha se o Manuel Antônio te aparece pelo caminho!” — objetou meu primo, que era já rapaz. O caboclo respondeu com uma bravata, meteu as esporas no cavalo, e partiu, desaparecendo na curva da estrada.

Uma hora depois, estávamos nós conversando no mesmo lugar, quando vimos surgir, aproximando-se, a figura de um cavaleiro. Era o Raimundo, que voltava. Interpelámo-lo com pilhérias, perguntando se tinha tido medo de encontrar o Manuel Antônio.

— “Medo mesmo eu não tive, — respondeu-nos visivelmente sucumbido, — mas ver, eu vi”.

E contou-nos, pausadamente, o que lhe havia sucedido. Ao chegar ao ponto da estrada em que o Manuel Antônio costumava aparecer, saíra do mato um vulto, que se pusera no meio do caminho. Ordenou-lhe que se retirasse, mas a visagem ficara firme. Dera de espora no cavalo, para passar por cima: o cavalo, porém, cabriteara, recuando, sem obedecer à rédea. E como ia desarmado, não insistira.

A sua narrativa fez-nos calar. Impassível sobre o cavalo, o caboclo ficou em silêncio durante alguns momentos. Refletia, talvez, sobre os feitos inevitáveis daquela aventura, prevendo o desaparecimento da sua fama de cabra corajoso e decidido. A capitulação, naquele caso, diante do sobrenatural, seria um suicídio. De repente, levantou o busto, firmou-se no animal que estremeceu, e declarou resoluto:

— “Mas eu volto lá!”.

De um salto, apeou-se. Entrou no seu quarto, tomou um trago alentado de cachaça, prendeu o facão à cintura, pôs a garrucha no cós e, não obstante o nosso conselho para que não fosse, passou a perna no cavalo, agitou o chapéu de couro, e partiu, a galope.

Duas horas mais tarde, conversávamos todos, ainda, no terreiro da casa, quando vimos aproximar-se, a passo, o cavalo do Raimundo. Em cima, caído para a frente, os pés nos estribos, a cabeça no arção da sela, os braços moles tombando pelo pescoço do animal, vinha ele. Saímos ao seu encontro.

— “Raimundo!... Raimundo!...”

Chamamo-lo. Sacudimo-lo.

Estava morto.

— Mandamos preparar os animais, — prossegue Bomfim, — e partimos cinco ou seis homens, para apurar aquele mistério. No local em que o fantasma costumava aparecer, havia um toco, à margem do caminho. Ao lado do toco, no chão, onde a areia revolvida mostrava sinais de luta, estava a garrucha do Raimundo. Cravado no toco, reluzia, à claridade da lua que acabava de nascer, a lâmina do seu facão.

Contando-me essa história, Manuel Bomfim, o psicólogo, que a iniciara com o propósito de demonstrar os efeitos do terror preventivo, evitou, depois de narrado o caso, tirar qualquer conclusão. Contou-o, e calou-se”.

Há dois dias repousa, agora, o narrador de 1928, nos domínios do eterno Mistério. E terá desvendado, talvez, já, o segredo da morte do Raimundo, e, mais ainda, o da sombra do Manuel Antônio...

AS AVES BRASILEIRAS

Há quinhentos anos o brasileiro recebe festivamente o seu hóspede. O Brasil acabava de nascer, e já eram antigos, nos seus naturais, os nobres e prejudicialíssimos hábitos de extremada hospitalidade. Para o estrangeiro que lhe ia visitar a taba humilde e primitiva, era o cauim mais gostoso, o pedaço de paca mais gordo, a cunha mais formosa da tribo. O Guerreiro Branco ia, às vezes, a essa visita, com o pensamento na cabocla morena, besuntada de jenipapo. Batuirêtê ou Ubiratan não entrava, porém, em sindicância. O hóspede ficara contente? Era essa a missão de quem o hospedara. A malícia e a traição prejudicavam, apenas, o malicioso e o traidor.

Pouco a pouco a civilização foi penetrando a terra que Pedro Alvares descobrira. O português trouxe o vinho que substituiu o cauim. O mosquete eliminou a flecha. A tanga desapareceu, vencida pela jaqueta.

Jandira aprendeu a ler, e passou a usar o nome de Ivone ou Zuzú. O pajé tomou o título de doutor e Inhaibatan passou a assinar-se Oliveira. Mas o hábito da hospitalidade ficou. E ficou nos homens e nas coisas, que nem sempre são mestras, mas discípulas disciplinadas dos homens.

Os inconvenientes dessa hospitalidade tornaram-se, por isso, extensivos à Natureza. O português trouxe, por exemplo, dos seus domínios na índia, a mangueira. Hóspede no Brasil, a mangueira tornava-se em breve, rival do cajueiro, até que lhe tomou o lugar nas cidades, exilando-o para as estradas do sertão. A cana de açúcar e o café, trazidos, uma da Madeira, outro da Arábia por intermédio de Caiena, transformaram-se em riqueza da pátria nova, arvorando-se em árbitros do seu destino econômico. A seringueira, para poder viver, teve que abandonar o solo natal. E o ficus invadiu as cidades, perfilou-se ao longo das ruas, montou guarda aos jardins, constituindo-se em milícia civil dos parques elegantes.

E o que sucedeu com as árvores, sucedeu com as aves. O canário belga depôs o bicudo, e o peru, com a sua arrogância, tomou o lugar ao jacamim. E como se esses, e outros desastres, não fossem bastante para acentuar o nosso excesso de hospitalidade, veio o pardal, o japonês de asas, e foi, pouco a pouco, se infiltrando pela floresta, até que se proclamou dono da casa.

Não é isso, entretanto, o que sucede nos Estados Unidos, onde a integridade nacional é defendida vivamente em todos os reinos da Natureza. Na grande República dos dois Roosevelts até as aves indígenas desfrutam regalias assecuratórias da sua existência e expansão, regalias essas que se acham consubstanciadas em uma lei, votada desde 1900, e que é conhecida por Lei Lacey, em homenagem ao deputado John Lacey, do Yowa, que a apresentou e defendeu.

Por essa lei, nenhuma ave estrangeira penetra, hoje, no território americano sem ser acompanhada de um passaporte, expedido pelo seu país de origem. Ao desembarcar num porto da República, é ela examinada pelo Serviço de Inspeção Biológica, que dirá da conveniência, ou da inconveniência, da presença daquele hóspede, não somente como portador possível de enfermidades ornitológicas, como pela concorrência que poderá fazer às aves nacionais. Dirige esse serviço no país o Dr. Theodor Palmer, cujo departamento arrecada algumas centenas de milhares de dólares, que são utilizados na proteção direta às aves legitimamente americanas. A grande bandeira riscada e estrelada abre-se na terra e no céu, não consentindo, jamais, que, homem ou bicho, se veja dominado pelo competidor estrangeiro.

A lição é bela, como se vê, e devia ser aproveitada por um povo que manda vir colonos europeus, aos quais dá a terra, o arado, a casa, a vaca, e dinheiro para um ano, quando tem, no seu próprio território, nacionais seus, que pedem apenas a terra, uma enxada velha e um chapéu de palha de carnaúba.

Mas essa lição é inútil. O Brasil é do tico-tico, mas quem manda é o pardal. É da jabuticaba, mas quem governa é a mangueira. Continuam predominando, no céu, nas suas cidades e nas suas florestas, os velhos hábitos de Arabutan e Tibiriçá. A casa é do dono. Mas quem manda é o hóspede.

O TUPI NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Informavam, há poucos dias, de São Paulo, que a Universidade que ali vai ser organizada terá, no seu curso de letras, uma cadeira da língua tupi. E é provável que a notícia tenha feito desabrochar um sorriso de superioridade maliciosa no rosto dos homens utilitários. Para que aprender e ensinar um idioma que ninguém fala, e que não deixou na bibliografia nacional senão um ou outro documento da sua existência? Que pode interessar a homens civilizados o passado morto de uma nação bárbara e errante?

E, no entanto, eu não sei de iniciativa mais louvável, oportuna e meritória. Neste momento em que todos os povos se individualizam, procurando nas suas origens remotas as forças que os robusteçam, no futuro; nesta hora em que, entre nós, mais do que nunca, se fala em brasilidade, — constituiria, na verdade, inópia lamentável olvidar um dos raros elementos que ainda recordam a nossa condição de americanos. O sangue do indígena dissolve-se pouco a pouco nas ondas de europeus que vão progressivamente tomando posse da terra; as tradições que o reino conservou no período colonial desaparecem: por que não procurar, então, pelo menos, conhecer a língua formosa e perfeita em que se exprimia o nosso antepassado selvagem, para melhor podermos conservar as relíquias idiomáticas que ele conseguiu intercalar no idioma polido do conquistador.

Eu já escrevi, uma vez, e longamente, sobre os motivos que impediram a transformação do tupi em língua erudita, e, portanto, a glória, única no continente, de termos uma língua nacional. Tendo verificado, desde Anchieta, a sua perfeição, que alguns comparavam à do latim, procuraram os jesuítas torná-lo um dos elos entre o bárbaro e o homem civilizado, adotando-o nas suas predicas e na conversação corrente. No século XVII, mesmo nos centros brasileiros mais populosos, se falava mais a língua do selvagem que a do branco. O selvícola rezava ao Deus do conquistador, na língua do povo conquistado. O colono, chegando ao Brasil, aprendia o idioma do bugre para entender-se com ele. E de tal modo se universalizara essa prática inteligente, que se Pombal não tem substituído os discípulos de Loiola pelo clero regular português, de medíocre ilustração e privado do espírito cosmopolita, o Brasil possuiria hoje, possivelmente, uma língua, sua, formosa, pura e maleável, e mais afeiçoada às vozes e às coisas da sua Natureza.

O estudo do tupi em nossas escolas superiores radicaria o brasileiro ainda mais profundamente à sua terra. Conhecendo-o, ele aprenderia a amar esses vocábulos que o português adotou, e que sobreviveram, emprestando maior doçura à nossa linguagem. E, sobretudo, acabaria com esse costume, impatriótico e de mau gosto, de substituir os belos e característicos nomes geográficos, ainda existentes no sertão, por patronímicos de ocasião, que não constituem senão expressões de lisonja rasteira e servil. E nem se diga que inovaríamos alguma coisa nesse interesse pelo passado. Enquanto esquecíamos, até ontem, o homem e a língua que errava ou reboava por estas montanhas antes da chegada do colonizador, havia quem deles se lembrasse. Há poucos dias, ainda, informava o professor José Oiticica ter viajado para a América do Norte, procedente de Mato Grosso ou do Paraná, um sábio americano, o qual subsidiado pela Fundação Rockfeller, passara quatro anos entre os nossos índios caigangues, unicamente para lhes estudar a estrutura do idioma. Esse filólogo levava para a América do Norte numerosos discos em que havia colhido os fenômenos que reputara mais curiosos e característicos. E, se há quem se interesse dessa maneira, pelo que nos pertence, por que não estudaremos, também, nós próprios, os mistérios das nossas origens?

Prática, assim, obra de sabedoria e de patriotismo o paulista, ensinando ao seu filho a língua do nosso avô bronzeado e bravio. Que ele tenha na boca e na pena o idioma que Martim Afonso falava em São Vicente. Mas que conserve, também, no coração e na memória, aquelas vozes de paz, ou de guerra, que Tibiriçá fazia reboar em Piratininga.

“COPEBA, ARICOBÊ, COBÉ, PAHY...”

O Peru consagra anualmente, em junho, um dia aos índios mortos e vivos, realizando com grande pompa uma festa cívica de alta e comovedora significação. Instituída nos tempos coloniais para aproximar o indígena em estado selvagem daquele que já se havia agregado à civilização, veio essa cerimônia atravessando os séculos, como sinales tradição popular. A partir de 1930, porém, resolveu o governo reavivar a sua expressão política. E uma parte da população de Lima transporta-se, nesse dia, para o planalto de Amacais, a fim de participar dessa homenagem aos seus antepassados e que o é, dessa maneira, aos elementos humanos que contribuíram para a formação da nacionalidade.

Há seis ou oito anos houve no Rio de Janeiro um movimento em favor da raça negra. Jornalistas sentimentais e de boa vontade lembraram, mesmo, nessa ocasião, que se devia erguer um monumento à “Mãe Preta”, isto é, àquelas velhas africanas que amamentaram os ioiôs e acalentaram as iaiás, contando-lhes as histórias de princesas e príncipes encantados que eles e elas ficaram esperando pelo resto da vida, e que foi uma das origens da nossa mentalidade romântica. Inicialmente generosa, a ideia morreu de ridículo. Um monumento com uma preta em saia e camisa de rendas numa praça pública não deixaria de ser grotesco. Bastaria, talvez, acocorar no alto de um pedestal uma dessas melancólicas figuras decorativas que o Rio ainda possui, e que se encontram aqui e ali, à noite, à porta dos cinemas de subúrbio ou em frente à estação das barcas de Niterói, diante de um fogareiro fumegante, vendendo bolo grelhado aos notívagos.

Mais razoável seria, evidentemente, que se levantasse um monumento ao índio, à raça autóctone, como fez o México, e nos dá o exemplo o Peru, com a festa anual em que o glorifica. O índio, tapuia ou tupi, era o dono da terra quando o europeu chegou, e trouxe o africano. Apesar das nossas veleidades étnicas, considerando-nos uma nação branca pelo sangue, a verdade é que o caboclo dorme desconfiado, no canto escuro da nossa psiché. Em um livro interessante, o Brasil na América, Manuel Bomfim iniciou, pouco antes da sua morte, uma campanha para restituir a esse elemento étnico o lugar que lhe cabe legitimamente na história da nossa formação. Mais hábil do que o espanhol, o português em vez de exterminar coletivamente o indígena, como aquele fazia, procurava incorporá-lo pela mestiçagem, que começou muito cedo. Nove meses após o desembarque dos degredados que Cabral deixou em Porto Seguro, já havia mamelucos no Brasil. A descendência de João Ramalho, ao sul, e a dos Albuquerques, ao norte, demonstram essa capacidade de absorção do colonizador lusitano. Enquanto os espanhóis escorraçavam os íncolas da cordilheira, Diogo Álvares estabelecia seu lar entre quatro folhas de palmeira e Martim Soares Moreno dançava nu, com os tupinambás, nas areias de Mucuripe. No primeiro século da descoberta a fusão de indígenas e portugueses estava consumada.

Por que, pois, não destinarmos um dia do ano à glorificação do índio? O negro tem já a sua festa a 13 de maio, quando se comemora a sua libertação. O branco tem todos os dias que Deus dá. Quem conduziu as bandeiras paulistas através do deserto verde, e encaminhou o colono nas entradas do norte? Foi o índio domesticado, que, orientando e carregando a bagagem do sertanista, era, aqui, o seu cão e o seu cavalo. É verdade que, uma vez por outra, ele assava e comia um português, depois de lhe haver dançado em torno. Mas isso era, já, um modo de cruzar o sangue.

Conta-se que, no meado do século passado, foi a Londres, em visita à rainha Vitória, a rainha das ilhas Sandwich. Era uma negra de gaforinha alta, dentes brancos e olhos de clara de ovo. Recebida no palácio real, confessou ela, com certo orgulho, que também possuía nas veias um pouco de sangue inglês.

— Vossa majestade? — teria indagado, no seu espanto, um dos ministros.

— Eu, sim.

E, num sorriso, com a graça antropófaga de todos os dentes:

— Não sabiam que foi meu avô quem comeu o capitão Cook?

Instituamos, pois, o Dia do Índio, contra cujos descendentes Gregário de Matos escreveu o soneto cujo decassílabo final dá título a esta crônica. E nesse dia festejemos o Tamoio, o Tupinambá, o Caueté, o Tupiniquim, e mesmo o “vil Aimoré”, dos versos de Gonçalves Dias, os quais, com a sua tangapema e com a sua dentadura afiada, foram, no mundo, a primeira afirmação da nossa nacionalidade. Isso é preferível à ideia de homenageá-lo de outra maneira, investindo-o, como se pretendeu, das funções de Pai Noel brasileiro.

Mesmo porque, se o índio, embora em sonho, se apanhasse com os brinquedos destinados aos filhos dos brancos, nunca mais criança da cidade veria brinquedos em noite de Natal!

PANTEON, PARA QUÊ?

Em carta dirigida à associação Amigos de J. Alberto Torres, o ex-deputado Fidelis Reis, que é um dos quatro ou cinco sonhadores sinceros deste país, confessa haver preparado em 1920 para apresentar à Câmara, um projeto de lei criando o Panteon Nacional.

E eu, que sempre saio a aplaudir este incorrigível idealista toda a vez que ele sonha acordado, tenho o desgosto de discordar, agora, da sua lembrança e de declarar-me pronto a combatê-lo se ele porventura, ou por desventura, a renovar, aqui fora, perante o país.

Um homem de talento ou de boa vontade tem o direito de movimentar a maquinaria da sua imaginação. Os indivíduos que dispõem deste aparelho são, mais ou menos, como aquele célebre cavaleiro de Rochas, que pôs em alvoroço, há quarenta anos, a imprensa parisiense. A quem o visitava no seu vasto apartamento, mostrava esse famoso prestidigitador os seus gabinetes de estudo, onde os tapetes e bambinelas se estendiam preguiçosos, pelo soalho, pelas janelas, pelas paredes. Em cada um deles se estampava, como nas tapeçarias comuns, uma cena, um objeto, uma paisagem: moinhos, pastores, rebanhos, castelos, florestas, lagos em que flutuavam cisnes indolentes, árvores em que se agasalhavam pássaros satisfeitos.

De repente, o prestidigitador vibrava a sua vara mágica, e tudo aquilo se punha em movimento: cisnes, pastores, moinhos, rebanhos, animavam o panorama em que se manifestavam todas as características da natureza e da vida... As pessoas que dispõem de imaginação, fazem, repito, como o cavaleiro de Rochas, e como Jeová: tiram um mundo do nada. Mas o meu ilustre amigo, Sr. Fidelis Reis, ia abusando um pouco das suas faculdades criadoras, com essa ideia de instituir um Panteon Racional.

Panteon, para que heróis? Para que sábios? Para quantos e quais gigantes do pensamento e da ação? No Brasil é perigoso, e sê-lo-á ainda por muito tempo, qualquer ideia de consagração definitiva dos homens.

Nós não temos uma consciência histórica, nem espírito crítico para exercer a justiça que a História requer. Somos impulsivos e demasiados em tudo, e, como todos os povos que possuem essa índole, levianos e superficiais. Se tivéssemos Panteon, ele ficaria repleto em menos de dez anos. Um político assassinado, um aviador caído das alturas, um namorado morto pelo futuro sogro; toda morte que comovesse a população e enchesse algumas colunas de jornal, acabaria levando a vítima ao Panteon, sem que se levantasse uma voz contra a leviandade e o sacrilégio. Nós somos pela ignorância dos dirigidos e pela leviandade dos que orientam o povo que se acha, no mundo, neste momento, mais exposto a praticar asneiras sentimentais, e a movimentos de loucura coletiva. No fim de dois meses, ninguém se lembraria mais do herói, do sábio ou do mártir; no fim de um ano, todos opinariam pela sua retirada do Panteon: mas, nos primeiros dias, seria enforcado, ou linchado na rua, o homem que tivesse uma palavra de reflexão e de bom senso. A imprensa, cuja missão deve consistir em disciplinar as paixões populares, tornou-se, entre nós, um dos mais perigosos elementos de desequilíbrio social, veiculando as sugestões mais exageradas e não raro mais idiotas. Seria ela, por isso, o maior inimigo do Panteon e da sua gravidade de Monumento dos Monumentos.

Se qualquer período da nossa história não aconselhava a instituição dessa casa para os grandes mortos, o atual ainda menos o aconselha e requer. As crises revolucionárias são acessos de febre dos povos. Quando um povo tem febre, é acometido de delírio. E quando delira, faz coisas que a razão condenaria. É Renan quem recorda, se não me engano, que durante a Revolução, Robespierre e Desmoulins eram considerados grandes escritores da França. Havia, diz ele, “glórias decretadas por dois anos”.

E é essa, em toda parte, uma das consequências dos movimentos sociais realmente profundos. Na sua sentimentalidade e nos seus impulsos, o povo e a imprensa, — que é, infelizmente, no Brasil, feita para lisonjear e não orientar o povo, — levariam ao Panteon quantos indivíduos lhes ferissem, com o espetáculo da sua morte, sem prejuízo dos erros da sua vida, a imaginação exaltável. A Santa Casa acabaria mesmo sofrendo prejuízos consideráveis, pelo número de corpos de que o Panteon privaria os seus cemitérios.

Ponha, pois, de lado, o meu ilustre amigo Sr. Fidelis Reis a lembrança que lhe ocorreu. “Quando revolveres até o fundo os despojos que eu guardo, — diz São Gregário Magno em um epigrama que escreveu em grego, e que põe na boca suja da terra; — quando revolveres até o fundo os despojos que eu guardo, não terás como proveito senão a fadiga: eu só contenho ossos!” Assim é a História do Brasil. Ela contém tão poucas glórias legítimas, para tantos ossos, que não vale a pena, ainda, remexer a terra, acordando os que nela dormem...

Antes do Panteon, procuremos, pois, formar homens que sejam dignos dele.

OPERÁRIOS E CAMPONESES

Um dos mais graves problemas do Brasil na hora presente, e que já vinha interessando as elites europeias, desde o meado do século XIX, é o êxodo das populações rurais em direção às cidades, ou, mais tecnicamente, a transformação do agricultor em operário. René Bazin chegou a escrever um interessante romance, Donatienne, em que expõe essa tese, que Tolstoi, já, antes dele, debatia vivamente sob o patrocínio das belas letras, sob a denominação de regresso à natureza.

Entre nós, esse despovoamento dos campos assumiu, já, proporções alarmantes. O interior do país, — as fazendas, os engenhos, as propriedades agrícolas de toda a ordem, — vai caindo aos poucos nas mãos dos colonos ou das grandes empresas estrangeiras. O filho do colono, nascido brasileiro, desce, porém, para o litoral, abandonando o latifúndio paterno a colonos novos, ou a novas empresas que vão estendendo os tentáculos pelo país. E como se isso não bastasse, o sorteio militar encarrega-se de arrastar os homens válidos das fazendas e dos roçados para o tumulto da vida urbana, sem o cuidado de restituí-los ao trabalho rural em que os foi buscar para a profissão estéril e temporária das armas.

Há, todavia, um fator mais importante desse despovoamento do interior brasileiro: a falta de uma legislação que dê maiores garantias à atividade do homem do campo que trabalha para outrem. As conquistas que as classes trabalhadoras têm obtido no Brasil vêm se limitando, na verdade, unicamente às oficinas, às fábricas, aos trabalhos urbanos. O beneficiado, até hoje, tem sido o padeiro, o alfaiate, o pedreiro, o estivador, o empregado no comércio, para não falar nos ferroviários, que se encontram perfeitamente organizados e com os seus direitos definidos. O trabalhador rural, esse, a não ser em São Paulo, em que se observa o regime legal dos contratos, que o Estado fiscaliza, não obedece a nenhum processo, que não o arbítrio do patrão. Não há regulamentação de salários, nem contratos, sendo o trabalhador despedido a qualquer momento, sem a garantia, sequer, do pagamento do trabalho prestado. O direito entre eles é uma hipótese; e o dever é outra, que lhe é equivalente.

A essa desigualdade de vida entre o homem que exerce a sua atividade no campo e aquele que a exerce nas cidades, é que se deve, em parte, o desequilíbrio da nossa vida econômica. Informado das vantagens que lhe oferecem os centros populosos, onde alguém zelará pelo seu direito e não correrá o risco de ir parar na cadeia no dia em que reclamar imperativamente o que lhe pertence, o homem do campo não suporta mais o esfalfamento nos misteres da lavoura, a que se acha escravizado. Daí, naturalmente, o êxodo para os centros industriais, para os portos e cidades de grande movimento, com prejuízo da matéria prima, que só a terra fornece. É possível que, mais tarde, na primeira crise, o sertanejo emigrado se arrependa de haver deixado a escravatura com pouco pão pela liberdade sem nenhum; mas já será tarde. Algumas pessoas têm voltado do Inferno; mas ainda ninguém abandonou a tentação das cavernas iluminadas à luz elétrica para olhar a campina ou a aldeola natal, dourada de sol e prateada de lua. Urge, pois, uma regulamentação do trabalho rural, no país inteiro. À semelhança do que sucede na Rússia, onde, na expressão de Zamiatine, os camponeses fizeram uma República para os operários, o nosso trabalhador de enxada ou de arado tem sido apenas o adubo para as conquistas do proletário das cidades. Na família de Jacó, ele é o José. E José continua, no Brasil, vendido, ou, no mínimo, esquecido pelos irmãos.

UM PALADINO DO PARLAMENTARISMO

O Sr. Maurício de Medeiros, antigo deputado federal e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, acaba de publicar um livro que constitui elogiável novidade em nossa bibliografia política. Novas revoluções virão... é o seu título. Ao contrário, porém, do que se poderia imaginar e, mesmo, esperar de um homem de partido, não se trata, posta à margem uma ou outra injustiça ou erro de julgamento, de uma obra de combate a indivíduos, mas de propaganda de ideias. O Sr. Maurício de Medeiros é partidário do parlamentarismo e procura demonstrar que todos os males da República, em quarenta e um anos, provieram do regime presidencial, que considera incompatível com a nossa estrutura econômica e com a nossa formação social.

Utilizando todos os recursos da lógica inteligente, passa o ex-deputado fluminense em revista os diversos governos que teve a República, tentando provar que o defeito não se achava nos mecânicos, mas sim na máquina, isto é, que o mal estava no sistema e não nos homens. “Tome-se individualmente qualquer dos presidentes, — diz ele, — tome-se individualmente qualquer dos presidentes fora dos cargos, excelentes pessoas; na presidência, vão sofrendo pouco a pouco a nefasta influência do regime, cometendo arbitrariedades, violências, atos de força injustificáveis, que resultam de uma espécie de vertigem do poder que o presidencialismo confere. E passa em revista os presidentes, e os seus erros, pelo abuso de autoridade, permitido pelo presidencialismo: Deodoro, impondo a sua vontade, indo até ao golpe de Estado; Floriano, implantando a ditadura férrea, prendendo e deportando congressistas; Prudente de Morais, sufocando com a sua mão de ferro o militarismo, instituído pelo seu antecessor e recebendo, como consequência, a hostilidade das classes armadas; Campos Sales, estabelecendo a política dos governadores, desvirtuamento clamoroso do sistema republicano; Rodrigues Alves, dando oportunidade ao aparecimento da advocacia administrativa, lançando o país em empreendimentos materiais que a economia nacional não comportava; Afonso Pena, querendo impor à nação o seu sucessor e morrendo do parto dessa candidatura, a qual, por sinal, nasceu morta; Nilo Peçanha, inaugurando o regime do suborno na imprensa, para assegurar a eleição do Marechal Hermes, por imposição de Pinheiro Machado; Hermes da Fonseca, entregando o país aos seus companheiros de classe, sem a menor consulta à opinião nacional; Wenceslau Braz, escolhendo, também, o seu sucessor na quietude do palácio Rio-Negro, em Petrópolis; a interinidade de Delfim Moreira e, finalmente, os três últimos presidentes de vontade inflexível e obstinada, que sem um aparelho que lhes controlasse os caprichos e ressentimentos, arrastaram o país à revolução. “O regime presidencial dá uma tal majestade aos presidentes, — insiste o sr. Maurício de Medeiros, — que estes se sentem diminuídos em consultar e seguir a opinião pública”.

Acha o antigo deputado que o parlamentarismo corrigiria tudo isso, fazendo voltar ao leito do rio às águas que extravasaram, e que alagaram todas as províncias da nossa atividade. Recorda que a nação brasileira nasceu e cresceu à sombra do regime parlamentar, o qual deu ensejo à formação de grandes figuras políticas, e permite a fiscalização constante do governo pela opinião nacional. Mostra, em suma, que, com a volta ao parlamentarismo, desapareceriam os males principais que nos vêm afligindo, e que, com ele, teríamos poupado quase todos os desastres consideráveis que perturbaram a vida do país nos seus quarenta e um anos de regime republicano. E conclui dizendo que, ou ele vem agora, ou... outras revoluções virão.

Há uma velha e cansada anedota em que certo indivíduo, conhecido pela sua vida boêmia, dizia a outro, de vida igualmente irregular:

— Eu, se fosse Presidente da República, ou pelo menos, Chefe de Polícia, mandaria pegar todos esses sujeitos que fazem vida noturna, todos esses maridos bilontras, punha-os a bordo de um navio velho, e mandava afundar a embarcação com todos eles fora da barra, em alto mar!

— É, — observa o outro, — eu sei por que você diz isso.

E piscando o olho:

— Você diz isso porque sabe nadar!...

O parlamentarismo é como ninguém ignora, favorável ao sucesso rápido e seguro dos espíritos ágeis, dos argumentadores perigosos, dos que sabem, em suma, fazer da palavra uma terrível arma de combate. E o Sr. Maurício de Medeiros é um dos oradores do gênero.

É, pois, dos que desejam o naufrágio, porque sabem nadar...

O DISCÍPULO DE DIÓGENES

Fez alto, ontem, no largo do Campinho, em Jacarepaguá, um discípulo de Diógenes, isto é, um homem que vive em um tonel, e que o vem arrastando flegmaticamente pelo mundo. O jornalista que o entrevistou, considera-o mais interessante do que o filósofo de Sinopa. “O tonel do grego, — informa o confrade, — era uma coisa comum. Servia de habitação, e nada mais”. E há, nessa informação, um pequeno engano, pois que, segundo os melhores historiadores, consultados e interpretados por Boissonade, o tonel de Diógenes era, também, a sua tribuna, que ele rolava e erguia pelas praças e ruas de Atenas. Se o auditório lhe fugia, o orador ia atrás dele. E levava, nisso, enorme vantagem sobre os demais dou- trinadores, cuja tribuna de pedra quedava imóvel, na ágora.

Deixemos, porém, o filósofo antigo para tratar unicamente do seu imitador bizarro e tardio, o qual se chama Leopoldo Carlos Lantz, é alemão, de Municli, e viaja acompanhado pela mulher e por uma filhinha de três anos, e auxiliado por um burro, que arrasta o tonel. Tendo partido de Berlim há sete anos, já percorreu, a pé, carregando ou seguindo a sua casca de caramujo, vinte e dois países. E conta percorrer o mundo inteiro dentro de mais de uma década, quando, então, deixará em repouso a carcaça, a filha, a mulher, o tonel e o burro.

Que leva, porém, esse Diógenes sem lanterna e sem espírito filosófico a empreender tão longa e tormentosa jornada? A paixão da glória, a ânsia de renome, a fome de popularidade! Candidato à notoriedade literária compreendeu a impossibilidade de tornar-se conhecido escrevendo obras de imaginação. Queria fazer um livro que levasse o seu nome aos quatro cantos da terra. Mas verificou, parece que lhe faltavam asas ao pensamento, e que melhor seria, talvez, ir levar esse nome, ele próprio, às cinco partes do mundo, com a ajuda do calcanhar.

— Quero fazer um livro que interesse o mundo, — explicou ele ao redator da A Noite, que o entrevistou: — Um livro comum, bem ou mal, todos escrevem; meu plano, porém, é mais vasto. Certa vez, em Munich, pus-me a pensar seriamente na maneira mais eficiente de realizar uma obra que interessasse a todos os povos. Para ser assim, tinha eu que fazer coisa melhor que tudo aquilo existente desde séculos, nas bibliotecas do mundo inteiro. Não era fácil a tarefa. Todos os povos têm os seus grandes nomes, os seus gênios, os seus expoentes. A França viu e admirou Victor Hugo; Shakespeare empolgou a Inglaterra; Cervantes conquistou a Espanha; Dante maravilhou a Itália, e Goethe sublimou a Alemanha... O que me restava, portanto, era fazer coisa nova, sensacional, que fosse inédita, completamente inédita. E imaginei escrever um livro com a própria vida, colhida ela, em todos os seus aspectos mais importantes, por esse mundo em fora.

Leopoldo Carlos Lantz, aparentemente pretensioso, é assim, um homem profundamente modesto. Queria escrever um livro maravilhoso, original, imprevisto. Queria ter a celebridade de Shakespeare, de Hugo, de Goethe ou de Dante. Reconheceu que não conseguir ia realizar este sonho. E em lugar de meter mãos à obra, meteu o pé no mundo. Faria com as botas o que os outros haviam feito com a pena. Seria, desse modo, o Cervantes do seu século, sem repartir, todavia, à semelhança de D. Quixote com o Rossinante, a sua glória com o burro, que, afinal de contas, também vem fazendo a viagem sem o menor intuito de notoriedade literária.

A aventura do viajante de Munich apresenta, ainda, um aspecto mais delicado.

— “Este povo, — disse ele ao jornalista carioca, indicando os curiosos que o cercavam, — este povo sente e vê os sacrifícios a que nos expomos. Ia uma mulher andar léguas e léguas, por países estranhos, enfrentando vicissitudes e perigos, por amor de mim e de uma ideia. Vê minha filhinha, na inocência de seus três anos, caminhando sempre, sem conforto, sem agasalhos, vivendo a vida livre dos povoados, raramente, e da natureza quase sempre, sem brinquedos, sem outras crianças para os recreios, sem uma caminha fofa e limpa, exposta ao tempo e, às vezes, até curtindo fome na solidão das florestas. Diante de tudo isso, qual é o cérebro que não se agita? Qual o coração que não se comove? Se eles se agitam e se comovem, é porque sentem, e se sentem, é porque se impressionam com o meu livro vivo que a vida escreve. Tudo isto estou realizando porque era mister realizar uma coisa nova”.

Examinadas essas palavras sob o seu aspecto singelamente humano, que conclusão delas se tira? Esta, simplesmente: que se trata de um cavalheiro que pôs todas as coisas sagradas da vida ao serviço de uma excessiva e inócua vaidade literária. Para que o seu livro seja lido, e o seu nome conhecido no mundo, sacrifica a mocidade da esposa e a infância da filha pequenina, arrastando-as pelo mundo dentro de um tonel, como os ciganos que andam de aldeia em aldeia exibindo um urso ou um macaco. Por mais dedicada que lhe seja a companheira, ela não deixará de sentir, no fundo da sua alma, profunda revolta pelo destino que lhe foi reservado. Por que anda ela a rolar com a filhinha, pelos barrancos do mundo, dentro de uma pipa, sem conforto e sem pão, puxada por um burro ou por um marido? Unicamente para que o nome deste amanhã seja citado, comentado, discutido, coberto de admiração e de glória! Se é para isso, ele que vá sozinho, ou com o burro, — se é que o burro, também, já não filosofou sobre a matéria, e não resolveu, por seu turno, protestar a coice contra uma aventura em que não tem interesse nenhum.

Mas a vingança da senhora, da menina e do burro estão já asseguradas. O esforço de Leopoldo Carlos Lantz será inútil. Terminado o seu raid em torno da terra, puxando o tonel, terá ele que andar muito mais ainda, atrás de editor para o livro. E se o encontrar, pode estar certo que a sua nomeada não será mais vasta que a do poeta que tiver escrito, em Munich, o pior livro de versos do ano. Se o seu nome, após quase dois lustros de marcha, continua desconhecido à sua passagem, que repercussão pode ter quando o livro for editado, daqui a dez ou quinze anos?

A Fama, quando a serviço das letras, é altiva demais, para que consinta que a conquistemos com os pés.

IDENTIFICAÇÕES

A descoberta e o reconhecimento do milionário Paulo Prado do Amaral por uma senhorita de dezessete anos, que, dessa maneira, meteu a polícia de S. Paulo e a do Distrito Federal nas duas sandálias do seu pé elegante e miúdo, tem alarmado, parece, os estudiosos, e os curiosos, que se ocupam da psicologia feminina. O caso é, na verdade, daqueles que reclamam exame e reflexão. Um rapaz espirituoso, mundano, alegre, bem vestido, desaparece há quase dois anos, da capital paulista. Recebida a denúncia desse desaparecimento, as autoridades põem em campo os seus investigadores mais argutos, que se espalham pelas cidades de quatro Estados, e vêm juntar os seus esforços aos que já emprega, no mesmo sentido, no Rio de Janeiro, a polícia local. Centenas de homens experimentados nesse gênero de pesquisas varejam casas, visitam fazendas, realizam sindicâncias, efetuam diligências, sondam, farejam, perquirem. E tudo inútil. Tudo em vão. E eis que, de súbito, ao passar em um bonde, uma linda moça, quase menina, descobre, em S. Paulo mesmo, um sujeito magro, imbecilizado, a cabeça raspada, todo ele transpirando pobreza e miséria, e exclama:

— Gente, é o Paulo!...

E era o Paulo mesmo. Era Paulo Prado do Amaral, que, de tão diferente do que era já nem se conhecia a si mesmo, nem sabia de onde vinha, nem para onde ia, na vida errante que levava. A moça, porém, não só o denunciou aos outros, mas até a ele próprio, que havia olvidado, no tumulto dos sofrimentos passados, a sua condição anterior!

A ciência oficial estabeleceu, diz-se, a identidade do desconhecido, confirmando, dessa maneira, a descoberta prodigiosa da moça. Paulo Prado do Amaral deve ser mesmo, Paulo Prado do Amaral. Eu vivo, porém, de recordações. O dia de hoje não me serve senão para evocar o de ontem. Daí a recordação, que esse episódio me despertou, de outro ocorrido no norte, e que se desenrolou em duas cidades em que vivi.

Nos últimos dias da Monarquia, foi ter a Granja, no Ceará, como juiz de direito, o Dr. José Antônio Coimbra (creio que era esse o seu nome por inteiro), magistrado pernambucano, tio do Dr. Estácio Coimbra. Após alguns meses de permanência aí, serviu ele de padrinho a um menino, filho do comerciante Manuel de Oliveira, homem abastado e fazendeiro “de mais de mil cabeças”. Removido para o Pará, assistiu o Dr. Coimbra, em Belém, à proclamação da República, sendo, mais tarde, nomeado desembargador. Mesmo assim, o antigo juiz de Granja não esquecia a sua modesta comarca de outrora, à qual ia de vez em quando, para rever os amigos, e distribuir sua bênção pelos afilhados, vendo-os crescer na paz do Senhor. Até que, um dia, foi nomeado chefe de polícia do Pará, cargo que ocupava quando recebeu uma carta do seu compadre Oliveira. Fazia-lhe este uma comunicação, e dirigia-lhe um pedido. O José, seu filho, e afilhado do desembargador, havia partido para o Amazonas a dois anos, de onde lhe escrevera apenas uma ou duas vezes. Pessoas procedentes do Pará diziam-lhe, entretanto, terem-no visto em Belém, fingindo, todavia, o José não as conhecer, com o propósito, naturalmente, de não mandar notícias à família. Diante dessa atitude do filho, ele, Manuel de Oliveira, pedia ao seu compadre que, usando da sua autoridade de chefe de polícia, fizesse embarcar o José para Granja, por bem ou por mal. Sentia-se velho; a mulher morrera; a filha estava moça e a avó, que criava esta última, não duraria muito. Vindo o José, ele lhe entregaria a gestão dos seus bens, e, então, fecharia os olhos, descansado.

O desembargador tomou boa nota da carta, e, semanas depois, ao passar pela Rua João Alfredo, em Belém, viu, à esquina da travessa Campos Sales, o José. Encaminhou-se para ele:

— Então, José, como vai você?

— José? O senhor doutor perdoe, mas, eu não me chamo José.

— Você não é o José, filho do Manuel de Oliveira?

— Eu? Não, senhor. Eu me chamo Francisco Torquato, e sou do Rio Grande do Norte.

O desembargador sorriu.

— Ali! Até comigo você quer repetir a brincadeira? Mas perde o tempo. Eu tenho ordem de seu pai, de mandá-lo para Granja, por bem ou por mal.

O rapaz quis insistir, mas, ante a ameaça do chefe de entregá-lo ali mesmo à ordenança, resolveu segui-lo até à Chefatura, onde recebeu uma reprimenda, além das diversas informações sobre o seu destino, se fosse para Granja. Refletiu um pouco, e deliberou:

— Bom, eu vou.

Nesse mesmo dia instalou-se na casa do desembargador, à espera de navio para Camocim. Pediu algum dinheiro, por conta do pai. Nas palestras com o padrinho, inteirou-se da situação da família. Soube que tinha uma irmã ainda moça, chamada Mundica. Soube que a avó materna ainda vivia. Pediu informações sobre o velho. E, no dia em que houve vapor, embarcou, levando, com o dinheiro do pai, um presente para cada pessoa da casa. Chegado a Granja surgiu à porta do trem. Um velho encaminhou-se para ele.

— Meu filho!

— Meu pai!...

E choraram os dois, de contentes.

O abraço maior foi, porém, o de Mundica. Beijou-a muito, e de tal modo que foi preciso arrancá-la dos braços dele. Entre a estação e a cidade, a pé, os conhecidos saudavam-no:

— Oh, Zé, como foste de Amazonas?

José fazia para-luz com a mão aberta, e indagava:

— Quem é meu pai?

— É o Gervásio... Não te lembras do Gervásio?

José abria os braços:

— Oh, Gervásio velho, como vai isso? Estás tão bonito que eu quase não te reconheci!...

E assim, ia restabelecendo as velhas amizades, e nas palestras, ia se inteirando do seu passado. O que mais o seduzia em Granja era, todavia, a irmã. Beijava-a de manhã e à noite. A moça apareceu com uma ferida na perna, e ele próprio quis fazer os curativos, recorrendo às cócegas mais engraçadas, dizendo-lhe que era para não doer. De vez em quando vendia um boi do velho, e guardava o dinheiro. Na casa de comércio, abria garrafas do melhor vinho. O pai estranhava aquelas extravagâncias; mas, se o rapaz fosse embora outra vez, não seria pior? Um dia, a avó morreu. E ninguém, na casa, chorou tanto como o José!

Ao fim de um ano, uma carta procedente do Amazonas veio perturbar aquela paz familiar. Era assinada por ele, José, comunicando que estava de viagem para Belém, de onde embarcaria imediatamente para Granja.

O velho Oliveira fechou a cara.

— Olha isto, José!

José leu a carta, e riu:

— Mas, vejam só o que é este correio, hein? Uma carta que eu escrevi há um ano e meio, agora é que chega! Sim, senhor!

— Mas vem datada deste ano... — obtemperou o velho.

José não se atrapalhava:

— Eu não tenho dito ao senhor? Aquele Amazonas é de tal maneira, que o sujeito, caindo ali, nem sabe mais em que ano está! Eu escrevi isso em 1901, e pensava que era 1902. Só vim apurar o engano depois que cheguei a Manaus!

Uma semana depois, porém, ao acordar, o velho Manuel de Oliveira verificou que o filho não tinha ido abrir a casa de comércio. Encaminhou-se para lá. O cofre estava aberto, e sem os quinze contos da venda de uma boiada, negociada na véspera. No lugar do dinheiro havia uma carta. Dizia assim:

“Eu não me fiz José porque quisesse. Foi o chefe de polícia do Pará que me obrigou a isso. Entre o xadrez e vir para Granja, preferi este alvitre. Estava desempregado, e vim. Vou-me embora, levando o pagamento do meu trabalho. — Adeus, papai”.

Quem quase morreu de chorar foi a Mundica.

O DIA DO PESCADOR

Os sociólogos consideram uma das horas de maior significação na história do progresso humano aquela em que o homem inventou a roda. Com ela, resolveu ele o problema da remoção dos pesos, e o das viagens. Com ela, podia ele transportar os madeiros, e vencer as distâncias sem ferir os pés nos caminhos. Ela inaugurava, para ele, a era da escravização da rena, do boi e do cavalo. A roda abria, em suma, os novos horizontes do mundo. Ainda não houve, todavia, quem assinalasse o papel representado pelo anzol na evolução da Humanidade. E este é, no entanto, quase tão considerável como o da roda.

O primeiro anzol foi, provavelmente, fabricado de osso. O bárbaro trabalhou-o com a pedra, como se fizesse uma ponta de flecha. E lançou-o ao rio, com uma fruta ou um pedaço de carne de alce. E que alegria teria sido a sua, quando puxou a corda fina e grosseira, tecida com os seus próprios cabelos, e viu, debatendo-se na extremidade, o peixe aprisionado! Nessa noite acendeu-se uma fogueira nova em frente à gruta do troglodita. E o nosso antepassado dançou e urrou feliz, festejando a conquista de mais um engenho que o viria libertar da fome e da morte.

A comemoração, amanhã, do Dia do Pescador, vem por em relevo a importância do anzol como fator de Civilização. Quando o homem conseguiu fundir o metal, dobrou-o e o anzol foi aperfeiçoado. O aparecimento da barbela representa um progresso considerável na arte da pesca. O homem primitivo que introduziu essa modificação no benemérito instrumento de pesca não ligou o seu nome a essa descoberta. Ela foi, entretanto, mais útil ao seu tempo do que, ao nosso, o rádio ou a aviação. Graças à barbela o peixe não saiu mais do anzol, depois de apanhado. E isso facilitou ao bárbaro o problema da alimentação, que era, aliás, o problema capital da espécie humana.

Olhando, hoje, um anzol, tão singelo na sua curvatura, enfeitado apenas pela barbela, ninguém imagina o que representa aquilo de esforço mental, de espírito inventivo. Ele vai ser, porém, amanhã, abençoado festivamente, pelo Cardeal Arcebispo, diante do mar e dos homens. E, nesse ato, o homem reconhece quanto lhe deve. E não somente como arma de guerra contra a fome, mas, como instrumento do seu próprio aperfeiçoamento moral.

O anzol tem, na verdade, atuação importante na formação do caráter humano. Seria difícil, hoje, verificar se foi à paciência que inventou o anzol, ou se foi o anzol que inventou a paciência. Quando o homem aprendeu a pescar, aprendeu a esperar. O troglodita sabia os caminhos da selva por onde passara o urso. Mas não conhecia os caminhos da água por onde passaria o peixe. Quem pesca é como quem vai para o campo vazio colher o que não semeou. Por isso mesmo o pescador é, de todos os trabalhadores, o de destino mais vago. Quem lança o seu anzol à água não sabe nunca o peixe que vem. Não sabe, mesmo, se virá peixe algum. E foi, talvez, pelo que há de sonho na profissão, que Jesus, escolhendo entre os apóstolos o que devia ser o seu representante na terra, escolheu aquele que era pescador.

O cristianismo nascente fez do peixe o seu símbolo. Quando, em Roma ou em Antióquia, um homem calado queria dar-se a conhecer a outro, desenhava lentamente na areia, com a ponta do seu cajado, um peixe. Se o outro desenhava, em resposta, a mesma figura, é que se tratava de dois cristãos. Aproximavam-se, então, e entendiam-se. Não obstante isso, o cristianismo decretou a perseguição irremissível ao peixe. Cada quaresma representa, no fundo dos mares ou dos rios, um édito de Nero ou de Deocleciano. Jesus dizia ter vindo ao mundo para pescar almas, e os homens, que ele veio pescar, o mataram. O peixe faz o mesmo. Quando apanha um pescador, faz com ele, mais ou menos, o que faz o pescador quando apanha um peixe.

Nas selvas, há o dia da caça, e o dia do caçador. Nas águas o peixe quase não tem dia nenhum. Até o de hoje, que podia ser o dele, é do pescador, isto é, daquele que o persegue e o destrói. Um anel será abençoado pelo representante de Cristo, e lançado às águas. Diante desse anel de ouro, o peixe terá um movimento de alta sabedoria filosófica. Ao descobrir uma pérola no terreiro, o galo cie Lafontaine declara que preferiria um grão de milho. Ao encontrar o anel de ouro, o peixe reflete que melhor seria se lhe tivessem atirado uma minhoca. E, nessa reflexão, ele não faz, no fundo das águas, senão repetir o pensamento dos proletários aqui de cima, aos quais os que governam atira de vez em quando uma porção de direitos, quando eles preferiam que eles lhes atirassem um pedaço de pão.

Amanhã, cedo, as igrejas bimbalharão os sinos miúdos, em todos os outeiros católicos da cidade. Barcos de velas novas cruzarão a Bahia. São Pedro, padroeiro dos que pescam, terá a sua procissão no mar. Sacerdotes, vestindo a sua paramenta de festa, rezarão alto diante das ondas. Será o Dia do Pescador.

Tu, porém, irmão peixe, tremerás no fundo das tuas águas natais. Vai começar a devastação. No tempo de Santo Antônio, ainda vinhas à tona, escutar-lhe a pregação. Agora, quando te chega à voz de um orador sacro, mais fundamente mergulhas. E fazes bem. Deus, antigo amigo dos peixes e de quem os peixes eram amigos, está, hoje, do lado dos que têm o anzol...

A REVOLUÇÃO DE 1940

Em carta se não me engano a mme. de Charrière, contava Benjamim Constant haver conhecido um polonês, o qual lhe fornecera uma explicação perfeitamente aceitável das origens do mundo. Segundo esse filósofo cujo nome ficou ignorado, Deus havia resolvido fazer o mundo, e começou a reunir o material. Planetas, nuvens, homens, plantas e animais constituiriam peças da grande obra harmoniosa, cujo plano só ele conhecia. De repente, porém, Deus teve uma síncope, e morreu. E o material ficou para aí abandonado, sem préstimo conhecido, e a indagar, ele próprio, a razão da sua existência.

Toda vez que eu contemplo o panorama da sociedade contemporânea, vem-me, de súbito, à lembrança, a opinião do informante de Benjamim Constant. A impressão que ela me dá, é que, na sua primeira infância, teve ela, a organizá-la, um homem sensato, entendido no assunto. Repentinamente, porém, é esse especialista afastado, assumindo as suas funções alguns leigos audaciosos, copie não só desvirtuaram a educação do Homem, como ainda inutilizaram tudo que o seu antecessor havia feito de coerente e proveitoso.

A sociedade humana é, na verdade, uma das maiores tolices que pesam sobre o Universo. É provável que haja outras iguais; não existirá, porém, outra pior. Os sujeitos que a vieram orientando até aqui, têm se mostrado de uma incompetência abaixo de qualquer condenação. E o resultado é termos uma civilização que não é mais, aos olhos de um crítico imparcial, do que um conjunto de convenções e mentiras. O mundo vem andando tão errado, que estava no direito de dar contramarcha, voltar às origens, e quebrar a cara dos indivíduos que lhe imprimiram a atual direção.

Era nisso que eu pensava um destes dias ao conversar, num bonde, com algumas crianças que voltavam da sua escola primária. Entusiasmadas com a minha cara de analfabeto, procuraram elas mostrar-me os seus livros, e os seus cadernos em que se alinhavam as questões de Gramática, os problemas de Aritmética, e as lições de Geografia e de História. Duas delas discutiam se um dos problemas aritméticos estava certo ou não, e pediram a minha opinião. E eu não soube responder-lhes. Tudo aquilo que ali estava naqueles cadernos, que havia custado meses de atenção, de pavor e de suores frios àqueles pequenos, jamais me havia feito falta na vida. E aqueles meninos chegarão, com certeza, à minha idade, sem se servirem, uma vez que seja, de qualquer daqueles conhecimentos tão penosamente adquiridos, e que irão sendo, por isso, pouco a pouco, olvidados por eles mesmos.

Esse defeito do ensino provém, entretanto, da organização do magistério. O indivíduo que ensina as crianças, é um profissional, aprendeu para ensinar e acha que deve transmitir ao discípulo todas as minúcias da sua ciência. Se todos os alunos estivessem destinados a serem professores como ele, muito bem; mas, quase todos, senão todos terão de adotar outra profissão, outros meios de vida, nos quais se tornarão absolutamente inúteis cerca de oitenta por cento daquilo que lhes metem ou tentam lhes meter na cabeça.

O professor profissional é, assim, unia das superstições do nosso tempo. Cada um desses cavalheiros aprendeu profundamente a sua matéria. Dez ou doze deles, passam a ensinar um menino. Se o menino fosse excelente aluno em cada uma das disciplinas, como eles pretendem, acabaria sendo um sábio, pois saberia tanto como doze professores reunidos.

Houvesse hoje um cataclismo e mandasse Deus convidar-me, mesmo com ordenado pequeno, para reorganizar o mundo, e, particularmente, a sociedade humana, eu teria, já, o meu plano. A minha primeira portaria (os decretos seriam para o Todo Poderoso) seria acabando com o professor ado profissional. Para substituí-lo, nomearia indivíduos que tivessem vencido na vida, fazendo fortuna ou obtendo sucesso na sua profissão. Todos aqueles que pretendessem seguir a mesma carreira, se instruiriam com ele. Desse modo, cada um aprenderia apenas o que tivesse de utilizar. Todo o tempo consumido agora com o supérfluo, seria, então, empregado na aquisição do necessário.

Mas, esse tempo há de chegar. A revolução de 1930, feita pelos rapazes de vinte a vinte e oito anos, foi do Dr. Getúlio Vargas e assentou, como a Francesa, nos Direitos do homem: a de 1940, feita pelas crianças de oito a doze, será minha, e assentará nos Direitos do menino.

MALDITA SEJA A LEI!

Sem citar qualquer lei, qualquer decreto, qualquer autorização, ou qualquer precedente, o Interventor do Distrito Federal praticou, ontem, arbitrariamente, o ato mais legal da sua administração: aposentou, com os tristes vencimentos de professor da antiga Escola Normal, o cidadão José Francisco da Rocha Pombo.

Ao ler essa notícia nos jornais que circulam às primeiras horas da noite, eu vi justificado, mais uma vez, o meu horror à jurisprudência administrativa, com a inflexibilidade dos seus códigos, dos seus regulamentos, da sua superstição constitucional. E compreendi, ao mesmo tempo, a razão por que as artes e as letras prosperam sob os governos absolutos, e definham, e às vezes, perecem, quando começa a levantar-se em torno delas a teia de aranha das legislações democráticas e igualitárias.

Examine-se a evolução do pensamento artístico através dos tempos, e ver-se-á que ele atingiu a sua mais alta expressão não sob a proteção intransigente das leis, mas sob o patrocínio generoso dos grandes homens de Estado. Submetesse Augusto à aprovação do Senado Romano as dádivas com que tornava possível a Virgílio e a Horácio a existência amável que levavam; dependessem Luiz XIV, Frederico II, Cristina da Suécia ou Catarina II do voto dos parlamentos quando protegiam poetas e sábios, pintores e filósofos, e a história do mundo não contaria as épocas mais brilhantes que a assinalam, e que constituem hoje um dos mais altos orgulhos da Civilização.

Carecessem os verdadeiros príncipes de autorizações e leis, para estender a mão aos portadores do sonho e da sabedoria, e não teríamos, certamente, hoje, o teatro de Corneille, de Racine, de Molière e de Metastásio; a poesia de Ronsard, de Boileau, de Petrarca e de Chaulieu; o conto de Bocácio; a fábula de La Fontaine, a filosofia de La Bruyère. Até o século XVIII, isto é, até que a imprensa tornou mais amplo o mercado do pensamento, um homem de letras, com excepções que a época desconhecia, considerava tão legitimo receber favores de um homem poderoso, e, por isso, lisonjeá-lo, como nós, hoje, disputamos as simpatias do público. “Cette clientèle d’un payer unique — observa d’Avenel em um estudo sobre a vida econômica dos poetas na Idade Média e na Renascença, — n’avait rien du caractère asservi que nous figurons: les gens du moyen age avaint le préjugé tout opposé; le bénéfice reçu en échange de hommage, était le fondement de la féodalité”. E justifica esse regime: “On peut se demander s’il est moins insipide de courtiser dis mille hommes ou un seul... Quant à la dignité de l’attitude, aux yeux de nos peres, ele ll’etait pas moindre à flagorner le jirince, qu’à nos yeux à flagorner le peujile. L’ensens a changé simplement d’adresse... Recevoir pensions ou présents, dédier son livre pour les obtenir et sa personne pour les conserver, était un commerce de bons procédés honorable pusqu’on le jugeait tel et que n’a cessé de l’être que lorsqu’on l’a jugé autrement,. Era isso, em suma., um comércio considerado legítimo, isto é, uma das modalidades comuns da permuta. A satisfação do estômago em troca da satisfação da vaidade. O escritor fazia a apologia do príncipe ou do ministro poderoso e soberbo, e recebia, como recompensa, um emprego civil ou eclesiástico, ou uma pensão transitória ou vitalícia. E as letras prosperavam, para encanto da vida e maior glória do mundo.

Não há um só homem de cultura e de consciência, no Brasil inteiro, que não considere perfeitamente justo, e não aplauda contente, o ato do Interventor que beneficiou Bocha Pombo. Em um regime legal, esse ato justo seria, entretanto, impossível. Para obtê-lo, teria o eminente historiador de dirigir-se ao Conselho Municipal e de lisonjear, durante semanas ou meses, duas ou três dúzias de demagogos politiqueiros, que incluiriam no projeto que o beneficiasse, artigos ou parágrafos que ir iam servir a professores do Morro do Pinto ou de Campo Grande, seus cabos eleitorais. De modo que, sendo as leis feitas para moralizar os costumes, estes, no Brasil, se tornam mais moralizados e compostos quando se processam a revelia das leis.

Eu posso apresentar o testemunho de quanto é nociva à legislação, quando esta não obedece a altos princípios morais e filosóficos e tempera a sua inflexibilidade no interesse e na ignorância. Há nove anos, mais ou menos, veio ter ao Rio de Janeiro, vindo de S. Paulo em situação precária, um dos maiores educadores, autêntico evangelista do alfabeto, que o Brasil tem possuído. Quero referir-me, aqui, a Arnaldo Barreto, que chegava aos sessenta e tantos anos quase sem pão. Supus que, informadas da presença desse homem na cidade, as autoridades do ensino correriam a utilizá-lo, tão grande era a sua fama nos círculos dos profissionais. Levei-o, pela mão, ao diretor do ensino municipal, que era, por esse tempo, o dr. Carneiro Leão. E Arnaldo Barreto não pode obter o mais singelo cargo em que exerce a sua indiscutível capacidade de educador, porque a engrenagem legal era de tal ordem, que só podiam ascender a determinados lugares indivíduos em tais e quais condições, e que não eram outros senão os protegidos dos legisladores municipais!

Renan costumava dizer que preferia à República um tirano filantropo e liberal que protegesse as letras e as artes. E eu sinto que me sobe do coração para o cérebro, ou me desce do cérebro para o coração, o mesmo sentimento, feito pensamento. E é por isso que, ao ler a notícia do ato municipal de ontem, exclamo como trabalhador da pena que não tem a superstição das formas de governo:

— Louvado seja, duas vezes, o regime do arbítrio que assegurou o pão a Rocha Pombo. E maldito, três vezes, o regime legal que o negou a Arnaldo Barreto!

CARMELITA - HOMEM

Depois de José de Alencar, com as suas figuras de ficção, ninguém como Domingos Olímpio criou um tipo que se fixasse vivamente na imaginação, em todo o nordeste. Luzia-Homem é, na verdade, especialmente no sertão cearense, uma criatura ideal da intimidade dos homens reais.

Nenhuma das criações literárias de Rodolfo Teófilo ou de Papi Junior se tornou tão familiar aos vivos. E a explicação é fácil: é que, sendo Luzia, fisiologicamente, pelo menos na aparência, uma anormal, é, moralmente, naquelas regiões, o tipo da mulher comum, enérgica, decidida, corajosa, infatigável, pronta a substituir o homem mais forte e trabalhador em qualquer atividade grosseira. Carregando tijolos, capinando a terra, auxiliando na sua tarefa os companheiros mais fracos, Luzia é um homem, e justifica o apelido que lhe deram. Lá dentro está, porém, o coração meigo, a alma sensibilíssima, a entidade caracterizada por todas as delicadezas do sexo.

Foi, assim, para Luzia-Homem, e para todas as Luzias heroicas e hercúleas do nordeste, que voou esta manhã o meu pensamento, ao ler a notícia de que o ilustre Sr. Ministro da Fazenda havia recusado aprovação ao ato de uma autoridade federal no Piauí, que contratara Ana Carmelita de Souza para trabalhos de campo, ou vaqueiro, nas propriedades rurais que a União ainda possui naquele Estado. Ao eminente homem de governo, filho de uma região em que a mulher, protegida pela natureza, ainda não sentiu a tortura da sede e da fome, pareceu, talvez, extravagante que uma sertaneja de outro extremo da pátria pretendesse pular para a sela de um cavalo e correr um novilho, ou tomar da enxada, e trabalhar o solo doze horas por dia. Esse regime social é, todavia, uma das características daquele pedaço do Brasil. Eu também o estranhei, quando vi pela primeira vez um dos quadros que o definiam. Subia eu, um dia, para Baturité, em 1906, quando, do trem, nas vizinhanças do Acarape, vi, capinando e preparando a terra para as plantações de inverno três mulheres, três caboclas de compleição admirável. Era em uma encosta da serra, em um terreno inclinado, que facilitava a observação. Chapéus de carnaúba à cabeça, blusa de riscado, e saia arregaçada e presa ao cós, metiam a enxada na terra com entusiasmo tamanho, que eu jamais as esqueci. Onde estaria o homem daquela família? Havia morrido, talvez. Havia, talvez, embarcado para o Amazonas, tentado pelas notícias da riqueza fácil. A verdade é que elas ali estavam a preencher o claro que ele deixara, procurando, sob o sol ardente, no solo queimado e negro, o necessário para uma vida honrada e cristã.

Ana Carmelita de Souza é, talvez, um caso como o de Luzia-Homem. Trabalhando para o governo durante a seca, esta mulher-símbolo constituía a segurança do pão para uma família inteira. Despedi-la do trabalho, seria a miséria, a fome de cinco pessoas: da mãe entrevada, do irmão pequeno, e dos enfermos que auxiliava com a sua caridade. Essa trabalhadora de campo não deixaria a sua choça para correr o gado nas caatingas, ou para limpar os roçados do governo, se não tivesse necessidade. E se ela é moça, quem sabe se tirando-lhe uma ocupação honesta, não a vamos lançar à prostituição pelas imposições irrecorríveis da miséria

Contam os historiadores antigos que, no Egito, após uma batalha perdida pelos seus soldados, mandou o faraó que todos os homens do país se vestissem de mulher, e deixassem crescer o cabelo, e que as mulheres passassem a exercer na família a autoridade paterna. E não chegou mais longe porque não podia. Ho nordeste, não foi o faraó que lavrou o decreto, mas a Natureza, com a sua inclemência. O homem não abdicou da força e do direito de que se acha investido. Mas há mulheres que são forçadas a conquistar direitos de homem. E Ana Carmelita de Souza é, possivelmente, uma destas.

Em nome de Carmelita-Homem, peço ao eminente Sr. ministro da Fazenda, tão nobre de alma e generoso de coração, que reconsidere o seu ato. Essa rapariga admirável quer montar a cavalo e pegar boi. Fizessem todas as mulheres necessitadas o que ela quer fazer, e o Rio de Janeiro de há vinte anos não teria tido, para vergonha sua, o beco... das Carmelitas!

A SENTENÇA DO FARAÓ

Quando, há duas semanas, a Leopoldo na Railway esteve em greve, um dos  auxiliares de escritório, entrevistado, divulgou os motivos públicos e secretos do movimento. E entre esses motivos achava-se a situação, cada vez mais precária, dos empregados masculinos, ante a concorrência dos candidatos do outro sexo.

— A situação dos auxiliares de escritório em todas as grandes empresas que funcionam no Rio de Janeiro, — dizia ele, — está reclamando uma providência e, mesmo, uma reação. Como o empregado público, esses auxiliares depositam toda a sua esperança na promoção, que corresponde a um aumento de vencimentos. Com a concorrência feminina, porém, essa esperança começou a ser burlada. Antigamente, se falecia um empregado que ganhava oitocentos mil réis, era nomeado para o lugar um dos seus companheiros, que ganhava seiscentos. Hoje, não. Ao morrer um empregado com aqueles vencimentos, em vez de fazer a promoção, as empresas admitem, para substituir o defunto, uma senhorita a quem pagam apenas quatrocentos mil réis, preterindo, dessa maneira, um velho trabalhador da casa, que permanece no seu posto até a morte, quando será substituído por uma menina, que fará o seu serviço por trezentos mil réis.

Essas palavras revelam, como se vê, um aspecto delicadíssimo dos nossos problemas sociais e econômicos. Trabalhador barato e de grande rendimento, a mulher vem sendo preferida, naturalmente, pelos empregadores. Mas, essa preferência se resolve em prejuízo para a economia coletiva e contribui de modo sensível, para o desequilíbrio social. Porque, na verdade, cada mulher que conquista um emprego numa casa de comércio ou numa repartição, pretere um homem, que é, na maior parte das vezes, um chefe de família. Essa substituição, que vai gradualmente se verificando por toda parte, tem como resultado a crise dos empregos, porque, em geral, o homem trabalha para dar o pão a muitas bocas, enquanto que a mulher trabalha, quase sempre, unicamente para si própria, e ser esse, precisamente, o motivo por que ela pode submeter-se aos pequenos ordenados. Os grevistas da Leopoldina procuraram, parece, atenuar os efeitos desse regime, estabelecendo, no acordo com a companhia, uma base para as promoções. Mas essa providência constituirá apenas um paliativo. A transformação social operar-se-á da mesma forma e o carro de Jaggrenat continuará a rolar sobre o mundo, esmagando as formigas.

Aonde iremos, porém, nesse caminho, do qual já não poderemos voltar? O exame do presente dar-nos-á, sem custo, uma perspectiva do futuro. No círculo dos nossos conhecimentos, quantos lares passaram, já, das mãos do homem, transformado em títere, em personagem secundário, para as da mulher, promovida, pela sua eficiência econômica, a chefe de família? Não há muitos dias, um amigo, que me visitava, deu-me notícias de um conhecido nosso antigo gerente de uma casa de comércio, que perdeu o seu lugar.

— Nunca mais, — dizia-me o informante, — conseguiu ele outro emprego. Publicou anúncios, ofereceu-se como datilógrafo, e nada obteve. Hoje, quem sustenta a casa é a mulher, fazendo chapéus e vestidos. Ele, a sua função, consiste em ir à cidade comprar botões, fitas e miudezas, e em entregar pequenas encomendas. Ela lhe dá dinheiro para o bonde, para os cigarros, para o café. E ele está satisfeito!...

Outro amigo dizia-me, de outro conhecido:

— Quando a Revolução rebentou, ele perdeu o seu lugar, que lhe rendia três contos por mês. Procurou emprego para si, para a senhora e para as duas filhas. Conseguiu colocação para as três. Para ele, nada! Conformou-se. Agora, as mulheres saem, e ele fica em casa. Varre os aposentos, arranja as camas, lava a louça do café. É ela a dona da casa!

Não há muito tempo, em visita que me fez, dizia-me uma senhora:

— Meu marido ganhava mais de quatro contos de réis antes da crise no comércio. Administrava uma grande companhia estrangeira. Foi despedido porque a companhia mandou para o Brasil um novo gerente. Ficamos sem recursos. Para podermos viver montei uma pensão familiar. E o senhor não imagina a tristeza com que eu vejo meu marido, aquele homem tão enérgico, tão altivo, e tão digno de uma sorte melhor, espanando os móveis e contando a roupa que vem da lavadeira!... Que quer, porém, o senhor? Um chefe de família não pode ganhar o que ganha uma datilógrafa. E, daí, os escritórios preferirem hoje as mulheres aos homens...

Conta-se de um faraó, príncipe rigorosíssimo no exercício da justiça, que, tendo os seus exércitos perdido uma batalha cuja vitória ele supunha assegurada, determinou que, em todo o Egito, e por largo tempo, os homens passassem a vestir-se como as mulheres e a substituí-las nos mais humilhantes misteres caseiros. Heródoto refere-se a essa degradação e fornece, a respeito, informações pitorescas sobre a extensão que, na prática, tomou a determinação real. Os homens perderam, ao que parece, perante Deus, uma grande batalha, nos dias largos desta Civilização que agoniza.

E Deus lavrou, agora, contra eles, a sentença do Faraó.

PELOS FILHOS DO LIBÓRIO

Minha piedosa pátria — Acompanhando algumas páginas do jornal católico Ave Maria, que se publica em S. Paulo recebi a carta em que manifesta a doçura cristã do seu confiante coração brasileiro. Ave Maria bate-se, neste momento, por uma grande e santa causa, em todo o Brasil: a aquisição de fundos para batizar mil crianças chinesas ameaçadas do fogo do Purgatório, sem culpa nenhuma, por falta desse sacramento. E essa iniciativa tem tido, por toda parte, o mais comovedor acolhimento. “Querendo cerrar fileiras em favor da Cruzada Redentora para Batizar Mil crianças Chinesas, — refere o jornal a que me reporto — uma família de S. Paulo trazia-nos. logo no primeiro dia, os nomes de vinte e uma pessoas a ela pertencentes, nomes que desejava tivessem as crianças por elas apadrinhadas. Uma antiga assinante nossa, agradecendo a Deus os cinco filhos que lhe concedeu, enviava a importância, para ser madrinha de cinco crianças. Uma alma de apóstolo de Capivari mandou-nos a quantia para resgatar a alma de vinte crianças, pedindo e insistindo para que os afilhados fossem daqueles que morrem logo, para ter uns bons intercessores no céu. Uma pobre mãe, contando com poucos recursos e lutando para a manutenção da família, tirou cinco mil réis do cofre de cada um de seus filhinhos, para batizar outras tantas crianças chinesas abandonadas”. A salvação de cada alma de chinês pequenino está, em suma, avaliada em cinco mil réis e, em cinco contos, as das mil crianças, a não ser, está bem visto, que haja alguma redução de preço na salvação por atacado.

Seduzida pela ideia de colaborar na redenção das criancinhas que estão morrendo sem batismo na China, e, assim, ameaçadas de sapecar o rabicho inocente no fogo purificador, teve a minha caridosa patrícia uma lembrança generosa: organizar uma festa de moças, cujo produto revertesse em benefício da cruzada destinada a salvar as almas das crianças dos montes Tsin-Ling ou das margens palustres do Yang-Tse-Kiang. E escreve-me: “A minha ideia é um espetáculo, em que se representasse uma comédia escrita por Humberto de Campos. As crianças chinesas redimidas do pecado original com o dinheiro arrecadado nessa festa, certo pediriam ao Todo Poderoso pela saúde e pela felicidade do seu benfeitor”. E anima-me, a senhora, a meter-me nesse negócio da China.

A lembrança, minha bondosa patrícia, não podia ser mais oportuna e feliz. Duas coisas me vinham preocupando vivamente nestes últimos tempos: os meus pagamentos de fim de mês e a sorte das crianças chinesas que estão morrendo pagãs. Para a primeira dificuldade, encontrei o remédio: não pagar as contas. Restava a salvação dos pequeninos chineses que morrem às centenas de milhares, sem água lustrai e sem arroz, e cujas alminhas vão ter, por falta de batismo, ou, antes, por falta de cinco mil réis, às labaredas do Purgatório. Que fazer, então, minha boa senhora?

A China, ao contrário do que muita gente supõe, é um país cujo destino se acha estreitamente ligado ao do Brasil. O chinês é, entre nós, o detentor do comercio do amendoim torrado. É o inventor da refeição com cinco pratos, por dez tostões, no largo do Rocio. Chinês vivo é, porém, chinês perdido para o reino de Deus. O que interessa a Deus é que o chinês morra, mas batizado. Daí, a ideia, que tive: um entendimento com o Japão: os padres vão batizando, e os japoneses vão mandando os chineses para o Paraíso, onde se tornarão intercessores dos que lhes servirem de padrinhos.

Se, todavia, a minha gentil e generosa patrícia quiser a peça para as suas amiguinhas representarem, eu a escreverei. Será simples no enredo, e rápida no desempenho. Erguido o pano de boca, aparecerá em cena um caboclo magro, coberto de andrajos e feridas, estendendo a perna de pau no calçamento. Exatamente como na Rua da Assembleia e no largo da Carioca. Em torno dele, com os ossos à mostra pelos buracos da camisinha suja, descalços, catarrentos, com todos os estigmas da miséria na figura, seis ou oito caboclinhos, suplicando uma esmola aos transeuntes, entre lamúrias e acessos de tosse. Precisamente como na Rua da Assembleia e no largo da Carioca. O chapéu estendido para receber os óculos da caridade, o mendigo pede a quem passa:

— Uma esmolinha, meus irmãos!...

Dai-me uma esmolinha, pelo amor de Deus!

Um transeunte estaca, e pergunta:

— Você tem fome, meu amigo?

— Tenho, meu senhor.

— Esses meninos são seus filhos?

— São, meu senhor.

— Eles estão com fome, também?

— Estão, sim, senhor. Muitos dos que eu tinha, já morreram, por falta de pão.

— Onde é que eles dormem?

— Ao relento, no batente das portas.

E — É, então, para matar a sua própria fome, que está pedindo esmola?

— Não, meu senhor.

— É para matar a fome dos seus filhos?

— Também não, meu senhor.

— É para lhes comprar um agasalho, ou dar-lhes um teto para as noites de inverno?

— Não, meu senhor; também não é.

— Para que é, então, que pedes esmola?

E o caboclo velho:

— A nossa miséria é grande, meu senhor; mas as esmolas com que eu devia socorrer meus filhos doentes são para batizar os filhos do meu compadre Libório que mora no Acre, e que não pode cuidar disso porque passa o dia brigando!

Servirá assim, minha senhora? Se convier, não precisa nem montar a peça. Ela já está montada. Já está, até, mesmo, sendo representada...

A MORTE DO DALAI-LAMÁ

A morte do Dalai-Lama anteontem, em Liassa, no Tibe, oferece oportunidade para algumas reflexões sobre o espírito irreverente do século. Nenhuma entidade política ou religiosa exerceu, talvez, no Oriente ou no Ocidente, tão imperiosa autoridade sobre os homens. Nenhum chefe, civil ou sacerdotal, se rodeou de tantas e tão seguras regalias para manter a sua intangibilidade. O Imperador da China, encerrado no seu palácio, e o Pontífice católico, murado no seu Vaticano, jamais se isolaram tanto dos seus súditos e dos seus fiéis, procurando no prestígio da distância, nas dificuldades da presença, os fundamentos do respeito. Se Deus aparecesse todos os dias aos homens todo mundo seria ateu.

Não obstante essas precauções ditadas pela experiência, que é a forma concreta da sabedoria, o Dalai-Lama foi pouco a pouco se humanizando na consideração dos seus crentes, até que se tornou, aos olhos deles, uma sombra inofensiva. Quando, nos fins do século XV, os portugueses abriram por mar o caminho do Oriente, o prestígio do Supremo Sacerdote de Lhassa não tinha semelhante na terra. Toda a humanidade budista se prosternava não ante a sua figura, nem ante a sua sombra, mas ante a sombra da sua sombra. Os príncipes sangravam os pés nas montanhas escarpadas para beijar os muros da sua cidade. Quando o Dalai-Lama cortava as suas unhas, os pedaços delas eram guardados em urnas de ouro para serem enviados aos Imperadores. Os maarajás iam a Lhassa como peregrinos para cobrir a cabeça com a poeira das suas sandálias. E historiadores houve que noticiaram, como verdadeira, a lenda de que mesmo as escórias do seu corpo eram tornadas em pó, e empregadas como remédio infalível contra todas as enfermidades, e que os sacerdotes vendiam a peso de ouro aos mais soberbos potentados do Levante.

Tudo passa, porém, sobre a terra. E a autoridade do Dalai-Lama, como todas as coisas, passou. No cimo da montanha sagrada, entre os muros da cidade misteriosa, foi o seu vulto se dissolvendo aos olhos dos crentes. Imperando, ainda, nominalmente, sobre quinhentos milhões de budistas, passou o Supremo Chefe a contentar-se com as dádivas, com os tributos sacerdotais, dispensando o respeito e a obediência. Cansado de expedir ordens que ninguém cumpria, deixou o bonzo de Lhassa, de expedi-las. Mandasse ele, hoje, um vidro do “pó miraculoso” ao mais obscuro príncipe do Indostão, e este, indignado com o desaforo, subiria o Tibé de automóvel para esfregar-lhe o presente no nariz.

A política dos sacerdotes, na cidade santa, contribuiu para o desmembramento final dessa grande força. A intriga, a inveja, a rapina, a luxúria, lavram em Lhassa como nos principados italianos da Renascença. A desmoralização tornou-se, enfim, de tal espécie, que, quando, há doze anos, Ossendowski subiu o Tibé e procurou avistar-se com o Supremo Chefe do Budismo, um dos magnatas da corte religiosa lhe informou, sem reservas:

— Por estes dias não pode.

E explicando o motivo:

— O Dalai-Lama está bêbado!

O viajante esperou alguns dias. Foi recebido. O estado de embriaguez do Supremo Sacerdote era, entretanto, ainda, de tal ordem, que a entrevista não deu, quase, resultado nenhum.

Agora, morreu, com cinquenta e sete anos, o Pontífice de Lhassa, débil e apagado sucessor das grandes sombras que faziam do Tibé uma região de espanto e mistério. E os telegramas não dizem de que foi que ele morreu.

É capaz de ter sido, porém, de alguma surra.

A GLORIFICAÇÃO DO CAFÉ

O prefeito do Distrito Federal resolveu, ontem, arborizar com cafeeiros algumas praças e jardins da cidade. Árvore vistosa, com a faculdade de exibir três vestidos por ano — um branco, outro verde, e outro vermelho, — a árvore do café constitui, na verdade, não só um ornamento, como um símbolo da riqueza nacional. Homenageando-a como fator máximo da nossa prosperidade econômica, não corremos o risco de sofrer o constrangimento que nos infligiu o pau-brasil. Trazido das matas de Cabo-Frio para a Avenida Central, este indivíduo vegetal não soube portar-se como devia. Não tomou jeito de árvore civilizada. Deixou de vestir-se de folhas, e, na mudança, trouxe até as formigas. Nasceu torto e, agora, nunca mais endireita.

O cafeeiro é planta de outro gênero. Desde que nasce entra logo na disciplina, cerrando fileiras, formando batalhões, que sobem serras e descem vertentes, sem arredar “pé” do alinhamento. Saindo de uma fazenda paulista para instalar-se em qualquer jardim do Rio de Janeiro, não estranhará nem o local, nem a gente. Mesmo porque, ao contrário do pau-brasil, que é bicho do mato, o café é uma planta viajada, conhecedora de vários países, nos quais residiu antes de instalar-se entre nós. Quem é, nesta antiga terra de Vera-Cruz, que não sabe a região em que ele nasceu e aquelas por onde andou experimentando as raízes?

Conta Gemal-eddin-Dhabhan, cronista árabe do século XV, que a descoberta das propriedades tônicas do café, e, consequentemente, da sua utilidade, foi mero produto do acaso. Certo mosteiro da Arábia, dos mais ricos ou dos menos pobres do tempo e do lugar, possuía um rebanho de cabras, que era diariamente levado ao pasto nas cercanias, por um pastor da confiança dos frades. Observador e arguto, o cabreiro notou que, todas as vezes que os caprinos se dirigiam para uma grande moita de arbustos de folha verde-escuro, pintalgada de pequenos frutos vermelhos, e comiam desses frutos, se tornavam horas depois tão agitados e alegres que lhe era penoso, mais do que habitualmente, reconduzi-los ao curral. Os animais berravam, pulavam, corriam, e tal era o efeito da planta de frutos misteriosos que, durante a noite toda, não dormiam nem repousavam, conservando-se em serão jovial, como se se sentissem preservados contra a fadiga e contra o sono.

Intrigado com a informação, o prior do mosteiro inteirou-se do caso por miúdo, assegurando-se da sua veracidade. Havia, talvez, naquela ocorrência, um aviso do Senhor, tão modesto nos seus processos quanto imenso na sua sabedoria. Mandou, assim, colher alguns punhados de bagos cor de sangue, fê-los ferver e, dividindo a água em pequenas taças, deu-a a beber aos membros da confraria. E cada um dos religiosos que dela bebeu, sentiu-se nessa noite mais disposto para a vigília, mais pronto na disciplina, mais fervoroso na oração. Estava assegurada, em suma, a primeira valorização do café.

Historiadores há, todavia, que situam a utilização do fruto, pela sua transformação em bebida, em uma época muito mais recuada. Há quem o diga contemporâneo de Avicena, o célebre médico árabe do século XI; há quem o considere conhecido dos hebreus, no tempo dos patriarcas; há quem o descubra no Egito, sob os últimos faraós, e há, mesmo, quem o suponha usado pelos gregos e que ele tem o seu lugar na Odisseia. O certo é que o ocidente europeu o desconhecia antes de 1664, quando Luiz XIV, tomando a primeira xícara do líquido maravilhoso, fez a declaração, que valia por um decreto, de que a bebida era, realmente, saborosa.

Consagrada por Versalhes, estava aberto ao café o portal de todas as cortes e implicitamente, a porta de todos os lares. A venda em taças, em casas públicas, propagou-se rapidamente por toda a Europa. O café, isto é, a casa destinada a vender esse produto aos seus apreciadores, passou, então, a ser pretexto para os fins mais diversos e suspeitos, e que iam desde a desculpa simples e comum para embriagar-se, até à conspiração contra a segurança do Estado, em reuniões aparentemente inofensivas sob os olhos de toda a gente. Em 1711, ano em que Montesquieu imagina o início da correspondência entre Ibben e Usbek nas Lettres persanes, são já tão numerosos os cafés em Paris, e servem a fins tão variados, que o escritor faz pingar da pena do seu viajante esta informação irônica: “O café está muito em uso em Paris, onde há grande número de casas públicas em que é distribuído. Em algumas destas casas, contam-se novidades; em outras, jogam-se os dados; e uma há em que se prepara um café especial de tal natureza, que dá espírito àqueles que não o têm. Pelo menos, entre todas as pessoas que se retiram, não há uma só que não acredite sair mais espirituosa do que entrou”.

O café, a casa retalhadora dessa bebida, isto é, na acepção a que se refere Montesquieu, não foi, entretanto, uma instituição europeia. Os primeiros estabelecimentos desse gênero foram, segundo se acredita, fundados em Meca. No prefácio à sua edição francesa das Milec Uma Noites, o dr. Mardrus deixa patente a influência desses pontos de reunião na formação ou, melhor, na coordenação daquele tesouro da imaginação oriental. Era, efetivamente, nos cafés, em Meca, em Constantinopla, em Bagdá, em Smirna, em Damasco e em Alepo, que os árabes, turcos e persas, procedentes dos pontos mais diversos da Ásia, narravam uns aos outros as histórias populares do seu país de origem. Esse intercâmbio de lendas e narrativas imaginosas determinou a formação de um todo homogêneo, que constitui hoje um dos mais preciosos patrimônios literários não somente da raça, mas do gênio humano.

E como já vamos longe, descansemos, por hoje. Mas, amanhã ainda tem café.

Os cafés, que mais tarde se tornaram, em algumas cidades da Turquia, da Pérsia e da Arábia, verdadeiros cenáculos em que se reuniam poetas e políticos, transformaram-se, em certo momento, num elemento de perturbação na vida uniforme dos povos orientais. Em 1554, era tão sensível a influência de dois cafés existentes em Constantinopla, que os muftís dirigiram ao Sultão uma representação pedindo o seu fechamento imediato. Absorvidos pelas palestras que aí se travavam, os fiéis esqueciam sacrilegamente a hora da prece, atraindo, assim, pelo desprezo das coisas sagradas, a maldição de Alá, Todo Poderoso. Os cafés foram fechados, e os seus proprietários punidos publicamente com oitenta bastonadas. Por ocasião da Guerra da Cândia, em 1665, foram de novo perseguidos todos os estabelecimentos desse gênero, em Constantinopla. Percorria o pachá Kupruhi, disfarçado em mercador, os cafés da cidade, quando teve oportunidade de verificar a antipatia com que eram comentados nesses lugares os atos do governo. No dia seguinte eram as casas que se entregavam a esse comércio sumariamente condenadas, e obrigadas a fechar, como nocivas à segurança do Império. Para impedir a continuação do adultério retirava-se, no Oriente, o divã da saleta... Não foi, todavia com outro raciocínio que Cromwell, um século depois, fazia fechar, como preventivo da alteração da ordem, todos os cafés de Londres.

O primeiro café instalado em Viena teve, na palavra mais ou menos vaga dos cronistas, origem bizarra. Era em 1683 e as tropas de Sobieski enfrentavam, batendo-se pela liberdade nacional, o exército do Sul tão sob o comando de Kara Mustafá. Após a última batalha contra esse general otomano, um soldado de nome Kulczycky, procedendo à pilhagem habitual, encontrou em uma das tendas inimigas grande quantidade de grãos cuja utilidade desconhecia. Enchendo as mãos, correu o soldado a levar ao imperador Leopoldo a amostra do seu achado. O soberano conhecia Kulczycky. Era um dos heróis do cerco da capital.

— Isto representa uma fortuna — disse-lhe o Imperador.

E ante o espanto do soldado:

— Os grãos que encontrastes são teus. Constituem a recompensa da tua bravura. Ficas com o privilégio de instalar-te na cidade para vender a bebida que com eles se faz.

E assim apareceu cm Viena, nesse mesmo ano, o primeiro café.

Voltemos, porém, à França, onde o aparecimento da bebida oriental assumiu as proporções de um acontecimento nacional. O exemplo de Luiz XIV, bebendo-a com prazer, e a solicitude de Solimão Aza, embaixador da Sublime-Porta, haviam tornado o café a bebida nova, a bebida sensacional. Os médicos do tempo comentavam, discutiam, louvavam ou condenavam as suas apregoadas virtudes. Entrou em moda. A sua notoriedade parecia, porém, tão precária, por intensa, que mme. de Sévigné, considerando-o uma paixão de momento, um luxo que Paris em breve esqueceria, dava ensejo a que La Harpe, mais tarde, lhe atribuísse esta frase:

— “Racine passera comme le café!”

Autêntico ou apócrifo, o conceito se tornou verdadeiro. Pacine não passou. E o café, ainda menos.

O anátema de alguns mestres da medicina contemporânea não conseguiu impedir que a bebida intelectual fosse adotada pelas maiores figuras do século. Algumas destas levavam mesmo ao exagero o seu costume cotidiano. E entre elas estavam Frederico II, Voltaire, Diderot, Delille, Fontenelle, e se acharam, posteriormente, quase todos os homens de pensamento no mundo inteiro.

— O café é um veneno! — bradavam os adversários do seu uso entre os quais foram citados, depois, Calvet e Hahnnemann.

— É possível; mas, nesse caso, é um veneno muito lento, — comentava Fontenelle, que, como se sabe, morreu centenário.

E, com a sua ironia de sábio:

— Há oitenta anos que venho me envenenando com ele, tomando diversas xícaras por dia, e ainda não senti, sequer, os primeiros efeitos!

No Brasil, o café possui, já, a sua história anedótica. A sua adaptação no país, primeiro no Pará, onde entrou vindo de Caiena, a cultura que dele se fez, logo em seguida, no Maranhão, e, finalmente, a sua chegada ao Pio, são assuntos que cabe, hoje, ao cuidado e à competência dos historiadores. Convém, todavia, lançar aqui esta pergunta:

— O cafeeiro que veio para o Rio de Janeiro, e que foi a semente da formidável riqueza do sul, procedeu mesmo do Maranhão, e foi, efetivamente, a muda que dali trouxe o desembargador João Alfredo Castelo Branco?

E esta outra:

— João Hopman, que foi o nosso primeiro exportador de café, recebeu a muda diretamente do marquês de Lavradio, como informa o Dr. Nicolau Joaquim Moreira, ou conseguiu-a, já, dos Barbadinhos, como assegurava Araújo Porto Alegre a Joaquim Manuel de Macedo?

No Brasil, as anedotas sobre a bebida asiática, hoje nossa, tornaram-se tão vulgares quanto ela mesma. Toda a gente bebe café. Toda a gente entra nos cafés. Nesta República, tivemo-lo com música e sem música.

Na antiga, era na sala do café, no Senado e na Câmara, que se improvisavam os potins, que se aplainavam as dificuldades políticas, que se resolviam os problemas nacionais. A sala do café deliberava.

O plenário confirmava.

Adrien Hebrard, o judeu inteligentíssimo que fez do Temps um dos grandes jornais do mundo, dizia, certa vez, em um banquete, a Edmond de Goncourt:

— O café é uma das mais úteis instituições sociais do nosso tempo.

E numa definição mais precisa:

— O café é uma espécie de Escola Normal em que o indivíduo se prepara corpo a corpo para a vida.

Mais útil, porém, do que o estabelecimento em que se vende o café é o café por si mesmo. Conta Eça de Queiroz que Leão XII, em uma epístola em versos latinos, elogiou vivamente “essa bebida reconfortante”, ordenando, pontificalmente, que “o saboreemos lentamente, em regulados goles”. E o cronista leva as mãos ao rosto, escandalizado. “O café! — exclama, com horror cristão: — O café! Mas o café foi logo, desde a sua aparição, a bebida dileta, quase oficial, do racionalismo! Estimulando a Imaginação e a razão indagadora, ele implicitamente dissolve o respeito pela regra e pelo Dogma Imutável. O café mais que a Enciclopédia, fomentou a Grande E evolução. Bebido, com o alvoroço da sensação nova, por Buffon, Diderot, Rousseau e d’Alembert, ele aqueceu mais aquelas almas calorosas, aguçou mais aqueles espíritos penetrantes: e Michelet não duvida afirmar, com gongorismo, mas com rigor histórico, que essa geração forte descobriu no fundo das chávenas, através da negra e perfumada bebida, o luminoso raio de 89!”

Prosseguindo, assinala o maravilhoso estilista português a influência do café na evolução social que se processou no século XVIII: “Voltaire, — diz, — tirou da cafeteira toda a sua obra demolidora. Esse diabólico rei da Prússia, Frederico, o Grande, que morreu de excessos de café, e que se regalava de não acreditar nem em Deus nem na Vida Eterna, exclamava, moribundo:

— “Já não sou nada; já não bebo café!...”.

No Brasil, desde que aqui aportou, é o café encontrado, como ornamento na história e na anedota. É ele, evidentemente, o maior vício brasileiro. Nas repartições públicas, no comércio, em toda parte em que se trabalha, especialmente no Pio e em São Paulo, há a hora do café. É a hora sagrada. Os empregados saem, dois ou três de cada vez, para ir à esquina, ou mais longe. O funcionário faz o mesmo, embora haja café na repartição. Apenas não saem os diretores, os velhos chefes respeitáveis, aos quais o contínuo vai servir, à hora certa, com a xícara e o açucareiro na bandeja. Empregado público modelar, Machado de Assis era chefe de seção no Ministério da Viação quando, um dia, o procurou, sendo recebido, um cavalheiro que desejava o despacho de determinado papel, referente a uma transação vultosa. Examinado o processo, o interessado pediu ao chefe que não desse informação negativa. Machado, polidamente, recusou-se. Pediu-lhe que pusesse data diferente. Foi igualmente desatendido. Nesse momento chega o contínuo com o café. O romancista de Braz Cubas segura da xícara, mas o sujeito lhe agarra o braço, detendo-o.

— Não tome café, doutor! — exclama.

— Isso é um veneno para a saúde!

Pausado, medido nos gestos, Machado deposita a xícara, ainda cheia, na bandeja. E, voltando-se para o cavalheiro:

— O senhor está vendo? Não atendo aos outros pedidos porque não posso.

E mandando embora o contínuo com a xícara de café, em cujo conteúdo não tocara:

— Acabo de satisfazê-lo na única coisa que dependia de mim!

A história republicana regista, igualmente, entre nós, um episódio como o de Constantinopla no tempo do pachá Kupruhí, mas, aqui, com um fecho mais generoso. Era, conta-se, nos primeiros dias da Revolta da Esquadra contra o governo Floriano. Dividida a população em dois partidos, um contrário e outro favorável ao ditador, era natural que se encontrassem contra ele os estrangeiros, principalmente os portugueses, dado o caráter indisfarçadamente jacobino de reação. Corajoso, frio, sem a menor preocupação com a vida, saía o Marechal à noite, sozinho, e à paisana, a percorrer o litoral, inspecionando as forças encarregadas de defender a cidade. Vigorava o estado de sítio, e, completando-o, a lei marcial.

Certa noite, ao regressar, metido no seu singelo paletó de alpaca, de uma dessas inspeções, entrou o ditador em um pequeno café, então existente na Lapa, e, servido pelo proprietário, um gordo português em mangas de camisa, pôs-se a conversar com ele sobre os acontecimentos militares.

— E o tal Floriano... Hein? Que você me diz dele? — indagou, mexendo a xícara, o freguês desconhecido.

Supondo haver encontrado um inimigo do governo, o português destaramelou a língua, derramando toda a sua indignação. O Marechal era um bandido, um louco, um selvagem. Mas aquilo não acabaria assim. Havia de aparecer uma bala que lhe desse cabo da vida.

Floriano ouviu-o, calmo, imperturbável e, às vezes, sorridente. De vez em quando ajudava, mesmo, o negociante revoltoso, atacando o governo. Tomado o café e terminada a palestra, retirou-se, com a mesma tranquilidade com que entrara. Momentos depois penetra no café uma praça e procura o proprietário.

— Você não esteve conversando aqui com um freguês sobre a Revolta?

— Estive.

— Sabe quem era?

— Não, senhor.

— Era o Marechal!

Dois minutos depois o café estava deserto. E o português, o dono, nunca mais apareceu.

A História de um Pintor, que Antônio Parreiras publicou há seis ou oito anos, regista um delicioso incidente galante que, parece, não fica mal neste lugar. Completava esse artista patrício os seus estudos em Paris, quando conheceu ali como vizinho, à Rua Boissonade, o escultor Essemel, cuja velhice começava a prejudicar, pela fadiga do cérebro e dos músculos, a glória conquistada na mocidade. Um dia, em visita a Parreiras, ofereceu este ao mestre escultor uma xícara de café brasileiro, recebido diretamente. Eram dez horas da manhã. À tarde o escultor voltou.

— extraordinário! — disse, com vivacidade. — Trabalhei hoje bastante. Dê-me outro café!

E entregando um copo.

— Mas não quero uma xícara. Encha isto! É um veneno sublime!

Na manhã seguinte era mine. Essemel que procurava o pintor.

— Monsieur Parreiras!

— Pode entrar, mme. Essemel.

— Venho pedir-lhe um favor.

— Às suas ordens.

— Não dê mais café ao meu marido.

— Por que, mme. Essemel?

— Não lhe posso dizer. Não me deixou dormir...

— Trabalhou toda a noite na estátua, não é verdade?

— Não, Monsieur Parreiras; lembrou-se de sua mocidade!...

— Quer tomar uma xícara de café, cerne. Esse mel

— É muito tarde, Monsieur Parreiras, — recusou a veneranda senhora, sorrindo com melancolia.

E apanhando uma folha seca, que, tombando do alto dos castanheiros lhe viera cair aos volteios, sobre a cabeleira branca:

— O inverno já chegou...

Agora, vem o cafeeiro para os jardins e praças ajardinadas do Rio, por deliberação do prefeito. Aí dará ele flores, e frutos. Próximo ao seu tronco repousarão os namorados, brincando com os seus frutinhos vermelhos, que apanharão, distraídos. E é pensando nesses idílios de amanhã, que me vem à lembrança a maliciosa quadrinha caipira, que as mães, agora, não devem mais esquecer:

“Quem tiver filha bonita

Não mande apanhar café:

Se for menina vem moça,

Se for moça vem “muié”!

O CINEMA, O PRAZER E O PECADO

Constituiria, sem dúvida, um volume interessante aquele em que o autor fixasse a influência dos artistas de Cinema e de Teatro sobre a imaginação e o destino dos espectadores. O teatro possui, já, em depoimento e fatos conhecidos, a sua crônica. E o cinema precisa organizar a sua em que os psicólogos e a mocidade possam beber informações e ensinamentos.

As pessoas sugestionáveis tomam as cenas de um drama, ou de um filme, como trechos mesmos da vida, e algumas há que se consideram quase personagens da ação. Napoleão Bonaparte pertencia a este número. Refere Frederico Masson que o grande capitão sentia, não raro, paixões impetuosas pelas grandes artistas do seu tempo; mas, não as amava por si mesmas; não era atraído pelas mulheres que elas eram na realidade: mas pelas figuras históricas ou lendárias que encarnavam, pelas heroínas que faziam reviver: Ximena ou Paulina, Medeia ou Atália, Efigênia ou Fedra, Andrômaca ou Berenice. Semideus entre os homens, encontrava ele no teatro as legítimas companheiras do seu mundo heroico.

É esse capricho da imaginação humana que faz o prestígio das artistas do palco, e as grandes paixões que frequentemente despertam. E é esse capricho, ainda, que tem dado relevo à existência de alguns atores, em todo o mundo. Que romance foi a vida de Talma! E a de Garrick! E a de Baron! Quantas paixões despertou, no Brasil inteiro, Leopoldo Fróis? E não são conhecidos, aqui mesmo, casos de moças dos melhores círculos sociais, que, tomadas de paixão por um personagem de peça, se desligaram de tudo para acompanhar pelo mundo o artista que a interpretava? Artur Azevedo tem um conto em que uma senhora carioca se apaixona por um galã de teatro, figura simpática, insinuante, ardente, cavalheiresca. O marido percebe o drama que se desenrola na imaginação da mulher e convida o artista para almoçar, um dia, em sua casa. E hasta isso, basta o conhecimento do ator fora do palco, para que se dissipe a ilusão. Todo o encanto daquele homem havia sido criado pelo cenário fantasioso em que se movia. Os seus atrativos estavam, não na pessoa dele, mas na imaginação dela.

O Cinema possui, ainda mais que o Teatro, a faculdade de embelezar as figuras que nele se agitam. Mas oferece menores perigos. Selecionados no mundo inteiro, os seus artistas constituem exemplares incontestáveis de formosura. Fornecidos pelas raças superiores, em que a Civilização apurou a beleza plástica, estão destinados, pois esses atributos, e pelos papéis que desempenham nas peças filmadas, a enfeitiçar as imaginações. Nesse caso, porém, os riscos desaparecem. Entre artista e espectador na milhares de quilômetros a vencei, a instâncias enormes que tem de ser com as navios, aviões ou trens de ferros, viagens torna-se necessário fortuna, pois não é fácil ir sem dinheiro a Califórnia, contentam-se os entusiastas desta ou daquele estrela, com um autógrafo, com o s trato à cabeceira, com o recuso por ser impossível a ventura a já alguém imaginou, potencial perturbação que iria pelo comumente entre os povos de sentimentalidade mais viva, se o artista aparecesse em pessoa onde hoje aparece apenas em imagem? Se havia moças de educação fina, e senhoras de pétrea virtude, que deixavam o lar, o conforto, a paz, a fortuna, para acompanhar um ator sem mocidade e sem beleza, unicamente porque encarnava uma criação do velho Dumas ou de Henry Bataille; se havia, e há ainda, homens austeros que perdem o juízo, e esquecem a família, e se lançam à miséria, simplesmente porque lhes sorriu uma bailarina de café concerto ou uma comparsa de revista: que espantosas coisas ocorreriam se por aqui vivesse, com todos os seus encantos de mocidade, pele e saúde, esses tipos humanos, modelos de beleza e de graça modernas, que o cinema faz passar, em sombras móveis e imponderáveis, por todo o mundo civilizado?

O Cinema é, nesse particular, superior, mil vezes, ao Teatro. Ele dá o encanto sem o risco. Traz o Prazer, sem trazer o pecado.

“ELAS” E O DESTINO

Um cidadão de Atenas ou de Corinto chegou, um dia, a Esparta, e desejou provar o caldo negro, que era, aí, o prato nacional. Deram-lhe. O hóspede levou-o à boca, e fez uma careta.

— Não gostaste? — perguntaram-lhe.

— Não.

— Pois, olha, que ele é saboroso. Mas, para sentir-lhe o gosto, é preciso ter nascido em Esparta.

Isso vem em Plutarco. Mas pode sei aplicado a outras interpretações das coisas da vida.

— As mulheres são boas ou más? — perguntará um ancião a um jovem.

— São más, — responder-lhe-á o moço. — Não, — dir-lhe-á este. — Elas são boas.

E como o espartano:

— Apenas, para compreender que elas são boas é preciso ter passado dos cinquenta anos!

Cronologicamente, eu ainda não atingi, é certo, essa idade mínima estipulada para esses julgamentos generosos. O sofrimento e o conhecimento da vida concederam-me, porém, o suplemento, que o tempo me não deu.

— As mulheres são boas ou más? — perguntar-me-ão.

E eu responderei, sem relutância:

— São boas; e as piores, são, ainda, as melhores coisas da terra!

Era isso, pelo menos, o que eu me dizia a mim mesmo, ontem pela madrugada, ao regressar de uma exibição íntima do filme Nós e o destino, que o Rex, a nova e suntuosa casa de espetáculos cinematográficos, vai apresentar amanhã na sua elegante festa de inauguração. Andando eu, em tudo, sempre atrasado na vida, quis um amigo gentil que eu, desta vez, chegasse adiantado. E proporcionou-me a alegria dessa exibição; proporcionou-me a volúpia egoística de assistir à passagem de um filme para uma sala em que eu era o único espectador! Conta-se que Luiz II, da Baviera, costumava promover, em Munieh, a representação lírica das operas de Wagner, em um teatro fechado, e para ele só. Apenas, meses depois, atirava-se ele ao lago de Starnberg abraçado ao seu médico. E eu ainda estou aqui, e os meus médicos, também.

Nós e o Destino é, efetivamente, um desses filme em que se conjugam a arte e a emoção, deixando uma forte impressão e realidade. É uma existência inteira, vem da por um minuto de ilusão. É uma vida de mulher, dos dezenove aos trinta e dois anos, oferecida em holocausto a um sonho, que, ao fim de algumas horas, começava transformar-se em sofrimento. Há nas do nordeste uma espécie de poucas serve para cercar os terrenos. Tem poucas folhas e muitos espinhos. E, de longe em longe, nas pontas de um espinho, surge, às vezes, uma flor. Assim foi essa existência de mulher: vida de rosa brava. Amou; entregou-se; sacrificou-se. Desprezada, continuou a amar. O Homem a quem ama parte para os campos de batalha. Na sua ausência, nasce-lhe um filho, fruto de uma loucura naquele único encontro vertiginoso. Ela espera o seu regresso. Ele chega, mas não a reconhece mais. Lutando sozinha para criar e educar esse filho, entra pela vida no seu heroísmo surdo enquanto ele, rico, no tumulto de uma existência mundana, não tem a menor lembrança daquela flor esmagada no seu caminho... Cada ano, porém, pelo Natal, recebe ele um telegrama sem assinatura, desejando-lhe felicidades. Esses votos são dela. Essas palavras são dela. Doze anos depois, encontram-se numa festa. Ela o reconhece. Ele não sabe quem ela é. Nova hora de amor. Duas vezes na vida ela sentiu junto ao seu as palpitações do coração de um homem. Ela lhe diz. E ele tem ciúmes do outro homem que a teve nos braços, sem saber que esse outro homem era ele próprio... Ela vai ao telefone à meia noite, e manda um beijo a alguém. E ele tem ciúmes, ainda, desse alguém, ignorando que esse alguém é seu filho, a criança que nascera daquele primeiro instante de amor... E como a existência dela tem de ser toda uma chama votiva aos pés daquele homem que lhe fez o infortúnio, ela, mesmo depois de morta, lhe vai salvar da, a vida, com a carta que lhe deixa ao morrer, e que ele recebe na hora, exatamente, em que se vai matar arruinado pelos negócios da bolsa na catástrofe de Wall Street, a 29 de outubro de 1929! Há um conto russo, creio que de Tchekhov, em que um marinheiro mata outro na hora do sinistro. E dias depois, soçobrada a lancha em que se abraçara, é salvo da morte pelo cadáver da sua vítima. No naufrágio financeiro de Nova York, Mary Lane, morta, salva, ainda, a vida de James Emerson.

Ornado de passagens comoventes, e de observações sutis que conduzem à meditação, esse filme, em que figuram noventa estrelas da cinematografia americana, e que só por isso constituiria um acontecimento, contém, na sua contextura, um grave e com plexo problema psicológico. Haverá, na realidade, mulheres que amem assim? Haverá, fora dos filmes e da literatura, corações que abençoem dessa maneira a mão impiedosa ou indiferente que os torturou? Não faz muitos dias, recebi, a propósito e um das últimas crônicas por mim escritas nesta folha, uma carta feminina contrariando as minhas ideias, e que é uma das mais interessantes, e de mais profundo pensamento, entre as que me tem vindo nos últimos tempos. “Não nos está nas mãos, — dizia-me a inteligente missivista; — não nos está nas mãos, nem nas do nosso companheiro, a felicidade no casamento. Meu marido, por exemplo, é um homem de bem, atencioso e estimado; e, no entanto, sou infeliz, porque ele tem todas as qualidades exceto uma: a de fazer-me feliz. E, quem sabe, um outro, e de más qualidades, só tivesse para mim, a maior e única: a de fazer-me feliz?” Mary Lane encontrou, talvez, no homem mau ou indiferente a quem amava, a qualidade a que se refere a minha correspondente: à semelhança das abelhas que fazem o mel com as plantas amargas, é possível que ela encontrasse conforto na sua tristeza. Quem poderá dizer, mesmo, se, casando com o homem a quem amou toda a vida, não seria ela infinitamente mais desgraçada do que vivendo de longe, e em silêncio, na contemplação melancólica do seu desprezo?

Grande filme, na verdade, é esse, contendo um forte e formoso drama, e que vai assinalar a inauguração de um cinema que pode ser considerado, segundo afirmam os entendidos, um dos mais confortáveis do mundo. Grande, e profundo. Grande, e que faz querer bem às mulheres, convidando-nos a perdoar-lhes, pelo muito que sofrem, o muito que nos fazem sofrer.

— As mulheres são más? — perguntei, certa vez, ao meu querido amigo, e experimentado mestre, professor Antônio Austregésilo.

E ele me respondeu: — As mulheres não nos fazem sofrer porque sejam más, nem nos fazem felizes porque sejam boas. Elas nos amam ou nos odeiam, matam-se ou nos fazem morrer, por um sentimento só.

E definiu: — Por simples capricho...

O drama que eu acabava de ver, e em que se havia queimado uma vida de mulher moça e linda, teria sido, também, um drama do capricho?

Fiz-me, na madrugada quente, essa pergunta. E esperei, debalde, pensativo e insone, a resposta amiga, dos ventos frescos da manhã...

VIVA O REI!...

Nestes tempos de primitivismo em que a força volta a constituir a preocupação fundamental do espírito humano, o Pará quis, também, ter o seu espetáculo impressionante. Não podendo, parece, mandar vir Baer ou Primo Carnera para bater-se com os seus boxeadores regionais, virou-se para o mundo dos brutos, e fez isto: importou um leão, para defrontar-se com um louro de Marajó.

E deu-se o embate, domingo último, na capital do Estado. Transformado em jaula enorme, um campo de foot-ball foi o terreno escolhido para a peleja. Milhares de espectadores empoleiraram-se nas arquibancadas, para aplaudir a sangueira. Era o Rei dos desertos africanos, e Rei, também, de todos os animais da terra, que ia ajustar contas com o Rei das várzeas brasileiras. E ninguém tinha dúvida de que o leão derrotaria o touro.

Na dinastia do Rei dos Animais tem ocorrido, porém, o que se vem verificando em todas as dinastias reais: uma decadência física e moral verdadeiramente alarmante. O circo exerce, ademais, sobre os leões, uma influência depressiva que a literatura regista desde o tempo do romano. É famosa, e figura em todas as antologias em que se exalta a bondade, a história daquele enorme leão africano que, no Coliseu, se estirou aos pés do escravo que lhe cabia devorar, por haver reconhecido, nele, o indivíduo que, escondido na sua furna, lhe arrancara, um dia, da pata dolorida, um espinho lancinante. É célebre, ainda, a cena da luva, de que Schiller tirou uma das mais belas páginas da poesia alemã. E é dos nossos dias aquele conto de Hughes Delorme, em que aparecem um circo, um leão, e alguns homens, que serão, nesse dia, seu almoço e seu jantar.

Apanhada no seu Deserto é a fera trazida dos seus areais, para os antigos espetáculos do Coliseu. Domiciano governa em Roma, e os cristãos, aos milhares, perecem nos circos e nas prisões. Após alguns dias de espera e de fome, chega o momento em que o leão eleve entrar na arena. Um beluário abre-lhe a jaula, e toca-o para um corredor subterrâneo. De súbito, a fera revê o sol. É o circo. Nas arquibancadas, milhares de homens que aplaudem o seu aparecimento. À sua frente, na arena, centenas de outros homens, esqueléticos, andrajosos, os olhos fulgurantes de fome e de fé, ajoelhados na areia, gritam em coro triste e monótono, as mãos levantadas para o céu. O leão detém-se, o terror no coração e no olhar. Um calafrio percorre-lhe a espinha, arrepia-lhe a juba. E é arrepiado que se agacha, escondendo a cabeça monstruosa entre as patas dianteiras, e exclamando:

— Nossa Senhora, que desgraça!

E num rugido de dor, esfregando, horrorizado, a juba na areia:

— Lançaram-me aos cristãos!

O leão africano que chegou a Belém para bater-se com o touro marajoara provinha dessa estirpe de famosos reis do Deserto. E era, ademais, estrangeiro na terra do Brasil. Segundo rezavam as tradições tebanas, Anteu vivia nos desertos líbicos, e foi, mesmo, o fundador de Tanger. Derrotado três vezes por Hércules, três vezes recuperou as forças e arremeteu contra o vencedor, por haver, três vezes, entrado em contato com a Terra, da qual era filho. O leão que chegou a Belém viu-se tão longe da terra materna quanto se achava o touro perto da sua. E sucedeu o que só poderiam prever os que entendem de mitologia: o touro brasileiro venceu o leão africano, fazendo-o correr, apavorado, após os primeiros encontros, em torno da arena.

Esse resultado encheu, parece, de júbilo, os nossos nacionais que o presenciaram. Batido de modo tão completo e tão rápido, o leão perdeu, evidentemente, o seu título de Rei dos Animais que passará a pertencer, agora, ao touro. Mas, isso não será, apenas, uma restituição? Há, efetivamente, um apólogo, em que se conta que o boi já foi, um dia, Rei da Animalidade, e que lhe puseram, mesmo, os outros bichos, uma coroa de capim. Não sendo, porém, muito inteligente, sucedeu-lhe, num dia de fome, sacudir a cabeça, e comer a própria coroa. E o império das selvas passou a pertencer ao leão.

Agora, o boi voltou a reinar sobre os animais. O touro de Marajó acaba de reconquistar para a espécie os antigos direitos postergados. Apenas, o leão, súdito, continuará a urrar nos areais nativos, enquanto, em todo o mundo, ao passar por um açougue, e ao ver um novilho esquartejado, o cachorro, o gato e outros bichos domésticos, exclamarão, com ironia:

— Viva o Rei!

LE HOELA

Algumas centenas de pessoas e, possivelmente, milhares, estão se queixando, neste momento, no Rio, de uma esquisita inquietação, de um mal-estar inexplicável, que se caracteriza pela insônia ou pelo sono entrecortado de sonhos fantásticos, e por um susto contínuo e vago, um temor de perigos incertos e desconhecidos. Uma espécie de epidemia mental vai, aos poucos, se alastrando pela cidade, estabelecendo uma corrente secreta de sofrimento e de terror nas profundidades marítimas do oceano carnavalesco.

— Que será? — pergunta a si mesmo, cada um dos que sofrem.

E outros, afeitos à reflexão:

— Paira no ar algum fluido, algum veneno que atinge a alma, através dos nervos e do cérebro... Que veneno será esse?

Envolvido por esse fluido, ou por esse gás que o Dr. Os prepara na sombra em algum recanto escuso da cidade, eu próprio tenho procurado a causa do fenômeno.

— Talvez estejamos sob o influxo da gripe, que percorre o mundo, e cuja vanguarda microbiana chegou, já, ao Rio de Janeiro, e se acha em trabalhos de reconhecimento... — dizia-me há poucos dias um médico.

Eu tenho, todavia, para mim, que as origens do mal são mais profundas e misteriosas. Trata-se, talvez, de uma visita de Le Horla, o trágico e terrível demônio mau passânico.

Le Horla era, como se sabe, para Maupassant, uma diabólica entidade brasileira. Chegara ao Sena em um veleiro nosso, em um garboso três mastros rigorosamente pintado de branco. E nunca mais aquele vigoroso e claro espírito desfrutou tranquilidade, acordado ou no sono. Le Horla bebia o seu leite, lia os seus livros, dirigia a sua existência atormentada, dando-lhe ordens imperiosas quando se achava em casa, ou interrompendo-lhe os passeios, quando saía. E a vítima sempre com o susto na alma, com o pavor no coração.

Eu viajava uma destas tardes, de ônibus, para o meu bairro, com o pensamento no demônio invisível, quando, de repente, divisei, sentado num palanque armado na frontaria do Casino Beira-Mar, um calunga esparramado em um trono, com uma coroa à cabeça e um cetro na mão. Lembrei-me das cidades sertanejas do nordeste, nas quais é praxe expor a figura de Judas Iscariote, antes de meter-lhe o cacete. Encarei-o. Reconheci-o. E, logo, empinando-me no meu banco, a mão estendida, exclamei, com a mais solene convicção: — O sujeito é aquele!...

Quem sabe se, contrariando os etimologistas, o tal Momo não foi, realmente, um monarca oriental, soberano de um povo de que a História não guardou lembrança e se a sua alma, acompanhando a efígie, não anda solta no espaço atormentando os que lhe não rendem homenagem?

— Apressa-te, pois, ó Momo, senhor da folia, governador geral do Rio de Janeiro, oficialmente confirmado no posto em 1933! Reina e vai-te! Governa e despede-te! E deixa que durmam em paz os que têm sono, ó implacável horla desconhecido, que és, hoje, na terra, no céu, e nas águas, o tirânico dominador da cidade!...

CARNAVAL!

Hora do Éden naquela manhã, e ainda se sentia no ambiente calado o reflexo do espantoso acontecimento. As mãos para trás, a testa ainda franzida pela cólera, a barba ainda trêmula de indignação, Jeová percorria as alamedas do Paraíso terrestre examinando a obra nefanda dos dois amaldiçoados. Ao vê-lo, os animais que ele próprio criara rosnavam com ferocidade. Olhos de tigres faiscavam na sombra das moitas ouriçadas de espinhos. Auroques escarvavam a terra, turvando o ar leve e inocente com as nuvens de poeira levantada. Cada bicho, e cada planta, e cada ave do céu tinha um grito de ódio à passagem daquele que o arrancara do limo do Eufrates.

De súbito escuta-se um fofo barulho de asas, que descem, agitando o vento. É o Anjo encarregado de expulsar os dois pecadores, que regressava, trazendo ainda à mão de neve a espada de chama com que executara a terrível determinação do Senhor. Ao vê-lo pairar a altura do solo, Jeová detém-se. E, a voz severa, indaga:

— Levaste-os tu, Azael, para além das portas que te assinalei?

— Levei-os, Senhor; vi os desaparecer ao longe, queimando os pés na areia flamejante do Deserto.

— Tomaste-lhes os frutos e a água, para que padeçam a sede e a fome, e para que os conquistem com as suas próprias mãos?

— Nada levaram eles, Senhor, para a sua sede ou para a sua fome.

— E arrancaste-lhes, como te ordenei, a pele do rosto?

— As tuas ordens foram cumpridas, Senhor. Aqui tendes a pele do rosto dos dois proscritos.

E apresentou a Jeová a pele, íntegra, de dois rostos humanos, um de homem, outro de mulher. Eram a pele do rosto de Adão e do rosto de Eva. E tão nitidamente reproduziam a fisionomia dos dois condenados que um grande vento arrepiou as árvores, e os animais, tomados de pena, e de terror, gemeram, urraram surdamente, por toda a vastidão do Paraíso.

A punição havia sido em verdade, rigorosa demais. Na sua sabedoria e na sua onisciência, havia o Onipotente mandado arrancar ao primeiro Homem e à primeira Mulher a pele inteira com a forma do seu semblante. Era preciso que, expulsos do Éden, eles se não reconhecessem mais, como haviam sido na realidade. Mas a pena fora tão terrível que causa horror, mesmo aos Arcanjos.

— Mas, Senhor, — pergunta Miguel, cujos olhos brilham mais que as suas armas fulgurantes; — os míseros não tomarão, acaso, nunca mais, a sua feição primitiva? O Homem e a Mulher terão de apresentar-se, eterno, um ao outro, com a mentira na face e no coração?

— É o seu castigo.

— Senhor, permite que o teu servo te lembre, então, um meio de levar aos culpados a ideia do arrependimento. E para que eles se arrependam, é mister que tenham a noção da ventura perdida.

Jeová fixa o chefe dos seus exércitos, vencedor dos anjos rebeldes, e este continua:

— Para que o Homem e a Mulher saibam o que perderam traindo-te, permite-lhes, Senhor, que eles sejam, em determinada época de cada ano, aquilo que eram antes do pecado original. Deixa que reconquistem a primitiva liberdade, que reproduzam na terra sem encanto a vida solta do Paraíso, e, retomando por alguns dias a pele do seu rosto, retomem com ela os instintos e os sentimentos que os tornavam, na sua inocência e na sua liberdade, felizes e alegres no Paraíso!

— Tem piedade dos proscritos, Senhor! — gritam os Anjos.

— Tem pena dos réprobos! — confirmam os Tronos.

— Compadece-te dos míseros! — suplicam os Arcanjos.

Jeová franze a testa enorme, em que as rugas são relâmpagos, e acede:

— Seja feita a vossa vontade, Anjos, Arcanjos e Tronos. Que o Homem e a Mulher, em uma época de cada ano, retomem o seu rosto, os seus sentimentos, e os seus instintos, e mostrem sem constrangimento, uns aos outros, a sua alma, como ela é... Seja feita a vossa vontade, Tronos, Anjos e Arcanjos!

— Assim seja! — gritam, unânimes, as potestades celestes.

Foi assim que entre os Homens pecadores, surgiu, um dia, o Carnaval.

GLORIFICAÇÃO!

(Conto de Natal)

Percebendo lá fora, na doçura da noite bonançosa, a voz dos pastores e o coro melodioso dos anjos, chegou Maria, carinhosa, as palhas da manjedoura para tornar mais doce o sono do Menino, e correu, pressurosa, com o esposo, a ouvir por um momento, sob as estrelas, as suaves harmonias que subiam da terra e desciam do céu. Aproveitando esse instante de isolamento, a vaca, o cordeiro, o asno e outros animais domésticos que se achavam próximos encaminharam-se confiantes no rumo do berço humilde e o segundo, num balido trêmulo, assim falou:

— Nós somos, Senhor, as criaturas singelas e sofredoras da terra, e, como tais, te queremos e amamos. O teu verbo será mais doce do que o leite das ovelhas que descem a beber, à tarde, na torrente do Cedron, e mais puro do que o lírio que abre à noite nas cercanias de Jerico. Nós desejaríamos, porém, — uma vez que nunca mais te encontraremos sozinho na vida, — que nos fizesses uma revelação aproveitando, para torná-la conhecida entre os seres humildes, esta hora da tua inocência!

Abrindo o rostinho de neve num sorriso de maviosa alegria, olhou Jesus os grandes focinhos que o farejavam com afetuosa ternura, como a permitir-lhes que manifestassem, ali mesmo, o seu pensamento. Os irracionais compreenderam-no pela graça dos olhos, e perguntaram, pela voz do cordeiro:

— Nós queríamos senhor, que nos dissesses só a nós, por que, não obstante a tua divindade, a tua pureza de água de montanha, te dignaste viver no seio de uma Mulher, recusando, para a tua humanização, a colaboração do homem, que não é, talvez, menos digno do que ela.

A essa pergunta, os olhos do Menino turvaram-se humedecidos pela primeira tristeza. Passado, porém, um instante, voltou-se, inquieto, para um lado e outro do Presepe, e, como não visse figura humana, confessou às criaturas humildes, e tão amigas, que o inquiriam com tanta bondade: — Era a Mulher, na terra, o único dos seres que podia, ainda, acalentar um Deus. Como eu e como vós, ela terá eternamente no mundo o destino das coisas incompreendidas. Ela é a ovelha de olhos doces que todos imolarão sem lhe escutar o gemido. Amai-a, pois, e protegei-a. Afagai sempre que puderdes, a sua inocência. Lembrai-vos de que ela é de todas as criaturas, a única, na terra, que não conhecerá o prazer sem sofrimento!...

Reentrando, nesse momento, no pequeno estábulo de Belém, José e Maria notaram, sorrindo, que a estrela, que por uma fresta iluminava o berço, tinha mais brilho, e que os anjos, lá fora, cantavam mais alto...

JUNHO, MÊS DAS ALEGRIAS

Honestas Louvável, louvabilíssima ideia, esta, de escolher para mês da cidade este mês alegre de junho. Historicamente, nada justifica a preferência. Nenhum acontecimento notável, nenhum fato extraordinário assinala estes trinta dias na crônica urbana. Mas este é o mês feliz, o mês contente, o mês sem cuidados. Porque, à semelhança dos homens, os dias menos desgraçados são os menos gloriosos, e mais obscuros. E junho é, para a cidade do Rio de Janeiro, um mês quase vazio de sucessos excepcionais. Em junho, o antigo burgo de Estácio de Sá entra, cada ano, em férias ingênuas e estouvadas. O clima se adoça; os jardins se cobrem de rosas; os montes se tornam mais verdes, o céu mais azul, e as praias mais enfeitadas de espuma. Desde os primeiros dias, as ruas estrondam, com a explosão dos fogos, com o estouro das bombas.

No firmamento imenso e estrelado os balões aumentam o número das estrelas. Até que, nas vésperas de S. João, a cidade, que pertencia, desde o berço, a Sebastião, muda de dono, passando a pertencer ao mais amado e jovem dos apóstolos. Uma jovialidade e uma volúpia de noiva estiram o espírito e os músculos de Sebastianópolis, tornada, provisoriamente, Joanópolis. E a Natureza brasileira sorri maternal, acariciando a filha dileta no seu garrido leito de montanhas.

De agora em diante, será este, oficialmente, na grande cidade, o mês das alegrias castas e boas. Deixando os sertões brasileiros, Antônio e João, Pedro e Paulo, virão instalar-se, novamente, na urbe maravilhosa. Calçadas as ruas de asfalto, as fogueiras passarão a surgir nos quintais ou nos jardins públicos, improvisando primos e primas, afilhados e madrinhas, comadres e compadres, que serão títulos disfarçando namorados. A Polícia continuará a condenar os balões e os balões continuarão a subir de todos os cantos, numa proliferação policroma e prodigiosa. Porque os balões são como os pensamentos nas almas: aparecem sem se saber como, e ganham, sem que se possa deter, o caminho imenso do Céu.

E junho era, também, o mês da saudade, para os velhos, e para os que começam a envelhecer. Setenta por cento da população do Rio de Janeiro é, talvez, de provincianos. Procedentes do Norte, do Sul ou do Centro, esses alienígenas não perdem, aqui, a alma com que chegaram. E qual é, de nós, filhos da província, que não guarda a lembrança amável, boa, e sossegada, de uma noite de São João passada na terra em que nasceu? Quem, utilizando superstições ingênuas e tradicionais, não consultou, à hora da meia noite, as letras do seu Destino, por intermédio de sortes inocentes, cujo prestígio data, já, do tempo dos bisavós? Qual o homem austero de hoje, que, na meninice, não deitou um pouco de clara de ovo num copo d’água, para ver, horas depois, à claridade do candeeiro de querosene, formados dentro do copo, um navio, prognosticando viagem, uma igreja, anunciando noivado, ou uma cruz, prevendo morte naquele ano?

E qual a moça que, na fazenda ou na chácara, não cravou, ao anoitecer, a faca de mesa, brilhante e limpa, no caule da bananeira, para, ao retirá-la, descobrir na mancha deixada na lâmina o nome do homem que será seu marido?

Tudo isto era ingênuo, singelo, primitivo. Mas enchia as horas da vida, povoando-a de coisas honestas e santas. Vivia-se mais da ilusão do que da realidade. Mas, a ilusão não será, ainda, o melhor bálsamo para o tormento da vida? E não seriam mais felizes as criaturas se essas fantasias lhes voltassem ao coração?

Havia, outrora, na Amazônia, uma tribo indígena, que, para onde ia, na sua vida errante, levava às costas os ossos dos seus mortos queridos. Ao abandonar Cracóvia, atacada por alemães e austríacos, em 1916, o exército russo retirou da catedral o coração de Chopin, que lá se achava num relicário, e levou-o, na retirada, como um troféu, à frente dos batalhões. Façamos o mesmo com as honestas e doces tradições brasileiras. Levemo-las para onde formos.

Elas reanimam os fracos, consolam os vencidos, dão coragem aos que desesperam. São, em suma, como o coração de Chopin, o qual, embora morto, enchia ainda de orgulho os exércitos derrotados...

O ABISMO

Uma tarde, Laura Sanchez, após o último beijo que o marido lhe dera no topo da escada, antes de sair para a modorrice do escritório e para as monossilábicas palestras da Bolsa, deitara-se, de costas, na cama de casal, passeando a alma por longe, e os olhos por onde permitiam, na sua gravidade impassível, as altas paredes da alcova. O calor, naquele dia de verão, era intenso, ríspido, abafadiço. Lá fora, na rua suburbana, nem passo humano, nem farfalho de árvore. Em casa, o mesmo silêncio, a mesma atmosfera, a mesma tranquilidade. A criada dormia a sesta, estendida no soalho frio da cozinha, e a servente impúbere, falando só, vestia bonecas humildes, com retalhos de pano, a um canto vazio da despensa.

E Laura Sanchez, sozinha, na alcova, dispersava os olhos e a alma. A vista, sem pouso certo, errava-lhe, insensível, pelos recantos e pelo forro do quarto. Seguiu, primeiro, desatenta, os arabescos do papel das paredes, as curvas e arestas do estuque, os bibelôs, os móveis; as coisas, enfim, que lhe eram, nos dias comuns, tão indiferentes e familiares. De repente, fixando mais a atenção fugitiva, deteve os olhos em um quadro. Era uma paisagem alpina, branca e de gelo, espetada de rochedos. Aqui e ali, abrindo em um sorriso macabro os monstruosos lábios de pedra, a montanha, enorme, traidora, escancarava a boca de um precipício. Do cimo dos montes mais altos, a neve, quase líquida, descia em fiapos, como o sumo de um fruto a escorrer, preguiçoso, pelo mento de um faminto. E dominando tudo, passa, no fundo da tela, olhos ferozes, bico recurvo e penas poderosas, uma águia conduzindo na garra, sobre um abismo de profundidade incalculável, o corpo ainda animado de um pastor.

Pousando o olhar naquela cópia de pintor anônimo, Laura Sanchez, franze os lábios, e sorri. Aquela águia conduzira-a longe, transportando-a a dois anos atrás. Fora na outra casa, quinze meses depois do seu casamento. Então, aquele episódio alpestre não se desenrolava na alcova: ficava na sala de visitas, próximo à janela, à direita do espelho grande, ladeado por duas telas nacionais de um velho pintor esfarripado.

E hora lá que a examinara bem, numa hora preguiçosa como aquela. O marido, pesado e suarento, havia saído, já, após o almoço, durante o qual lhe falara, apenas, e como sempre, da vida íntima dos colegas e da situação favorável dos negócios. Na sua solidão, ela, aborrecida, tinha chegado até à janela, menos para vê-lo sair do que para olhar a rua cheia de sol. Tudo era triste, quieto, monótono, como aquela travessa em que moravam agora. Apenas as galinhas da vizinhança, sacudindo as penas polvilhadas de terra, tinham mais liberdade e menos milho. Àquela hora, passando, esguiamente, os buracos da cerca fronteira, vinham sempre, em seguida a algumas bicadas no pedregulho faiscante, descansar, num pé só, ou deitar-se, de penas riçadas, à sombra escassa da única amendoeira da rua. Ela olhava indiferente, a luz castigando o calçamento. De repente, antes de entrar, fazendo para-sol com a mão curva sobre os olhos, olhara de um lado e de outro. Longe, vinha alguém. Olhou bem, e conheceu. Era o Otávio, um namorado antigo, pai de um amor que nasceu em um baile, pelo Natal, e morreu na igreja, três meses depois, pela Quaresma. Ele a viu, antes que ela fugisse; ela, não sabe por que, fugiu até o espelho, e voltou. Cumprimentaram-se, e o Otávio passou. Adiante, a trinta metros, olhou para trás e ela, não sabe para que, nem como, continuava a acompanhá-lo com os olhos, enquanto seguia com o espírito o voo de um pensamento para a sepultura esquecida de um sonho! Já à esquina, onde passava o bonde, Otávio cumprimentou-a de novo, tirando o chapéu. Ela correspondera, num ligeiro inclinar de cabeça. E ele voltou. Mas, para que voltaria? Pensava. E medrosa, ligeira, trêmula e sorrindo, cerrara, com um fogo no rosto, a janela inteira, ficando a olhá-lo, assustada, e com febre, por entre as rótulas.

Deu-lhe vontade de abrir a janela toda, de fazer como, segundo ouvia dizer, outras faziam. Essa ideia passou, porém, como um relâmpago, não lhe deixando senão um soluço estrangulado na garganta, um calor de febre no rosto e uni forte tremor nas mãos, por todo o dia.

O marido, ao regressar, à tarde, nada notara, nada dissera. Fútil, bonacheirão, incapaz de um ciúme e, ainda mais, de uma observação delicada, de um profundo mergulho no oceano do coração feminino, limitara-se a contar incidentes sem interesse, sem atentar para a sua mudança, para o seu silêncio, nem, sequer, para as preocupações que lhe vincavam o rosto.

No dia seguinte, à mesma hora, a mesma passagem de Otávio, o mesmo volver de rosto de vinte em vinte metros, — com a diferença que, dessa vez, ela o vira passar, olhando-o por entre as rótulas quase unidas. E que desejo, que tentação sentira de abrir as janelas, de mostrar-se, enquanto ele, derramando os olhos pela rua escaldante, olhava as gelosias cerradas!

Vencera-se, entretanto. Trêmula, como na véspera, sentara-se, agitada, à cadeira de braços, na sala; e foi, então, quando deu com os olhos naquele quadro da águia e do pastor.

Instantes depois voltou à janela. O Otávio já não estava mais à esquina. O perigo havia passado, e pudera respirar melhor. Satisfeita da própria conduta, sentindo-se feliz por se ter dominado, cumprindo o seu dever, volvera à cadeira de braços, cantarolando, numa satisfação muito doce, muito suave, e tornou a olhar o quadro alpino. E começou a pensar, com horror, que ela havia pairado, como aquele pastor, sobre um abismo profundo, e que a águia do Temor, ou da Virtude, encarnação, talvez, do seu Anjo da Guarda, por um milagre, a havia amparado, para que ela não caísse...

Terminada essa evocação, Laura Sanchez, nos seus vinte e três anos sadios e morenos, franziu, de novo, num sorriso malicioso, os polpudos lábios de fruto maduro, e saltou da cama, num gesto felino, levando as mãos à cabeça para amansar os formosos cabelos revoltos, e fazer ressaltar mais, com o jeito dos braços erguidos, a onda sensual dos seios fortes.

— Quantas vezes, depois disso, não descera ela, pelo braço robusto do Otávio, à goela absorvente do Abismo, sem carecer do auxílio da Águia, nem ser encontrada, como temera, no fundo encantado do Precipício!...