Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Da seara de Booz, de Humberto de Campos


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

ÍNDICE

Um conto de Mark Twain

Carmen Lídia

A queda do elefante

A emenda do apostolo

Caudilhos

O túmulo de Nitocris

San saturnino... Madre de Dios!

Palavras de sonâmbulo

O galo e a pérola... Falsa

O Brasil e os alemães

Espuma...

A fantasia de Korner

Bibliografia diplomática

O segundo Filipe

Os veteranos de Alexandre

Quem vai dar as cartas

Uma frase do general

Bernardas e Bernardos

Saudades do cativeiro

As retiradas do parta

A vingança do diabo

O discípulo do Cartaginês

Aspectos da crise

Os tigres e os pássaros

O congresso dos noturnos

A origem do cigarro

Política de Polícrates

Arca de Noé

Um pouso na glória

Para os “de cerimônia” ...

Caim e Abel

Religião e elegância

Uma tribo prudente

Quod coedibus ceedunt...

Povo e espada

Maomé e o seu pombo

O sabiá e o xexéu

A ilusão de Mikerino

Calípide, rei

A piedade do chinês

Esponjas

Os que sabem escrever

Os melhores versos de 1915

Egoísmo persa

A morte da eloquência

Política da linguagem

Soldados e calungas

A niponização do Brasil

O cavalo argentino

Os milagres da cirurgia

O rabino e o monge

Engenho que não mói

O rouxinol e os ventríloquos

Os espartanos da América

A raposa crucificada

Sob o cavalo de Pedro

A academia

O príncipe de limo verde

Brás y Fierabrás

O mastro das naus

Luiz Murat

Sinite parvulos...

Reflexões do bom homem Ricardo

Orçamentos... De Gil Vicente

“Divina quimera”

Um palácio deserto

O bode russo

Elogio da velhice

A cauda do rato

A noiva do marujo

O milagre de Elias

A ordem da rosa

Um papagaio... Real

A dádiva de Licurgo

UM CONTO DE MARK TWAIN

(História para ministros)

Quando Mustafá, comerciante em Bassora, transpôs às escuras portas da morte, o seu filho Acmed, satisfazendo o último desejo paterno, tomou de duzentas libras e partiu pelo país a entregá-las, metade ao homem mais perverso e metade ao sujeito mais tolo de toda a Turquia. O primeiro foi encontrado sem custo: era Sulimão, xeique de Guza, cuja população, por unanimidade, o apontou como o péssimo dos muçulmanos. O segundo estava mais longe. Penetrava Acmed às primeiras ruas de Constantinopla quando viu um cortejo. Eram cavalos arreados de ouro e prata, janízaros faiscantes nas suas armaduras, cimitarras coruscantes ao sol e, no meio de todo esse fausto, montando soberbo cavalo ajaezado, um velho de longa barba, festejado pelo entusiasmo da multidão. O filho de Mustafá acompanhou o séquito e parou, com ele, em certa praça, onde havia um estrado, no centro do qual se via espetada a uma lança, a cabeça de um homem.

— Que quer dizer isto? — perguntou Acmed a um janízaro.

— É a posse de Ali-bei, o novo grão-vizir.

— E aquela cabeça?

— É a do seu antecessor, mandado degolar ontem pelo sultão; todo grão-vizir, por via de regra, acaba degolado, sendo a cabeça exposta aos olhos do povo, que a apupa durante a posse do seu sucessor.

No dia seguinte, após alguns incidentes secundários, Ali-bei recebia no seu palácio de Constantinopla as cem libras turcas do testamento de Mustafá.

CARMEN LÍDIA

A passagem mais encantadora do Banquete, de Xenofonte, é, sem dívida, aquela em que Sócrates relata a sua emoção, a festa do seu espírito, no momento em que voejam pela sala, maravilhando os convivas de Cálias, os pés minúsculos da dançarina siracusana. O filósofo, olhos iluminados, falava, nesse instante, das altas e fortes cintilações da Verdade, cujos clarões desbravavam, como foices de luz, os emaranhados caminhos do mundo. E quando a ninfa de Siracusa, em meio a predica, penetrou, com os seus pés de brisa, na sala ressoante das divinas palavras do apóstolo grego, o filósofo pouco a pouco foi emudecendo, até que só se ouviu no aposento quieto, entre a agitada respiração de Hermógenes e de Critóbulo, o segredante barulho de folhas dos pés fugitivos da dançarina... Era a Virtude, sonora, que capitulava diante da Arte silenciosa. Era o relâmpago da Sabedoria que se apagava, de repente, a claridade acariciadora da luz serena da Graça!...

Há um mês, eu fui, também, conviva de Cálias, e senti, como Sócrates, como Antístenes, como Cliermide, o prestígio de uns pés voadores. Foi quando assisti, a convite generoso de um jovem amigo paulista, a uma exibição da pequena artista brasileira Carmen Lídia, uma deliciosa flor indígena que descerra, nos jardins da Arte nacional, a suave dúzia de pétalas dos seus doze anos promissores.

Carmen Lídia é, na sua infância, a primeira dançarina clássica que o Brasil educa para glória da grande revoada de aves desse gênero. Elegante, agilíssima, flexível, conhecendo instintivamente os segredos da Graça, a eloquência do gesto, a linguagem sugestiva das atitudes; adivinhando como mulher que acorda na manhã canora e embriagante da vida, a música interior do seu temperamento, cujos sons harmonizam com a melodia ambiente que lhe encanta os ouvidos; artista de raça e artista por educação — Carmen Lídia é, já hoje, apesar dos seus anos breves menos uma promessa, uma crisálida, um botão de flor, um titubear de alvorada, um ensaio de orquestra, uma ave que pipila, do que uma esperança que se cristaliza em realidade, uma borboleta que bate as asas, um lírio que estira as pétalas, um nascer do sol, um princípio de gorjeio, uma “ouverture” de ópera, enfim, uma artista modelar em quem se manifesta, no momento, gloriosamente, o fenômeno botânico da eclosão.

É a essa artista pequenina, a esses minúsculos calcanhares destinados, talvez, a colocar o Brasil em altura a que o não levaram os ásperos cotovelos dos seus estadistas, que o público de S. Paulo vai render, agora, em uma festa de caridade, a ruidosa homenagem da sua admiração. E como a galante Carmen Lídia merece, realmente, uma estrondosa tempestade de palmas, que a rudeza das minhas mãos prestes, também, de longe, com os meus aplausos, o culto que deve, há um mês, à mágica espiritualidade dos seus pés.

A QUEDA DO ELEFANTE

Um dos quadros fabulosos mais interessantes que nos legou Plínio na sua História Natural, é a luta entre o elefante e a serpente da índia. Confiado na sua corpulência, o pacífico paquiderme atravessa a floresta silenciosa, rumo de uma clareira ou de um rio. De repente, estremece todo, soltando um rugido profundo, como se lhe tivesse desabado sobre o dorso um largo pedaço do firmamento. É o réptil que, para alcançá-lo, havia subido à árvore mais robusta, e que de lá se lança num golpe infalível, para abranger com o círculo mole do seu colégio, a massa formidável do Golias das selvas!

Começa, então, o combate espantoso. Abraçado pelos poderosos anéis do inimigo, que tenta asfixiá-lo, o elefante corre, cambaleando, rumo das árvores ou dos rochedos que lhe ficam mais próximos, coçando-se neles com fúria. A serpente, por seu turno, aumenta os processos de ataque: comprime, em arrocho mais sólido, o corpo volumoso do monstro, começando a ligar-lhe as pernas oscilantes com as algemas de ferro da cauda. O paquiderme, acordando a floresta inteira com um rugido de raiva e de medo, recorre súbito, à tromba, procurando, com ela, desvencilhar-se. Mas o réptil, que aguarda apenas esse momento, ajusta a boca horrenda e sedenta a esse apêndice do quadrúpede, tomando-lhe a respiração e esgotando-lhe, por aí, o vermelho rio das artérias! Assim vencido, o elefante rola, então, por terra, mas esmagando na queda o vencedor, que deixa em torno de ambos, ao rebentar, um fervente poço de sangue!

Não estará aí, nesse quadro, a história simbólica desta guerra de titãs, que abala, neste momento, os largos fundamentos da terra? Evidentemente. E é por isso mesmo que àqueles que aguardam a queda do elefante alemão sobre o corpo da serpente inimiga, resta, apenas, repetir, de si para si, as medrosas perguntas do velho naturalista: “Que motivo levará os gigantes a se odiarem e perseguirem? Essa antipatia não revelará, porventura, uma inteligência da Natureza, que põe, assim, frente a frente, duas forças iguais, para maior interesse dos espetáculos que se dá a si mesmo”.

A EMENDA DO APÓSTOLO

O jornalista encarregado de fazer uma enquete na Câmara sobre o artigo do Código Civil que se refere ao divórcio, ainda me não pediu a mim, a minha insuspeita opinião. E não foi por esquecimento, por indelicadeza: eu não sou deputado e, nesse caso, o meu parecer, por mais arrazoado e sisudo, não pode entrar em conta de soma. Fosse eu, porém, legislador nacional, e a minha resposta seria esta:

— Voto contra!

E digo por que. A ideia do divórcio no Brasil não podia ter frutificado, em primeiro terreno, na cabeça calculista dos homens.

As mulheres, e somente a elas, o divórcio interessa. O marido é, entre nós, em virtude mesmo de uma organização social defeituosa, um divorciado de fato. A mulher é escrava. Ele é livre. E a mulher não quer, no Brasil, o divórcio... Para que, pois, contrariá-la, se ela ergue bem alto os ferros do cativeiro, beijando comovidamente as seculares equimoses dos braços?

Verdade é que alguns maridos, analisando o problema em si mesmos, tomando a gota d’água do seu lar para estudo geral do oceano da sociedade, se manifestam partidários da inovação. São egoístas. O proprietário, a quem os morcegos deram na água-furtada, não tem o direito de destelhar todo o quarteirão, ou toda a cidade, para afastar a praga do seu palácio...

Por essas, e por outras razões que não expendo nem posso alegar, eu votaria contra o divórcio, oferecendo ao artigo que a ele se refere uma emenda redigida por São Paulo, na sua primeira Epístola aos Coríntios. Reza ela: Algatus es uxori? noli quaerere solutionem. Solutus es db uxore? noli quaerere uxorem. Traduzo: “Se estiverdes casados, não vos descaseis; mas, se não estiverdes casados... também não vos caseis”. Essa é a melhor verdade e, na matéria, tem a vantagem de constituir a doutrina dos santos.

CAUDILHOS

Uma das ambições menos justificáveis que eu encontro nos jovens povos da América, é essa de desfrutar as vantagens de estabilidade política e de organização social que os povos de outros continentes só atingiram depois de longos sacrifícios e renúncias. Eu vejo nisso a pretensão do indivíduo que se apossa de um terreno agreste, planta a sua fruteira na terra indomesticada, e quer fazer a mesma colheita do vizinho, estabelecido vinte anos antes e que suou e sofreu no árduo trabalho de amansar a gleba rebelde.

As rãs americanas não podem viver em ordem, coaxando em harmonia, sem a regência ameaçadora de um grou. Chame-se ele Rosas ou Lopez, Urquiza ou Garcia Moreno, Cipriano de Castro ou Huerta, o caudilho é, ordinariamente, na América insubmissa, uma força oportuna, uma entidade fatal e necessária. Os povos, compostos de homens, são como os homens. O indivíduo infante e briguento precisa de mestre rígido, de tutor severo, de preceptor inflexível, de alguém que lhe exija respeito, aparando- lhe as agressivas arestas do instinto. Criança independente é larva de celerado. Povo jovem sem tirano é embrião de nacionalidade agitada, casulo permanente de revolucionários.

Porfírio Diaz, falecido agora, é, assim, aos meus olhos, uma figura explicada e explicável. O México viveu feliz enquanto o teve como seu aio. Outros povos foram menos ditosos. Mas é assim mesmo. O delfim de França foi confiado a Fénelon; os filhos de Tibério, que também eram príncipes, caíram nas mãos de Sejano.

O TÚMULO DE NITOCRIS

O Sr. deputado Vicente Piragibe cuidou, há dias, na Câmara, de um assunto delicado: a abdicação da vontade, que se está exigindo de quantos pretendam penetrar os umbrais das nossas duas casas fazedoras de leis. E contou, a propósito, uma feia anedota, cuja moralidade não visou, felizmente, a sua pessoa, nem a de qualquer outro jornalista com lugar ao Congresso.

O jovem parlamentar há de estar intimamente certo, entretanto, de que nem todos os candidatos reconhecidos prescindiram, como os homens de imprensa, dos melindrosos processos do honrado cardeal Al-beroni. Sabido, ao que parece, em coisas antigas e clássicas, costumado a colher à margem da corrente suave ou escachoante da História as flores de Imaginação ou de Verdade que por ela descem, o novo deputado há de conhecer a lenda arrepiante que cercava, no tempo dos faraós, o túmulo da rainha Nitocris. Era um soberbo documento de pedra, alvo e subido como uma torre. Um poeta moderno dizia desse maravilhoso refúgio da Morte:

La reine Nitocris, près du clair finnament,

Habite le tombeau de la haute terrasse...

Mas, assim, entre o céu e o deserto, aquele monumento mortuário era fatal às asas:

Les oiseaux tombent morts quand leur aile le touche.

E não residia somente nessa fatalidade o triste arcano da sua nomeada. A alta e trágica particularidade que o distinguia entre as santas coisas do Delta era esta, que o poeta celebra:

Selon l’antique loi, nul vivant, s’il ne porte

Sur la tête un corps mort, ne peut franchir la porte

Du tombeau...

Conhecerá, porventura, o jovem deputado o ponto da terra onde hoje demora esse túmulo? Não lhe vem, por acaso, à imaginação um fúnebre monumento muito alvo e solitário, ao contato do qual as asas do espírito silenciosamente se crestam, e em que só se penetra levando à cabeça um "corpo morto”, que os modernos chamam — Vontade. Se conhece, bendiga os Faraós por ter sido um dos poucos mortais que franquearam o túmulo da rainha Nitocris, levando a cabeça alevantada, e sem dever cumprimento, como os demais, às humilhantes formalidades da lei egípcia...

SAN SATURNINO... MADRE DE DIOS!

Quando o Japão, em 1903, revelou à Europa espantada, com os seus recursos de potência militar, as condições do seu progresso assombroso em todos os ramos da atividade e do conhecimento, o Sr. conde de Afonso Celso viu nessa estupenda civilização o fruto do esforço de um homem, que era o imperador Mutsuhito, e a vantagem dos governos dinásticos sobre os regimes democráticos. Sem a existência de um braço que o dirigisse permanentemente no mesmo rumo, estabelecendo uma perfeita continuidade de ação política, o império nipônico jamais atingiria, em prazo tão curto, a situação excepcional a que chegara. Em quarenta anos — período equivalente ao mandato de dez presidentes de uma República como a nossa — viera ele trazido pela mão de um só governante, da barbaria mais grosseira à civilização mais polida; e onde encontrar, em uma democracia, dez presidentes orientados pelos mesmos princípios, animados pelo mesmo pensamento, tentados pelos mesmos ideais e visando as mesmas conquistas? O México, fatigado de lutas internas, quando quis, um dia, repousar e progredir teve que ir buscar Porfírio Diaz e estabelecer, para além das fachadas da República, os fundamentos de uma bem caracterizada monarquia...

Os exemplos são, talvez, excessivos para o Brasil. Entre nós, os processos administrativos não variam de presidente para presidente, mas dentro da gestão de um mesmo presidente. Quem, em finanças, começa metalista, acaba, invariavelmente, fazendo emissões de moeda papel; e quem jura, no primeiro dia de governo, respeitar a autonomia dos Estados, termina, igualmente, por bombardear as suas cidades, investindo contra todas as regalias das províncias constitutivas da República. E daí esse báratro, essa confusão, este ir e vir de ideias e atos, essa teia de Penélope, essa obra de Santa Engrácia, a que o pedreiro, depois de trabalhar todo o dia, atira dinamite durante a noite; enfim, esse rolar de pedra em que Sísifo, após vencer metade da encosta, atira, voluntariamente, o rochedo, montanha abaixo...

Diante dessa desorientação, sobe, naturalmente, à lembrança, aquela famosa estátua de Nabucodonosor, em que os artistas assírios mesclaram o barro e o ouro, ou, por mais pitoresca, a popular história da imagem de São Saturnino, contada pelo velho tradicionalista sul-americano Ricardo Palma nas suas Ultimas traduções peruanas. O vigário de certa vila da cordilheira havia encomendado para Lima, a um santeiro, uma imagem da Virgem Maria e outra de São Saturnino, avisando-o, entretanto, de que a da santa, que era a padroeira do lugar, devia chegar primeiro, e com urgência, a fim de ser inaugurada solenemente no dia da respectiva festividade. Para esta cerimônia, que se desejava animada e soberba, foram, desde logo, ensaiadas as homenagens mais comoventes e fervorosas, entre as quais um hino votivo e cândido, composição do próprio vigário, e que devia ser cantado pelas mais encantadoras raparigas da terra.

Na manhã do grande dia, quando já se colocavam na igreja os últimos castiçais areados, chegava de Lima, de fato, uma grande caixa, que devia trazer a imagem ansiosamente esperada pela vila. Aberto o volume, foi uma surpresa: em vez da figura da Virgem, o que estava dentro, por engano ou má compreensão do santeiro, era a de São Saturnino! Mesmo assim, o vigário não se afligiu: a festa de Maria Santíssima seria feita em louvor do Santo, para o qual foram transferidos, de pronto, atabalhoadamente, preces, ladainhas, dísticos dos altares, e até o próprio hino, que, emendado às pressas, foi cantado, à noite, no coro, do seguinte modo:

Glorioso San Saturnino

Que nunca os olvidéis-vos

De que fuistes escogido

Para ser madre de Dias!

Tal qual no Brasil: hino com música de programa governamental, que se prepara para a Virgem Maria, acaba, fatalmente, tocando a São Saturnino!

PALAVRAS DE SONÂMBULO

Andou-se a falar, há dias, em uma possível substituição de ministros, ou, como se diria antigamente, em uma provável queda de Gabinete. Nada, entretanto, sucedeu, e isso em virtude, ao que se diz, de não haver o chefe da nação manifestado claramente o seu pensamento em relação à saída de alguns dos seus secretários.

A propósito da atitude serena, da insensibilidade superficial e hábil de que deu provas no momento o chefe a que se acham politicamente ligados esses funcionários da alta administração, contava, anteontem, na Câmara, um velho jornalista do norte, uma oportuna e curiosa anedota. Certo indivíduo, conhecido como vivedor aboletou-se no caminho da sua vida, no solar de um homem bonacheirão e abastado, que lhe abrira as portas para um descanso ligeiro. Nos primeiros dias, o dono da casa suportou galhardamente o hóspede, oferecendo-lhe o melhor prato, fornecendo-lhe a melhor cama, o melhor vinho, os melhores charutos. Passada, porém, a primeira quinzena, começou a pensar em um meio, que não fosse grosseiro, de livrar-se do importuno. E achou-o. Tinham os dois acabados de almoçar e repousavam, lendo jornais, e fumando "havanas”, à sombra das árvores. De repente, o hospedeiro recosta - se pesada- mente na cadeira, cerra os olhos, deixa cair à folha e o charuto, simulando um sono profundo. E, como em sonho, principia a falar:

— Vejam só: que maçada! Esse cavalheiro vem, aloja-se em minha casa, come, bebe, fuma, diverte-se, e nada de entender que a sua presença já me está sendo desagradável! Será possível que ele não compreenda isso...

E, soltando um suspiro, pulou da cadeira, esfregando os olhos, e murmurando:

— Que diabo! É eu dormir depois do almoço, vêm-me logo os pesadelos. E que sonho mal tive eu! Parece até que falei alto, não!

E o outro, que, cenho cerrado, prestava atenção a tudo:

— É exato: você esteve para aí, falando; e eu, como vi que se tratava de coisa de sonho, procurei não ouvir para não ser indiscreto. As palavras dos homens só têm valor, mesmo, quando eles as proferem acordados...

E o hóspede continuou na casa por mais três anos e quatro meses, isto é, até a transferência da propriedade, comendo do melhor prato, dormindo na melhor cama, bebendo do melhor vinho, fumando os melhores charutos.

O GALO E A PÉROLA... FALSA

Ainda não arrefeceu no cérebro dos apóstolos nacionais a ideia de trazerem ao dourado aprisco da civilização os bisonhos indígenas das altas sertânias de Mato Grosso. Os nossos Anchietas fardados persistem, como no primeiro dia, em alimentar a lâmpada vacilante da catequese profana, que é dia a dia soprada com maior força.

Valerá a pena, no entanto, continuar-se a manter esse remunerado serviço de arrancar à selva nativa os bronzeados irmãos de Paraguaçu? Representará, por ventura, um gesto de humanidade levar, com a camisa e a missanga, novas necessidades ao nhambiquara e ao parece que vivem perfeitamente sossegados nas suas malocas, sem incomodar o governo nem serem incomodados por ele? Se o governo tem, realmente, o desejo de melhorar a situação de todos os brasileiros, por que não começa pelo cearense sem pão, pelo carioca sem trabalho, pelo acreano sem justiça, pelo paraense sem liberdade? Para que ir pescar na quietude da selva, com a isca de palavras falazes e promessas irrealizáveis, novas vítimas para a fome, para a sede, para o vício, para o imposto, para as mil bocas que nos abre, a cada canto, a hidra de uma civilização feita? Para que atirar novos alimentos ao estômago pantagruélico da cidade, que ainda não digeriu o primeiro almoço recebido?

Discorrendo, uma vez, sobre essa pedra filosofal que é o problema da felicidade, Vicente de Carvalho contava uma anedota que foi buscar, por seu turno, em Couto de Magalhães. Estava esse infatigável sertanista em vésperas de deixar a taba em que se hospedara no Alto Araguaia, quando lhe apareceu, em despedida, o tuchaúa da tribo, o chefe dos caiapós. Com o intuito de ser gentil, o general convidou-o a descer até o Pará e, para tentá-lo, descreveu-lhe as vantagens da vida civilizada, falando-lhe das casas de cinco andares, das gravatas, dos coletes, dos chapéus, das botinas engraxadas, de tudo, enfim, que o homem criou para aumentar as suas torturas naturais. O caiapó ouviu-o em silêncio e, ao fim de alguns instantes, respondeu:

— E por que não fica você aqui, onde não se precisa de nada disso?

Os nossos catequistas, avaliando a moral indígena pela sua, supõem, talvez, que a civilização tenta o selvagem. Não imaginam eles, com certeza, que o bem-estar é um vício que só instiga o viciado, e, quando muito, aquele que mal se regenerou. O constante regresso de índios à taba natal, fugindo aperreadamente ao nosso convívio urbano, já devia tê-los convencido dessa verdade. O galo da fábula de Lafontaine, que encontrou no seu terreiro uma pérola, abandonou-a de pronto, porque não era um grão de milho:

“Je la crois fine, dit-il,

Mais le moindre grain de mil

Serait bien mieix mon affaire..."

Independente, mesmo, dessas cogitações filosóficas, qual a conveniência particular em ir buscar o índio à sua oca de palmeiras quando nós não nos encontramos satisfeitos em nosso palácio de pedra? Não seria preferível que o bororó nos viesse buscar a nós para a sua maloca, neste momento de apreensões que atravessamos? E essas apreensões não demonstram, porventura, que eles são mais felizes na sua ignorância do que nós com as nossas conquistas? Justino, nas suas Histórias Filípicas, aludindo à moral dos Citas errantes, entre os quais os crimes eram rigorosamente punidos, dizia que eles haviam lucrado mais em ignorar o vício do que os Gregos em conhecer a virtude: tanto plus in illis proficit vitiorum ignoratio, quam in his cognitio virtutis.

Não será esse o caso desses bugres felicíssimos — rudes galos insubmissos pelo bico dos quais nós queremos meter, à força, as nossas pérolas falsas?

O BRASIL E OS ALEMÃES

Vêde los allemães, soberbo gado,

Que por tam largos campos se apascenta...

Foi por esse modo que o nosso Camões, o "nosso luso Homero”, como dizia o clássico e suave Bernardes, apontou os homens de Além-Reno aos olhos portugueses. Era, relativamente, gentil... Nietzsche quando aludia aos seus patrícios tudescos, dizia — "os germanos e outros brutos”. Outro alemão, menos universal, mas igualmente admirado na própria Alemanha — Luiz Borne, o deutsch parisiense, o rival de Heine — sentenciava: "se os russos são escravos, os alemães não passam de criados...”.

Nós, por algumas vezes, em relação à Alemanha, temos temperado as nossas palavras com o fel de que se utilizavam o filósofo de Rocken e o êmulo do poeta de Dusseldorf. Em literatura de responsabilidade, porém, parece que a coisa mais grave que já se disse contra a Alemanha, em português, foi a frase do Eça, que, depois de dar ao Kaiser, nos Ecos de Paris, o título de Moisés II, a comparou nas Notas Contemporâneas, a um quartel besuntado de metafísica.

Em compensação, há, no Brasil, numerosos germanófilos que fazem disso grande alarde. O nosso ex-presidente, por exemplo, embora entendesse tanto de alemão quanto da ciência de governar, era um entusiasta de Guilherme II, dos zepelins, do passo medido e dos capacetes de bico, que nos foram impostos oficialmente. Outros brasileiros não se mostraram menos zelosos pela glória da “kultur”, convindo não esquecer o Sr. Dunshee de Abranches e, em particular, o meu grande e querido mestre Vicente de Carvalho, que ainda há pouco, fazia em São Paulo um brilhante elogio da Alemanha.

Para que, pois, essa indignação que reina, agora, em Berlim, contra o Brasil em geral? Por que nos acoimar a todos de negros, de indisciplinados, de bandidos, como fez, há dias, o Leipziger Neueste Nachrichten?

No tempo dos romanos, porque Calígula, nas Gálias, obrigasse os naturais a se pentearem à maneira dos alemães, e a falar a língua alemã, e a tomar nomes alemães, os germanos, desvanecidos com essa parcialidade, registrada por Suetônio, prometeram guardar aos conquistadores a mais absoluta fidelidade. Não surtirão, porventura, agora, igual efeito as imposições de caráter germânico que nos fez o nosso Calígula?

ESPUMA...

No Leme, à noite, frente a frente, em uma redonda mesa de "bar”, os dois homens de letras comentavam, ordenando frases, a vida mundana da cidade.

— Não há motivo para a tua revolta contra essa literatura ingênua dos cronistas de salão. Tua ojeriza é uma descaridade. Censuras tu, acaso, as outras manifestações da generosidade humana? Achas inconveniente um hospital, um orfanato, um asilo, um manicômio, uma dessas piedosas instituições que amparam, que socorrem, que consolam? Pois bem: a crônica elegante é a Assistência Pública da vida social. O cronista é o médico, é o enfermeiro, é a irmã de caridade. O comerciante, o banqueiro, o soldado, o artista, o homem de letras, a parte válida e ativa do mundo, consola-se por si mesma, anda por suas pernas, não consentindo, jamais, socorro estranho. O homem de sociedade, e que não seja senão isso é um pensionista da bondade alheia. Se lhe fecharem os celeiros cio elogio, ele desaparecerá como a planta morre sem água, e como morreriam os mutilados de um hospital no dia em que se cerrassem as largas portas da benevolência dos fortes.

— Em que aproveita à sociedade esse contínuo serviço de beneficência? Não será ela mesma prejudicada com a relativa igualdade copie se estabelece entre indivíduos úteis e indivíduos inúteis?

— Esse prejuízo é tão aparente quanto essa obra de caridade é evidente. A sociedade é um exército em marcha. Os homens que têm em si mesmos a força que os impele para diante esses seguem à frente, por seu pé, sem qualquer socorro dos corpos auxiliares da tropa. Os fracos, os incapazes, os que não têm músculos para vencer o caminho, toma-os a ambulância, isto é, a crônica elegante, e carrega-os, a pulso, piedosamente, na retaguarda do exército.

— Não seria preferível abandoná-los na estrada, para que fosse pasto dos lobos?

— Não. Alguns deles são meros simuladores da incapacidade que demonstram e, nesse caso, o abandono seria uma imprevidência. Deixados à margem, entregues a si mesmos, constituiriam, talvez, um novo perigo para as tropas em viagem, pois se transformariam de pronto, de elemento inócuo, em elemento pernicioso. Não te lembras daqueles soldados de Pedro, o Grande, que, abandonados, se tornaram em salteadores para atacar, de noite, o exército a que haviam pertencido?

— A crônica elegante é então...

— Um serviço de socorro e de vigilância: é a assistência médica e policial da sociedade.

Satisfeito, o poeta, que ouvia o cronista, levantou o seu copo, em que um líquido fervente ainda punha caprichosos desenhos de renda:

— Por Flibbertigébbett!

— Quem era ele?

— Não te lembras daqueles amáveis demônios de Shakespeare, no Rei Learf este é aquele a quem dás o teu sangue: é o demônio a quem chamam, no Inferno, o Príncipe da Frivolidade!

Como se fosse o ninho desse mal gênio, o mar, batendo na pedra do morro mergulhado na noite, estourou em espumas...

A FANTASIA DE KORNER

Clarividência germânica entrou, positivamente, em falência. O artigo escrito para um jornal de Buenos Aires pelo general Korner, ex-organizador do exército chileno, é um documento em que se vê que a Alemanha possui, como todos os povos, os seus militares de opereta.

Procurando ver demasiadamente longe no futuro alheio, o Tirésias prussiano descobriu que o segredo da felicidade americana consiste na organização de uma grande e poderosa federação, de uma espécie de república dual, formada pela Argentina e pelo Chile. Reunidos os dois mais fortes rebentos da Espanha colonizadora em uma nação única, poderia esta, bem armada e bem rica, ditar as suas leis ao resto desta parte do continente, que lhe seria tributário, e pesar na balança das potências, atirando nela, arrogantemente, em todas as oportunidades, a ameaçadora espada de Breno.

A simples exposição desse plano mostra que a farda, mesmo na Prússia, não é incompatível com os temperamentos ingênuos, e que o próprio Cândido, de Voltaire poderia ser general na Alemanha, batalhando ao lado dos von Bulow, dos von Hindenburg, dos von Mackensen. Que não é outra coisa, senão ingenuidade, pretender pacificar o mundo pela concentração dos interesses dos povos, com a formação de grandes nacionalidades, quando a história vem arrastando na sua corrente tormentosa uma infinidade de demonstrações absolutamente contrárias.

O progresso, em biologia, é manifestado pela transformação do homogêneo em heterogêneo. Foi assim que Spencer explicou a origem da vida, indo buscar no axioma da cosmogonia dos egípcios, que Orfeu introduziu na Grécia, o material para essa concepção. E o progresso dos povos é como o progresso biológico: está na razão direta da sua fragmentação, da sua divisão, da formação de pequenas coletividades. Os gregos compreenderam politicamente isso, diante da derrota constante dos grandes impérios asiáticos. A república de Atenas não ia limito além dos muros da cidade. Esparta não era maior; e nem mais vasta, nos seus dias de prosperidade, a república de Corinto. O ateniense, banqueiro na ágora ou agricultor nas imediações, ia ele mesmo, tomar parte nos negócios públicos, fiscalizando em pessoa a atitude dos seus delegados. Nos tempos modernos há exemplos igualmente eloquentes. Quais os países mais ordeiros, mais pacíficos, de organização política mais harmônica e perfeita? A Suíça, a Bélgica, a Holanda. E quais os mais agitados e de ordem mais periclitante? A Rússia, a Áustria e a própria Alemanha, onde a disciplina e as virtudes de obediência da raça não puderam suprir de todo os inconvenientes da extensão territorial, — o que vale dizer da diversidade de interesses. Já se disse, mesmo, que a paz na Europa só será conseguida, definitivamente, por uma profunda alteração do seu mapa, pela criação de novas nacionalidades, tendo em conta as questões de raça, de origem, de tendência. A nossa própria situação no Brasil não será um documento contra a formação de grandes repúblicas, de grandes naus impelidas por uma só hélice o governadas por um único leme? Não foi por ignorância, mas por sabedoria, que os romanos, apertando a terra nos braços, se dividiram em dois impérios...

O general Korner não passa, pois, de um fantasista. A federação chileno-argentina é um absurdo, não só por ser um sonho irrealizável, como por constituir, de todo o ponto, uma concepção sem fundamento na razão ou na História. A América do Sul, como a do Norte, como todos os grandes governos atuais, tende a fragmentar-se, há proporção do seu desenvolvimento. O progresso, nos povos, como em química, e como o cenário restrito das sociedades, caracteriza-se, sobretudo, pela individualização dos seus compostos.

BIBLIOGRAFIA DIPLOMÁTICA

Fome de informações que castiga as entranhas patrióticas dos nossos Ugolinos da Câmara vai, enfim, ser satisfeita: o Itamarati, seguindo o exemplo da política do Velho Mundo, cuida, neste momento, da publicação de um Livro Verde, em que os internacionalistas amadores encontrarão o histórico dos nossos passos, pulos, e rasteiras diplomáticas no palco em que se vem representando essa infindável tragicomédia mexicana.

Os maldizentes, as bocas praguejadoras que se não fecham reverentes mesmo diante dos intuitos mais respeitáveis, propalarão, talvez, que se trata de um gesto ridículo da nossa austera chancelaria. Dir-se-á que é a manifestação definitiva do nosso grotesco espírito de imitação, que já nos valeu, no continente, a conquista de um apelido e de um símbolo, representados pelo macaco e pela banana. E, no entanto, nada mais injusto, mais infundado. Robespierre costumava dizer que os grandes homens só podem ser julgados convenientemente pelos seus iguais. Só a montanha pode olhar a montanha. Só a águia pode conhecer o destino da águia quando esta envereda pelos ilimitados caminhos do céu... Como, pois, pretendermos, nós, formigas do chão, compreender os desígnios das zumbidoras abelhas do Itamarati?

O nosso ministério das Relações Exteriores é composto, como é notório, pela flor da cultura brasileira, constituindo, portanto, a aristocracia intelectual do país. Sendo o povo a raiz da árvore nacional, isto é, aquilo que é antípoda à flor, é evidente que não pode julgar dos méritos desta. O que lhe incumbe é sustentá-la, enfiando abnegada e humildemente as antenas pelo solo, à procura de seiva com que lhe alimente o luxo das cores e dos perfumes, lá em cima, entre as carícias doces do sol e os galanteios suspirosos do vento... A raiz nunca perguntou ao ramo o que foi feito do sangue vegetal que lhe deu, ou que destino tiveram — se rebentaram em frutos ou feneceram estéreis — os botões que, pelo seu esforço, abriram no alto, na primavera... Não estando ao mesmo nível, como poderemos assegurar se é ridículo, ou não, o que faz a Sublime Porta da rua Larga?

Depois, um livro, qualquer que seja a cor que o particularize, é sempre um sinal de progresso. Lamentável seria se o Sr. Lauro Muller não aparecesse com o seu, e insistisse em entrar para a Academia de Letras unicamente com o A. B. C...

O SEGUNDO FILIPE

Humilhado por Átala, soldado de Filipe da Macedônia, o adolescente Pausânias procurou insistentemente o tirano, pedindo-lhe vingança (querelam Philippo sape detulerat). Filipe, como resposta, elevou Átala ao generalato (et honoratum insuper ducatu adversarium cerneret). Certo dia, em uma data de festa, quando se encaminhava para o teatro, sem guardas (sine custodibus corporis), entre os dois Alexandres (inter duos Alexandros), filho e genro, ao passar por um lugar escuro e estreito (occupatis angustiis), é o grande macedônio apunhalado nas costas pelo pequeno inimigo que conquistara...

Eu não sei se há, realmente, aos olhos de todos, como aos meus, alguma afinidade entre esse relato das Histórias Filípicas, de Justino (lib. IX, VI), e o assassínio, ante ontem, do Sr. Pinheiro Machado. O audacioso Paiva Coimbra era na vida, segundo ele próprio conta, uma vítima dos soldados políticos do chefe conservador. Prejudicado, como toda a gente, pelo governo e, depois, pela nova candidatura Hermes, assistiu indignado, à promoção deste ao cargo de senador. Quarta-feira, dia festivo, ia o Sr. Pinheiro, sem guardiães, e acompanhado apenas de dois amigos, a uma visita. Ao passar por um ponto estreito, sob uma escada, o jovem inimigo aproxima-se e, como Pausânias a Filipe, apunhala-o pelas costas!...

É a História que se repete. O momento é, entretanto, inoportuno para os julgamentos definitivos. Só as consequências políticas do crime de anteontem nos poderão dizer, com segurança, se devemos agir como os atenienses, que levantaram uma estátua a Harmódio, assassino de Hiparco, pondo-lhe em uma das mãos um punhal, e na outra um ramalhete de rosas, ou proceder como os romanos, que se despojaram das próprias joias e dos próprios mantos, para atirá-los, chorando, à pira que consumia o corpo ensanguentado de César...

OS VETERANOS DE ALEXANDRE

Que irão fazer, agora, as hostes do Sr. Pinheiro Machado? Aderir ao governo? Escolher um novo general? Ainda ninguém o sabe. O golpe que feriu o Partido Republicano Conservador foi violento demais para que já se tivesse pensado nisso. O que é evidente, porém, é que essa organização política não pode sobreviver ao seu chefe. Ele era a cabeça pensante, o coração, a fonte de vida do P. R. C., e não há organismo que resista quando se lhe arranca o coração e se lhe decepa a cabeça.

Como devem agir, então, os companheiros desse homem forte? Continuar-lhe a obra? É impossível. O monumento político, iniciado pelo general gaúcho, não pode encontrar, para terminá-lo, outro arquiteto. Edifício sem plano definitivo, batido sobre o rochedo oscilante da República e construído, ora com o mármore da legalidade, ora com o cimento da ordem, ora com a lama da fraude, ora com a terra sangrenta dos movimentos revolucionários, só o Sr. Pinheiro Machado poderia, de futuro, assentar-lhe uma cúpula. E ele mesmo conseguiria isso? Não estaria ele próprio trabalhando na inglória reedificação de Babel? Melhor andariam, pois, sem dúvida, os seus amigos, em proceder como os antigos guerreiros do Oriente, que enterravam os chuços e as lanças sobre o largo túmulo dos seus capitães...

E nem haveria desdoiro nesse gesto, mas uma eloquente demonstração de dor e de orgulho. Outro tanto fizeram os veteranos de Alexandre. Quando o filho de Filipe se atirou a repetir a mitológica aventura de Dionísio, tentando a conquista da índia longínqua e misteriosa, os seus soldados, para se tornarem dignos do fabuloso país a submeter, fizeram cobrir de prata as suas espadas, e os seus escudos, e os arreios dos seus cavalos. Eram os “argiráspidas”. Morto o invencido capitão macedônio e atirado ao teatro do mundo o seu cetro glorioso, para ser levantado, um dia, pela mão do “mais digno”, os seus veteranos, os “guerreiros dos escudos de prata”, recusaram-se a servir sob outro chefe, regressando cada qual ao seu lar, a amanhar a terra e a recordar, desvanecido, as glórias irrepetíveis. E foi nessa atitude serena que, mais tarde, foi encontrá-los Eumênio, quando fugia, espavorido, aos vitoriosos soldados de Antígono.

Não seria, por acaso, a atitude mais recomendável aos veteranos do chefe desaparecido? Alexandre é morto! Que os seus soldados suspendam sobre as lareiras, para o culto doméstico das evocações, os escudos de prata, e as espadas de ouro, que a bravura de Alexandre lhes deu!

QUEM VAI DAR AS CARTAS

Vai ser escolhido para vice-presidente do Senado brasileiro, como substituto do Sr. Pinheiro Machado, o Sr. Antônio Azeredo. É uma feliz eleição. É Agatocles que sucede a Dionísio no supremo governo de Siracusa.

Dionísio era violento. Agatocles era jovial. Do primeiro dizia Diógenes que fazia aos amigos o mesmo que aos vasos da copa: enquanto cheios, despejava-os; quando vazios, despedia-os. Do segundo, o que se sabe é que levou, desde a adolescência, vida amável, confiando o seu destino ao capricho instável das oportunidades. Com Dionísio ou com Agatocles, porém, a República estará magnificamente servida. Se àquele sobrava a coragem, possui este a experiência das coisas financeiras, obtida nas altas transações em que se envolveu como intermediário, exclusivamente para servir o regime.

Que importa à Nação que o seu futuro 2° vice-presidente tenha sido na história parlamentar de todo o mundo, o primeiro homem de governo que fez a pública apologia do pano verde? Que tem isso, se Alexandre jogou, se jogou César, se jogavam Pit e Pox, se Cotegipe jogava e jogam, ainda hoje, os senhores Glicério e Pires Ferreira?

Seja como for, o Sr. Azeredo é o homem talhado para o "maior de espada”, no momento. Com ele, quando nada, pode-se parodiar, francamente, uma sátira dos romanos, relativa a Augusto, que se entretinha a jogar os dados enquanto a sua frota era batida nos mares da Sicília: se o país perde o seu crédito resta-lhe, ao menos, o consolo de ver o seu 2° vice-presidente ganhando no poker.

UMA FRASE DO GENERAL

Certo amigo, dos mais íntimos, do Sr. General Pinheiro Machado, memorava, há dias, uma palestra curiosa, em que o invencido político fizera prognósticos sobre a tragédia da sua morte. Tratava-se, em um círculo de senadores, dos riscos a que estava exposta a sua existência nos momentos de luta, e o Sr. Pinheiro teria sentenciado:

— Se eu tiver de ser assassinado, que seja a punhal, aqui, no Senado, como César.

— Se tal suceder — atalhou um dos presentes — fique certo, general, de que haverá uma hecatombe!

— Sim — retrucou irônico, o chefe conservador — haverá uma hecatombe... Se o golpe falhar!

Qualquer interpretação que se dê a esta frase, encontra-se, nela, um dos dois traços fundamentais e característicos da individualidade do vice-presidente do Senado: cepticismo ou vingança, incredulidade ou bravura; enfim: a confiança em si mesmo e a absoluta, profunda, serena convicção da insinceridade daqueles que o rodeavam.

Realmente, que teria sucedido se o golpe de Paiva Coimbra falhasse? Não haveria, de fato, uma hecatombe, fosse pela revanche do leão mal ferido, fosse pela atitude indomável da famulagem, ansiosa de se recomendar às boas graças do homem poderoso pela manifestação escandalosa de uma indignação que não sentia? E, como ele morreu que é da hecatombe? Onde as demonstrações de dor sincera e indignada de tantos políticos que ficaram órfãos, de uma organização partidária que ficou viúva?

O Sr. Pinheiro Machado era um psicólogo que, conhecendo a generalidade dos homens, se conhecia a si mesmo. A sua frase, eloquente e forte, demonstra a consciência da sua tirania, e prova que, como Cina, em Corneille, possuía ele a certeza de que

Le peuple, inégal à l’endroit des tyrans,

S’il les dèteste morts, les adore vivants...

BERNARDAS E BERNARDOS

Marechal de França, duque de Villars, que, entre vinte derrotas, levou à vitória as forças de Luiz XIV na famosa batalha de Flidlingen, costumava contar aos seus íntimos uma anedota, militar que encontra, agora, oportunidade de ser familiarmente repetida. O inimigo já havia sido batido e fugia, em desordem, por trás do outeiro onde a luta se empenhara, quando, como a queda intempestiva de um raio, se ouviu bradar, alarmadamente, no centro das próprias linhas francesas:

Nous sommes coupés!

A esse rugido de terror, os vencedores, cessando a perseguição do adversário desbaratado, deram-lhe as costas e, apavorados, atiraram-se para trás, fugindo. O marechal de Villars, procurando detê-los, gritou:

Allons, mes amis, la victoire est à nons! Vive le roi!

Vive le roi! — responderam os soldados.

E continuaram a correr...

Quem foi que, no combate aos remanescentes do Partido Republicano Conservador, gritou, anteontem, no Senado — nous sommes coupés! no seio das forças do Sr. presidente Venceslau?

SAUDADES DO CATIVEIRO

Um dos meus amigos mais diletos e joviais, viúvo da segunda mulher, casou- se pela terceira vez. Há poucos dias, após um ligeiro arrufo que durou exatamente quarenta segundos, e em que houve uma lágrima pequenina e um alto apelo retórico à foice recurva da Morte, o boêmio suplicou:

— Julinha, pelo amor de Deus, não queiras morrer! Com a Lucinda, eu vivia questionando, arrependido de me haver casado. Com a Sinhá, era a mesma coisa e, agora, contigo, é como vês. Mas, olha, não morras; porque, se morreres... Eu me caso outra vez!...

O Sr. Venceslau Braz, em política, é homem da feitura desse meu amigo. Quando o Sr. Pinheiro Machado era vivo, dizia o presidente que lhe era impossível agir por conta própria, independentemente, por lhe ser isso obstado pelo chefe conservador, colocado imperativamente em seu caminho, à frente do seu famoso troço político. Morre, porém, o Sr. Pinheiro; os seus jagunços, ante a queda do comandante, debandam, fogem, desaparecem; e é justamente o Sr. Venceslau que tem a lembrança de mandar à procura dos fugitivos, para que se juntem, se arregimentem, elejam outro capitão e venham, de novo, criar obstáculos à marcha do comboio governamental!

Os pássaros mansos, embora melhores do que as aves de presa oferecem desses inconvenientes: gostam, demais, de viver em gaiola...

AS RETIRADAS DO PARTA

O Sr. general Caetano de Paria, que deletreou a história militar de todos os povos belicosos, desde o egípcio, com o seu Sesostris, até o prussiano, com o seu vou Mackensen, já contou, provavelmente, ao Sr. presidente da República e aos seus pacíficos companheiros de ministério, o modo por que se combatia, aí por volta do primeiro século da nossa era, nas dilatadas planícies da Cítia. Por obra e graça do erudito soldado, os nossos estadistas já estão cientes de que nem sempre houve, na prática da guerra, o emprego do fuzil, da metralhadora e da granada de mão, e que datam de ontem, isto é, de pouco mais de seis centenas de anos:

Aquelas invenções feras e novas

De instrumentos mortais da artilharia.

E nessas explicações patrióticas, ilustradas com o retrato anedótico de feitos valorosos, o ilustre Xenofonte brasílico terá falado entusiasticamente dos Partas, cujos cavalos, ardegos e relinchantes, vieram galopando até nós pelas desoladas planícies do Tempo.

— Os Partas — teria começado o Sr. general Caetano, em doméstico despacho coletivo — eram um povo curioso. Para as ordens de ataque nas campanhas, não usavam, como as outras gentes, de ruidosas trombetas, ou de indignados gritos de guerra: rufavam soturnamente o tambor, e avançavam... A sua originalidade maior estava, no entanto, no exercício ginástico do combate. Não investiam em fileiras, em companhias, em batalhões: atacavam desordenadamente o inimigo, fugindo dele, muitas vezes, no momento de obter o triunfo. Esse recuo, essa fuga, era, porém, uma tática: visava distrair o adversário com a atividade da carreira e com o pensamento da vitória, para, de súbito, voltando rapidamente o cavalo, meter-lhe uma certeira flecha no peito. E foi assim que eles, durante mais de seis séculos, resistiram ou venceram todos os contrários, inclusive o romano, ao tempo em que este enfeixava na mão, alto e soberbo, o supremo domínio do mundo...

Quando os ministros se retiraram, o Sr. Venceslau Braz apoiou, sem dúvida, a cabeça nas mãos, e pensou admirado:

— Como o Pinheiro sabia História!

A VINGANÇA DO DIABO

Entre as hostilidades que se faziam, outrora, portugueses e castelhanos, figura, em agudo relevo, a que se contém no famoso caso do irlandês David Ouguet, mestre de obras do mosteiro da Batalha, eruditamente celebrado por Herculano em polido e sonoro capítulo das “Lendas e Narrativas”. Certo dia, quando na soberba fábrica, já concluída, se representava, na presença de El-rei D. João I, um dos pios autos do tempo, foi ouvido no edifício um inopinado motim, que interrompeu sacrilegamente a beata cerimônia: era mestre Ouguet que havia endoidado, e fugia pela casa, aflito, como se lhe houvera entrado pelo corpo, atrás da alma, a temerária malignidade do demônio. No desejo de salvar aquele cristão perseguido das potências infernais, frei Lourenço Lampreia, prior do mosteiro, correu sobre o arquiteto, gritando-lhe este esconjuro formidável:

— Cão tinhoso, espírito das trevas, enganador, maldito, luxurioso, insipiente, ébrio, serpe, víbora, vil e refese demônio; enfim, castelhano: em nome do Criador e senhor de todas as coisas, te mando que repitas o credo ou saias deste miserável corpo!

Insultado assim, o Diabo acabou por abandonar a alma irlandesa de mestre Ouguet; ao regressar, porém, ao seu antro de fogo, ia o sujo lebréu cogitando de vingar o espanhol, tão vivamente insultado na surpresa daquele momento. Queria, no entanto, que essa vingança humilhasse, em situação igualmente grave, o brio português.

E essa represália foi praticada no Brasil, três séculos depois. Andava pelos nossos sertões do norte, estudando-os, o explorador Hans Staden, quando caiu prisioneiro dos tupinambás, que o supunham português e desejavam cevar na sua carne todo o ódio que então votavam aos audaciosos sertanistas da península. Debalde o loiro Staden reclamou contra o engano, dizendo-se francês, e, consequentemente, aliado e amigo, mostrando, como documentos da sua origem, o ouro dos seus cabelos e a viva safira dos seus olhos; o selvagem continuou incrédulo, aguardando provas mais convincentes e engordando-o, dia a dia, para que mais saboroso se lhe tornasse o manjar. Estavam um e outros, nessa expectativa, quando foi o prisioneiro arrastado, certa noite, para o terreiro, a fim de ser examinado pela bugrada, que continuava duvidosa. Sentindo-se perdido, o sábio não se conteve: rompeu o dique das lágrimas, e pôs-se a chorar um choro triste, fundo, puxado do coração. E essa fraqueza ia sendo o seu infortúnio. Vendo-o acobardar-se diante da morte, os selvagens, que não estavam seguros da identidade da presa, romperam em grande alarido, gritando aos pulos, e batendo palmas de contentamento.

— Chorou! Chorou! É português! É português!

Quem poderia soprar essa cortante ironia aos ouvidos desses brutos isolados do mundo, senão aqueles sujos lábios que juraram vingar, séculos antes, o castelhano, quando ironicamente ferido pela santa boca de frei Lourenço Lampreia?

O DISCÍPULO DO CARTAGINÊS

Há pouco tempo, em discurso na Câmara, o Sr. deputado Macedo Soares denunciou à Nação de os nossos navios de guerra não possuíam munição suficiente para sustentar, sequer, vinte minutos de fogo. Delações posteriores, partidas da própria Marinha, agravaram a ideia dessa situação, anunciando que a pólvora naval já não dá, mesmo, para as salvas festeiras e reboantes dos nossos dias de pacífica patriotada.

Neste momento em que o mundo é uma formidável orquestra de canhões, e em que os povos arrastam para os portões das fronteiras as uivantes matilhas da sua artilharia pesada, é, de fato, verdadeiramente estranhável que nos conservemos indiferentes, tranquilos, descuidosos, sem o sustento, ao menos, de um terra-nova regougante, que nos defenda, amarrado ao pilar solarengo do Pão de Açúcar, a porta da nossa casa! Pensaremos nós, porventura, que os salteadores desta noite tempestuosa da História se deterão atemorizados, diante dos vultos silenciosos do Minas Gerais e do S. Paulo ? Não saberão eles, mais do que nós mesmos, que os mastins daquelas gaiolas flutuantes ficarão tragicamente calados, por haverem morrido com fome de pólvora?

Sosseguemos, entretanto. Não tenhamos susto e confiemos no Sr. Alexandrino de Alencar. Quando esse almirante, solícito guardião da canzoada naval, abandonou os nossos grandes canhões de bordo à gafeira epidêmica da ferrugem, é porque possuía, sem dúvida, um plano de defesa incomparavelmente mais barato e profícuo: é que ele havia desprezado a tática dos Buyter, dos Duquesne, dos Nelson, dos Togo, dos Jellicoe, dos Von Tirpitz, para fazer ressurgir, arrancados aos quietos porões do Passado, os processos de guerra marítima do glorioso filho de Amílcar.

Abrigado à sombra frágil de Prúsias II, quando este foi batido em terra pelas forças de Eumênio, Aníbal, como é sabido, desviou a luta para o mar, onde contava, por meio de estratagema inédito, derrotar a armada inimiga. Conseguido esse novo norteamento da guerra, o engenhoso africano fez preparar centenárias de vasos de barro, nos quais encerrou, conforme é histórico, milhares de serpentes venenosas. E fez-se ao largo, à caça das proas de Pérgamo. Horas depois estavam as frotas à vista. Certos da vitória, os capitães de Eumênio ordenaram a abordagem. As galeras, tentaculadas de remos e empenachadas as velas, aproximam-se... A poucos metros, começam a cair-lhes no bojo, quebrando-se, grandes potes de lama. Ignorando o perigo, os inimigos de Prúsias II zombam da nova arma. De súbito, porém, principiam a sair dos destroços dos vasos, coleando nas tábuas, répteis inumeráveis, que se põem a correr doidamente pelos barcos. Estabelece-se a confusão. Os guerreiros, espavoridos, abandonam os arcos, os piques, as espadas, e fogem, subindo aos mastros, descendo aos refúgios, atirando-se à água, gritando, gemendo, mordidos de medo ou dos ofídios; ao mesmo tempo que, aproveitando o pânico, a desordem, Aníbal, de certo, os ataca, a flecha, a lança, a chuço, e mata-os e dizima-os... E ganha a batalha!...

Confiemos, pois, no Sr. ministro Alexandrino. Ele adotou, evidentemente, para a nossa defesa naval, o plano do cartaginês. E nem é por outro motivo, com certeza, senão para cuidar do preparo das novas munições, que esse honrado almirante abandonou os canhões e concentrou, ultima mente, todas as suas atenções em torno da ilha... das Cobras!

ASPECTOS DA CRISE

Piracuruca, no Piauí, arregimenta, como toda cidade sertaneja que preza a tradição, uma ou duas dúzias de assassinos convenientemente condenados. Tão sendo, porém, rica a municipalidade, o prefeito permitiu, e talvez ainda o permita, que os facínoras passassem o dia na rua, a procurar trabalho e alimentação, com a condição única de se recolherem de noite à cadeia. E como um deles, certa vez, chegasse um pouco mais tarde, quando a prisão já se encontrava devidamente aferrolhada, o prefeito, informado, chamou-o à ordem, ameaçando-o:

— Olhe, "seu” Sol-Posto, você está saindo do sério: se você continua a chegar à cadeia depois de fechada, eu dou ordem para não lhe abrirem, e você dorme na rua!

O outro caso é amazonense, e trouxe o selo literário local. Ocorreu em Lábrea, no rio Purus. O destacamento policial que guardava o presídio da cidade não recebia dinheiro há um ano, e morria à fome. Certo dia, reunidos em concilio, os soldados, por unanimidade, resolveram desertar; e, alta noite, quando Lábrea dormia, o destacamento atirou o armamento aos mururés da beira da água, tomou uma canoa, e desceu o rio, rumo de Manaus. Quando amanheceu, e o delegado, como de costume, foi visitar a cadeia, não encontrou um único soldado: apenas os presos, dentro, se perguntavam a razão daquela quietude em redor da prisão. A autoridade não se ateve, porém, muito tempo a refletir: correu ao prego em que estavam as chaves, abriu as células, ordenou aos detentos que se armassem e, embarcando com estes em outra canoa, partiu, rio abaixo, à força de remos, atrás dos soldados fugitivos! E quando foi no outro dia, a Lábrea assistiu a este espetáculo imprevisto: os soldados do destacamento, fardados, desembarcavam, no porto, custodiados pelos presos da véspera, que, metendo-os na prisão, ficaram a montar guarda, até que chegasse outro destacamento da capital...

O terceiro caso é inédito, e vem do sul. É recente e pula à memória, diante de um telegrama do Rio Grande, publicado agora pelos jornais. As forças federais destacadas na fronteira estão sem dinheiro há cinco meses. Em princípio de setembro, famintos, rotos, sem recursos e sem crédito, os soldados começaram a assaltar quintais, roubando galinhas e porcos. Na previsão de um levante, ou, pelo menos, de uma Jacquerie fardada, o comandante das forças, depois de conferenciar com a oficialidade, mandou tocar "reunir”, e, com voz de Napoleão ante as pirâmides, falou às tropas:

— Soldados! Nada há que mais degrade o homem do que o roubo, mesmo quando necessário. O governo não vos paga, mas não deveis roubar. E para que não vos amesquinheis diante de vós mesmos, eu vos vou facultar um meio de não morrerdes à fome: de hoje em diante ficais dispensados de revista: ide trabalhar, ide pescar, ide procurar o que comer!

E eis porque, há dois meses, não se ouve, em São Gabriel, o toque de "reunir”, e porque, para ver as forças brasileiras na primeira praça militar da nossa fronteira, o viajante tem, hoje, de percorrer as margens do Vacacaí, onde as encontra formadas, de cócoras, de caniço na mão...

OS TIGRES E OS PÁSSAROS

Repercussão que teve na Câmara dos Deputados o formoso discurso patriótico de Olavo Bilac, não foi, positivamente, das mais consoladoras. O escudo ressoante da alma brasileira, ferido, no alto, pela mão do poeta admirável, parece não se achar inteiriço; houve um ponto que não vibrou, como se estivesse partido...

A maior parte dos deputados, desiludidos de um gesto heroico das forças populares, imaginaram, talvez, que o interesse pelas coisas do país não ia além das austeras colunatas do Monroe, e que a consciência nacional não palpitava senão nas 212 cordas da grande harpa legislativa da Câmara. Sonoridade que dali não partisse movimento que não tivesse ali o seu início, a sua gênese, a sua vibração originária, não podia encontrar percussão na face triste e silenciosa da terra. Sendo o Senado uma espécie de nariz da Pátria, que se limitava a absorver e a espirrar sem estrondo o grosso rapé da politicagem, era natural sempre a Câmara se julgasse (e realmente se julgava) a única e grande boca falante, interpretadora dos sentimentos cívicos da Nação. E daí o seu espanto, senão a sua incredulidade, quando sentiu que a consciência do país se manifestava por uma larga e profunda harmonia, provinda de uma lira maravilhosa a que um novo Terpandro, impressionado com os graves males da sua gente, acabava de acrescentar uma corda!

A Câmara dos Deputados é, entretanto, injusta na sua dúvida e inclemente na sua vaidade. Os poetas, penso eu, não querem arrancar aos políticos a prerrogativa, que a estes pertence, de salvar a nacionalidade. O que eles fizeram, foi, como as aves previsoras, piar mais alto do que de costume, porque ouviam ao longe os cavos rugidos da tempestade. A sua função foi a das procelárias: anunciar a tormenta que se avizinha... Aves desta fauna, eles estão, como o numeroso gado selvagem que exerce a rapina sangrenta na trágica escuridade da selva, sob a proteção das mesmas ramadas, à sombra da mesma floresta. E se os seus ninhos, como as propriedades mais frágeis, têm de ser os primeiros lares a voar, desmantelados pelas bochechas eólicas do furacão, por que não se há de permitir à ave que anuncie, agudamente, aflitamente, a amedrontadora aproximação do temporal?

Que os políticos escutem com benignidade os que cantam. Os gauleses nunca desprezaram o gorjeio dos pássaros, cujas gargantas interpretavam sob a cúpula das carvalheiras as vozes oraculares dos deuses... Solon, o mais sisudo e sábio dos legisladores, quando quis promover a guerra contra Mégara para a justa reconquista de Salamina, abdicou da gravidade legislativa e saiu a declamar versos alheios pelas praças mais movimentadas de Atenas...

Ouçamos, pois, os poetas. Os lobos, os leões, as hienas, os próprios tigres sanguinários, formaram no sonoro cortejo de Orfeu quando a sua lira, clara e triste, gemeu pela morte de Eurídice nas encostas alpestres do Ródope.

O CONGRESSO DOS NOTURNOS

(Redator dos debates: Rostand)

Pelo Sr. Antônio Carlos, leader da Câmara dos Deputados, foi apresentado, anteontem, o seguinte requerimento:

"Requeiro que a Mesa fique autorizada a convocar sessões noturnas, sempre que julgar conveniente, para discussão e votação dos orçamentos”.

A discussão em torno desse pedido foi, mais ou menos, esta:

O SR. CARDOSO DE ALMEIDA

Vive la Nuit souple et bênoite

Ou nous volons d’une aile en ouate

Où, quand tout dort,

Grâce au mutisme de notre aile

La perdrix n’entend pas sur elle

Venir la mort!

O SR. CINCINATO BRAGA

Vive la Huit commode et molle

Où l’on peut, lorsque l’ou immole

Des lapereaux,

Ensanglanter la marjolaine

Sans avoir à prendre la peine

D’être un héros!

O SR. SOARES DOS SANTOS

Vivent les ombres qui sout nostres!

O SR. FELISBELO FREIRE

Le silence où dans tous nos rostres

Craquent des os!

O SR. RINEU MACHADO

La fraicheur où, tiède, tu gicles

Sur les verres de nos besicles,

Sang des oiseaux!

O SR. MOREIRA DA ROCHA

Vive le roc d’où la peur suinte!

O SR. OTACÍLIO CAMARA

Le carrefour où, lorsqu’on chuinte...

O SR. ANTÔNIO CALMON

Il hue...

O SR. JUSTINIANO DE SERPA

Et huit...

O SR. HORÁCIO MAGALHÃES

Hôle et miaule...

O SR. SOUZA E SILVA

Stride et stridule...

O SR. HOSSANÁ DE OLIVEIRA

On fait se signer l’incrédule!

A COMISSÃO DE FINANÇAS

Vive la Nuit!

O SR. FREDERICO BORGES

Vive la tendeuse de toiles,

La grande Nuit dont les étoiles

Sont le seul tort!

O SR. MÁRIO HERMES

Car des regards sont inutiles

Lorsqu’en nos ongles rétractiles

Un col se tord!

O SR. BARBOSA LIMA

Vive la Nuit où l’on se venge

De la grâce de la mésange,

Car la Beauté,

Quand l’ombre a repris l’avantage

Reste à la Nuit comme un otage

Epouvanté!

O SR. EVARISTO DO AMARAL

Car on choisit lorsqu’on trucide!

O SR. ÁLVARO BATISTA

Et l’on prend, d’autant plus lucide

Qu’il fait plus noir,

Le geai de plus bleu sur la branche

Et la colombe la. plus blanche

Sur le perchoir!

O SR. LEÃO VELOSO

Vive l’heure où dans l’ceuf qu’on casse

On boit l’avenir qu’une race

Crut immortel!

O SR. CÉSAR VERGUEIRO

L’heure où nous chuchotons ensemble

Pour préparer tout ce qui semble

Accidentel!

A BANCADA MINEIRA

Vive l’ombre où la peur accrue

Nous fait régner!

O SR. RAFAEL CABE DA

Où, quand on hue...

A BANCADA RIO-GRANDENSE

Et qu’on kuit.. .

A BANCADA BAIANA

Lorsqu’on ulule...

A BANCADA PAULISTA

Et qu’on houloule...

O SR. NICANOR DO NASCIMENTO

L’aigle même a la chair de poule!

TODOS

Vive la Nuit!

O requerimento do Sr. Antônio Carlos foi assim aprovado por unanimidade.

A ORIGEM DO CIGARRO

Entre as músicas e perfumes do seu ruidoso serralho celeste, meditava, acariciando a santa barba venerável, o Profeta dos Profetas, quando Zobeida, a mais formosa das hurís, se aproximou do seu tomo de pedrarias:

— Sabes tu, ó Sombra, de Alá, Senhor dos Senhores, Maravilha das Maravilhas, que há escravas tuas, e das mais tentadoras, que te querem trair, abandonando a glória do teu Reino!

O Profeta franzindo a testa imensa em que os astros do sétimo céu se refletiam, indagou, com um violento estremecimento nas barbas, quem eram elas.

— São Zulima, a de olhos negros com as noites da Arábia; Amina, cuja beleza faz ardente como o Deserto; Faíma, de cabelos escuros como o pecado; Kiusa, que trouxe para a serenidade do Paraíso as tentações perigosas da terra; e Fatma, e Sobelha, e Radhia, e Boriha, e Saida, e Safia, e Zara, e Ariza, e Rokaia, todas, enfim, cuja fama conduz para as venturas da tua mansão, pelos sangrentos caminhos da vitória, os mais bravos guerreiros que se batem na terra pela sagrada glória do Crescente.

— Que faziam elas? — insistiu, irado, o Santo dos Santos, Maomé, a Sombra luminosa de Alá sobre o mundo.

— Trabalhavam, ó Maravilha dos Sábios, para deixar o esplendor do teu domínio e irem tentar os homens incautos na tristeza escura da terra. Enquanto outras gemiam de santo prazer sob os galhos de ouro do Lotos, arrancavam elas os fios dos seus cabelos perfumados como a tua sombra, juntando-os para a formação de uma escada imensa, por onde descessem do teu jardim acima das nuvens a embriagar com a ânfora do seu corpo a vida terrena dos teus guerreiros. Para dissimular a perfídia do seu intento, cobriam os fios, quando prontos, com a seda macia e branca dos seus véus. E tão amorosamente trabalharam, ó Senhor dos Senhores, Profeta dos Profetas, Maravilha das Maravilhas, que só descobri- rias, nesses fios velados de seda, que ali estão as tranças das tuas hurís mais formosas, pelo perfume enervante que exalam. Queres vê-los? Maneia surpreendê-las...

Antes que a nuvem da ira passasse, inteira, pela face luminosa do Profeta, quatro virgens, das mais jovens, lhe levaram, silenciosas, a obra das traidoras. Era um fio branco e contínuo, grosso como um pequeno dedo de criança e extenso como o poder de Alá sobre os homens. Disfarçava a cheirosa matéria de que era composta, um brando invólucro alvo como as névoas que se levantam do mar, e em que se adivinhava o fino véu das hurís. Ante aquela prova do crime inominável, premeditado pelas mais formosas virgens do Jardim das Delícias, o Profeta, com a cólera faiscando nos olhos irresistíveis, teve um gesto que fez oscilar as sete camadas do firmamento: arrancou o seu iatagã cravejado de rubis e de pérolas, e, cortando em pequeninos pedaços iguais o longo fio aromático tecido amorosamente pelas hurís, atirou-os, indignado, rumo da terra, pelas nuvens abaixo...

Esses pequeninos pedaços caíram, certo dia, em uma planície da Arábia. Beduínos que passavam, desceram dos seus camelos, juntaram-nos, e, reconhecendo o perfume que deles fugia, levaram-nos aos lábios, incendiando-os com o fogo dos seus beijos voluptuosos. E enquanto os beijava, o filho do Deserto sentiu o seu pensamento arrastado para o desconhecido, para remotos países de gozo e de sonho, ao mesmo tempo que as tranças cheirosas das hurís, ardendo em doce martírio silencioso, procuravam, de novo, nas volutas da fumaça em que se desfaziam, o esquecido caminho do céu...

POLÍTICA DE POLÍCRATES

A lembrança, que tiveram alguns deputados, de apelar para novos impostos, a fim de ocorrer a despesas públicas reconhecidamente adiáveis, é um magnífico documento para compreensão da moderna moral do Estado.

Os anarquistas possuem, na base do monumento babélico da sua organização, um quadro intuitivo em que se incute no espírito do neófito uma noção nova do imposto. O viajante vai por uma estrada deserta. Súbito, aparece-lhe à frente um salteador, e exige-lhe uma das moedas que leva. Considerando-se roubado, o caminhante, chegado à sua vila, cuida de entrar em acordo com outros homens honestos, a fim de assegurar o livre trânsito dos caminhos. Para isso, porém, é necessário armar e sustentar um corpo de guardas, que terá o caráter de instituição permanente. E o viajante, para não ser privado ocasionalmente de uma pequena moeda, fica a desembolsar forçadamente duas, na constituição e manutenção de uma força que o coage e o rouba muito mais do que o salteador! Essa força é, segundo os anarquistas, o Estado...

No Brasil, o Estado não é, felizmente, um soturno bandido de estrada: é um surripiador amável. Não reclama por necessidade irremediável: pede por hábito, às vezes por vício, ordinariamente por política. Não é Musolino: é Tartufo. Não é Fra Diávolo: é Mme. Daltro. Não é Tibério, que persegue por cupidez: é Polícrates, que ex- torque por conveniência.

Polícrates, tendo se tornado senhor de Samos durante as festas de Juno, inaugurou, ali, a mais profunda e curiosa das políticas: espoliar os amigos. Perguntado por que assim procedia, respondeu:

— É que eu dou maior prazer a um amigo, e o ligo mais a mim, em lhe restituindo aquilo que lhe tiro, do que se nada lhe tomasse, deixando-o tranquilamente com aquilo que lhe pertence.

É essa, no Brasil, a política do Congresso: arrancar a camisa ao povo, e devolver-lhe, depois, em serviços públicos. A diferença é, apenas, esta: é que não consta que Polícrates, tendo tomado uma camisa, devolvesse uma tanga...

ARCA DE NOÉ

Eu não tenho notícia de festa mais justa, nem mais oportuna, do que essa realizada há dois dias em honra do Cavalo. Que os homens mantinham, ainda hoje, o culto interesseiro do Bezerro de Ouro, eu o sabia: o que não estava no meu conhecimento, era a existência de sentimentos de justiça tão nobres, tão altos, tão dignificantes, como esses que foram postos em evidência no congresso hípico do campo de Santana.

Não, há, realmente, na terra, quadrúpede que mais mereça do homem moderno do que os pacíficos irmãos de Rossinante. Na guerra, para onde galopa corajoso, é ele que leva o soldado à morte ou à vitória, tombando anonimamente a seu lado. Na paz, arrasta-lhe a charrua, tira-lhe o carro, serve- lhe de montaria, ajudando-o a obter as colheitas, a economizar as energias, a vencer as distâncias. É pão; é amigo; é trono:

Sustenta o hipívoro, arrasta o dono na fuga e conduz sobre o seu dorso o gaúcho, monarca do Pampa. Ricardo III, em Bosworth, dava o seu reino por um deles. Dario, na Pérsia, por um deles teve o seu reino. Foi deus, foi demônio, foi mártir, chamou-se Pégaso, arrebatou as valquírias e os maus espíritos escandinavos, e tombou em legião, com o peito aberto, no túmulo imenso dos reis Citas. É Calvário e é Tabor, instrumento de prêmio e de castigo: arrebatou Mazepa na Ucrânia, levou Belerofonte entre os lícios, salvou Carlos VII em Poitava, esquartejou patriotas no Brasil. Serve, enfim, de tempos imemoriais, sofrendo sem recompensa e lutando sem glória, a vaidade do homem, o ódio do homem, as grandes virtudes e as grandes misérias da humanidade!

E já que se começa a reconhecer os serviços dos nossos pacientes irmãos irracionais, por que não homenagear, também, o boi, o outro grande mártir das idades? E o carneiro, que se oferece em holocausto, humilde e resignado. E a cobaia, que se dá, em hóstia viva, à ciência, para preservar, com o sacrifício de sua vida inocente, a vida pecadora e venenosa dos homens?

Não será possível, no mundo, o aparecimento de um Orfeu ou um Francisco de Assis, que se proponha a repetir a façanha de Noé, reunindo todos os santos bichos da terra na Arca de uma única religião?

UM POUSO NA GLÓRIA

Imprensa ativa e curiosa expôs, anteontem, à admiração dos indolentes, e para edificação destes, um velho e paciente operário da ladeira do Russel, na Glória, que há vinte e quatro anos, entre os lazeres da profissão, trabalha resignadamente na construção infindável do seu teto. Há um quarto de século, quando mais vigorosas lhe eram as forças e as esperanças, tomou essa formiga incansável o primeiro grão de areia, iniciando a realização do seu grande sonho; e daí por diante não houve domingo nem feriado, hora de folga ou momento destinado ao repouso, que não fosse empregado no transporte de uma trave, na colocação de um tijolo, no ajustamento de um barrote, na aquisição de uma telha, enfim, na corporificação daquele modesto e humano ideal.

Esse caso faz-me lembrar, agora, o lindo poema de paciência que Salvador de Mendonça contou, há dez anos, a Machado de Assis, quando este publicou o seu Memorial de Aires. Era a história de uma velhinha de S. João d’El-Rey, que principiara, nos dias floridos da mocidade, um delicado lenço de crivo, presente, talvez, para um namorado feliz. Depois, ou porque o noivo lhe morresse, ou lhe fugisse, ficou a triste Penélope a tecer com as alvas aranhas dos seus dedos aquela teia maravilhosa, em que aparecia um cavaleiro arrogante, embocando uma trompa de caça, cuja boca, afinal, o envolvia todo. E como esse mimo de linha era a teia da sua própria ilusão, aquelas aranhas se consagraram a ela por toda a vida, até que uma tarde, trêmulas, mirradas, extenuadas, pararam, para sempre, as suas idas e venidas pelos delicados fios do labirinto...

Essa mimosa história, que Salvador não precisava contar por inteiro para louvar o lenço de crivo, aliás, concluído, que era a obra literária do seu grande irmão, é apenas uma feição mais suave, mais espiritual, mais melindrosa dessa lição de tenacidade e de coragem oferecida agora aos homens por esse rude operário da ladeira do Russel. Fossem como ele todos os que sonham suspender uma parede sólida neste agitado e frágil acampamento da Vida, e seriam, sem dúvida, em maior número, aqueles que têm o seu teto levantado.... na glória!

PARA OS “DE CERIMÔNIA” ...

No Édipo em Colona, de Sófocles, quando o coro dos habitantes ordena ao filho incestuoso de Jocasta que sacrifique às divindades do solo que o hospeda, o grande cego interroga, tateando no vácuo: — Como devo fazê-lo? dizei-o, estrangeiros!

Ele era o vagabundo trágico, o maldito, o réprobo, a sombra, errante na terra e, no entanto, estrangeiro, era, aos seus olhos apagados, mesmo fora do seu reino, todo aquele que não procedia de Tebas.

Estrangeiro é, no Brasil, como na fórmula grega, o próprio filho do país. Assim o tratam os que nasceram com ele, e assim o apelidam os Édipos erradios a quem recebe, cantando em coro eumópico, no litoral farfalhante das suas selvas. E que o confirme esse honrado e laborioso sertanejo de Minas a quem os poderes públicos do seu Estado acabam de recusar a venda de uma pouca de gleba cultivável, porque esta se destina, e gratuitamente, a um lavrador que não seja nacional!

Os excessos de hospitalidade acarretam, às vezes, desses inconvenientes. Quando o pseudo sobrinho dos príncipes de Sória cai ferido, nos Maias, na desastrosa caçada da “Tojeira”, por uma bala inoportuna de Pedro da Maia, este, aflito, corre para a casa, gritando a Maria Eduarda:

— Isto só a mim, Senhor! E então o Alencar que ia mesmo ao pé dele... Podia antes ter ferido o Alencar, um rapaz íntimo, de confiança, até a gente se ria. Mas não, zás, logo o outro, o de cerimônia!

Entre nós, no Brasil, esse respeito pelo indivíduo que vem de fora, pelos “de cerimônia”, data de longe. Se os nossos antepassados tamoios e tupinambás tivessem deixado crônica decifrável, era provável que encontrássemos lá, no recesso bulhento da mata e nas cavernas sossegadas do tempo, a origem desses nossos hábitos ilimitadamente generosos. De quem eram, entre os nossos avós gentios, o cauim mais fermentado, a rede mais branda, a caça mais tenra, o cachimbo mais fumegante. Não era do estrangeiro extraviado ou audaz que pedia agasalho na taba?

Passem sobre nós, polindo-nos a rudeza da superfície, o buril dos exemplos e a lima das ingratidões; nós seremos sempre, no fundo, no âmago, no íntimo, descendentes inegáveis do indígena, que guardava para o gosto do hóspede as mais formosas raparigas da tribo...

CAIM E ABEL

A imprensa está anunciando que os Estados do extremo norte, rebelados contra a distribuição de 180.000 contos da futura emissão de papel-moeda, dos quais 150. 000 tocarão a São Paulo e 30.000, apenas, ao resto do país, pretendem formar uma aliança, uma coligação respeitável e sólida, destinada a reclamar para a região a que pertencem, um pouco mais de cuidados e de dinheiro. A borracha do Madeira e do Araguaia não constitui, em nossa balança econômica, um peso muito inferior ao do café do planalto paulista, e justo é, no entender dos seus representantes na Câmara, que se não deixe ao desamparo uma indústria que arrastava para o Tesouro Federal, até há pouco, a média anual de 70.000 contos.

Haverá, entretanto, motivo para essa reclamação em tom arrogante? Com a situação atual da baixa mendicância, enchem a rua, esmolando, pobres de todas as categorias, aleijados de todas as conformações, mendigos realmente necessitados e mendigos renitentemente viciosos. Todos pedem para comer. Um homem generoso ouve, um dia, bater à sua porta. São dois indivíduos que esmolam: um, branco, filho de italianos e bandeirantes, resultado de raças ativas e equilibradas; outro, caboclo, produto resistente da terra, herdeiro dos prejuízos e das qualidades heroicas de três correntes humanas fatalistas e sofredoras. O homem generoso abre a bolsa e dá a esmola. O primeiro, com a sua prata, compra pão para o lar e, com o resto, adquire a semente para a terra. O segundo, com a sua moeda, faz coisa contrária: mata a fome do dia e, com a sobra, vai passar a tarde na taverna, ou compra o cigarro e o fósforo para acompanhar com os olhos, de um banco de jardim público, as volutas indolentes da fumaça...

O homem generoso, que com a sua prata contribuiu para essas duas atitudes, para a realização antagônica desses destinos, sabedor do resultado da esmola, poderá, depois, de uma segunda vez, fazer donativos iguais aos dois mendigos? A Amazônia teve, há quatro ou cinco anos, por intermédio do Banco do Brasil, cerca de 40.000 contos para auxiliar a sua borracha. Que foi feito desse dinheiro? Quem o viu mais, mesmo na proporção de 5%?

Caim, segundo as Escrituras, matou a Abel porque este era amado do Senhor, que lhe não recusava as oferendas votivas. E por que o Senhor amava mais a Abel do que a Caim? Porque este era bom, era dócil e pagava, com certeza, em sacrifícios, os dons da terra que o Senhor lhe concedia... Por isso houve o primeiro fratricídio. E, por isso mesmo, como troveja o velho Hugo, Caïn tuant Abel est la stupeur de Dieu...

RELIGIÃO E ELEGÂNCIA

Comemorando o descerrar da 18a pétala de uma única flor que lhe enfeita a oscilante roseira da velhice, um deputado nortista, pontualíssimo frequentador de coros e altares, ofereceu, há dias, em seu magnífico palacete de Botafogo, uma elegante recepção a mais fina sociedade do bairro. Era uma festa absolutamente mundana. As lâmpadas ardiam, fixas, e o riso retinia, jovial, pelos salões animados, onde as casacas, serenas e espelhantes, contrastavam com a doce e arfante palidez dos decotes. Ante aquele contentamento comunicativo que os violinos e o piano sonoramente acompanhavam, ninguém se lembrava, com certeza, da brevidade da vida e da instabilidade da alegria. Ninguém repetia, ali, naquela hora de sonho ruidoso, as soturnas cogitações do Polieuto, de Corneille, curvando-se a examinar a contextura da felicidade, para ver se ela possuía, realmente, o brilho e a fragilidade do vidro. Se a mão misteriosa que surgiu no banquete de Baltasar houvesse aparecido naquelas salas faiscantes para anunciar, impiedosa, qualquer acontecimento inevitável, teria, sem dúvida, desistido do intento maligno, preferindo empunhar uma taça, ou aplaudir, num gesto novo, o choro arrepiado da orquestra e o comovido rouxinolear das senhoras. E foi no meio desse júbilo de um mundanismo capitoso, que o dono da casa, acentuando os seus graves deveres de propagandista católico, chegou ao centro do salão principal e, de cabelos e olhos iluminados, pediu:

— Minhas senhoras, meus senhores, convido-vos todos para beijarem, na capela da família, aqui ao lado da sala, a imagem de São José, benta por sua eminência, o Sr. Cardeal, hoje pela manhã.

E a elegante assistência, em que havia, ao mesmo tempo, ortodoxos e budistas, protestantes e maometanos — pagãos vendidos ao Diabo e cristãos emprestados a Deus — passou, inteira, e sob um silêncio de enterro, pelos frios pés de São José, deixando-lhe nas alpercatas minúsculas, como terrena homenagem pecadora, traços de rouge, brilhantina de bigode e um suave, brando, tenuíssimo perfume de pó de arroz...

A ilustre companhia comentou o fato, mas a ideia não era nova. A 15 de Agosto de 1817, casaram-se em Lima, no Peru, com toda a pompa do tempo e da terra, o brigadeiro D. Mariano Osório, valente soldado batido pouco antes pelos patriotas em Chacabuco, e D. Joaquina de la Pezuela y Zeballos, filha mais nova e menos feia do vice-rei Pezuela. A esposa deste personagem, D. Ângela, senhora fértil em inovações pitorescas, entendeu levar a efeito, nesse dia, uma das suas bizarras originalidades. E assim foi que, terminada a bênção dos noivos, dada cerimoniosamente pelo arcebispo Las Heras, a santa senhora D. Ângela, em vez de conduzir os convidados aos salões do velho palácio colonial, levantou a voz e começou a rezar um grande, um longo, um infinito rosário, que todos tiveram de acompanhar monotonamente até o fim. Feito isso, D. Ângela, após o sinal da cruz, agradeceu, compungida, o comparecimento da aristocrática sociedade limenha, e deu por terminada a festa.

O beija-pé do pio deputado brasileiro não teve, pois, nada de original. Se essas manifestações de piedade religiosa levam ao céu, o ilustre legislador indígena, quando se for deste mundo, já há de encontrar por lá, beatificamente, a senhora D. Ângela de la Pezuela y Zeballos.

UMA TRIBO PRUDENTE

Os primeiros portugueses que subiram o Pindaré, no Maranhão, falavam de uma tribo de índios de olhos azuis e grandes barbas aloiradas, que recusavam todo e qualquer trato com os colonizadores. Esse indígena, de que a maioria dos civilizados não viu, jamais, um único espécime, tomou o nome de "barbado”, e passou com ele ao patrimônio da lenda, em virtude de lhe haver sido vedada, por falta de melhores documentos de identidade, a solene entrada na História. Agora, com os últimos relatórios do arrojado empreendimento Rondon, volta o "barbado” a forçar a porta que o padre José de Morais, Berredo, Southey, João Lisboa e outros historiadores lhe haviam atirado ao nariz, recusando a realidade da sua existência na alvorada vermelhada nossa jovem civilização.

Verdade é que, apresentando esses novos bugres à fome da nossa curiosidade urbana, a missão Rondon não diz se eles, realmente, possuem barbas, e se essas barbas são louras, e se os seus olhos são azuis. Um ponto de contato existe, entretanto, entre os "barbados” do século XVIII e os seus homônimos do século XX; é que, uns e outros, são absolutamente indomesticáveis e constituem, hoje, a única tribo selvagem que ainda não permitiu o intercâmbio de cortesia e gentilezas com os nossos devotados embaixadores. Os catequistas nacionais têm conseguido, e com alto esforço, que esse bárbaro aceite, no meio da selva, nos limites sagrados do seu domínio, a missanga da cordialidade que o governo lhe envia: quando, porém, se trata de chegar à sua taba, visitar a sua maloca, desvendar os mistérios do inviolado reduto da tribo, o “barbado” oferece recusa imediata, apanhando esse desejo como um insulto, como um ato de audácia e de heresia. E assim vai vivendo sossegadamente na sua mata, comendo os seus frutos, saboreando o seu mel, frechando o tapir e armando ciladas à cotia, inteiramente alheio ao Sr. Farqhuar e independendo das oscilações do câmbio e das observações financeiras do honrado capitalista Baudinxo.

No seu incomparável sermão aos peixes, o padre Antônio Vieira, fazendo o elogio dos radiantes habitadores das águas, censura duramente o pagão Aristóteles, que os repreendera pela sua indomesticidade. Vieira encontrava justamente nessa bruteza do peixe um dos motivos para admirá-lo, argumentando que, no Dilúvio, enquanto o cavalo, o boi, o macaco, a rena e as próprias aves do céu pereciam, por haverem mantido absoluto ou relativo comércio de amizade com os filhos dos primeiros e únicos donatários do Paraíso, eles, os peixes, desde a montanhosa baleia, desde o militarizado espadarte, até à “irmã sardinha”, até o volúvel “voador” — irrequieta "borboleta das ondas” — eram não só excluídos da relação dos seres castigados, como recebiam, com o universal império das águas, o prêmio da sua sábia impolidez...

A amizade do homem adiantado é, pois, o maior pecado da terra aos olhos sapientes de Deus. E bem avisados andam, na sua brutidão, esses indomáveis “barbados” do Pindaré, hoje recuados para as longínquas matas do Poia, na margem direita do alto Paraguai, aos quais está, sem dúvida, assegurada a salvação, na hipótese bíblica de um segundo Dilúvio.

QUOD CORDIBUS CREDUNT...

Leio nas gazetas que o comércio está comparecendo de dois em dois dias, com as pernas dos seus delegados, à augusta presença do governo, para assegurar a sua perfeita confiança na administração e declarar, batendo o pé, que não pagará os novos impostos. Ferindo-me o ouvido essas declarações desencontradas, corro humilde, à Casa Professa da Companhia de Jesus, em Lisboa, no ano da graça de 1642, e ouço, ao lado do devoto Antônio Teles da Silva, promotor da pia festividade que se celebra, a palavra do meu glorioso padre Antônio Vieira, que prega o seu primeiro sermão de São Roque.

— Pode ser amigo da pátria e do príncipe aquele que aperta o ouro na mão quando vê o governo precisado dele para os honrados gastos da República?

E o santo pregador, como se me ouvisse as perguntas do pensamento: — “Não, não é. Não é mais fiel quem melhor discorre, senão quem concorre melhor. Se a fé é tão ardente como deve ser, veja-se luzir nas mãos. Apertarem-se as mãos é sinal de frieza, e que não arde fogo no coração. Amavam muito os Magos, e criam verdadeiramente naquele Rei que aclamaram em Jerusalém, e como sábios, vede a protestação que fizeram da sua fé: Procidentes adoraverunt, et apertir thesauris suis obtulerunt. Prostrados por terra adoraram, e abrindo seus tesouros, ofereceram. São Leão Papa: Quod cordibus credunt, muneribus protestantur. Na liberalidade com que davam, protestaram a verdade com que criam; e porque aí costuma estar o coração onde está o tesouro, fizeram os seus tesouros intérpretes do seu coração”.

— E se os Magos tivessem deixado os seus tesouros, fora do Presépio, nas costas dos seus camelos, devia o Deus recém-nato acreditar na devoção que lhe protestavam? — pergunto, de mim para mim.

Vieira olha para Antônio Teles, que tem comércio de especiarias no Brasil, e continua como em resposta:

—“Se víssemos que entravam os Magos no Presépio, e que, vendo naquele estado o seu Rei, lhe não faziam serviço das suas riquezas, que diríamos? Diríamos com muita razão que não criam nele verdadeiramente, e que aquelas cortesias foram enganosas, e aquelas adorações fingidas. Adorar e não oferecer, quando o príncipe está em necessidade; dobrar os joelhos e não abrir os tesouros, não é vício de avareza, é crime de infidelidade. Fé e liberalidade são virtudes sinônimas; e quem está duvidoso no dar, não está firme no crer. O que os Magos ofereceram a Cristo foi ouro, incenso e mirra; e dizem todos os Padres, e com eles conformemente a Igreja, que no ouro confessaram que era Rei; no incenso, que era Deus; na mirra, que era homem: Auro regem, thure Deum, myrrha mortalem"

Antônio Teles remexe-se no seu banco, e Vieira reata a pregação:

— “Pois se a fé se explica pela liberalidade, se o dar é sinônimo de crer, se a obediência dos reis se protesta com ouro nas mãos: Auro Regem; como não temerei eu, que há rebates de peste, ou suspeitas de pouca fé, quando a liberalidade se perverteu em cobiça, e em lugar de se pagarem tributos, pode ser que se multipliquem latrocínios? É bom gênero de fé, esta? Eu o direi. Perguntaram os ministros reais a S. Pedro, se havia seu Mestre de pagar tributos a César; e respondeu que sim. Mandou Cristo a Pedro que fosse pescar, que na boca do primeiro peixe acharia a moeda que se pedia: Et da eis pro me, ei te: Ei pagai Pedro, por mim e por vós. Notai: Cristo era Senhor do mundo; S. Pedro era príncipe da Igreja, e, contudo, diz o Senhor: Pagai por mim e por vós: Da eis pro me, et te; porque os tributos dos reis, principalmente em tempos de necessidades grandes, também os grandes senhores é bem que os paguem. Nos bens e males comuns ninguém é privilegiado; sintam todos o mal que toca a todos.”

À saída Antônio Teles disse-me que o sermão de Vieira não seria aplicável ao Brasil. Perguntei-lhe por que:

— É porque — respondeu com finura — é porque no Brasil quem pesca é César!...

POVO E ESPADA

Muita gente ainda se lembra, no Rio, do incomparável boêmio Paula Duarte, que ocupou, durante anos, um cargo de relevo na Secretaria do Senado. Depois de haver desempenhado na sua terra as funções mais ambicionadas e honrosas, inclusive a de membro do gracioso triunvirato que administrou o Maranhão no correr dos primeiros dias da República, Paula Duarte veio acabar aqui, na capital do país, os seus dias agitados, deixando como sulcos principais da sua passagem neste campo arroteável da vida, apenas uma porção de anedotas e ditos pitorescos, que demonstram, entre tanto, o que era, como máquina intelectual, a sonora e desarticulada charrua do seu espírito. E entre essas anedotas há uma, deficientemente conhecida no sul, que é colocada, agora, no xadrez da minha memória pelo dedo automático da oportunidade.

O triúnviro maranhense era, na sua província, um dos mais apaixonados propugnadores da cultura da vinha, da colheita do seu fruto e do aproveitamento abundante do vermelho sumo desse último; e daí a situação em que foi encontrado, a 16 de novembro de 1889, quando começaram as festas pelo advento da República nas longínquas terras do Maranhão. As suas pernas, menos seguras do que o regime que se implantava, pediam apoio e repouso; o povo, porém, aglomerado na praça fronteira ao quartel da força federal, pedia, insistente, a presença do seu tribuno, para que aparecesse, naquele momento, ao lado da oficialidade republicana.

Reclamado furiosamente, Paula Duarte, que já se havia excedido nas báquicas manifestações de regozijo pela instalação oficial da democracia perfeita, encaminhou-se para o elevado terraço em que as autoridades militares se mostravam à multidão, e, encostado ao peitoril, recebeu, piscando os olhos, a sua frenética tempestade de palmas. Serenadas estas, e feito o silêncio preciso para que a sua palavra fosse ouvida, o tribuno afastou-se ligeiramente da grade, tomando posição. E foi, justamente, quando as pernas o traíram: fraquejando elas, Paula Duarte tropeçou em si mesmo, indo amparar- se ao ombro do major Tavares, comandante das forças do Exército e seu futuro companheiro de governo. Da aglomeração popular subiu, nesse momento, um leve rumor de riso mal contido, espécie de sopro de brisa em madura superfície de canavial. O tribuno compreendeu a situação, fez-se senhor dela e, deixando-se na mesma atitude sobre o ombro do major, exclamou, solene, para a multidão:

— O povo amparado à espada, eis a República!

A assistência, ante aquele recurso do seu orador favorito, prorrompeu em aplausos ao futuro triúnviro, que, horas depois, era conduzido em triunfo pelas ruas esburacadas de São Luís...

São passados vinte e seis anos, e a gente tem desejos de perguntar se a República há feito jus, realmente, no Brasil, à interpretação que lhe deu o tribuno maranhense. O exército vem de tal modo sobrecarregando o povo com os seus marechais presidentes, com os seus generais senadores e governadores, com os seus coronéis, majores, capitães e tenentes deputados, que se sente vontade de acreditar, para harmonizar esta anedota com a verdade da história, que foi o major Tavares que se apoiou, há vinte e seis anos, ao ombro de Paula Duarte...

MAOMÉ E O SEU POMBO

Na planície de Meca, diante de uma caravana de vinte e cinco milhões de camelos, prega Maomé, falando aos árabes. A sua voz não é, no seu dizer, o eco do seu pensamento: é a expressão grosseira e sonora da verdade, isto é, da divina vontade de Alá, que lhe arrulha imperativamente aos ouvidos pelo bico eloquente do Espírito Santo. A assistência, em torno, balança as pirâmides alvas dos fezes, duvidando. De repente, para confirmar as categóricas declarações do sanguinário consolidador do Crescente, um pombo irrequieto, de asa ligeira e cabeça pelada, parte das torres da primeira mesquita e vem lhe meter o bico no ouvido, pousado no seu ombro. Diante daquele espetáculo, a multidão, que até então se mantivera indecisa, tomba, de rojo, por terra, cobrindo os olhos com o albornoz, arrastando as barbas na areia, rendendo graças a Alá... Quem, entretanto, estivesse próximo, havia de conhecer todos os segredos daquele mistério: o Espírito Santo não era senão um pombo doméstico, da intimidade de Maomé, e que voava para o ouvido deste, assumindo a responsabilidade da prédica, atraído por alguns grãos de milho que o profeta, para conseguir aquela simulação, colocava “reservadamente” na trompa das orelhas...

Quando o magro senador acabou de contar esta velha história, um deputado paranaense, adversário do Sr. Lauro Muller, acusador do Sr. Lafayette de Carvalho nesse caso da venda clandestina de armamentos aos ingleses, perguntou, malicioso:

— E quantos iatagãs iam ser vendidos aos cristãos?

Uma gargalhada estalou no grande salão da Câmara, e todos se retiraram com a convicção de que os árabes foram, realmente, o povo mais ingênuo da terra...

O SABIÁ E O XEXÉU

(A um erudito greco-latino que não sabe nem grego nem latim)

Tinham acabado os dois de celebrar a agonia do sol, que desaparecera melancolicamente por trás das montanhas polvilhadas de ouro e de cinza, quando o sabiá, limpando o bico fatigado na pena escura das asas, se dirigiu ao seu irrequieto companheiro de pouso:

— Que voz extravagante tens tu! Quem te ouve à distância não sabe se és um bicho da terra ou uma ave do céu: uivas como o cão, cantas como o galo, cacarejas como a galinha, muges como o boi, gemes como a rola, bufas como o gato, roncas como a onça, e és corvo, és saracura, és araponga, és sapo, és anta, és, enfim, a fauna inteira, baralhada, confundida, misturada em um coro sem escalas, que se tornaria, talvez, soberbo se não fosse incompreensível.

O xexéu voou para um galho mais próximo, deixou cair a película das pálpebras sobre os seus olhos redondos e azuis, e sussurrou, imitando um remexer de folhas:

— Que queres? Eu voo por toda parte. Vivo na cidade como na selva. O meu ninho longo, tu o encontras nas árvores dos jardins urbanos como na quietude da mata fechada, onde o visitam as cobras traiçoeiras. Alimento-me de tudo: da fruta silvestre, que cheira a monturo, que cheira a natureza, como do detrito da cozinha. Nessas correrias pelos ares e pela terra, onde os gaviões me perseguem e as juritis me beliscam, tenho decorado todas as vozes que ouço na minha passagem. Trago em meus ouvidos a lembrança de todos os rumores. Confundem-se-me na cabeça os cantos mais variados, que a minha memória retém e o meu bico mecanicamente repete.

— E sabes quem são os donos?

— Ah! É essa a minha tortura. Ouço aqui um asno, ali um bem-te-vi, adiante um bacurau, além um besouro, e apanho tudo; e como não me detenho a distinguir e disciplinar as vozes múltiplas que me atordoam, acabo por misturá-las, quando as repito, como se o grito fosse emitido pelo asno, o ronco pelo bacurau, e o zurro pelo besouro. Os outros pássaros zombam de mim, apaupando-me: a graúna assobia-me, o corrupião faz muckochos, a seriema gargalha, como se a natureza, unânime, se levantasse contra as audácias sonoras do meu bico.

— E uns cantos desconhecidos que soltas frequentemente, quem os ensinou! Nós nunca os ouvimos cantados aqui na selva. Não são do sanhaçu, nem do quero-quero, nem do anum-branco, nem do tico-tico, nem do pica-pau, nem da jandaia...

— Sim, são desconhecidos; pertencem a pássaros que já não existem, a espécies extintas e famosas. Nunca ouviste falar nos gansos do Capitólio? Pois são dos gansos do Capitólio, da fênix, do pássaro Roque, do pavão de Juno, da águia de Zeus, do mocho de Minerva, do pombo de Vênus, grasnos, arrulhos, gritos, gemidos, vozes de um mundo alado que se extinguiu, mas que encheu a terra com a sonoridade doce ou trágica da sua garganta polifônica.

— E ouviste alguma vez a fênix, a águia de Zeus ou os gansos do Capitólio?

— Não.

— E como sabes que eles cantavam assim? Consultaste ao menos os áugures, aqueles que lhes conheciam o mistério do voo e deixaram às novas faunas, com os ar- canos dessa língua ornitológica, os sonoros segredos dos seus cantos?

—Também não.

— Então, se não conheces o segredo dos sons com que exprimiam os gansos do Capitólio nem sabes com que antenas ziniam, nos loureiros de pelos, as ziziantes cigarras de Apoio, por que assobias por trás das folhas quando o melro ou o papagaio, que não são menos hábeis do que tu, repetem os ecos desse glorioso aviário desaparecido? Não te seria mais honroso, a ti, que fosses como eu, um honesto pássaro da tua floresta? Por que não cantas sem vaidade, sem pedantaria, sem alarde, com os sons naturais da tua garganta excelente, estes crepúsculos melancólicos, esta poeira triste com que o céu polvilha a verdura desfalecente das folhas, e estes rumores da noite, estas vozes selvagens que deviam ser ouvidas religiosamente por todos os ouvidos reverentes da terra? Sê da tua selva, da tua mata, ave da tua árvore, pássaro do teu ramo...

Era noite. O sabiá calou-se, fechando com tristeza os pequenos olhos inundados de sonho. No ramo próximo, o xexéu, fingindo dormir, pousava, quieto, com o bico debaixo da asa...

A ILUSÃO DE MIKERINO

Quando mais felizes corriam os dias do seu reinado, Mikerino, filho de Chéops, o construtor da mais soberba das pirâmides, recebeu do oráculo de Buto, o mais famoso e verdadeiro do Egito, uma sentença terrível:

— Rei — dizia a voz sobrenatural — o fim dos teus dias está próximo: viverás apenas seis anos; morrerás no sétimo.

Sabendo irrevogável a condenação e querendo, no seu orgulho, desmentir os deuses, o poderoso monarca iniciou, nesse mesmo dia, a intensificação da sua vida. Milhares de lâmpadas foram, nessa mesma hora, suspensas nos jardins, nos bosques, no muro dos monumentos, afim de que as luminárias, mudando as noites em dias, tornassem em doze os seis anos da existência de Mikerino. E para que maior fosse, ainda, a semelhança entre a noite e o dia, passava-os o monarca sem dormir, sem repousar, correndo, em caçadas fantásticas, pelas matas iluminadas, ou em passeios pelo Nilo, faiscante de luzes sinistras, em uma vertiginosa continuidade de prazeres, de gozos, de orgias desesperadas. E tão loucamente aproveitados foram esses dias, e essas noites transformadas em dias, que, ao fim de três anos, morria Mikerino, tendo vivido, na sua própria conta, exatamente os seis anos preditos pelo oráculo!...

Os homens que nos dominam estão lhe pedindo, hoje, no Brasil, a malograda experiência do filho de Chéops. O oráculo da consciência nacional já anunciou, como o de Buto ao soberano egípcio, o termo da sua tirania, marcado para uma época mais ou menos distante, e, talvez, adiável, senão “e" vogal, à custa de penitências e sacrifícios. E, no entanto, que fazem eles? Intensificam a orgia, a febre dos prazeres, a vida até agora vivida, duplicando a audácia nos negócios ilícitos, nos assaltos ao Tesouro, no rebaixamento da moral republicana, multiplicando, enfim, os próprios passos no caminho tumultuoso do abismo! E o resultado, qual seja a dilatação do prazo para a falência. Absolutamente, não. Os dias de Mikerino não são contados pelos sóis: contam-se também as ruidosas noites de luminária...

CALÍPIDE, REI

A ausência de um plenipotenciário grego no Brasil afasta, em absoluto, a hipótese de virmos a ter o Rio bloqueado, em consequência destes meus comentários, pela frota que Temístocles fundeou, há dois mil anos, no estreito de Salamina. E é por isso, na perfeita certeza de que estas palavras não motivarão quaisquer conflitos nas chancelarias, que aqui se assegura, em voz alta, que Sua Majestade o rei Constantino não descende dos Timóteos, dos Ifícrates, dos Milcíades, dos Cábrias, dos Trasíbulos, enfim, daqueles famosos capitães que encheram de tinidos de armas os mais belos períodos da gloriosa história de Atenas.

Eu não reconheço, realmente, nos anais diplomáticos dos últimos tempos, recuo mais lamentável do que este de que deu exemplo, há dois dias, com o clamoroso perjúrio para com a Sérvia, o complacente esposo da loira rainha Sofia. Posto fosse universalmente notória a tuberculose moral desse monarca — Hermes coroado que andou pelas cortes do noroeste europeu a fazer concorrência ao nosso, comprometendo, em arengas levianas, as relações políticas do seu país — não era esperável que ele, agora, quando se declara o incêndio nas vizinhanças do seu palácio de algodão-pólvora, corresse, ainda, a convocar o feminino conselho doméstico, para resolver sobre o destino urgente dos móveis. No momento em que a Europa, fumegando, pede homens, ele, que se anunciava preparado para a guerra, chega, assustado, com o contingente das mulheres. Em todas as capitais, presidindo à destruição da humanidade no altar flamejante da Honra, os gabinetes se congregam, e deliberam; ele, entretanto, reúne o seu exatamente onde, segundo Madame de Tencin, Filipe de Orleans não queria encontrar o dele: entre lençóis! Pede-se Alexandre para manter a palavra jurada — surge Sardanapalo, solicitando púrpura para o fuso; reclama-se Aníbal, conduzindo um exército — aparece Antíoco, pela mão de Agatóclia; convoca-se Napoleão, sacrificando cem mil homens por um rei, e dez reinos por uma batalha — e encontra Jaques II, de quem o próprio irmão, Guilherme III, dizia, sem reservas, que trocava três reinos por uma missa e todo o paraíso por uma mulher!

Entre gregos, o caso é raro. Um só houve, na história antiga, que justificaria, neste momento, o rei Constantino. Esse, não era, porém, nem Aristides, nem Cimon, nem Alcibíades, nem Epaminondas, nem Pelópidas. Chamava-se, única e simplesmente, Calípide. Era ateniense, e vivia em Roma no tempo de Tibério, a quem era, por ironia, comparado, a propósito da viagem que o imperador pretendera, durante anos, fazer às Gálias. Era histrião, e a sua habilidade consistia nisto: preparar-se para uma grande carreira no circo, imprimir ao corpo um forte impulso e... ficar no mesmo lugar.

É, pois, um puro descendente de Calípide, um mero histrião coroado, esse que se encontra, a esta hora, no trono oscilante da Grécia.

A PIEDADE DO CHINÊS

Há um interessante conto de Nathan Dean, em que se narra a história de certo imperador da China que, compadecido da sorte dos seus súditos, expostos, na rua, à fúria desapiedada dos temporais, recomendou a um dos mandarins seus conselheiros que providenciasse afim de que ele, piedoso filho do Céu, não visse mais um único chinês sem guarda-chuva. Dias depois, não se via, efetivamente, em Pequim, um único viandante sem esse abrigo: todos os que haviam sido encontrados sem ele foram imediatamente enforcados!

Conta, agora, um telegrama do Paraná que, devido a excelência do governo estadual, que tem saído a contento de todos os mandchús daquelas terras, vão desaparecer, até março, os últimos jornais oposicionistas, ficando no terreiro jornalístico somente as penas favoráveis à situação...

Terá o Sr. Afonso Camargo se apiedado, porventura, dos seus pobres adversários sem guarda-chuva.

ESPONJAS

O homem, descendente do macaco, é, por atavismo, desonesto. Não há homem que não furte ou que, pelo menos, não sinta tentações de furtar. A questão, segundo se deduz do tratado que sobre a matéria escreveu o padre Vieira, é, apenas, de oportunidade. A harmonia das sociedades depende, mesmo, e exatamente, da educação desse vício, isto é, de concertar a capacidade surripiante de cada indivíduo com as ambições e com os interesses da desonestidade de todos. O segredo dos bons governos não consiste, pois, em suprimir os desonestos, porque ninguém luta com a fatalidade; mas em conservar a harmonia do conjunto sem violência permanente sobre os indivíduos, isto é, em assistir ao ato de furtar, consentindo que o indivíduo exerça a sua função atávica, e providenciando para que essa função seja exercida com o mínimo de prejuízo para a coletividade. Em resumo: a missão dos governos consiste, não em guerrear o roubo, porque o roubo é invencível; mas em reduzir, tanto quanto possível, os efeitos do roubo, nas suas infinitas manifestações.

Um governante houve, na terra, que compreendeu isso com admirável sagacidade: o imperador Vespasiano, que foi, por sua vez, uma das maiores sanguessugas do povo romano. Durante o seu reinado, sabendo que não há homens honestos, nunca deixou de aproveitar os desonestos, mesmo os mais famosos, e isso sem o menor prejuízo para o erário do Império. A esses, dava ele, indistintamente, os cargos públicos em que se lidava com ouro, ou que rendiam ouro, consentindo que se locupletassem com os dinheiros imperiais; assim, porém, que os sabia ricos, apanhava-os de surpresa, sequestrava todos os seus haveres, fazendo voltar ao erário, quase sempre acrescido de juros, tudo que dele havia saído. A esses indivíduos dava o imperador o nome de “esponjas”, que ele, no seu próprio dizer, se encarregava de espremer, quando cheias.

O Brasil, como todo aglomerado de homens, possui as suas “esponjas”, algumas delas inteiramente repletas. O povo as aponta. O governo as conhece. A Nação as vê, apesar de pletóricas, sugando ouro pelos últimos poros. Não será chegado, porventura, o tempo de espremê-las?

OS QUE SABEM ESCREVER

Quando o ilustre Sr. Pandiá Calógeras era deputado apresentou à Câmara um projeto de lei relativo ao aproveitamento das nossas jazidas de minerais, ao qual se tem referido, nestes últimos tempos, um faiscante jornalista, cuja riqueza de estilo denuncia haver sido, em tempos recuados, o fornecedor de Sardanapalo e o explorador provável das fabulosas minas de Salomão. Redigindo esse longo documento, que agora se discute entre chispas de diamantes e maravilhosas fulgurações de ouro virgem, o legislador demonstrou, do modo mais categórico, não ser grego no assunto. Havia, pelo menos, muita erudição, muito atestado de cultura, e a prova de que, se não conhecia ele as minas brasileiras, os milagrosos veios auríferos da sua terra, não ignorava, em compensação, uma única particularidade das galerias subterrâneas da Sibéria, do Transwaal, da índia, da Suécia e do Orange, pelas quais enveredava, de olhos fechados, no silêncio do seu gabinete, guiado apenas pelo erudito Bedecker dos relatórios e dos compêndios.

Ultimamente, havendo passado de médico a farmacêutico, isto é, de deputado a ministro, coube ao laborioso legislador aviar a receita que anteriormente formulara, regulamentando a sua lei de minas; e o que é corrente é que o antigo parlamentar se viu em agoniadas dificuldades para manipular o seu recife, convencido de que era impossível misturar com proveito os ingredientes que ele próprio indicara!

Houve um tal Dr. Versoieff, galeno moscovita sobejamente conhecido dos seus êmulos brasileiros, que teve a resolver, um dia, um desses casos de consciência, como ele próprio conta, aliás, com louvabilíssima sinceridade, em um curioso livro de Confissões. O Dr. Versoieff, havia deixado a. Universidade de Moscou louvado e laureado pelos seus conhecimentos médicos, vitoriosamente demonstrados nas aulas. Saído, porém, da Universidade, sobraçando o canudo cosmopolita do seu diploma, o primeiro sucesso que obteve na clínica foi mandar para o outro mundo o filho da sua lavadeira, esfregando-lhe uma pomada que, quando estudante, dizia infalível, mas que, como enfermeiro, não soubera nem sabia aplicar!

De posse da pomada que receitou o Sr. Calógeras podia ter recuado na aplicação, confessando que a sua lei era, em verdade, irregulamentável. Entretanto, não o fez: regulamentou-a como deu a mão, lambuzando com ela, a torto e a direito, a pele do doente, a superfície metalífera deste país, que aparece, no caso, como o filho da sua lavadeira!

E como estamos a ceifar na seara dos exemplos, citemos mais uma anedota, que poderia ser universalmente aplicada no Brasil se todos os deputados fossem obrigados a interpretar e regulamentar, eles próprios, as leis que redigem:

— Pequeno, sabes ler e escrever? — perguntaram, um dia, a um garoto.

— Escrever, sei; mas, ler, não sei, não senhor.

— Que extravagância é essa?

— Já disse: eu sei só escrever.

— Então, escreve.

O gavroche, empunhando um lápis, faz, ao acaso, no papel, três ou quatro garatujas, simples riscos inexpressivos, e apresenta.

— Lê, agora, o que está aí — manda o curioso.

E o garoto:

— Mas eu não disse que só sabia escrever?

É o caso do Sr. Calógeras, e da maioria dos nossos legisladores: eles sabem, apenas, escrever...

OS MELHORES VERSOS DE 1915

Informam os textos sagrados (“Reis”, IV, 32 e 33) que Salomão disse três mil provérbios e mil e cinco cânticos, e não só "falou das árvores, desde o cedro, que está no Líbano, até o hissope, que nasce na parede”, como “também falou dos animais e das aves, e dos répteis e dos peixes”.

O Rei Sábio não precisava de tanto material, nem mesmo da sua famosa durindana de juiz, para que seu nome, atravessando séculos e desertos, ressoasse aos nossos ouvidos; bastava, para essa glória, o coração que geme no Cântico dos Cânticos. O fogo que aí acendeu é tão vivo, e foi tão apaixonadamente soprado, que, mesmo que o não alimentassem o cedro do Líbano e o hissope da parede, não seria jamais apagado pela água triste que jorra dos pisados olhos do Tempo.

O coração humano é como aquela nuvem que Hamleto mostra a Polônio, e que Paulo Saint-Victor utiliza numa série infinita de imagens. Essa nuvem pode tomar aos olhos de quem a observa os feitios mais caprichosos e diferentes. À mutação depende, apenas, do maior ou menor interesse com que a razão acompanha a sua eterna marcha silenciosa.

Heitor Lima, cujo livro repousa embalsamado pelos loiros que há dois anos lhe atiraram, é um desses poetas que trazem no peito a maravilhosa nuvem do príncipe dinamarquês. Os seus Primeiros poemas, aparecidos em 1915, não arrastam na sua corrente de harmonia os peixes nem as aves de Salomão. O amor fez, porém, aí, o milagre de Jeová, arrancando do nada, ou do quase nada, de um sentimento, todo um mundo de sonoridades e ideias.

Eu considero esse volume de versos a estreia mais brilhante porventura registrada em nossa literatura poética neste segundo decênio do século. Sente- se, efetivamente, nesse livro, um desses raros artistas sem pressas, um soberbo joalheiro que só escancarou a porta, expondo o seu tesouro maravilhoso, quando não lhe faltava ordenar um único diamante na fantástica via láctea dos mostruários. Outros surgiram, talvez, de roupagem mais impressionante, de gestos mais largos, e mais recomendados pela gritaria dos amigos: nenhum apareceu, porém, com essa feição de poeta definitivo, que se denuncia pela descrição dos motivos, pelo apuro da forma, pela pureza da linguagem, pela unidade da obra, pelas características, enfim, que revelam um trabalho paciente e ignorado, como esse de que a planta e a terra nos dão exemplo, quando nos oferecem, no galho ou no seio, o riso da sua flor ou a lágrima do seu diamante.

Heitor Lima está, há dois anos, silencioso. Os poetas são, porém, como a Natureza: não repousam. E é por isso que eu tenho o pressentimento de que, dentro de pouco tempo, o céu se iluminará com uma imprevista maravilha: a nova erupção desse vulcão de Golconda, que lançará para o alto, numa orgia de sons e de cores, a sua segunda explosão de pedrarias...

EGOÍSMO PERSA

Quando o sensato Usbek chegou a Paris, em 1711, tendo como bastão de viandante a pena de pato de Montesquieu, lá ainda se não falava, com certeza, na cidade americana do Pio de Janeiro. A aventura de Duguay-Trouin só teve lugar em fins desse mesmo ano, e não coube, sem dúvida, ao delicado sibarita de Ispahan provar, na França, das 400 caixas de açúcar apressadamente pirateadas em nossos engenhos cariocas. Houvesse, porém, participado um pouco mais tarde dos deslumbramentos da corte de Luiz XIV, e a sua curiosidade oriental teria entrado, de pronto, a sindicar sobre essas terras longínquas e dilatadas, descobrindo que elas se pareciam, de algum modo, com o exótico país em que deixara, sob os cuidados de Rustan, a superintendência das suas riquezas, a defesa da sua reputação e a guarda, delicada e impossível, das lindas mulheres do seu serralho.

Realmente, se o Rio daquele tempo era, sob todos os aspectos, o esqueleto da metrópole em que se tornou, o carioca de há dois séculos já possuía, para mal de todos e infelicidade geral do seu futuro, alguns dos seus prejuízos de hoje, os quais constituíam, há dois mil e quinhentos anos, os mais lamentáveis defeitos do persa.

Este povo era, de fato, original, nas suas relações com as outras gentes. Estabelecido no coração do Oriente, ele ajuizava das outras nações, das outras raças, dos outros habitantes da terra, de acordo com a distância que os separava da Pérsia. Assim era que os povos mais civilizados, mais adiantados, mais merecedores da sua estima e da sua confiança, seriam invariavelmente aqueles que lhe ficassem vizinhos, separados apenas pela divisão convencional da fronteira. Depois, vinham os que confinavam com estes, e sucessivamente, de forma que os mais distantes, os mais afastados pelo espaço, eram considerados indignos, por todos os títulos, da honrada amizade do mais bisonho soldado de Ciro. E essa convicção provinha de uma razão especial: é que o persa se considerava o mais perfeito de todos os tipos humanos, e achava natural que os outros povos fossem mais, ou menos, adiantados, na proporção do influxo aperfeiçoa- dor que dele recebiam.

Que o carioca se imagina, no Brasil, o persa desta nova Ásia, é verdade que se não precisa demonstrar. Quais são os brasileiros que o habitante do Rio mais admira, depois de si mesmo? O paulista, o fluminense, e, apesar da sua condição econômica e da faixa limitada do seu domínio, o próprio espírito-santense. O baiano, o pernambucano, o rio-grandense do sul, para citar apenas as tribos mais numerosas, surgem na terceira linha. E como ficam para além da distância que pode ser vencida pelo fôlego de um camelo, o mato-grossense, o paraense, o amazonense e, finalmente, o acreano, são tidos como bárbaros, sobre os quais apenas recai, em tempo invariável, o tributo pesado, e infalível, do persa da Guanabara!

E, no momento, urge acabar com essas predileções, que mais se acentuam quando manifestadas pelo governo, por ocasião de serem votados os favores que se distribuem, anualmente, no orçamento da Despesa. A união precisa considerar os seus filhos não pela distância geográfica, mas pela contribuição de cada um no monumento de ouro da Receita. O filho pródigo andou por longe, mas o pai, na sua ausência, não deu a nenhum dos pastores de perto o carneiro que lhe devia caber como herança...

A MORTE DA ELOQUÊNCIA

A situação do foro criminal no Rio de Janeiro está reclamando, neste momento, a palavra lamentosa de Júlio Segundo, no Diálogo dos Oradores, de Tácito. Como em Roma, na infância do genro de Agrícola, os antigos frequentadores do foro carioca perguntam ansiosos, onde andam os seus Marcelo Eprio, os seus Crispo, os seus Calvo, os seus Celio, cujos nomes podiam soar, talvez, como os de alguns latinos, in extremis partibus terrarum. Há, por tudo, em nossas coisas forenses, uma tristeza, um desânimo, uma silenciosa agonia de cemitério. A tribuna, abandonada pelos advogados de talento, que se fizeram melancólicos juristas de gabinete, emudeceu quase de todo; e, quando acorda, se não a ocupa a figura quase única do Sr. Evaristo de Morais, é para gemer sob o peso de gargarejador de parágrafos, cuja argumentação não deixa ver, mesmo de passagem, uma simples pena das asas.

E, no entanto, a eloquência ainda não foi soterrada, no inundo moderno, pela muda montanha da imprensa. Os nomes mais famosos do foro de Londres, de Paris, de Nova York, de Berlim, são ainda aqueles que se fizeram na tribuna e, principalmente, no foro criminal. Mesmo no Brasil, na capital dos Estados, a tribuna forense ainda constitui, como em nossa idade de ouro da oratória, um dos patamares da escada da glória ou, pelo menos, da boa popularidade. Os mestres do Direito, jurisconsultos de renome e professores de Faculdade, não desdenham de erguer a palavra no recinto dos tribunais secundários, purificando-lhes a atmosfera e levantando-lhes o nível com um largo sopro de verdade e beleza. Somente aqui, entre nós, na capital da República, no centro da nossa cultura, o foro apodrece entregue às aves de rapina, em cujo bico ainda se veem, quando grasnam, os restos da carniça da véspera!

Os bons advogados cariocas precisam tornar ao foro da cidade, salvando as nossas honrosas tradições oratórias. Não é preciso aguardar os grandes pleitos, os casos impressionantes, os crimes sensacionais. Não são unicamente as grandes causas, como acreditava Messalas, que fazem os grandes oradores. Tirassem a Cícero a acusação de Catilina e de Antônio, permitindo-lhe apenas a defesa de Quinto ou de Arquias, e ele teria deixado nesses palmos de terra a sua larga pegada de gigante...

A palavra de um grande orador modifica, elevando-o, o ambiente em que é ouvida. Todo homem de talento, de espírito claro e verbo fácil, é portador de um raio de sol para a vida. E deve ser um consolo para o réu, quando o condenem, verificar que não foi julgado na treva, e reconhecer que tomou parte na sua punição, iluminando as consciências, uma das mais altas manifestações da existência de Deus.

POLÍTICA DA LINGUAGEM

Há dias citava, em certo artigo, uma passagem de Plutarco (Vida de Temístocles, III) relativa à decadência da arte de governar, em que o sisudo moralista observava o desvirtuamento progressivo da pura moral política, que degenerara, afinal, na Grécia, na irritante escola dos sofistas. A corrupção dos costumes políticos do seu tempo fora, assim, não uma consequência do desatamento do povo, mas o resultado da incapacidade dos sábios, isto é, dos mestres de política, os quais, dando aos princípios da boa moral do Estado uma interpretação cada vez menos justa, se afastavam do bom caminho à medida que se distanciavam da fonte.

Igual observação, mas no terreno da linguagem, é encontrada em Aulo-Gélio, nas Noites Áticas (XIII, 39), ao estudar a evolução de certo termo latino. Como Plutarco em relação à moral política, Aulo-Gélio vai buscar nos escritores incompetentes, e não nas massas populares, os responsáveis pela decadência da língua, que, pelo emprego cada dia menos preciso dos vocábulos, ia perdendo, conjuntamente, a justeza destes, a sua segura e primitiva energia.

“Je suis comme les ruisseaux” — dizia Voltaire, de si mesmo — “je suis clair parce que je suis peu profond”. Aproveitando essa imagem para julgamento de Aulo-Gélio, — que era, apesar de sua erudição, um escritor sabidamente medíocre — pode-se dizer, talvez, que a observação que acima ficou, constitui, pela singeleza e pela verdade, um dos trechos mais limpos do seu regato.

SOLDADOS E CALUNGAS

O exército que hoje possuímos não é, evidentemente, aquele produto filtrado a que aludia Bilac, há dois anos, no seu famoso discurso patriótico proferido em São Paulo. O soldado que nos compõe as fileiras eriçadas de sabres está longe de ser o consciente pedaço da nacionalidade viva a que se referia o nosso canoro Tales de Cândia, ao lançar na terra fértil a semente que vem regando com a chuva de ouro da sua palavra maravilhosa; é necessário confessar, entretanto, que já vamos distanciados do que éramos no Império, quando a nossa praça de pé podia ser comparada ao soldado francês do meado do século XVIII, a que Voltaire chamava “la lie de la nation” e que o conde de Saint Germain comparava, num alexandrino involuntário, a “un chien enchainé qu’on destine au combat”.

Do que eram as nossas forças militares pouco antes da luta com o Paraguai dá-nos clara ideia um fato ocorrido com o sertanista Couto de Magalhães, na sua primeira viagem ao Araguaia, em 1862. Subia o jovem presidente de Goiás por um tranquilo estirão do rio, em exploração do lago Dum- há cujas margens açoitavam dezenas de escravos fugidos do Pará e de outras províncias avizinhadas, quando notou qualquer movimento de caça que lhe acordou, de súbito, a mania venatória. Tomou da espingarda, e ia fazer fogo, quando um soldado da comitiva se interpôs, rogando, choroso:

— Sr. doutor, pelo amor de Deus, não atire.

— Então, por quê?

O soldado, após um silêncio envergonhado, baixou os olhos e a voz, e explicou, titubeante:

— Eu ando querendo dar baixa, tenho caçado um substituto e não acho.

— E que tem isso com o meu tiro?

— É que o tiro esparrama os negros do quilombo e eu estou querendo pegar um calunga que faça o meu tempo de serviço.

É possível que fossem poucos, mesmo naquele tempo, os “calungas” metidos à força no Exército; hoje, porém, estes não existem mais, e algum que reste, está, agora, com o sorteio... atrás de um “calunga” branco, para pô-lo, por sua vez, no seu lugar...

A NIPONIZAÇÃO DO BRASIL

O terceiro quartel do século XIX foi marcado nas artes francesas por uma invasão do espírito japonês, do qual se tornaram patronos os irmãos Goncourt, ou, mais particularmente, Edmond de Goncourt. Foi a época da suavização das cores na pintura moderna, da vitória do amarelo e do alaranjado no traje das senhoras, da influência, enfim, dos Utamaro, dos Kiyonaga, dos Hanabussa, dos Sadahidé, dos Shikimaro, dos Shighemassa, dos Keisai, ressuscitados na Ásia para a conquista artística do Ocidente.

Malograda esta tentativa, os franceses não deixaram de pensar na colaboração do espírito asiático na formação da nova humanidade. E essa preocupação era tão frequente, que, em 1912, escrevendo sobre as consequências possíveis do canal do Panamá, o sociólogo francês Destournelles de Constant previa, assustado, um violento choque das duas civilizações, o qual teria por cenário monstruoso a parte sul do continente americano. Derramando-se no Atlântico por esse vazadouro que gratuitamente lhe abriam, o japonês iniciaria imediatamente a posse econômica dessa parte da América, entrando com os seus produtos, com a sua emigração, com as suas artes, com os seus costumes, pela Colômbia, pela Venezuela e pelos rios amazônicos, fazendo valer, nessa campanha metódica, a sua resistência física até agora inigualada. E quando o europeu, ou o americano do norte, despertasse, seria tarde: a América do Sul, pelo menos na região mais setentrional, constituiria já, pelo caráter da civilização, um desdobramento do heroico império insular do Pacífico!

A conflagração europeia, na qual o Japão assumiu uma atitude cômoda e inteligente, veio facilitar imensamente o plano ambicioso que os sociólogos europeus lhe atribuíam. E, para prova, aí estão as manufaturas japonesas carreteadas ultimamente para o nosso mercado, onde já se encontram a agulha, o colchete, o vidro, a louça, o bordado, a sardinha, o bacalhau, os brinquedos, os objetos de ferro, uma infinidade, em suma, de artigos que nunca nos tinham vindo de tão remotas regiões do planeta.

É assim, pouco a pouco, que se fazem as grandes conquistas e absorções. E quem nos dirá se daqui a cem anos, não nos vestiremos por figurinos japoneses, lendo poetas japoneses, imitando pintores japoneses, música japonesa, dominados, enfim, por essa esquisita civilização oriental?

Então, apresentaremos ao mundo europeu, onde o apego às tradições resistirá, talvez, a essa influência teimosa, um aspecto curiosamente bizarro. As nossas casas, de teto de papelão ou de laca, terão um bico para o céu, e as nossas mulheres, de sobrancelhas repuxadas, os olhos no chão. E há de ser pitoresco, sem dúvida, ver as “toilettes” femininas da rua do Ouvidor substituídas pela graça discreta do quimono, em cuja seda brilharão, delicadamente bordados pela aranha de uns finos dedos morenos, as cegonhas, os lotos, os dragões...

E os nossos pintores, os nossos escultores, os nossos romancistas, como serão eles? Em vez de discípulos de Detaille, de Rodin, de Balzac, de Zola, teremos os imitadores de Okio, de Toyen, de Tokutomi Kokwa, de Saikaku, de Kiyokutei, de um mundo de notabilidades, finalmente, que nos irá sendo pouco a pouco revelado pelos nossos gomadores de colarinhos.

Os poetas, esses, como cantarão por esse tempo? Hitomaro derrotará Homero? Okura apeará Camões? Macakazu substituirá Mallarmé? A “tanka” deporá o soneto e a balada? Tudo, neste mundo, e nestes tempos, é possível. Cartago e Roma, antes de mandarem aos bárbaros litorâneos o encanto dos seus costumes ou as riquezas da sua língua, enviavam-lhes, bebendo as ondas, as proas dos seus navios. E o primeiro navio japonês já chegou...

O CAVALO ARGENTINO

Um dos motivos que tem levado muita gente a desertar as indisciplinadas hostes republicanas, é, sem dúvida, o aspecto de ordem, de harmonia, de regularidade, que apresentam, do lado oposto, as resumidas fileiras monarquistas. É tão positivo, realmente, o contraste desses dois espetáculos permanentes, que os democratas não podem evitar a manifestação da sua grande inveja diante da serenidade, da calma, da atmosfera de respeito de que se rodeiam, para uso externo, os últimos cavaleiros do senhor D. Luiz de Bragança.

E, no entanto, essa disciplina é toda aparente. Em torno da coroa, como em roda do barrete frígio, trovejam as mesmas paixões, ferem-se as mesmas batalhas. Entre os velhos súditos do segundo Pedro, como entre os jovens cidadãos do primeiro Venceslau, fervilha o despeito, rasteja a cobiça, coleia o ódio, coaxam, como em toda parte, as rãs das pequenas competições. A floresta que produz o baobá, o carvalho, o pinheiro, a árvore de grande porte, dá, também, a ortiga, o espinheiro, a parasita...

E era exatamente a propósito disso que se manifestava, há dias, diante de um dos mais brilhantes espíritos republicanos, que se queixava da República, um dos mais eminentes escritores monarquistas e brasileiros, que desesperava da restauração:

— Há entre os senhores, soldados deste regime, muitos espíritos equilibrados e justos. Há, mesmo, republicanos que fazem melhor justiça, a nós, monarquistas, do que os nossos próprios correligionários.

— Será possível?

— É a verdade. Entre nós há, também, quem tenha a sorte do cavalo argentino. O senhor não conhece, talvez, a história. Na guerra do Paraguai, quando se tratou de dar organização definitiva aos nossos regimentos de cavalaria, foi verificado que os cavalos nacionais, apesar da sua resistência e da sua bravura, não tinham a necessária galhardia na arrancada. Pensou- -se, então, em adquirir animais argentinos, os quais, colocados na primeira linha, dariam o exemplo aos nossos cavalos, que os seguiriam, correndo-lhes impetuosamente na esteira. A princípio, a medida apresentou bons resultados; depois, porém, começou a ser improducente, devido à morte de quase todas as montarias platinas. Debalde se procurou a razão dessa particularidade. Afinal, após muita pesquisa inútil, houve quem descobrisse o mistério: é que os nossos próprios cavalos, colocados por trás dos argentinos, os mordiam na anca, e assim os matavam!

— De modo que...

— Mordem na anca, meu amigo, mordem na anca! Estão podem ver ninguém na frente!...

Quem é, em verdade, que, colocado na vanguarda de qualquer regimento humano, não é, como o cavalo argentino, traiçoeiramente mordido na anca?

OS MILAGRES DA CIRURGIA

Entre os sábios que o herói de Swift encontrou em atividade patriótica na Academia de Lagado, no reino de Laputa, em particularmente o surpreendeu pela utilidade e pela originalidade do seu invento: o autor de um processo físico de harmonizar os políticos. Tomava-se uma centena de próceres de cada partido, de modo a arranjar uma centena de pares cujos crânios fossem do mesmo tamanho. Em seguida, abria-se a cabeça a todos, e fazia-se uma rápida troca de miolos, em porções justas. Quando a operação fosse terminada, todos os políticos estariam de acordo, pois teriam, em quantidades iguais, os mesmos pensamentos, os mesmos princípios, as mesmas ideias.

A cirurgia não está, no mundo real, tão adiantada como entre os laputianos; há de se convir, porém, que a humanidade europeia marcha para essa perfeição, e que a experiência recentemente feita em Paris pelo professor Alex Carrel representa já um grande avanço nesse escuro e retorcido caminho. O general francês Trumelet Faber, ferido em combate nas linhas da Champagne, foi condenado a ficar sem um braço, cuja amputação se tornava imprescindível e urgente. Encarregado da operação, Carrel, após um exame rápido das condições do herói, mandou arrastar para as proximidades do general o leito de um poilu irremediavelmente perdido, e, num cometimento audacioso, cortou o braço ao soldado, ligando-o, com o acomodamento feliz das artérias, ao tronco mutilado de Trumelet. Semanas depois, quando o poilu já era, no fundo da terra, gordo banquete dos vermes, o seu braço se erguia da cama, enérgico, vigoroso, cheio de vida, identificado com o busto marcial do seu antigo comandante.

Esse acontecimento, que em outros espíritos acordaria, talvez, um mundo de esperanças, a mim me desperta uma infinidade de cogitações inquietadoras e macabras. Se o homem, já hoje, guiando com o seu cérebro os membros que se criaram harmonicamente com este, é tão incoerente, vive em tão contínuo desacordo consigo mesmo, que será o homem de amanhã, cuja cabeça terá de dirigir no mundo, tendo, como pedaços do seu corpo, a perna do seu copeiro, a mão do seu inimigo, o fígado da sua lavadeira, o coração do seu rival! Que revolução na vida, nas letras, nas artes, em tudo! Wells, o romancista do Absurdo, o criador do inverossímil, nunca imaginou coisa igual.

Que não será o suplício deste general de França, quando olhar esse punho carregado de estrelas, que, semanas antes, não tinha, sequer, um distintivo de caporal? Que mãos teria apertado essa mão, que agora é sua? Terá ela, quando dirigida por outra vontade, apunhalado algum peito, despojado algum caminhante, pedido alguma esmola? E aquele braço, que espáduas teria apertado, que cinturas teria cingido, que fraquezas teria amparado?

E no futuro, que confusão! Que tumulto! Que anarquia! E, sobretudo, que campo imenso, franqueado ao doido galope da imaginação! Suponha-se um homem que teve necessidade de enxertar um coração alheio, e sente as suas pancadas no peito. De repente, esse coração principia a sangrar pelas dolorosas feridas da saudade. Mas, saudades de quem? Que criaturas são essas de que a cabeça não tem lembrança, e pelas quais, no entanto, o coração geme, grita, chama, sem ouvir o eco longínquo do seu lamento?

Esse general Trumelet, cujo braço vem abrir um caminho no mistério, deve lutar, já, hoje, com os inconvenientes da inovação. A mão que lhe cortaram, era de oficial, e executava, automaticamente, o gesto de comandar. E a que lhe deram, pendurada no novo braço, há de saber, apenas, o gesto dos que são comandados. Podia, entretanto, ser por: podiam lhe ter posto, para angústia da sua bravura, uma perna de poltrão...

O RABINO E O MONGE

O “Globe”, de Londres, lembrou ante ontem ao governo inglês uma vermelha providência, que supõe capaz de deter as brutalidades alemãs: o fuzilamento de cinco oficiais teutônicos, prisioneiros da Inglaterra, toda a vez que os submarinos inimigos afundarem um navio-hospital dos Aliados. Acredita a folha londrina fazer recuar uma onda de sangue com o choque de outra onda de sangue, e que se desagravará com isso, a Civilização, injuriada diariamente pela ferocidade dos bárbaros encurralados.

A irritação dos ânimos nos países em guerra deixa prever a utilização, mais cedo, ou mais tarde, dessa lembrança de tigre. A adoção da medida seria, entretanto, para a Alemanha, um presente de Deus, ou do Diabo. Não se ignora as dificuldades com que lutam os impérios sitiados para alimentar os seus prisioneiros de guerra, e que eles não desprezariam a selvagem lição do inglês para descongestionar, sob qualquer protesto, os seus campos de concentração. E, então, até onde iriam os beligerantes nesse frio “mata!”, “mata!” de todo o dia, na febre, cada vez mais intensa, de exterminar o adversário? Seria a repetição daquela serodia anedota do rabino e do monge, na inglória discussão em que se empenharam.

Encontrando-se, um dia, frente a frente em certa viagem, um rabino judeu e um monge católico, puseram-se a altercar sobre as respectivas religiões, e a teimar qual das duas possuía no céu maior número de bem- - aventurados. Como não se dessem por vencidos, resolveram fazer a estatística imediata, arrancando, um, ao outro, um fio de barba, por santo, patriarca ou profeta que citasse. Teve a palavra, em primeiro lugar, o monge católico:

— São José!

E puxou um fio à barba do judeu. Este, sem pestanejar, retrucou:

— Esaú e Jacó!

E tirou dois fios ao monge, que lhe agarrou em doze, rugindo:

— Os doze apóstolos!

O judeu passou a mão pelo ponto atingido, forçou a memória, e gritou- lhe:

— Moisés, Abraão, Aarão, Noé, José, Jó, Davi, Salomão, Elias, Tobias, Daniel, Ester, Judite e... os sete macabeus!

E sacou-lhe vinte cabelos, deixando tuna vermelha clareira no queixo do monge, que, rubro de cólera, avançou para o rabino, e berrou-lhe:

— As Onze Mil Virgens!

E pôs em baixo, de um safanão, com as mãos ambas, a barbaça do

judeu!

Não teme a Inglaterra que a Alemanha lhe oponha aos cinco mártires lembrados pelo “Globe”, a populosa corte das onze mil virgens?

ENGENHO QUE NÃO MÓI

A imprensa carioca, tomando às mãos de Helí uma gota de óleo do tabernáculo, sagrou escritor ilustre, há poucos meses, o Sr. Hélio Lobo, colecionador de sete volumes de documentos oficiais relativos à política exterior do Brasil nos dias gloriosos do segundo Império. O óleo brilhou, dessa vez, muito cedo, na testa de Samuel. O Sr. Hélio Lobo, cuja tenacidade eu reconheço, não é, absolutamente, um escritor, na legítima acepção deste termo: não tem estilo, não tem imaginação, não tem, mesmo, potência selecionadora para colher o caldo das ilações ao triturar os elementos que ceifa no tumultuoso canavial dos arquivos. O escritor de verdade é aquele que transforma, purificando-a, e lançando fora os resíduos, a matéria bruta, que lhe passa pelos braços. Não é o amontoador de cana: é o engenho. Não é Giezi, que nada faz com o báculo de Eliseu: é o próprio Eliseu, que, com uma botija de azeite, enche todos os vasos da casa da viúva necessitada.

Nos sete volumes do Sr. Hélio Lobo não se encontra um copo de sumo apurado pelos dentes de aço do seu engenho. A cana ficou acumulada à espera do moageiro. O azeite de Eliseu estava ao seu alcance, e o novo profeta não encheu, sequer, com ele, o côncavo de outra botija. Onde, pois, o escritor?

O estilo do Sr. Hélio é outro argumento, e dos mais poderosos, contra a sua festiva sagração nos altos tabernáculos literários. As poucas linhas do seu punho que põe por baixo ou por cima dos documentos que o seu patriotismo concatena, são uma argila tão áspera que não consegue estabelecer a ligação das pedras que o pedreiro pacientemente amontoa. Do seu próprio estilo, bárbaro, mas bizarro, dizia o marquês de Mirabeau, pai do trovejante Mirabeau, citado por Paul Saint-Victor: “Mon estyle, fait en écailles d’huîtres, est si surchargé de différentes couches d’idées, qu’il aurait besoin d’une ponctuation faite exprès pour le débrouil- ler”. Do sr. Hélio Lobo pode-se dizer o mesmo, com exceção, apenas, dessas “couches d’idées”, que, pela sua ojeriza à manifestação do próprio pensamento, não aparecem no seu escrever. No século XVII, quando mais forte era a influência de Luiz de Gongora nas letras espanholas, apareceu uma comédia, Sin honor no hay amistad, de Rojas, em que este, para dar ideia de uma noite tenebrosa, dizia:

Está hecho un Gongora el cielo

Mas escuro que su libro.

São assim obscuras, pesadas, escabrosas as breves anotações que constituem a obra do Sr. Hélio Lobo. Por que, pois, sagrá-lo escritor e não um honesto, laborioso, louvável, mas simples colecionador de documentos? Não será ele, com isso, menos útil ao Brasil, nem correrá o risco de cair, amanhã, no mar Egeu, pelo amolecimento da cera das asas...

O ROUXINOL E OS VENTRÍLOQUOS

Faltassem a Tibério outras virtudes que o redimissem das perversidades que lhe são atribuídas pelos historiadores do seu tempo, e bastaria, talvez, para que o mundo lhes perdoasse, a paixão com que defendeu a pureza da língua latina. Desse louvabilíssimo amor ao idioma que já guardava alguns dos mais ricos tesouros do espírito humano, dá-nos conta o grave Suetônio, com a severidade que lhe sugeria a inclemência dos julgamentos de Tácito. Tibério, que vivera, como se sabe, em Rodes, onde mantivera um constante comércio literário com os homens notáveis da ilha, era, em Roma, um dos mais hábeis manejadores do grego. Certa vez, entretanto, ao falar no Senado, empregara inadvertidamente a palavra "monopólio”, que ainda não havia tomado a sua forma latina. Considerando esse emprego um deslize, um crime inominável contra a austera pureza da língua do Lácio, o imperador cortou, rápido, o fio do discurso, e só o continuou depois de uma digressão em que pediu perdão aos senadores. De outra feita, como lhe levassem à augusta presença um decreto em que se lia uma palavra grega, que significava “ornamento em relevo”, recusou-se Tibério a assiná-lo, mandando que se substituísse o estrangeirismo por um termo latino, e, caso não houvesse este, que se lançasse mão de uma redundância.

Cláudio, que ficou na história do império como a expressão da tolerância e da fraqueza, não era menos cioso do soberbo idioma em que se levantava, nesse tempo, o monumento da sabedoria de Séneca. É do seu reinado, entre outras, a história daquele juiz de uma província grega, homem de provada e notória inteireza, que foi riscado da classe dos cidadãos romanos, e incluído na dos estrangeiros, por não escrever corretamente o latim.

É evocando esses nomes secularmente malsinados, que eu leio, hoje em dia, as seções elegantes dos jornais cariocas, perguntando-me a mim mesmo que destino teriam esses nossos cronistas mundanos, se nos regesse, nesta Roma sem Césares, a paixão purista de um Tibério ou de um Cláudio! Em famoso combate de eloquência havido em Lião sob a fiscalização literária de Calígula, conta-se que este condenou os vencidos a apagar com a língua, transformada em esponja, a letra dos próprios trabalhos. Não estaria aí, nessa humilhação do instrumento mecânico da palavra, um excelente castigo para os que praticam voluntariamente esses graves atentados contra a integridade da linguagem?

A sátira em que Juvenal se manifesta mais brilhante, por aparecer mais sincero, é, no meu juízo, a da urbis incomoda, em que se revolta contra a nenhuma resistência da velha moralidade romana ante a risonha investida do grego. O seu protesto, é, ali, indignado:

Non possum, Quirites

Graecam urbem...

E, no entanto, o poeta reconhecia o mérito do invasor.

O romano fazia-se respeitar. O grego fazia-se amar. O filho de Rômulo sabia lisonjear; mas o filho de Teseu sabia persuadir:

Haec eadem licet et nobis laudore; sed alis Creditur.

Esse talento de agradar não constituía ademais, um privilégio, não era riqueza de um só: era uma virtude nacional que o grego recebera com o leite virgem de Helena:

Nec tamem Antiochus, nec erit mirabilis illic

Aut Stratocles, aut cum molli Demetrius Haemo

Natio comoeda est.

Foram esses mesmos predicados de sedução que permitiram ao francês em nossos dias, imperar sobre as sociedades elegantes dos quatro cantos da terra; e não é a outro fator que estamos devendo, agora, o banimento da língua portuguesa das secções mundanas dos jornais e do ambiente aristocrático dos nossos salões. Dessa tendência para a universalização, que o francês reconhece no seu idioma, e que as francesas auxiliam poderosamente com o estonteante amavio dos seus encantos, conta-nos Voltaire a opinião de uma ilustre clama da corte de Versailhes, que afirmava, com a graça da sua graça:

— C’est bien dommage que l’aventure de la tour de Babel ait produit la confusion des langues; sans cela tout le monde aurait parlé français!

Para essa boca de rosa, de que assim voava tão rápida a zumbidora abelha de um dito galante, a língua cantada pelas marquesas era a legítima língua sagrada. E os nossos cronistas assim o entendem, também. Não devia ser isso motivo, no entanto, para que estes, além dos galicismos de que abusam, intercalassem nas secções que redigem derramados e inoportunos períodos originais em francês, olvidando, por inteiro, o país em que vivem. Suporão eles que serão mais lidos do que em português? É engano. Quem ama a língua francesa não procura bebê-la nas suas correntes bastardas: busca-a nas fontes legítimas, nos puros mananciais. Há em Plutarco, na Vida de Licurgo, uma anedota que responde, talvez, a essa ingênua vaidade dos nossos escritores mundanos. Certo espartano convidou um outro para irem, juntos, ouvir um ventríloquo.

— Que faz ele? — pergunta o convidado.

— Imita o rouxinol.

E o outro:

— Eu já ouvi o próprio rouxinol!...

Quem tem à mão, na gaiola de ouro dos livros, os Chateaubriand, os Anatole, os Flaubert, os Gautier, os Bourget, os Goncourt, os mil rouxinóis do bosque de Bolonha, que prazer pode sentir ao escutar, aqui, o vozeio áspero dos nossos ventríloquos? Não seria mais honesto que eles fossem aves da sua floresta, contentando-se com a sua pobre, mas limpa gaiola de pau?

OS ESPARTANOS DA AMÉRICA

A Argentina cultuou, ontem, a memória dos grandes pioneiros da sua liberdade, de todos aqueles que, mártires ou guerreiros, pereceram gloriosamente pela independência e pela grandeza da pátria. De todas as escolas, após a preleção dos mestres sobre a personalidade e sobre os feitos de todos os patriotas ilustres, subiu um grande coro apoteótico, em que a alma argentina se atirava, altiva e agradecida, para o infinito, abençoando os antepassados que cimentaram com o seu sangue o sólido pedestal da nacionalidade.

Quem acompanha com interesse o surto estupendo da vida argentina, deve estar certo que se prepara, ao pé dos nossos muros, um grande povo destinado a causar, repentinamente, o assombro do mundo. Raça viril e sadia, consciente da sua força e da glória do seu destino, as heroicas populações do Pampa trabalham, neste momento, no mais belo e inexpugnável baluarte cívico do continente. Ao nosso lado, como um leão infante ao lado de um imenso e fraco paquiderme sem mandíbulas, aleita-se, para castigo nosso e estímulo eterno da espécie, uma Esparta de Leônidas, uma Holanda dos Witts, uma Prússia vigorosa, e igualmente perigosa, dos Hohenzollern.

Essa festa patriótica de anteontem basta para anunciar a formação de uma nacionalidade formidável. Não foi em outro molde que se fundiu a grandeza lacedemônia. Era tão alto o rugir do orgulho no peito espartano quando celebrava os seus heróis, que os poetas se viram na contingência de estender novas cordas ressoantes nos braços ameaçadores das suas liras... Nada me conta Plutarco de mais nobre e interessante, em toda a sua obra cultuadora da bravura e da virtude, do que as grandes festas de Esparta, em que se exibiam, cantando, todas as gerações da cidade. Chorava, trêmulo, o coro dos velhos:

Nós fomos, em nosso tempo,

Jovem, valentes e audazes!

Cantavam alto, os guerreiros:

Hoje, os fortes somos nós,

E a qualquer o provaremos!

E as crianças:

E nós amanhã seremos

Muito mais que pais e avós!

É nessa escala que, celebrando os feitos heroicos dos seus filhos, tombados pela máxima glória da pátria, a Argentina se apronta de corpo e de alma, para cumprir a sua grande missão no futuro. A terra há de ser eternamente do homem forte, como o espaço é da águia que tem bico, e o Deserto é do leão, que tem garras.

Sejamos, pois, espartanos, como os argentinos procuram ser. Lembremo-nos, com o formidável poeta que:

par la sérénité superbe de ses maurs,

Sparte fait plus qu’aucun docteur par sa doctrine...

A RAPOSA CRUCIFICADA

Conta-se que o Sr. Pinheiro Machado, em um julgamento pitoresco, chamou o Sr. Lauro Muller de “raposa de espada à cinta”. A definição, se é autêntica, deve ser conservada, porque os acontecimentos a estão, agora, justificando.

Não se suponha, entretanto, que eu tome a raposa, neste caso, sob o seu aspecto lafontaineano de animal astucioso. A figura hieroglífica do Sr. ministro das Relações Exteriores não me evocou, jamais, nem a fábula das uvas verdes, nem a do macaco deposto, nem a do busto vazio, nem a do lobo escoiceado pelo cavalo, nem, mesmo, a mais aplicável neste momento, que é aquela em que a raposa se utiliza de um animal armado, o bode, para sair do poço em que se meteu. Das raposas de Pedro, que são as mesmas apanhadas pela armadilha poética de Lafontaine, só esta última, talvez, poderia ser lembrada, e isso quando se desse crédito ao boato, boje corrente, de que o Sr. Lauro Muller quer arrastar o exército para o seu buraco político, enganando-o arteiramente com as tentadoras palavras da fábula:

Descende amice; tanta bonitas est auoe

Voluntas ut satiari non possit mea.

A raposa que o Sr. ministro das Relações Exteriores me traz agora à lembrança, difere, mesmo na cauda, de todas essas. Não é uma raposa que engana: é uma raposa que me parece, ela própria, enganada. Não é um bicho que logre os outros, empregando o artifício: é um animal com que os outros a si mesmos se logram, no tumulto da sua leviandade. É, em suma, a raposa crucificada, de Southey.

Os jesuítas que primeiro penetraram o interior da Baía, foram, segundo narra este sisudo historiador, surpreendidos com a prática de uma religião cristã horrendamente desfigurada. Os índios por eles batizados no litoral, tinham, ao regressar às aldeias, estabelecido um curiosíssimo serviço religioso, visando imitar, na liturgia, o dos padres europeus. Os seus sacerdotes, escolhidos entre os anciãos mais respeitáveis da tribo, eram obrigados a guardar castidade, e privados da dignidade eclesiástica desde que se provasse a quebra sacrílega desse voto. O batismo, já instituído, tinha uma particularidade: todas as mulheres deviam receber o nome de Maria, e todos os varões o de Jesus, que era — diziam eles — o marido daquela. A maior originalidade estava, porém, na adoração da Cruz: esquecidos da figura que os jesuítas lhes tinham mostrado no madeiro, os indígenas haviam pregado neste... uma raposa de cera!

A impressão que me dá o agudo perfil do inalterável Sr. Lauro Muller, no momento em que a pasta das Relações Exteriores compete ao Sr. Rui Barbosa, é simplesmente esta: uma raposa colocada na cruz de um deus, mas que aí está menos pelo sucesso da sua arteirice do que pela impatriótica teimosia dos seus devotos.

SOB O CAVALO DE PEDRO

A campanha que vem sustentando na imprensa pela emancipação do nosso escrever o meu ilustre mestre Dr. João Ribeiro, é um dos serviços mais subidos e patrióticos prestados à obra da nossa nacionalização por esse eminente escritor. Eu não atino com os altos motivos que levam dois ou três acadêmicos de cultura a se baterem pela adoção, aqui, da ortografia oficialmente usada em Portugal, quando possuímos elementos para fazer adotar, ali, amanhã, a reforma que porventura aprovássemos no Brasil. Tal ideia, que só se explicaria, talvez, pela comodidade, pela aquiescência, às tentadoras solicitações da preguiça, viria, apenas, e mais uma vez, interpretar aquele esverdeado monumento que ornamenta a praça Tiradentes, e em que Pedro I, português de origem, nacionalizado pela ambição de reinar, passa trotando, como um vencedor, sobre as cabeças de bronze de uma dezena de brasileiros humildemente agachados.

A 20 de junho de 1763 foi inaugurada em Paris, para comemorar a terminação da guerra dos Sete Anos, uma estátua de Luiz XV, em que o monarca aparecia a cavalo sobre um estrado sustentado por quatro cariátides, que representavam a Forca, a Paz, a Prudência e a Justiça. Dias antes da inauguração, estava já o pedestal do monumento engastado de epigramas ferozes, entre os quais este:

Grotesque monument! infame piédestal!

Les vertus sont à pied, le vice est à cheval!

O nosso monumento a Pedro I, com os seus índios servilmente acocorados sob a pata de bronze do arrogante cavalo do imperador, merece uma adaptação dessa perfídia gaulesa.

Monumento infeliz, que nos deixa vassalo:

Brasileiros a pé, português a cavalo!

Conseguirá o meu erudito mestre Dr. João Ribeiro desmontar o primeiro Pedro, sustentado na sela das nossas letras, do lado da garupa, pelo classicismo intransigente de dois ou três escritores nacionais?

A ACADEMIA

Entre os numerosos imitadores que teve Swift com as suas Viagens de Guliver, um houve que se destacou pelo relativo sucesso da tentativa: o abade Desfontaines, famoso contraditor de Voltaire e autor do Novo Guliver.

João Guliver, herói dessa imitação, visita, como seu ascendente inglês, regiões extravagantes e ignoradas: um país em que as mulheres têm o governo do Estado, outro em que a feiura desperta a admiração e o desejo, e outro, enfim, em que os homens nascem pela manhã e morrem à tarde, realizando, entretanto, integralmente, o mais complicado destino.

A sofreguidão com que os escritores novos vêm se propondo, nos últimos tempos, em candidaturas, capciosamente sugeridas, à tentadora imortalidade acadêmica, dá-me a impressão de que me encontro, eu próprio, nesse último país de maravilha, em que os habitantes dependiam, dia a dia, de um frágil raio de sol. Tudo realmente, entre nós, é pressa, é impaciência, é ânsia, é desejo de chegar. Ninguém espera mais pela queda dos grãos da ampulheta. A árvore do Tempo é nervosamente sacudida pelo tronco, para que se desprendam, de pronto, e em cacho, os frutos louros das Loiras. Antero de Quental, se nos visse nesta febre, descobriria, talvez, em nós, aqueles loucos que se atiravam de ventre na terra, a beber com fúria a água da vida, no temor de que se esgotasse o oceano da eternidade...

Eu não conheço, no entanto, engano mais enganoso do que esse com que se embriagam os jovens enamorados da Academia Brasileira de Letras. A sua ilusão é a mesma que se extingue naquela graciosa fábula do Homem e do Gênio, utilizada em um elogio do jogo pela finura gaulesa de Anatole France. Um gênio deu a certa criança um novelo de linha, e disse-lhe: — “Este fio é o dos teus dias. Leva-o; e quando quiseres que o tempo corra, desenrola-o: os teus dias passar-se-ão rápidos, ou lentos, conforme desenrolares o novelo, depressa ou devagar. Desde que não toques no fio, ficarás na mesma hora da existência”. A criança tomou o novelo; desenrolou -o para ser homem; desenrolou-o para casar com uma rapariga que o enfeitiçara com a sua beleza; desenrolou-o para ver crescer os filhos, e para colocá-los na atividade do mundo; desenrolou-o para a realização de negócios, para a obtenção de honras, para o afastamento de cuidados, para a terminação de desgostos, para evitar as doenças da idade, e, enfim, para acabar com a velhice importuna. Tinha vivido quatro meses e seis dias depois do aparecimento do gênio.

Vê-se pela intemperança dos que reclamam prematuramente os louros acadêmicos, que os não move o prazer do trabalho, a volúpia da atividade, o gozo de colher pela estrada as rosas que lhe pendem das margens: mas a ambição de chegar ao fim da jornada, como se a coroa não tivesse de ser feita, lá, unicamente com as flores que eles apresentarem nas mãos!...

Os que vivem permanentemente atraídos pela Academia, têm, entretanto, um amuleto contra essa tentação irresistível. São estes três versos imensos do nosso imenso pai Victor Hugo, que nô-los legou a nós, homens de letras, para que deles fizéssemos o nosso credo:

Les hommes en travail sont grands des pas qu’ils font:

Leur destination, c’est d’aller, portant l’arche:

Ce n’est pas de toucher le bout, c’ est d’être en marche...

O PRÍNCIPE DE LIMO VERDE

Entre os nossos contos populares de origem europeia colecionados por Sílvio Romero, eu coloco em primeiro lugar, pela delicadeza e pela ornamentação verdadeiramente oriental, a linda história do Papagaio de Limo Verde. Certa moça, muito bonita, moradora nas vizinhanças de uma grande cidade, capital de um grande reino, vivia em tal opulência, cercada de tanta pedraria, que mão se via outra tão rica entre todas as princesas do mundo. Estranhando o exagero dessa magnificência misteriosa, as vizinhas ficaram de alcateia, até que descobriram a maravilha daquele segredo. À noite, quando todos dormiam, a moça abria a janela do palácio, e por ela penetrava um papagaio muito verde, que entrava reclamando água. A moça corria a trazer-lhe uma bacia de ouro, ondulante da linfa mais límpida, dentro da qual o papagaio se atirava sofregamente, rufiando as grandes asas insofridas. E cada pingo d’água que voava da bacia transformava-se em um diamante, que a rapariga ia apanhando, ficando, assim, dia a dia, mais rica. Ao fim do banho, o papagaio estava transformado em um formoso mancebo, como outro mais formoso não havia na terra. Era o Príncipe de Limo Verde.

Eu não posso ler ou ouvir os versos sertanejos de Catulo da Paixão Cearense sem que me assalte a imaginação a faiscante história desse encantado príncipe perdulário. O ourives que trabalhou no ouro virgem da linguagem popular as joias rústicas e maravilhosas que por aí andam, é necessariamente um grande e lídimo artista, um fidalgo poeta que se disfarça em ave cantadeira para melhor espalhar, a mancheias, como o Príncipe de Limo Verde, a rutilante pedraria do seu erário. Catulo é, realmente, um misto de singeleza e de opulência, um ponto em que se misturam, formando o mais pitoresco dos riachos, os veios que passam pelos campos cultivados e as fontes que descem gementes e ligeiras, do largo seio das matas indomesticadas. A sua poesia, simples, doce, ingênua, mas em versos de métrica perfeita, é uma resina de sertão a arder, cheirosa, num turíbulo de prata ou de ouro. Evolam-se das suas rimas os mais inocentes perfumes da terra: cheiro de baunilha, de leite, de folha machucada, de gado sadio, de benjoim, de rola virgem, de campina desabrochada: cheiro, enfim, de sertão do norte, em maio, pelos fins d’água...

Queimemos um pouco dessa resina silvestre. É o romance do “Mamoeiro”, no trecho em que o nosso Mistral descreve, no dialeto do seu herói, a formosura da cabocla ingrata, glória e tortura do seu coração:

Trazia dento dos óio

Istrépe e mé, cumo a abêia.

Oiou-me cumo uma onça

E, ao depois, cumo uma ovêia.

Aqueles óio, sa dona,

Eu confesso a vosmincê,

Ruía a gente pru dento

Qui nem dois caxinguelê!

Sem mardade, um bejo dado

Naquela bôca orvaiada,

Haverá di tê, sa dona,

O chêro das madrugada!

A fala d’ela, sa dona,

Era o gemê do regato

Qui vai bejando as foiage

Qui cai da bôca dos mato!

As duas rôla morena

Pru baxo do cabeção,

Chêrava cumo a água fresca

Das lagôa do sertão.

O coração das viola

Aparava de mansinho

Si os dois fióte di rôla

Pulava fóra do ninho!

Ai sa dona, a saia d’ela

Cô das penas da irerê,

Tinha os aroma dos mato

Quando vai anoitecê...

Os pezinhos da cabôca

Quando dançava o baião,

Parecia dois pombinho

A mariscá pulo chão!

Chêrava as mãos da cabôca

Cumo os verde maturí.

Era tal i quá, sa dona,

Dois ninho de jurití!

Aqueles braço, sa dona,

 (Deus não me castigue, não!)

Tinha o calô das fugueira

Das noite de São João!

O suó qui ela suava

No samba, chêrava tanto,

Qui inté a gente sintia

Um chêro di Dia Santo!

Os cabelo da cabôca

Tinha o chêro naturá

Das pomba virge dos mato

Quando coméça a aninhá.

Apois os cabelo d’ela

Tão preto pro chão caía,

Que toda frô qui butava

Nos cabelo, a frô murchava,

Pensando que anoitecia!...

E mais esta espiral de incenso selvagem, na descrição das cores e harmonias da madrugada sertaneja:

O canto alegre dos galo

No sertão amiudava.

Nos taquará das lagôa

A saracura cantava!

Alegre, passava um bando

Das verde maracanã;

Fermosa cumo a cabôca

Vinha rompendo a manhã!

As brisas que vêm da serra

Vinha acordando os caminho.

Vinha das mata cherosa

Um chêro de passarinho.

Lá nos fundão duma grota

Aonde um córgo gemia,

Gargalhava as seriema

Cum o fresco nascê do dia!

Uma araponga atrepada

Num braço de mato in frô,

Gritava qui parecia

Os grito da minha dô.

E a sabiá nos gáio

Da tabibuia serena,

Chorava, cumo si fosse

Uma viola de pena!

Passados esses versos para linguagem corrente, não teríamos nós, entre os dos nossos melhores líricos, outros que se lhe avantajassem na meiguice. Catulo não quer, porém, que os seus frutos nasçam no jardim ou brilhem em vasos de porcelana: quer conservá-los no mato, envoltos nas folhas. A seiva para o fruto quem a dá é Deus. À árvore compete, apenas, dar forma ao pomo. Catulo tem toda a inspiração dos grandes e verdadeiros poetas; e como é sertanejo, vasa essa forte seiva nos rústicos moldes que lhe fornece o sertão. Dos seus versos poderá ele dizer como o velho poeta espanhol:

Yo lo escrito, dictalos Apoio.

BRÁS Y FIERABRÁS

A fome sempre foi considerada entre os antigos um castigo de Deus. Entre o povo de Israel, quando um rei se excedia em iniquidades e blasfêmias, fazendo, como dizem as Escrituras, aquilo “que não parecia reto aos olhos do Senhor”, era quase infalível à vingança do céu, que sustava, de Pronto, a sonora catarata das chuvas. As tribos então, rebeladas contra o causador da calamidade, matavam ou apeavam atropeladamente o tirano, punham outro no lugar, e a água, embora demorada na viagem aérea, acabava por descer em torrentes fecundadoras. O próprio Salomão, conhecendo, na sua gloriosa sabedoria, os ímpetos arruaceiros do seu povo, orava ao Senhor no dia da dedicação do Templo:

“Quando os céus se cerrarem, e não houver chuva, por terem pecado contra ti, e orarem neste lugar, e confessarem o teu nome, e se converterem, havendo-os tu afligido: Ouve tu, então, nos céus, e perdoa o pecado de teus servos e do teu povo, ensinando-lhes o bom caminho em que andem, e dá chuva na terra que lhes deste por herança.” — (REIS, VIII, 35, 36).

Os lídios eram mais filósofos do que os hebreus. Conta Heródoto (lib. I XCIV) que, no reinado de Átis, foi a Lídia surpreendida por uma grande fome. O povo, a princípio, aguardou tranquilamente as chuvas, entregue aos seus labores habituais. Como a seca persistisse, vergou os joelhos, sentou-se; e pôs-se a jogar. Foi então, que apareceram na terra os dados, o jogo da pela, e uma infinidade de outros que minoravam com o seu encanto as arrepiantes torturas da fome. Assegura o historiador que assim viveram os lídios dezoito anos, comendo em um dia e jogando no outro, até que se desenganaram e, com os dados, jogaram o próprio destino: dividiram a nação em duas partes, para saber a que devia emigrar, e a que devia ficar no país. A sorte destinou para chefe dos emigrantes a Tirreno, filho de Átis, que abandonou, efetivamente, a Lídia e se foi fixar nas margens do mar a que os gregos deram, mais tarde, o seu nome.

No Brasil, o povo, quando tem fome, procura fazer como os lídios: joga. O “bicho” é o seu dado, é o seu jogo da pela. Como, porém, a polícia não lhe consente esse processo de esperar pelos corvos de Elias, recorre à lição do hebreu, e sai para a rua a gritar contra o rei. É isso o que se está vendo agora.

Parece, entretanto, que, desta vez, os israelitas estão protestando unicamente para não perderem de todo o hábito de reclamar. O nosso monarca, atualmente, se não é Salomão nem Davi, não é, também, nem Roboão nem Acab. Se não se lhe deve um templo ou uma Arca, não merece ele, igualmente, que lhe deem o sangue aos cães ou que o troquem por Jeroboão. Não há necessidade de repetir-se, agora, o que se fez nos últimos anos do governo Hermes. Há em uma das famosas “letrillas” de Gongora este conselho sábio, que nos é literalmente destinado:

Para Brás no es menester

Lo que para Fierabrás.

Quem diria ao autor destes versos que eles chegariam a ter, trezentos anos depois, uma aplicação tão completa, pelo encontro, nos fastos da política brasileira, de um Brás e de um Ferrabrás!...

O MASTRO DAS NAUS

No título IV, capítulo XXIII, I da sua Nova Floresta detém-se o suave Bernardes ou comentário de uma das mais soberbas imagens do Livro de Jó, tirando desta montanha, com o polido alviao do seu estilo, as faíscas que essa pedra multissecular ainda agasalha. É a imagem em que Jó alude, trovejante, à miséria da vida humana, comparando está triste jornada à marcha de uma nau carregada de fruta (“pertransierunt quase nave poma portantes”), cuja carga vai se deteriorando na viagem.

“Que a vida humana se compare à carreira de uma nau — comenta o clássico — está bem, porque é veloz, é incerta, é arriscada pelos válidos perigos que há no mar dos séculos. Porém, por que se compara mais ao navio que leva fruta do que a outro qualquer que leva outros gêneros? Porque o navio que leva fruta muitas vezes antes de chegar ao porto já não leva mais que podridão.”

Eu encontro em certa nota do Journal des Goncourts (1.° de novembro de 1894), uma outra imagem, em que Edmond me dá uma espécie de complemento daquela. “C’est affreux au cimitière” — escreve ele, nessa véspera de finados — “ces tombes effrondrées, dont il ne sort plus de la terre qu’un baut de croix, ainsi que ces bâtiments coulés, dont seulement un bout de mât dépasse l’eau”.

Os pregadores católicos podem tirar maravilhosos efeitos dessas duas imagens, que se confundem, e se completam. Que fez o cristianismo, realmente, senão tornar o oceano do mistério menos fundo, de modo que as naus naufragadas pudessem deixar de fora a ponta do seu mastro, como um aviso constante àqueles que navegam sem prudência.

LUIZ MURAT

A página mais soberba do Livro dos Reis é, no meu entendimento, a que edifica o templo de Salomão. Trinta mil homens são separados, entre os mais robustos das tribos, para a escolha de cedros no Líbano. Oitenta mil são mandados às montanhas, para cortá-las e lavrá-las. Setenta mil vão encarregados do transporte das pedras e da laboriosa condução das madeiras. Três mil e trezentos artífices, dos mais destros, dirigem, como chefes, os penosos trabalhos da multidão. Os giblitas e os obreiros de Hirão preparam o granito, desbastam os troncos, domesticando o áspero material para levantamento da fábrica. E edificava-se a casa — diz o livro sagrado — com pedras preparadas; como as traziam se edificava; de maneira que nem martelo, nem machado, nem nenhum outro instrumento de ferro se ouviu na casa, quando a levantavam... (Reis, VI, 7).

Quando eu leio a obra poética de Luiz Murat, vem-me à lembrança, de pronto, o subido trabalho do povo de Deus. A obra de Murat é levantada como o templo de Salomão: sem barulho. Enquanto o poeta acumulou o seu material, ouviu-se, em torno, a ruidosa atividade dos instrumentos. Os cedros das ideias profundas chegavam arrastados de longe. As montanhas da Sabedoria humana eram mordidas pacientemente pela boca insaciável da sua curiosidade. E quando os elementos foram acumulados, o poeta recolheu-se, e começou a erguer em silêncio o soberbo monumento da sua glória...

Eu admiro em Luiz Murat, acima de tudo, essa orgulhosa confiança no seu valor. Ele criou para si mesmo um Deserto, e vive sozinho na planície a espantar o céu com a audácia granítica das suas torres. Como o barão Welf, de Hugo, ele tem um castelo d’Osbor, onde guarda, entre precipícios, os tesouros da sua arte. Sabendo, como a ave cavalheiresca de Rostand, que rien ne se fait de bon dans le bruit — isola-se, e trabalha. E é o fruto definitivo dessa serena operosidade, a cúpula desse templo, o coroamento dessa muralha, o torreão mais alto desse castelo — que agora vai aparecer, com as Poesias escolhidas, acima dos andaimes...

Felizes os que, como Luiz Murat, conseguem prescindir do constante aplauso dos homens — e que, como os deuses, e como aquele sonhador louvado por Anatole France, podem olhar o mundo como um grão de ópio, a arder, eterno, ao fogo do seu cachimbo ...

SINITE PARVULOS...

Quando André Pfleger iniciou, em 1911, na revista parisiense Le Penseur, uma “enquete” sobre o desenvolvimento da inteligência infantil, eu escrevi na imprensa do Pará um longo artigo, obediente a este mesmo título, registrando algumas observações próprias e aconselhando aos pais paraenses a anotação das expressões curiosas proferidas pelos seus pequeninos tempos depois vim a verificar que a semente afundara em boa terra, e que em alguns lares inteligentes já se havia instituído um registro familiar das algaravias da petizada — espécie de cortiço em que se deviam reunir, fabricando o mel da saudade futura, as abelhas de ouro partidas, uma a uma, de botões de rosa desabrochantes.

Estou certo, hoje, de que essa lembrança, renovada no Rio, será oportuna, e terá, como ali, amável acolhimento. Não há, na família, recordação mais doce do que a da infância dos filhos, e toda a gente sabe quanto é grato, a um moço, e mesmo a um velho, mostrar-lhe, ao longe, para trás, na curva do céu, os dilúculos fugitivos da vida...

Na “enquete” do Le Penseur, que acompanhei com afetuosa solicitude, apareceram, trazidas de toda parte, expressões infantis as mais pitorescas, e algumas de subido valor literário. O poeta Lucien Paté, por exemplo, conta de si mesmo que, aos seis anos, regressando de um longo exercício a pé, exclamara, esfogueado, pedindo água.

— Oh! j’ai soif comme un incendie!

Essa frase, tão expressiva, impressionou-o tanto, quando a família lhe repetira, que o poeta a engastou, mais tarde, neste verso do seu poema Les batteurs de grain:

L’incendie altéré vide à longs traits les puits.

Esse mesmo poeta, que já é avô, narra que uma das suas filhas, quando pequena, possuía, também, curiosos recursos de expressão, usando de imagens bizarras. Ao seu joelho, por exemplo, chamava ela, pitorescamente, “les coudes de mes jambes”... Outro avô, não menos feliz e solícito, escrevia de uma netinha, a sua Mideline. Para esta, as estrelas eram os ninhos dos pássaros, ou então, os olhos dos anjos...

Taine, de quem o fenômeno da inteligência mereceu sempre, em todas as modalidades, a análise mais percuciente, dizia que “a linguagem das crianças é tão instrutiva para o psicólogo como os estados embrionários do corpo aos olhos do naturalista”. Foi mesmo, a inteligência infantil, o ponto de partida dos estudos mais profundos de Guyau, que oferece, documentando-os, encantadoras harmonias dessa rumorosa aurora do espírito. O imenso Hugo, para quem a sua “petite Jeanne” era um universo no universo, afirmava, profundo:

“Dieu fait les questions pour que l’enfant réponde”.

E, a propósito, contava, ele mesmo, a lição de filosofia que lhe dera, certo dia, o encanto dos seus olhos:

“Les deux bêtes les plus gracieuses du monde,

Le chat et la souris se hïssent. Porquoi?

Explique-moi cela, Jeanne” Non sans effroi

Devant l’enormitê de l’ombre et du mystère,

Jeanne se mit à rire. “Eh bien? Petit grand-père,

Je ne sais pas. Jouons.”Et Jeanne repartit...

“Vois-tu, le chat c’ est gros, la souris c’est petit

 “Eh bien?” Et Jeanne alors, en se grattant la tête,

Reprit: “Si la souris était la grosse bête,

A moins que le bon Dieu là-haut ne se fachât,

Ce serait la souris qui mangerait le chat.”

A montanha sonora emudeceu, meditando ao ingênuo sussurro do grão de areia...

Eça de Queiroz afirmava, creio que na Correspondência de Fradique Mendes, que o português, quando pequenino, é, geralmente, um gênio. Os anos vão, porém, pouco a pouco, fazendo esmorecer a chama do espírito, que brilha menos, ou não brilha nada, exatamente quando devia luzir com o máximo da sua intensidade. Do brasileiro, ramo da raça, pode-se dizer o mesmo. A criança brasileira, quando tem saúde, é de espantosa vivacidade. Nós não possuímos, certamente, um Baratier, que aos seis anos sabia o grego e o hebraico, ou uma Santa Teresa de Jesus, que aos cinco fazia milagres. A nossa precocidade é profana e ingênua, fulgura em céu mais largo, e é, por isso mesmo, mais encantadora. A raça, se não comporta os prodígios soturnos que deslumbram os sábios, possui, em compensação, as inteligências joviais, que atordoam os leigos.

O espírito do brasileiro acorda, de ordinário, muito cedo. É como esses dias de verão que começam às quatro horas. E isso sem prejuízo da glória das tardes, que, às dezenove horas, ainda têm sol... De uma viagem que fiz ao Ceará, trouxe apanhadas ao acaso, algumas centelhas dessas estrelas nascentes. E entre elas estão duas explicações do vocábulo Saudade, o qual, não encontrando correspondente em qualquer outra língua, é quase inexplicável, mesmo em português.

Achava-me eu em Baturité, no sertão cearense, quando partiu para o Amazonas, deixando ali os seus dois filhinhos, o poeta e advogado cearense Quintino Cunha. Zuleide, que contava apenas quatro anos e era, das duas crianças, a mais velha, ficara inconsolável, chorando muito. A avó, como a surpreendesse, no dia seguinte, soluçando pelos cantos da casa, perguntou- lhe por que ainda chorava:

— É de saudade — respondeu.

— E sabes o que é saudade?

— É — respondeu a pequena — é... "vontade que volte”...

O termo para o qual Maxime Formont, nesse tempo, em artigos no Fígaro sobre a poesia de João de Deus, confessava não ter descoberto equivalente nos idiomas do seu conhecimento, e que pouca gente desdobraria em um conjunto de palavras, acabava de ser definido, naquelas sertânias do mundo, por uma criança que consultava, apenas, o minúsculo dicionário do coração!

Outra explicação que encontrei é de uma deliciosa ingenuidade, e quem me deu, por esse mesmo tempo, foi a Isa, uma robusta e ruidosa pirralhita de dois anos que em Caio Prado, ainda no Ceará, suportava sem revolta a ousadia afetuosa dos meus beijos. Nas vésperas da minha partida perguntei- lhe se, quando me visse, choraria com saudades.

— Sim, — respondeu-me, — choraria com “sodade”.

— E que é saudade?

— “Sodade”... — retrucou muito séria — "saudade”... é home que péga menino!

A pequenina confundia “saudade” com "soldado”; de que tinha, como toda criança de sertão, um grande medo.

Outra pequenina do mesmo tamanho fez-me suspeitar, uma vez, de que a própria dor é uma convenção. Foi isso no Canindé, ainda em terras do Ceará. Noêmia, uma galante pequerrucha de dois anos de idade e três palmos de altura, filha de um fazendeiro do lugar, levara, um dia, grande queda, do alto de uma rede, e quis chorar. Disseram-lhe que tinha dado um grande “pulo”; e ela se convenceu de tal maneira de que uma queda era um pulo, e que de um pulo não se chorava, que, daí em diante, considerava grandes “pulos” todas as quedas que apanhava...

O outro filho do poeta Quintino Cunha, a quem acima fiz referência, era o Osmar, de três a quatro anos. Um dia, em viagem para a serra de Baturité, escancharam-no à garupa de um cavalo, pondo entre o seu corpo e o rabicho do animal a esmola macia de uma toalha. Com a marcha, a toalha caiu sem que se percebesse, começando aquela parte do arreio a ferir as carnes tenras do pequenino, que não se conteve e, filosoficamente, indagou da pessoa que ia à sela — o Sr. Júlio Holanda, cunhado do Sr. Belisário Távora — e a cuja cintura se agarrava:

— Ó Júlio, cavalo gosta de rabicho?

— Não sei; por quê?

— Porque eu não gosto, não!

É que o animal tinha de suportar o rabicho exatamente em parte que correspondia àquela em que ele se estava magoando...

Os livros de memórias são abundantes em frases e imagens ingênuas e pitorescas atribuídas, na sua maioria, aos lábios infantis dos futuros autores desses repositórios. As obras francesas do gênero produzidas nos séculos XVI, XVII e XVIII não trazem, entretanto, o pecado desse egoísmo: registram elas, também, entre grandes alvíssaras, os ditos engenhosos dos “Enfants de France”, os quais — seja afirmado de passagem — quer Orleans, quer Bourbons, nunca se mostraram à altura das radiosas tradições de vivacidade da raça. A literatura de ficção, por sua vez, não tem posto poucas expressões agudas na boca de rosados seus minúsculos personagens. É necessário confessar, no entanto, que nada é de imitação tão difícil como o raciocínio da criança. Arremeda-se, correndo pelos barrancos escuros do Mistério, a razão coxa do ignorante e acompanha-se, muitas vezes, na velocidade do voo, com o auxílio de asas feitiças, o pensamento do homem de gênio. O raciocínio infantil resta, porém, inimitável. O peru de quintal pode, em certo momento, assumir atitudes de águia, nas tristes horas em que esta rasteja; a ave de poleiro não acompanhará, jamais, o volitar nervoso, rápido e imprevisto do pardal...

Não obstante, circulam como criação do espírito adulto expressões infantis de encantadora ingenuidade. E entre estas viaja uma pequenina história comovente, cuja suave singeleza trai, entretanto, a sua origem, que deve ser, necessariamente, a realidade. Uma senhora, mãe de duas pequeninas, votava maior afeição a uma delas. Certo dia, estando a miúda “Cendrillon” em um compartimento próximo, a mãe, ouvindo pisadas de criança, perguntou:

— Minha querida filha, é você?

E a pequenina:

— Não é ela, não, mamãe; sou eu.

A melancolia dessa resposta é de uma ingenuidade tão pura e natural, que não se pode classificar, apesar da sua agudeza, entre as felizes criações literárias. Percebe-se aí, perfeitamente, o voo do pardalzinho ferido...

Eu não tenho ainda a meu lado, no meu cenário doméstico, um “alguém” ou um “ninguém”, que se exprima com essa encantadora sutileza. A petiza que me desarruma os livros ainda não chegou à idade em que se arrumam as ideias. Anda apenas pelos dezoito meses, mas já colabora nas minhas observações de curioso. É notável, por exemplo, a nenhuma distinção que se estabelece, na sua idade, entre as dores morais e as dores físicas. O anjo que me quebra o “pince-nez” e me esconde as canetas, sempre que ar ranha o dedito no espinho de uma roseira ou nas garras do seu gato, vem mostrá-lo, chorosa.

— Dodói! Dodói!

Toda dor física é enunciada, na sua linguagem, por esse “dodói”; e como não tem outro meio de expressão para o seu mal-estar moral, é com esse mesmo termo que ela o manifesta. Assim, uma coisa que lhe causa repugnância, uma pessoa com quem antipatize, um quarto escuro, que lhe infunda pavor, tudo isso — pavor, antipatia, repugnância — é manifestado por essa fórmula universal:

— Dodói! Dodói!

As confusões que ela estabelece não ficam aí. No seu dicionário, o cachorro, qualquer que ele seja, tem o nome de “totó”. E todo retrato de senhora porventura encontrado nos figurinos que rompe, é o da sua “mamã”. Certo dia apanhou uma publicação elegante, e foi passar em revista as numerosas damas ilustres que ali apareciam fotografadas. Todas elas eram invariavelmente, aos seus olhos, a mesma pessoa:

— Mamã!

Uma senhora havia, porém, com uma grande peliça agasalhadora, e que lhe causou estranheza. Quando chegou a esse ponto, a pequenina estacou e, espantada, não quis ver aí a “mamã”.

— E esta? — indagaram.

E ela:

— Totó!

Todos os pais devem ter histórias destas para contar, ou, pelo menos, para guardar. Para todas as abelhas de Platão pousaram nos lábios dos seus filhos adormecidos, deixando neles, multiplicando-se, o saboroso mel da eloquência. E quantos não dariam a vida para, como Creso, ouvir, antes de morrer, a voz do seu filho mudo — esse papaguear embalador que o velho Hugo define, em outra parte, no seu imenso "Petit Paul”, como:

“Effort de la pensée à travers la parole.

Sorte d’ascension lente du mot qui vole,

Puis tombe, et se relève avec un gai frisson,

Et ne peut être idée et s’achève en chanson?!...

Essa é das vaidades humanas, a mais respeitável. E não a mais inofensiva. Não foi por outro santo pecado que a coruja perdeu os filhos...

REFLEXÕES DO BOM HOMEM RICARDO

Há um conto oriental em que um príncipe da Pérsia, de viagem para a índia, é assaltado pelos árabes do deserto. Conseguindo escapar, vai ter, dias depois, a uma cidade maravilhosamente próspera, onde, faminto e miserável, trava conhecimento com um alfaiate, a quem conta a sua odisseia.

— E que sabes tu para ganhar a vida? — pergunta-lhe o artista.

— Eu? Eu sou o príncipe mais hábil do Oriente. Sou um grande jurisconsulto, conheço o Alcorão, as sete narrações, os livros capitais, os livros essenciais de todas as ciências, entendo de astrologia, decorei as palavras de todos os poetas, sou, enfim, o maior sábio do meu século.

— E não tens um ofício? Não és sapateiro, nem remendão, nem barbeiro, nem ferrador? Pois, olha amigo: se não és nada disso e não queres morrer à fome neste país, procura uma ocupação mais honesta, e cuida de ti.

O príncipe arranjou uma corda e um machado e foi ser lenhador.

O Brasil está repetindo, neste instante, com a sua política de coração, o caso deste príncipe. Durante decênios, queimou ele o seu incenso unicamente à Europa jovial, que lhe poliu o espírito, mas que lhe não conhece a geografia nem a história, que pouco lhe compra, e que lhe tem dado, apenas, novos poetas, novas atrizes, novos chapéus e novas damas alegres; e, no entanto, quando se fala em desviar essas espirais votivas para o altar em que se ergue o bezerro de ouro dos Estados unidos, que nos enriquecem com as suas importações colossais, há, de nossa parte, um movimento de desconfiança e de dúvida, como se às nações, ao contrário do que sucede aos indivíduos, não coubesse o dever de só gastar a sua mirra com os deuses que lhes fazem a felicidade.

Nós precisamos acabar de vez com essa política sentimental. Opera-se neste momento, no planeta, uma revolução sem precedentes, cujo resultado será, fatalmente, uma absoluta inversão de valores morais. O banqueiro será o santo deste século. Só pode ser uni grande povo o que tiver indústrias, riquezas, comércio, produtos para fornecer à fome dos outros. E aquele que se atrasar na conquista desses bens, afastando-se da escola do trabalho material e da especulação produtiva, terá de por de lado, mais tarde, a sua literatura sem aplicação, e ir, como o príncipe do conto, cortar lenha para o fogão do vizinho.

A França, Bélgica, Portugal, a Rússia, a Itália, a Inglaterra mesmo, podem ser nações muito amigas e cavalheirosas; onde estão, porém, as vantagens práticas que superem as que nos oferece, com os seus mercados consumidores, a amizade incondicional da formidável República americana? A certo cônsul francês que pretendia convencer um rei persa de que Luiz XIV era o maior monarca da terra, a amizade da França a mais vantajosa e os franceses o maior povo do ocidente, observou argutamente o soberano:

— Como isso pode ser se há sempre no porto de Onuz, para trocar as riquezas do meu reino, apenas um navio francês para vinte velas holandesas?

Essa deve constituir hoje a nossa observação triste, mas necessária. Como se explicam, realmente, as apregoadas vantagens da amizade da Europa, quando são os Estados Unidos os fatores principais da nossa prosperidade comercial?

ORÇAMENTOS... DE GIL VICENTE

Essa questão financeira dos impostos de consumo, a que se veio juntar, à última hora, o problema constitucional dos orçamentos municipais, é de molde a fazer desesperar o próprio São Simeão Stilita; e o Sr. presidente da República não deu, jamais, uma prova tão impressionante da sua patriótica serenidade de rochedo, como agora, quando recebe, de pé, no seu posto, o choque sonoro de todas as ondas.

Não é, entretanto, o chefe da Nação o primeiro Brás que se sente mais no escuro à medida que lhe acendem velas em torno, com o intuito de clarear- lhe o caminho. Há um "Auto” de Gil Vicente, o "Auto da Fé”, em que um homônimo do nosso presidente se encontra, de repente, diante dos mistérios de uma noite de Natal, perguntando a tudo a significação da cena que o atordoa:

“Quien hallara algun letrado

Que supiera esto entender!”.

Um companheiro de Bras, de nome Benito, que o levara à vista daquele espetáculo novo, e em que ele esperava encontrar um amparo e um mentor, empurra-o para a frente:

“Tu, Bras, liarás Ia entrada".

BRAS

“Mas entremos par á par,

Porque nos cumple arrimar

Al dar de la revellada.

Comecemos á la una.”

BENITO

Tente, tente sobre ti”.

BRAS

“Si tu te piegas á mi...

Da mesura bien está:

Las manos tambien pongamos”

BENITO

“Porque no nos asentamos?”

BRAS

“Lo diablo acertará”.

No meio das luminárias do presépio, pras estaca, e queixa-se, arrependido:

“Las rodillas entumidas,

Las piernas me estan temblando”.

A Fé, compadecida do curioso, corre, porém, ao encontro dos dois amigos, e pergunta o que pretendem. E Bras:

“Nosotros qué os queremos?

Si á nós lo preguntais,

Nosotros no lo sabemos”.

A Fé procura, então, explicar-lhe todo o mistério, com o intuito de esclarecê-lo. Fá-lo, no entanto, de tal modo, que Bras, diante da explicação, ainda fica entendendo menos:

“Ahora lo entiendo menos:

Relata eso mas claro;

Que prejuro á Santo Amaro.

Que ni punto os entendemos”.

A Fé insiste na explicação confusa. E Bras sempre na mesma:

“Que no os entiendo, no

Ni sê que cosas hablais,

Si mas no lo aclarais.

Como estava me está”.

E como a pretensa mentora faz o mistério ainda mais obscuro, Bras volta-se para Benito, e convida:

“Cantiquemos por San Polo!”

E cantam...

Quem virá, neste “Auto da Fé”, salvar a Brás assediado pelos mentores e a quem nem Santo Amaro valeu? Será preciso encerrar o "Auto” com um hino... a São Paulo?

“DIVINA QUIMERA”

Os versos que nos têm dado no Brasil os supostos ou tardios discípulos de Mallarmé são, geralmente, de uma poesia acabrunhante e venenosa. Quando me vem às mãos um volume de algum dos iniciados na escola, assalta-me a impressão de que manuseio aquele famoso livro de que falam as Mil e uma noites, oferecido pelo médico Ruyan à soberba maldade do rei Yunán. Salvo pela experiência do médico, o monarca, arrastado pela inveja do vizir, deliberou matar o sábio que o curara. Queria, porém, que, antes da execução da sentença, este lhe entregasse o livro em que condensara a sua larga sabedoria, e que ensinava, provavelmente, a exata aplicação das suas fórmulas milagrosas. O médico reclamou prazo para cumprir a ordem real, e, um dia depois, apresentava ao rei um livro em branco, mas cujas folhas estavam ligeiramente coladas. O soberano, ansioso das revelações do volume, começou a manuseá-lo sofregamente, umedecendo o dedo na língua para despegar mais facilmente as folhas; e, como o livro estava impregnado de um veneno sutilíssimo, o rei Yunán tombou do trono, morto, antes de lhe virar a última página.

Os livros dos poetas a que demos no Brasil, numa generalização absurda, o nome de simbolistas, estão penetrados desse mesmo tóxico e matam, quase sempre, o espírito de quem os lê. E como fosse essa a regra geral, é com espanto que chego vivo, sadio, e alegre, à última folha da Divina Quimera, do poeta rio-grandense Eduardo Guimarães.

Não incorrerei em exagero, creio eu, afirmando que o jovem artista da Divina Quimera é, entre nós, apesar dos seus anos pouco numerosos, o mais sincero oficiante da esquecida catedral em que acaba de cantar missa nova. Os seus versos já evocam, como o dos bons sacerdotes do credo, as paisagens emocionais que eles se propõem criar. A sua mão já sabe espalhar com felicidade, porque com descrição, a cinza necessária à formação de crepúsculos doces, no meio dos quais deve passar, cortada em bruma luminosa, a ronda silenciosa das imagens.

Eduardo Guimarães precisa, entretanto, que se lhe recomende um esforço maior para sua completa emancipação da tutela dos mestres. Os motivos dos seus versos são excelentes e aparecem admiravelmente tratados; sente-se, no entanto, que esse barro já andou por outras mãos, nas quais sofrerá a tortura absoluta, esgotando, nas obras que produziu, toda a sua flexibilidade. Estão nesse caso os de que saíram os versos do “Cântico delle creature”, do "Chopin”, e do "Dante”, que são, sem dúvida, muito belos, mas que evocam, fatalmente, outros muito parecidos.

Fazendo, embora, esses reparos que a sinceridade aconselha, não me posso furtar à tentação de transcrever o “Túmulo de Baudelaire”. São versos em nada inferiores aos melhores porventura inspirados por essa eloquente tragédia de pedra, a começar pelo “Tombeau de Baudelaire”, de Pierre Louys e a terminar pelo “Baudelaire”, da série "Les Tombeaux”, de Valère Gille — e mais impressionantes, seguramente, do que a "Tombe de George Sand”, de Gabriel Nigoud, e, mesmo, do que o “Tombeau de Edgard Poe”, de Mallarmé. São estes:

TÚMULO DE BAUDELAIRE

Um anjo que possui uma espada de chama,

Hirto e pálido, à fronte um halo virginal,

Guarda o Túmulo, junto ao mármore imortal,

A que o poeta desceu, cego de luz e lama.

Outro, que às mãos desfralda o ardor de uma auriflama.

Olha, cismando, o azul profundo como o mal;

E Lúcifer, enfim, magnífico e fatal,

Tem à boca a revolta em que a blasfêmia clama.

Entre a aridez da terra e a solidão noturna,

Fundo abismo, do espaço ao lúgubre esplendor,

Fendem-se do Desejo as largas fauces de urna.

E as Danaides, de aspecto envelhecido e terno,

Tentam encher em vão esse tonel de horror!

Ora, lá dentro, o Céu! Uiva, lá dentro, o Inferno!

Dos bispos do seu tempo, escrevia amargamente São Jerônimo: “gemmis codices vestiuntur et nudus, ante fores eorum Christus emorituf. À maioria dos nossos simbolistas pode-se aplicar, invertendo-se a imagem, essa indignada observação do piedoso autor da “Vulgata”: a pedraria fulge à porta dos seus poemas, enquanto a ideia, nua, lhes morre lá dentro. Eduardo Guimarães, felizmente, redime a sua Igreja: a pedraria dos seus vocábulos é abundante, mas está disposta com arte sobre o corpo formoso do seu Cristo.

UM PALÁCIO DESERTO

Os críticos do Zodíaco, de Da Costa e Silva, já desengastaram, uma a lima, para estudo, as estrelas dessa faiscante zona celeste, mostrando-as ao mundo, como o fariam os deuses, nas pontas dos seus dedos. Espectador tardio dessa maravilha resta-me, agora, apenas, levantar os olhos para o imenso mostruário do céu, tal como o encontro arrumado, e sentir, com os ouvidos do espírito, a rotação silenciosa dos astros.

Do poeta, foram ditas coisas encantadoras e justas; nada, porém, me feriu tão agudamente a imaginação como o grito de Celso Vieira, ao verificar, no fim do livro, que não cruzara, em toda a viagem, com uma única sombra feminina. A estupefação do brilhante crítico epicurista, ao constatar esse fenômeno literário, fez-me evocar o espanto daquele “saaluk” das Mil e uma noites, ao abrir a última porta do palácio a que o conduzira o pássaro Rok. Cada horizonte novo que os seus olhos descobriam no universo desse pequeno mundo de maravilhas, era, para ele, um novo deslumbramento. Aqui, era um horto arreado dos mais saborosos frutos da terra. Ali, aberta outra porta, cheirava o jardim de cem cores, cujo perfume entontecia como um filtro. Adiante, era o aviário sonoro, onde cantavam, harmônicas, todas as gargantas aéreas. Aberta uma porta, o visitante recuava, deslumbrado, tapando os olhos ao fogo fantástico da pedraria. Por toda a parte, enfim, o luxo, a riqueza, a opulência, a fartura, os adornos da felicidade. Para onde teriam ido, porém, os corpos que o haviam tentado, convidativos e ardentes, à porta do palácio encantado? Não os encontra. E como não os encontra, toma as rédeas de ouro do negro cavalo de asas que relincha no pátio, o qual o devolve, triste e cego, à pobreza e à miséria do mundo...

É esta a sensação que se tem, realmente, ao fechar o Zodíaco. As amazonas, centauros femininos, não queriam homens no seu reino. O centauro que guarda, simbólico, a entrada do livro de Da Costa e Silva, não permitiu, neste, a passagem das zonas. Mas essa intransigência não há de ser eterna. Há de haver um dia em que Talestris, quebrando a flecha do orgulho, atravessará a Hircânia, a pedir, de rojo, para maior esplendor da sua glória, um pedaço do leito de Alexandre...

O BODE RUSSO

Criticando o último livro de crônicas do Sr. Panho Barreto, fez o Sr. Medeiros e Albuquerque, com a sua agudeza e independência habituais, uma série de observações absolutamente felizes. Destacam-se, destas, a comparação do estilo desse discutido escritor a uma roupa de “clown” enfeitada de lantejoulas, faiscantes ao meneio felino do corpo que a veste, e a certeza de que o seu apego a um cepticismo impertinente e irritante é mero resultado de uma teimosia, transformada, pela insistência, em costume inabandonável. O Sr. Medeiros compara, mesmo, o autor a um falso aleijado, que, tendo simulado por muito tempo uma contratura da perna ou da espinha, chega à situação de ficar permanentemente defeituoso, e a arrastar se curvado ou claudicante, por este imenso labirinto da Vida.

São duas observações perfeitamente justas. O estilo do Sr. Paulo Barreto possui, realmente, as cintilações impressionantes das vestimentas carnavalescas. As suas crônicas, quando trabalhadas com exagerada tortura, recordam essas esguias árvores de Natal sempre aparecem por este tempo, cujos braços, quase despidos de folhagem, se derreiam carregados de frutos de malacacheta. O esqueleto dessas crônicas, como o dos pinheiros de palha colorida, possuem, no cerne, vestígios de seiva eterna; é tal, porém, o esforço do escritor em impedir os surtos naturais do seu espírito, que o mérito da obra fica residindo, inteiro, na sua originalidade, no brilho dessa artificialidade teimosa, caprichosa, de dama que dissimulasse com frivolidades os encantos da própria beleza.

A segunda observação é igualmente acertada. Não é possível que o Sr. Paulo Barreto haja conservado por convicção e gosto próprio a maneira literária que adquiriu no início da sua vida de letras. Eu acredito, como o Sr. Medeiros, que ele só marcha literariamente curvado por lhe ser impossível regressar, hoje, a uma atitude discreta e normal. A sua situação, sempre que a considero, traz-me à lembrança um conto popular da Rússia recolhido há meio século pelo tradicionalista inglês Ralston, do Britishb-Museum. Certo moleque miserável descobriu, no cemitério da aldeia, ao enterrar a própria mulher, um vaso repleto de ouro e, para tranquilizar a consciência, contou ao Pope do lugar a sua extraordinária aventura. Este, que era um velho inescrupuloso e rapace, imaginou, de pronto, um meio de arrancar esse tesouro ao moleque. Chegando à casa, matou um bode, tirou-lhe a pele, com os cornos e a barba e, à noite, meteu-se nela, mandou que a mulher o cosesse, e dirigiu-se à cabana do camponês, onde estacou, berrando, e dando marradas na porta.

— Quem é? — gritou o moleque, acordando sobressaltado.

— É o Diabo; abre!

— Isto aqui é um santo lugar — respondeu o camponês persignando-se.

— Escuta, velho — berra o Pope; — eu tive piedade de ti quando te vi sem um corpo para o enterro da tua mulher; dei-te dinheiro e, no entanto, tu o pões fora, esbanjando-o. Anda, entrega-me o meu ouro ou eu levo a tua alma!

O moleque espiou pela fresta da porta e, vendo os cornos do bode, não se ateve em dúvida: pegou o vaso de ouro, pô-lo fora da cabana, reentrando nesta apressadamente, rendendo graças a Deus, e a S. Nicolau, por se ter livrado com alma e com vida. Quanto ao Pope, apanhou o tesouro e saiu a galope, rumo de casa. Chegando aí, chamou pela mulher, para sempre o despisse da pele caprina. A velha trouxe uma faca e principiou a cortar os fios da costura. Mal, porém, cortara o primeiro, o Pope soltou um grito de dor:

— Ai! estás me cortando! Não me cortes! Não me cortes!

A pele do bode havia se identificado com a do Pope, que ficou sendo bode por todo o resto dos seus dias.

O Sr. Paulo Barreto não será, porventura, com os seus grandes talentos naturais e os seus pequenos defeitos adquiridos, o bode russo das letras brasileiras?

ELOGIO DA VELHICE

É sobejamente famosa, para que seja agora repetida, a justificação que fez Luiz XIV das sucessivas derrotas sofridas pelo marechal duque de Villeroi nas campanhas pela sucessão da monarquia espanhola. Tinha Villeroi perdido desastrosamente à batalha de Ramillies, contra Marlbo rough, quando se apresentou ao rei, na certeza de ser recebido com reprimendas enérgicas. Luiz XIV lembrou-se, porém, dos seus sessenta e oito outonos de fausto e de glória, e que o marechal não tinha menos de sessenta e dois invernos de salão, e limitou-se a dizer-lhe, melancolicamente:

— “Monsieur le maréchal, on n’est pas heureux à notre âge!”

Não é do mesmo parecer, positivamente, o Sr. presidente da República, segundo se evidencia da escolha ultimamente feita, dos sessenta setembros reumáticos do Sr. João Mendes Júnior para as pegas jurídicas do Supremo Tribunal. Mais versado na sabedoria sagrada do que na profana, o chefe da Nação, discordando do Rei Sol, coloca-se ao lado de São Gregório Magno, que dizia, e muito agudamente, que nem madeira verde serve para edifícios, nem gente moça para governos.

Argumentar-se-á, talvez, que o Sr. Venceslau não tem a idade de Sedecias, e que devia pôr ao seu lado, no governo da república, a gente da sua geração; mas o presidente objetará, como Justino, que, se Alexandre não tinha mais de trinta anos quando deu à Macedônia os limites do mundo, os seus generais contavam todos, em compensação, mais de sessenta, e eram, na sua totalidade, veteranos de Rilipe. S. ex. recordará, enfim, que Roboão perdeu o reino por haver preferido à companhia sisuda dos anciãos o conselho arrogante dos mancebos, e que, além de tudo, os seus novos auxiliares são homens de notória capacidade, e dos que, além de idosos, ainda são daqueles

... cuja idade

é maior na prudência que nos anos...

(CAMÕES, Lus, X, 54)

E desde que, como na Esparta de Licurgo, os anos passaram a pesar em grosso na balança de ouro das virtudes, pode-se contar que o novo Alexandre, ao atirar, dentro em breve, o seu cetro para ser apanhado por um sucessor, parodiará o “dignissimum” do macedônio, exclamando:

— Ao... mais velho!

A CAUDA DO RATO

Conta a imprensa que a cidade recebeu com grandes aleluias a promessa do novo Prefeito relativa ao imediato pagamento do funcionalismo e das dívidas municipais. O contentamento popular foi, mesmo, tão intenso, que parece ter sido esse o primeiro governador do município que prometeu pagar contas, e que todos os outros, até agora, só têm prometido fazer o contrário.

Essas festas foram, entretanto, e como se há de ver, precipitadas. O ex-ministro do supremo não realizou que se saiba, o sonho de Grimaldi e de Ashmole, descobrindo o processo químico de fazer ouro, e, como tem ele de administrar a Prefeitura com as rendas ordinárias estipuladas nos orçamentos, pode-se pôr em dúvida, desde já, a esperada realização do milagre. E isso porque o artista que recebe fazenda para vestir os seis palmos de Davi, não poderá cortar, jamais, nesse pano, a vestimenta de Golias.

Nem mesmo por bruxedo seria possível a maravilha. O próprio Diabo não tira alguma coisa do nada. Asseguram os diabolistas que, ao transformar as bruxas em bichos, o demônio só consegue fabricar alimárias sem cauda, porque não há na mulher uma parte do corpo de que possa tirar esse ornamento. Shakespeare acentua essa vergonhosa impotência dos maus espíritos quando põe na boca de uma feiticeira, no 1 ° ato, cena III, do Macbeth, a notícia de que se vai transformar em rato, mas sem rabo:

“But in sieve l’ll thither soil,

And, like a rat without a tail,

I’ll do, I’ll do, and I’ll do”.

Os recursos financeiros do município são uma bruxa de que os prefeitos têm fabricado toda sorte de bichos, mas em que não se encontra uma parte de que se possa tirar o apêndice dos débitos atrasados. De onde irá o Prefeito fabricar, pois, a cauda do rato?

A NOIVA DO MARUJO

Há um verso de Homero, na Odisseia, em torno do qual Anatole France arregimentou, para o trabalho da tradução, um erudito batalhão de helenistas. Está ele no canto XI do poema, e contém um termo grego de significação discutível, correspondente a determinado instrumento pelo qual seria tomado o remo que Ulisses conduzia às costas. Pela predição de Tirésias, o herói devia percorrer a terra com o seu remo ao ombro, até encontrar um povo que não tivesse a mais ligeira ideia do mar, não possuísse barcos nem acessórios de navegação, nem houvesse provado, mesmo, qualquer alimento salgado. Ao encontrar um representante desse povo exótico, devia Ulisses plantar o remo na terra e oferecer sacrifícios aos deuses.

Da vulgarização dessa legenda brotou, talvez, nas cordilheiras sul-americanas, uma anedota picaresca, que eu fui encontrar, há tempos, em um escritor peruano muito da minha leitura — o Sr. Ricardo Palma. Enfastiado da monótona companhia das águas, certo marinheiro resolveu não voltar a embarcar-se, e a viver, quanto lhe fosse possível, distante do litoral. Queria, mesmo, casar-se com uma rapariga inteiramente ignorante da vida marítima, e que não tivesse visto, jamais, o cadenciado e eterno movimento das ondas. Para isso, tomou de um remo, pô-lo ao ombro, e partiu, como Ulisses, pelo mundo, à procura de uma donzela em tão altas condições de inocência. Andou, assim, de povoado em povoado, a perguntar às raparigas que pau era aquele que trazia às costas, e todas prontamente lhe respondiam que aquilo era um remo. Afinal, encontrou uma que lhe não soube responder, e casou-se com ela. Na noite das bodas, porém, a noiva, que mostrava ignorar o que era um remo, perguntou-lhe:

— Dize-me, qual é o lado que me compete ocupar na cama: o bombordo ou o de estibordo.

O último e recentíssimo feito político do Sr. Lauro Sodré, no Pará, faz-me lembrar essa ingênua donzela que fingia ignorar o que era um remo e conhecia, entretanto, toda a técnica da navegação. .Não há, neste país, cidadão que pareça mais santo, mais tolerante, mais pacífico do que esse apóstolo paraense. Enquanto é noivo das altas funções públicas, ignora ele o que seja maldade ou violência, como a rapariga da anedota ignora o que é um remo. Assim, porém, que chega a noite das núpcias, a pudica donzela põe de lado a simulação, e aparece à beira da cama do poder com uma espantosa desenvoltura de amante de marujo, dessas que trazem na cabeça e na língua toda a complexa varredura do antipático vocabulário de bordo!

O Sr. Lauro Sodré pode ser, para a maruja que lhe louva permanentemente a eterna virgindade de consciência, a mais pura e pundonorosa das nossas poucas donzelas políticas: eu tenho, no entanto, para mim, que ele não suportaria na sua vida pública um rigoroso exame de sanidade, e que essa virgem não passa, em verdade, de uma frequentadora comum do sujo cais da politicagem.

O MILAGRE DE ELIAS

Em nota do seu Journal, datada de 25 de Abril de 1892, confessava Edmond de Goncourt o seu horror, dia a dia mais acentuado, à obra de imaginação. Seduziam-no, então, e apenas, os livros de história, de memórias e de viagens, todas as narrativas, enfim, que repousassem na verdade e na vida.

Eu não precisei dos setenta anos do pautado romancista de Madame Gervaisais, para sentir a mesma ojeriza e confessar as mesmas predileções. E foi em virtude dessa minha fisionomia literária, que acompanhei com leal interesse as notas de viagem que Mario Brant escreveu da Argentina para a imprensa do Rio, e que agora aparecem reunidas em magnífico volume de duas e meia centenas de páginas.

A vertigem da vida moderna, que torna vizinhos os homens mais afastados pela distância, tirou, é certo, um pouco do encanto que nos dava, outrora, em literatura, a província das viagens. Os homens civilizados são, por mais separados, cidadãos da mesma cidade. Uma viagem em torno da Terra, praticada por um espírito sempre fale secamente do solo e das coisas mudas do caminho, oferece, hoje, cem vezes menos interesse do que qualquer excursão breve realizada por viajante que, sem se afastar da verdade, olhe, de vez em quando, para o mundo que leva em si mesmo.

Espírito ornado de vasta cultura e ensinadora experiência, Mario Brant compreendeu, de pronto, nessa viagem, a necessidade de procurar um novo caminho para as índias. Não é aproveitando os velhos roteiros que se consegue o descobrimento de mundos novos. A gleba ondeante que leva à Argentina já foi arroteada cem mil vezes pelo marítimo arado das quilhas. A terra, ou a água, estava cansada de florescer em monótonas impressões de viajantes. Mario Brant escolheu, porém, e de tal forma, a sua estrada, que nos deu, com o seu livro, um produto inteiramente novo. Nele não aparecem, apenas, como nos infinitos volumes do gênero, os frios aspectos do país visitado: mostram-se, também, os do espírito que os observou, e que os enfeita com os arabescos das lentes com que foram vistos. Como o índio que examina meticulosamente o sertanista, beliscando-lhe os sapatos, revirando-lhe os botões da roupa, metendo-lhe o dedo pelo vidro faiscante dos óculos, Mario Brant mexeu e remexeu tudo, procurando em tudo a sua face irrevelada. As novidades de feição informativa e prosaica, essas mesmo, com os seus algarismos, os seus detalhes, as suas estatísticas oficiais e severas, ele nô-los mostra através do seu estilo encantador e irônico, e, conseguintemente, por um prisma que ninguém nos mostrou ainda.

Um dos talentos máximos do escritor, toda a gente o sabe, está em realizar o milagre dos pães e dos peixes, isto é, em tirar grandes e imprevistos efeitos dos motivos aparentemente vulgares. O autor da Viagem a Buenos Aires satisfaz, sem custo, essa exigência: oferece-nos, com vinte dias de permanência na Argentina, os mil aspectos da Argentina inteira, e nô-los mostra, ainda, com tintas novas, e suas. Eu leio no livro dos "Reis” (19,8) que o profeta Elias, ameaçado por Jesabel, encontrou nas vizinhanças de Berseba um pão e uma botija d’água, que comeu e bebeu, e que lhe deram força para viajar quarenta dias e quarenta noites, até à encosta do Horeb. Mario Brant conseguiu, com o bordão de ouro da sua pena, fazer, de novo, essa viagem maravilhosa, Um escritor que, com vinte dias de notas e observações, encheu 260 páginas de impressões interessantes e autenticas, teve, positivamente, o raro mérito de repetir o santo milagre de Elias.

A ORDEM DA ROSA

Entre as aventuras galantes de que esteve repleta a vida ruidosa do nosso medíocre poeta e venturoso político Maciel Monteiro, figura, com escândalo, um caso que Elísio de Carvalho, na Grandeza e decadência da sociedade brasileira, diz ocorrido em Pernambuco, quando o nosso elegante parlamentar já sobraçava uma das pesadas pastas do Império. Havia nesse tempo, no Recife, uma dama de radiosa beleza e celebradas virtudes, cuja reputação jamais havia sido mordida pela víbora traiçoeira de nina calúnia. A cidade inteira rendia-lhe culto à pureza dos costumes e à santidade da vida, como se outra não houvera tão virtuosa, da boca do Capibaribe à última casa de telha dos altos confins da província.

É defeito, porém, do Diabo, segundo asseveram os que intimamente o conhecem, preferir, para o maligno deleite da tentação, as almas santificadas pela boa conduta terrena; e foi por isso, com certeza, que Maciel Monteiro escolheu, em certa festa de gala, para vítima dos seus sortilégios, a honestíssima dama recifense, moendo-lhe ao ouvido, e derramando-lhe ele, transformada em fervente caldo de versos, toda a cana roxa que o amor lhe embalava permanentemente no coração.

A jovem Penélope era forte e possuía em casa, na Itaca brasileira, os braços do seu Ulisses; tais foram, porém, nessa noite, as investidas literárias do famoso mundano, que no meio da penúltima valsa, ninguém mais a viu na dança, nem ao seu teimoso perseguidor. Mas a ausência, se foi longa, não foi eterna: minutos depois, quando o salão inteiro cochichava malicioso, entrou por ele, muito vermelha, a linda Cornélia pernambucana. Vinha, apenas, com a “toilette” modificada: presa aos enfeites do decote, balouçava, trêmula e faiscante, a comenda da Ordem da Rosa, que brilhava, meia hora antes, no peito de Maciel Monteiro!

Não era, entretanto, só no tempo do Império que se registravam essas comprometedoras casualidades. Ainda agora, no reinado da saia curta e da língua comprida, se deu, no Rio, um caso mais ou menos correspondente a esse de Pernambuco, e em que saíram magoados, talvez, um calo e uma reputação. Reside para os lados de Botafogo, em palacete custoso e novo, uma senhora que é a própria virtude vestida pelos figurinos de 1917. Essa preciosa joia doméstica foi, há pouco, passar um dia de festa em casa de família amiga, onde se cuidou de arrumar, após o almoço, uma grande mesa para o exercício de alguns jogos elegantes. O dono da casa, homem novo, trajava, nesse dia, terno escuro, contrastando com a jovem amiga da esposa, que vestia lindamente de branco. Depois de duas horas de passatempo, em que os dois haviam jogado de parceria, e frente a frente, levantaram-se todos. E foi observada esta inocente coincidência: as botinas brancas da senhora estavam manchadas de graxa, enquanto que as calças pretas do dono da casa apareciam escandalosamente raiadas de branco!

As damas do Império não eram, como se vê, diferentes das democráticas senhoras da República. Umas e outras sempre sonharam com a Ordem da Rosa...

UM PAPAGAIO... REAL

Entre os contos mais vulgarizados do nosso “folk-lore”, no qual toma forma as mais variadas e pitorescas, está o que põe frente a frente, em grave momento da vida, a palrice de um papagaio sem juízo e a silenciosa filosofia de um pinto sem poleiro. A mulher de certo vaqueiro meteu em casa, na ausência do marido, um amante do coração, e, para festejar esse encontro cem vezes sonhado, matou uma vaca do curral, enterrando no mato o couro, os chifres e os ossos da vez. Quando o vaqueiro regressou, perguntou pela vaca; mas a mulher respondeu que havia fugido e que ninguém, nas redondezas, lhe dava notícias dela. Um papagaio, porém, que assistira toda a festa criminosa dos namorados, desta remelou a língua, e gritou da sua gaiola:

— É mentira; ela comeu a vaca com o João Grande, e enterrou os chifres, o couro e os ossos no mato, atrás do curral.

O marido, de acordo com a praxe, deu uma surra na mulher; e esta, de acordo, também, com o estabelecido nos contos, deliberou vingar-se do papagaio. E foi nessa mesma noite. Caía uma chuva de dilúvio e a água descia, mugindo, por todas as rugas da terra. A mulher aproximou-se da gaiola do “loiro”, apanhou-o pela cabeça, tirou-lhe três ou quatro punhados de penas, e atirou-o, num ímpeto, para a enxurrada. Já pela madrugada, depois de muito rebolado pelos dedos moles das águas, conseguiu o papagaio lançar o bico a uma raiz e aí se acomodou como pôde à espera do dia. Quando clareou, viu que não estava só: ao seu lado, na raiz, encharcado e encolhido, pousava um pinto pelado, que tiritava de medo e de frio. Encontrando aquele irmão na desgraça, molhado e depenado como ele, o papagaio imaginou que os mesmos castigos eram invariavelmente a consequência dos mesmos pecados, e interrogou o companheiro:

— Camarada, você também contou da vaca?

Há dias, no relato quotidiano destas curiosidades leves, mostrávamos ao ombro de um marinheiro de anedota, perdido nas cordilheiras do Peru, o remo que Homero pusera às costas de Ulisses no XI capítulo da Odisseia; e não é com intuito menos honesto que aqui aparece essa história do papagaio e do pinto, que tem, na literatura genial, o seu quadro correspondente.

No ato III, cena IV, do Rei Lear, vai esse novo Édipo a vagar pelo campo, sob a tempestade, repelido pelas filhas, "nessa noite em que elas não negariam refúgio nem aos lobos”, quando encontra uma cabana inundada. Lá dentro, igualmente molhado, e igualmente louco, vaga o vulto diabólico de Edgard. Vendo ali, como a sombra da sua dor, aquela figura miserável e errante, o rei estaca, textualmente, nas velhas edições shakespearianas, e pergunta, como para um consolo:

— “Didts thou give all to thy daughters? And art thou come to this?

Não estará aí, no rei da Bretanha, um parente trágico, mas legítimo, desse grotesco papagaio do nosso conto.

A DADIVA DE LICURGO

Não há um poeta, dos cem ou duzentos da minha geração, cujo triunfo me preocupe tão vivamente como o meu glorioso irmão Hermes Fontes. E esse interesse é alinhavado — aqui o confesso — pelo mais venal dos egoísmos: eu tenho dele a promessa, mil vezes repetida e jurada, de que me levará à festa dos deuses, como um dos seus íntimos, no côncavo sonoro da sua viola — e daí a minha solicitude em friccionar constantemente, com o óleo morno dos meus louvores, as articulações aquilinas das suas asas.

Não há de ser, entretanto, com a antiga confiança, que empreenderei, de futuro, essa invejada ascensão. A aventura do Santo Antão, de Flaubert, na sua vertiginosa viagem pelas alturas, abraçado aos cornos de ouro do Diabo, é uma história que ainda hoje me faz calafrios. Há no céu, segundo leio nos olhos dos que já subiram, uma região em que se perde, de todo, a noção das distâncias. Penetrando-a, o viajante aéreo, embrulhado no manto imponderável das nuvens, não sabe mais se está subindo ou descendo; e eu — homem de pouca fé! — ainda me assusto, talvez sem motivo, com a ideia de vir dar, um dia, com os meus humanos ossos no chão...

Os últimos versos do soberbo encenador das Apoteoses, reunidos agora sob o título geral de Miragem do Deserto, vieram aumentar, e de muito, a minha suspeita e o meu medo. Afirmam os seus devotos incondicionais que o meu querido poeta continua subindo; eu tenho, porém, a agoniada impressão de que está acontecendo o contrário, ou, pelo menos, de que as suas asas se enregelaram nas nuvens, e temo, apavorado, que ele se misture, amanhã, numa descensão precipitada, com os monótonos quero-queros da nossa fauna poética.

Ao meu encantador Hermes Pontes não será agradável, com certeza, esta minha desabusada sinceridade. A unanimidade dos aplausos que ele, com a sua sedução pessoal, e com os seus méritos, tem recebido da dedicação dos amigos e do entusiasmo dos admiradores, desabituou-o destas ousadias selvagens, que lhe são, entretanto, necessárias. Conta o velho Heródoto que em certa região da Líbia, no trecho compreendido entre o atlas e as colunas de Hércules, os naturais, fiados na ausência das chuvas, começaram a construir habitações cada vez mais frágeis, até que as levantaram exclusivamente de sal. A falta de crítica tem concorrido, e grandemente, para enfraquecer a poesia do meu poeta; contasse ele com a chuva das observações sinceras, que experimentassem constantemente a resistência da sua obra, e, hoje, em vez de tê-la de sal, que se pode transformar em areia, tê-la-ia, talvez, de granito ou de mármore.

Eu sinto na Miragem do Deserto, como em todos os livros de versos do seu autor, posteriores às Apoteoses, a presença de dois poetas distintos: um, o das maiúsculas, abusando de absurdos e bizarrias; outro, delicado, singelo e verdadeiro. De qualquer modo, percebo, de livro para livro, a sua falta de unidade, que é, ainda, uma consequência da falta de sinceridade com que tem sido julgado em público. Dir-me-á, talvez, o meu brilhante poeta que isso é uma virtude, e recorrerá, para mó provar, ao nosso avô Marcial, sentenciando com ele: “aequalis liber est qui malus est”; eu insistirei, porém, em reclamá-lo uniforme, escolhendo o seu caminho, fixando a sua maneira de poetar, definindo, enfim, a sua individualidade literária.

Eu não me afastarei, no entanto, deste confessionário, sem dizer que há em Hermes Fontes, no meio dessas folhas que o tempo levará com os seus sopros eólicos, muita fruta madura, que será conservada e multiplicada na terra. A sua obra não é ainda a de um poeta perfeito e definitivo. Ninguém o é na sua idade, nem na minha. Eu não encontro, porém, no Brasil, dois rapazes armados de lira que disponham de tão fartos cabedais para a gloriosa conquista daqueles títulos.

Por enquanto, — e com pesar meu, — são essas as flores que tenho para a sua coroa. Eu, que as atiro com as duas mãos quando as rosas não são minhas e tenho a certeza de não ser visto, não sou, jamais, um pródigo, se se trata de oferecê-las em pessoa, na ponta dos dedos. E não é por maldade que assim procedo. A Licurgo perguntaram um dia por que só oferecia pequenos sacrifícios aos deuses.

— E? — respondeu — para que não me acabe a provisão, e me reste sempre, em toda a minha vida, alguma coisa que lhes dê. Não fosse o meu temor de não possuir amanhã, quando hemes Fontes nos der um livro verdadeiramente perfeito, as flores que então merecer, e eu não teria, de certo, o escrúpulo, que hoje me detém, de pelar em sua glória todas as alamedas do jardim de Licurgo.