Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

O livro derradeiro – Primeiros escritos, de Cruz e Sousa


Texto-fonte:

 João da Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart,

Florianópolis: FCC / Fundação Banco do Brasil, 1993.

ÍNDICE

Cambiantes

Extremos

Supremo anseio

Após o noivado

Dormindo

Nerah

Amor

Escravocratas

Da senzala

Dilema

À revolta

Escárnio perfumado

Filetes

Outros sonetos

[Senhor de nobre]

[Da mundana lida]

[De Meyseder gentil]

[Dois zoilus]

[Minh’alma está]

[Rompeu-se o denso véu]

[Deixai que deste álbum]

[Alçando o livro]

O desembarque de Julieta dos Santos

Na mazurka

O final do guarani

Ideia-mãe

O seu boné

[É um pensar]

Oiseaux de passage

Colar de pérolas

Satanismo

Metamorfose

Auréola equatorial

[Anda-me a alma]

[Quando eu partir]

Sempre e... sempre

Noiva e triste

Mãe e filho

Natureza

Surdinas

Irradiações

Ambos

Plenilúnio

Os dois

Triste

Celeste

[Estas risadas]

Aos mortos

Luar

Mocidade

[Vão-se de todo]

Na fonte

[A fonte]

Cega

A Ermida

Água-forte

Alma que chora

Chuva de ouro

Primeira a fora

25 de março

Ninho abandono

Crença

Cristo e a adúltera

Êxtase de mármore

Inverno

Falando ao céu

Gloriosa

O chalé

Delírio do som

Ilusões mortas

O sonho do astrólogo

Cristo

Frutas de maio

Eterno sonho

Risadas

Ave! Maria...

Impassível

Verônica

Símiles

Exilada

Sonetos

Decadentes

Olavo Bilac

Doente

Lirial

To sleep, to dream

No campo

Visão medieva

Roma pagã

Espiritualismo

Plangência da tarde

Alma antiga

Vanda

Êxtase

Luar

Celeste

A partida

Canção de abril

O mar

Manhã

Rir!

Ideal comum

Aspiração

Sensibilidade

Glórias antigas

Pássaro marinho

A freira morta

Claro e escuro

Magnólia dos trópicos

Hóstias

Boca imortal

Psicologia humana

Os mortos

Floripes

O cego do Harmonium

Horas de sombra

Aleluia! Aleluia!

Rosa negra

Vozinha

No Egito

Ocasos

Repouso

Resquiescat...

Doce abismo

Harpas eternas

Dupla Via-Láctea

Titãs negros

Entre chamas...

O anjo da redenção

Salve! Rainha!...

[Brancas aspirações]

Violinos

Guerra Junqueiro

[Deus esculturou-te]

Aspiração

Abstração

Asas de ouro

Jesus

Trompa de Roldão

À pátria livre

O rio

Joia

A volta

Balada matinal

Recordação

Lágrimas

Filosofando

Aos pobres

[Deixe-nos ficar...]

Bom dia

Frutas e flores

A piedade

As ondas

O cão do fidalgo

Mães

Libertas

Águia do ideal

Campesinas

Ao ar livre

Nos campos

A borboleta azul

Renascimento

Abelhas

Besouros...

Papoula

Campesinas

No campo santo

Na vila

Os risonhos

Dispersas

Away!

Poesia

Saudação

A imprensa

Versos

Ao decênio de Castro Alves

Entre a luz e sombra

Sete de setembro

Três pensamentos

Paranaguadas

Questão Brocardo

Sempre

Beijos

Questão Brocardo

[Pinto, Pinta]

Piruetas

As devotas

[De claque]

[Meus esplêndidos...]

[Nunca se cala]

[Estoure como]

[Parece um céu]

[Levantem esta bandeira]

Olhares

[Nas explosões]

[Preso ao trapézio]

Grito de guerra

[Da lua aos raios]

[Teus belos olhos]

Adalziza

[Teus olhos]

Ser pássaro

O Botão da rosa

[Ó Adalziza]

[Enquanto este sangue]

[Como um cisne]

[Merece o bom]

Zulmira

Deixai

[Quando ela]

[Ó cintilante quiquia]

[Olhos pretos]

[Se estala a estrofe]

Amor!!!...

[Ó flora]

[Morena dos olhos pretos]

[Embora]

[Ó Alzira]

[Aos relâmpagos]

[À sombra espessa]

Rosa

[Quando estás]

[Da ideia]

[Como um assombro]

[Como fortes]

[Da bruma]

[Epitáfio]

Saudação

Frêmitos

Gusla da saudade

Smorzando

Giulietta Dionesi

Filetes

Versos à infância

Triste

Fonte de amor

Naufrágios

[Em maio]

Arte

Arte

O duque

A espada

Imutável

O sol e o coração

Sapo humano

Diante do mar

Brumosa

Sganarelo

Desmoronamento

Clarões apagados

Mendigos

Asas perdidas

Anjo Gabriel

Crianças negras

Velho vento

Marche aux flambeaux

O órgão

Rosa

História gentil

Ritmos

Recordações

Sombra adorada

Light and Shade

Idealizações

Confidências

À que está morta

Feia

Bandolim do luar

Verão

Fuzis

Flowers

Tédio e riso

Cabelos e olhos

Auréolas

Trovas

Aos professores do Liceu de Artes e Ofícios do Desterro

“Porque o amor uma vez interrompido”

Sob as árvores

Tramway-coração

O pomar

“Que venha o duque normando”

Clarim!

Versos à Dorvalina

Castelã

Serenata & outros poemas

Num baile

Ignota Dea

[A alma de Juvêncio]

Alvorada da indústria

Alma do pensamento

Cantiga da miséria

O que é o inferno

Asas de ouro

Flores de maio

Flor espiritual

À Giulietta Dionesi

Willis

Lágrimas

Serenata

Julieta dos Santos

A ideia ao infinito

[Ao estrídulo]

[Dizem que a arte]

[Um dia]

[É delicada]

[Imaginai]

[Parece que]

[Quando apareces]

[Lágrimas da aurora]

Julieta dos Santos

 

Cambiantes

 

Extremos

À minha doce mãe que desses trilhos vastos

Da vida racional, tem sido o meu bom guia.

Dedico, preso à garra atroz da nostalgia,

O meu bouquet de versos, d’entrem uns beijos castos.

A ela, que orgulhosa, impávida resplende,

Seu filho, dá-lhe a alma inteira nos olhares,

A ela que aprimora as curvas singulares

Do amor que unicamente a mãe só compreende.

A ela, que dos sonhos flavos que eu adoro,

É sempre esse ideal querido e mais sonoro

Mais alvo que o luar, mais brando que os arminhos.

Embora sob cúpula azúlea de outros espaços

Dedico os versos meu — atiro-os ao regaço

Assim como punhado imenso de carinhos.

 

Supremo anseio

Esta profunda e intérmina esperança

Na qual eu tenho o espírito seguro,

A tão profunda imensidade avança

Como é profunda a ideia do futuro.

Abre-se em mim esse clarão, mais puro

Que o céu preclaro em matinal bonança:

Esse clarão, em que eu melhor fulguro,

Em que esta vida uma outra vida alcança.

Sim! Inda espero que no fim da estrada

Desta existência de ilusões cravada

Eu veja sempre refulgir bem perto

Esse clarão esplendoroso e louro

Do amor de mãe — que é como um fruto de ouro,

Da alma de um filho no eternal deserto.

 

           Após o noivado

Em flácido divã ela resvala

Na alcova — bem feliz, alegremente,

E o fresco penteador alvinitente,

De nardo e benjoim o aroma exala.

E o noivo todo amor, assim lhe fala,

Por entre vibrações do olhar ardente:

Pertences-me afinal, pomba dormente

Parece que a razão de gozo, estala.

Mas eis — corre-se então nívea cortina:

E a plácida, a ideal, a branca lua

Derrama nos vergéis a luz divina...

Depois... Oh! Musa audaz, ousada, e nua,

Não rompas esse véu de gaze fina

Que encerra um madrigal — Vamos... recua!...

 

Dormindo

Pálida, bela, escultural, clorótica

Sobre o divã suavíssimo deitada,

Ela lembrava — a pálpebra cerrada —

Uma ilusão esplendida de ótica.

A peregrina carnação das formas,

— o sensual e límpido contorno,

Tinham esse quê de avérnico e de morno,

Davam a Zola as mais corretas normas!...

Ela dormia como a Vênus casta

E a negra coma aveludada e basta

Lhe resvalava sobre o doce flanco...

Enquanto o luar — pela janela aberta —

— como um vago exclamação — incerto

Entrava a flux — cascateado — branco!!...

 

Nerah

(Inspirado no elegante conto de Virgílio Várzea)

 A Vítor Lobato

Nerah não brinca mais, não dança mais. — E agora

Que vão-se apropinquando os tempos invernosos,

Nerah traz uns receios tímidos, nervosos,

De quem teme mudar-se em noite, sendo aurora.

Seus sonhos de cristal, translúcidos, antigos

Se vão embora, embora à vinda dos invernos,

Seguindo em debandada os úmidos galernos —

— Lembrando um roto bando informe de mendigos.

Não canta o sabiá que triste na gaiola,

Parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola

De um riso — aquela flor que esvai-se, branca e fria.

Em tudo a fina seta aguda de aflições!

Na própria atmosfera um caos de interjeições!

Em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.

 

Amor

Nas largas mutações perpétuas do universo

O amor é sempre o vinho enérgico, irritante...

Um lago de luar nervoso e palpitante...

Um sol dentro de tudo altivamente imerso.

Não há para o amor ridículos preâmbulos,

Nem mesmo as convenções as mais superiores;

E vamos pela vida assim como os noctâmbulos

À fresca exalação salúbrica das flores...

E somos uns completos, célebres artistas

Na obra racional do amor — na heroicidade,

Com essa intrepidez dos sábios transformistas.

Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige

E amamos com vigor e com vitalidade,

A cor, os tons, a luz que a natureza exige!...

 

Escravocratas

Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio

Manhosos, agachados — bem como um crocodilo,

Viveis sensualmente à luz dum privilégio

Na pose bestial dum cágado tranquilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas

Ardentes do olhar — formando uma vergasta

Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,

E vibro-vos a espinha — enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário —

Da branca consciência — o rútilo sacrário

No tímpano do ouvido — audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,

Vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico,

Castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar!

 

Da senzala

De dentro da senzala escura e lamacenta

Aonde o infeliz

De lágrimas em fel, de ódio se alimenta

Tornando meretriz

A alma que ele tinha, ovante, imaculada

Alegre e sem rancor,

Porém que foi aos poucos sendo transformada

Aos vivos do estertor...

De dentro da senzala

Aonde o crime é rei, e a dor — crânios abala

Em ímpeto ferino;

Não pode sair, não,

Um homem de trabalho, um senso, uma razão...

E sim um assassino!

 

Dilema

Ao cons. Luís Álvares dos Santos

Vai-se acentuando,

Senhores da justiça — heróis da humanidade,

O verbo tricolor da confraternidade...

E quando, em breve, quando

Raiar o grande dia

Dos largos arrebóis — batendo o preconceito...

O dia da razão, da luz e do direito

— Solene trilogia —

Quando a escravatura

Surgir da negra treva — em ondas singulares

De luz serena e pura;

Quando um poder novo

Nas almas derramar os místicos luares,

Então seremos povo!

 

À revolta

A Cassiano César

O Séc’lo é de revolta — do alto transformismo,

De Darwin, de Littré, de Spencer, de Laffite —

Quem fala, quem dá leis é o rubro niilismo

Que traz como divisa a bala-dinamite!...

Se é força, se é preciso erguer-se um evangelho,

Mais reto, que instrua — estético — mais novo

Esmaguem-se do trono os dogmas de um Velho

E lance-se outro sangue aos músculos do povo!...

O vício azinhavrado e os cérebros raquíticos,

É pô-los ao olhar dos sérios analíticos,

Na ampla, social e esplêndida vitrine!...

À frente!... — Trabalhar a luz da ideia nova!...

— Pois bem! Seja a ideia, quem lance o vício à cova,

— Pois bem! — Seja a ideia, quem gere e quem fulmine!...

 

Escárnio perfumado

Quando no enleio

De receber umas notícias tuas,

Vou-me ao correio,

Que é lá no fim da mais cruel das ruas,

Vendo tão fartas,

D'uma fartura que ninguém colige,

As mãos dos outros, de jornais e cartas

E as minhas, nuas — isso dói, me aflige...

E em tom de mofa,

Julgo que tudo me escarnece, apoda,

Ri, me apostrofa,

Pois fico só e cabisbaixo, inerme,

A noite andar-me na cabeça, em roda,

Mais humilhado que um mendigo, um verme...

 

Filetes

De cravos, de rosas,

De lírios, perfumes,

De beijos, ciúmes,

De coisas formosas;

De cantos suaves

De músicas, vinhos

De aromas, arminhos

Dos trinos das aves;

Das cismas radiadas,

De esperanças aladas

Por vagos escombros,

São feitos, são feitos

Teus olhos perfeitos,

Repletos de assombros.

 

 Outros sonetos

 

[Senhor de nobre]

 (Oferecido e dedicado ao llmo. Sr. M. Bernardino A. Varela pelo autor.)

 Vir bonus dicendi peritus laudandum est.

Senhor de nobre alma, tão

D’entre os sábios conhecido,

De pais excelsos nascido,

Aceitai a minha canção.

Probo pai, bom cidadão,

Sois dos seres melhor ser

Por saber tão profundo ter,

Sois ilustre qual Catão.

Recebei esta prova mesquinha

De penhor e de oração,

Produto da pena minha.

Perdoai, mui digno varão,

Se na mente eu pobre tinha

Cometer-vos indiscrição.

[Da mundana lida]

 “Minha vida é um montão de ruínas em árido deserto

Um abismo de ais e de suspiros.”

Da mundana lida, eis que cansado,

Co’a lira toda espedaçada,

A alma de suspiros retalhada,

Cumpre o infeliz seu triste fado.

Ai! que viver mais desgraçado!...

Que sorte tão crua e desazada!...

Quem assim tem a vida amargurada

Antes já morrer, ser sepultado.

Só eu triste padeço feras dores,

Imensas e de fel, sem terem fim,

Envolto no véu dos dissabores.

Oh! Cristo eu não sei se só a mim

Deste essa vida d’amargores,

Pois que é demais sofrer-se assim!

[De Meyseder gentil]

 (24 dez. 1880)

Dieu a fait la mer, les oiseaux, les cieux,

toute la nature enfin; mais les hommes ont découvert les sciences,

 les arts et les lettres qui les élèvent jusqu'à même Dieu.

De Mayseder gentil o vulto ingente

De Corelli, de Spohr e de Nardini,

De Ole Bull supernal, de Veracini

Inspirados por Deus c'o plectro ardente;

Dessa lira febril, áurea, potente

Do artista sem par, de Paganini;

De Viotti dinal, do herói Tardini,

De Lafont, de Baillot, Eck e Laurenti:

Sois rival feliz! e nesse crânio

Há em jorros, oh céus! extravasando

O ardor musical, o ardor titâneo...

Já bem cedo, veloz, ides galgando

Lá da glória os degraus, o supedâneo

Sobre um trono de luz rindo e cantando.

 

[Dois zoilus]

“Diatribe”

Dois zoilos mui completos deste mundo,

Dois zoilos há terríveis e zelosos,

Que estando sem fazer, mui ociosos

Só tratam dum falar nauseabundo.

Eu sei mui bem seus nomes — não confundo

Com esses bem sensatos, talentosos,

Com esses lidadores mui briosos

Que têm estudo imenso e bem profundo!

Mas ah! pra que tempo hei-de gastar

Com quem só vive imerso na caligem

D’inveja torpe e vil a esbravejar!

Isto, meus amigos, é impigem

Que quanto se procura mais coçar

Tanto e tanto mais só dá prurigem!

 

[Minh’alma está]

Por ocasião dos festejos em homenagem ao sexagésimo primeiro aniversário natalício do eloquentíssimo tribuno sagrado, Joaquim Gomes d'Oliveira Paiva.

Há vultos tamanhos que não

Cabendo no globo, vão quedos

Mas solenes, refugiar-se na campa.

D'aí embuçam-se n'um manto infinito

De glórias?...

Minh’alma está agora penetrando

Lá na etérea plaga, cristalina!

Que música meu Deus febril, divina

Nos páramos azuis vai retumbando!

Além, d’áureo dossel se está rasgando

Custosa, de primor, esmeraldina

Diáfana, sutil, longa cortina

Enquanto céus se vão duplando!

Em grande pedestal marmorizado

De Paiva se divisa o busto enorme

Soberbo como o sol, de luz croado

De um lado o porvir — Anteu disforme

Dos lábios faz soltar pujante brado

Hosanas! não morreu! apenas dorme.

 

[Rompeu-se o denso véu]

Por ocasião da comemoração do sexagésimo primeiro aniversário natalício do ilustre pregador catarinense Joaquim Comes d'Oliveira Paiva.

Rompeu-se o denso véu do atroz marasmo

E como por fatal, negro hebetismo

De antro sepulcral, de fundo abismo

O povo ressurgiu com entusiasmo!

O Zoilo mazorral se queda pasmo

Supõe quimera ser, ser cataclismo

Roga, já por dobrez, por ceticismo

De néscio, vil truão solta o sarcasmo.

Perdão, Filho da Luz, minh'alma exora,

Porém, a pátria diz, somente agora

Os grilhões biparti de atroz moleza!

E ele, o nosso herói já redivivo

De pé, sem se curvar, sereno, altivo

Co'as raias do porvir mede a grandeza!

 

[Deixai que deste álbum]

(5 dez. 1882)

Embeberam-me a pena em fel!

 Antônio (Mendes Leal)

Deixai que deste álbum na folha delicada

Eu venha difundir meus rudes pensamentos

Deixai que as pobres rimas, uns nadas poeirentos

Eu possa transudar da mente entrenublada!...

Deixai que de minh’alma na fibra espedaçada

Eu busque inda vibrar uns cantos tardos, lentos!...

Bem cedo os vendavais, aspérrimos, cruentos

Ai! Tudo arrojarão à campa amargurada!

Porém qu’importa isso! dos mares desta vida

Nos pávidos, estranhos, enormes escarcéus

Se alguma coisa val, és tu, ó luz querida!...

Rasguemos do porvir os áditos, os véus!...

Riamos sem cessar, embora em dor sentida!...

Também as nuvens negras conglobam-se nos céus!!...

 

[Alçando o livro]

(28 nov. 1882)

 A mocidade é a alavanca do templo da ciência, no futuro; só ela tem o direito de ser a forçamotriz dos fenômenos intelectuais das grandes revoluções do pensamento.

(Do Autor)

Alçando o livro colossal ardente

Traças no crânio um sulco luminoso,

E vais seguindo o remontar garboso

Do sol fagueiro lá no espaço ingente!

Ergues a fronte juvenil potente

Já como herói ou lutador famoso

E c’uma forma de pensar honroso

Fazes-te esperança da brasílea gente!

Seis vezes astro de maior grandeza

Enfim lá surges nos exames belos

Enfim triunfas na brilhante empresa!

Seis vezes quebras da ignorância os elos,

Seis vezes vives com mais sã firmeza,

Gemem seis vezes a louvar-te os prelos!...

 

O desembarque de Julieta dos Santos

Chegou enfim, e o desembarque dela

Causou-me logo uma impressão divina!

É meiga, pura como sã bonina,

Nos olhos vivos doce luz revela!

É graciosa, sacudida e bela,

Não tem os gestos de qualquer menina:

Parece um gênio que seduz, fascina,

Tão atraente, singular é ela!

Chegou, enfim! eu murmurei contente!

Fez-se em minh’alma purpurina aurora,

O entusiasmo me brotou fervente!

Vimos-lhe apenas a construção sonora,

Vimos a larva, nada mais, somente

Falta-nos ver a borboleta agora!

 

Na mazurka

Morava num palácio — estranha Babilônia

De arcadas colossais, de impávidos zimbórios,

Alcovas de damasco e torreões marmóreos,

Volutas primorais de arquitetura jônia.

Assim, quando surgia em meio aos peristilos

Descendo, qual mulher de Séfora, vaidosa,

Envolta em ouropéis, em sedas, luxuosa,

Cercam-na do belo os místicos sigilos!

E quando nos saraus, assim como um rainúnculo,

O lábio lhe tremia e o olhar, vivo carbúnculo,

Vibrava nos salões, como uma adaga turca,

Ou como o sol em cheio e rubro sobre o Bósforo,

— nos crânios os Homens sentiam ter mais fósforo...

Ao vê-la escultural no passo da Mazurka...

 

O final do guarani

(Santos, 15 jul. 1883)

Ceci — é a virgem loira das brancas harmonias,

A doce-flor-azul dos sonhos cor-de-rosa,

Peri — o índio ousado das bruscas fantasias,

O tigre dos sertões — de alma luminosa.

Amam-se com o amor indômito e latente

Que nunca foi traçado nem pode ser descrito.

Com esse amor selvagem que anda no infinito.

E brinca nos juncais, — ao lado da serpente.

Porém... no lance extremo, o lance pavoroso,

Assim por entre a morte e os tons de um puro gozo,

Dos leques da palmeira a note musical...

Vão ambos a sorrir, às águas arrojados,

Mansos como a luz, tranquilos, enlaçados

E perdem-se na noite serena do ideal!...

Ideia-mãe

Laborare dignus est operarius mercede sua.

(AFORISMO LATINO)

Ergueis ousadamente o templo das ideias

Assim como uns heróis, por sobre os vossos ombros

E ides através de um negro mar d’escombros,

Traçando pelo ar as loiras epopeias.

A luz tem para vós os filtros magnéticos

Que andam pela flor e brincam pela estrela.

E vós amais a luz, gostais sempre de vê-la

Em amplo cintilar — nuns êxtases patéticos.

É esse o aspirar do séc'lo que deslumbra,

Que rasga da ciência a tétrica penumbra

E gera Vítor Hugo, Haeckel e Littré.

É esse o grande — Fiat — que rola no infinito!...

É esse o palpitar, homérico e bendito,

De todo o ser que vive, estuda, pensa e lê!!...

O seu boné

(Corte, out. 1883)

À atriz Adelina Castro

É um boné ideal, de feltros e de plumas,

Que ela usa agora, assim como um turbante

Turco, aveludado, doce como algumas

Nuvens matinais que rolam no levante.

Lembro quando ao vê-lo a rubra marselhesa,

Lembro sensações e cousas de prodígio

E penso que ele tem a máscula grandeza

Desse sedutor, vital barrete frígio!...

Às vezes meu olhar medindo-lhe o contorno

E a flácida plumagem que serve-lhe d’adorno,

— Satânico, voraz, esplêndido de fé!

Exclama num idílio cândido e singelo,

Por entre as convulsões artísticas do Belo; —

Oh! tem coração e alma, esse boné!...

 

[É um pensar]

(Desterro, 13 jan. 1883)

A Moreira de Vasconcelos

Na luta dos impossíveis,

do espírito e da matéria,

tu és a águia sidérea

dos pensamentos terríveis!

(Do Autor)

É um pensar flamejador, dardânico

Uma explosão de rápidas ideias,

Que como um mar de estranhas odisseias

Saem-lhe do crânio escultural, titânico!...

Parece haver um cataclismo enorme

Lá dentro, em ânsia, a rebentar, fremente!...

Parece haver a convulsão potente,

Dos rubros astros num fragor disforme!...

Hão de ruir na transfusão dos mundos

Os monumentos colossais profundos,

As cousas vãs da brasileira história!

Mas o seu vulto, sobre a luz alçado,

Oh! há de erguer-se de arrebóis c’roado,

Como Atalaia nos umbrais da glória!!...

Oiseaux de passage

Les rêves, les grands rêves que moi toujours adore,

Les rêves couleur rose, les rêves éclatants;

Ainsi que les colombes un autre ciel cherchants

J’ai vu les ailes ouvertes, si belles que l’aurore.

Autour de la nature, autour de la profonde

Et merveilleuse mère des fleurs, des harmonies,

Les rêves éblouissants, remplis d’amour et vie,

Trouvaient de l’espoir le plus doré des mondes.

Hélas!... — mais maintenant, par des chagrins, secrets,

L’amour, les étoiles et tout ce qu’il nous est

Chéri — le beau soleil, la lune et les nuages;

Tout fut plongé d'abord’ plongé dans le mystère,

Avec de mon coeur la douce lumière,

Les rêves de mon âme — uns* oiseaux de passage!...

Colar de pérolas

Ao feliz consórcio dos estimáveis colegas, D. Jesuína Leal e Francisco de Castro.

A F’licidade é um colar de pérolas,

Pérolas caras, de valor pujante,

Belas estrofes de Petrarca e Dante

Mais cintilantes que as manhãs mais cérulas.

Para que enfim esse colar bendito,

Perdure sempre, inteiramente egrégio,

Como uma tela do pintor Correggio,

Sem resvalar no lodaçal maldito;

Faz-se preciso umas paixões bem retas,

Cheias de uns tons de muito sol — completas...

Faz-se preciso que do amor na febre,

Nos grandes lances de vigor preclaro,

Desse colar esplendoroso e raro,

Nem uma pérola, uma só se quebre!...

 

Satanismo

Não me olhes assim, branca Arethusa,

Peregrina inspiração dos meus cantares;

Não me deixes a razão vagar confusa

Ao relâmpago ideal de teus olhares.

Não me olhes, oh! não, porquanto eu penso

Envolvido no luar das minhas cismas,

Que o olhar que me dardejas — doido, imenso

Tem a rápida explosão dos aneurismas.

Não me olhes. Oh! não, que o próprio inferno

Problemático, fatal, cálido, eterno,

Nos teus olhos, mulher, se foi cravar!...

Não me olhes, oh! não, que m'entolece

Tanta luz, tanto sol — e até parece

Que tens músicas cruéis dentro do olhar!...

 

Metamorfose

A Carlos Ferreira

O sol em fogo pelo ocaso explode

Nesse estertor, que os crânios assoberba.

Vivo, o clarão, nuns frocos exacerba

Dos ideais a original nevrose.

Da natureza os anafis mouriscos

Ante o cariz da atmosfera muda,

Soam queixosos, numa nota aguda,

Da luz que esvai-se aos derradeiros discos.

O pensamento que flameja e luta

Nos ares rasga aprofundado sulco...

A sombra desce nos lisins da gruta;

E a lua nova — a peregrina Onfale,

Como em um plaustro luminoso, hiulco,

Surge através dos pinheirais do vale.

 

Auréola equatorial

A Teodoreto Souto

Fundi em bronze a estrofe augusta dos prodígios,

Poetas do Equador, artísticos Barnaves;

Que o facho — Abolição — rasgando as nuvens graves

De raios e bulcões — triunfa nos litígios!

— O rei Mamoud, o Sol, vibrou p'raquelas bandas

do Norte — a grande luz — elétrico, explodindo,

Assim como quem vai, intrépido, subindo

À luz da idade nova — em claras propagandas.

— Os pássaros titãs nos seus conciliábulos,

— Chilreiam, vão cantando em místicos vocábulos,

Alargam-se os pulmões nevrálgicos das zonas;

Abri alas, abri! — Que em túnica de assombros,

Irá passar por vós, com a Liberdade aos ombros,

Como um colosso enorme o impávido Amazonas!

 

[Anda-me a alma]

Anda-me a alma inteira de tal sorte,

Meus gozos, meu pesar, nos dela unidos

Que os dela são também os meus sentidos,

Que o meu é também dela o mesmo norte.

Unidos corpo a corpo — um elo forte

Nos prende eternamente — e nos ouvidos

Sentimos sons iguais. Vemos floridos

Os sons do porvir, em azul coorte...

O mesmo diapasão musicaliza

Os seres de nos dois — um sol irisa

Os nossos corações — dá luz, constela...

Anda esta vida, espiritualizada

Por este amor — anda-me assim — ligada

A minha sombra com a sombra dela.

 

[Quando eu partir]

Quando eu partir, que eterna e que infinita

Há de crescer-me a dor de tu ficares;

Quanto pesar e mesmo que pesares,

Que comoção dentro desta alma aflita.

Por nossa vida toda sol, bonita,

Que sentimento, grande como os mares,

Que sombra e luto pelos teus olhares

Onde o carinho mais feliz palpita...

Nesse teu rosto da maior bondade

Quanta saudade mais, que atroz saudade...

Quanta tristeza por nós ambos, quanta,

Quando eu tiver já de uma vez partido,

Ó meu amor, ó meu muito querido

Amor, meu bem, meu tudo, ó minha santa!

 

Sempre e... sempre

A M. B. Augusto Varela

Sempre se amando, sempre se querendo.

(Oliveira Paiva)

De longe ou perto, juntas, separadas,

Olhando sempre os mesmos horizontes,

Presas, unidas nossas duas fontes

Gêmeas, ardentes, novas, inspiradas;

Vendo cair as lágrimas prateadas,

Sentindo o coro harmônico das fontes,

Sempre fitando a cúspide dos montes

E o rosicler das frescas alvoradas;

Sempre embebendo os límpidos olhares

Na claridão dos humildes luares,

No loiro sol das crenças se embebendo,

Vão nossas almas brancas e floridas

Pelo futuro azul das nossas vidas,

Sempre se amando, sempre se querendo.

Noiva e triste

Rola da luz do céu, solta e desfralda

Sobre ti mesma o pavilhão das crenças,

Constele o teu olhar essas imensas

Vagas do amor que no teu peito escalda.

A primorosa e límpida grinalda

Há de enflorar-te as amplidões extensas

Do teu pesar — há de rasgar-te as densas

Sombras — o véu sobre a luzente espalda...

Inda não ri esse teu lábio rubro

Hoje — inda n'alma, nesse azul delubro

Não fulge o brilho que as paixões enastra;

Mas, amanhã, no sorridor noivado,

A vida triste por que tens passado,

De madressilvas e jasmins se alastra.

 

Mãe e filho

Às Mães Desamparadas

Jesus, meu filho, o encanto das crianças,

Quando na cruz, de angustia espedaçado,

Em sangue casto e límpido banhado,

Manso, tão manso como as pombas mansas;

Embora as duras e afiadas lanças

Com que os judeus, tinham, de lado a lado,

Seu coração puríssimo varado,

Inda no olhar raiavam-lhe esperanças.

Por isso, ó filho, ó meu amor — se a esmola

De algum conforto essencial não rola

Por nós — é forca conduzir a cruz!...

Mas, volta ó filho, pesaroso e triste.

Se a nossa vida só na dor consiste,

Ah! minha mãe, por que morreu Jesus?...

Natureza

Aos Poetas

Tudo por ti resplende e se constela,

Tudo por ti, suavíssimo, flameja;

És o pulmão da racional peleja,

Sempre viril, consoladora e bela.

Teu coração de pérolas se estrela,

E o bom falerno dás a quem deseja

Vigor, saúde a crença que floreja,

Que as expansões do cérebro revela.

Toda essa luz que bebe-se de um hausto

Nos livros sãos, todo esse enorme fausto

Vem das verduras brandas que reluzem!

Esse da ideia esplêndido eletrismo,

O forte, o grande, audaz psicologismo,

Os organismos naturais produzem...

 

Surdinas

Às Raparigas Tristes

Vais partir, vais partir que eu bem te vejo

Na branca face os gélidos suores,

Vais procurar as musicas melhores

Do sol, da glória e do celeste beijo.

Dentro de ti harpas do desejo

Não vibram mais — embora que tu chores —

Nem pelas tuas aflições maiores

Se escuta um vago e enfraquecido arpejo...

Bem! vais partir, vais demandar esferas

Amplas de luz, feitas de primaveras,

Paisagens novas e amplidão florida...

Mas ao chegar-te a lágrima infinita,

Lembra-te ainda, ó pálida bonita

De que houve alguém que te adorou na vida.

 

Irradiações

Às Crianças

Qual da amplidão fantástica e serena

À luz vermelha e rútila da aurora

Cai, gota a gota, o orvalho que avigora

A imaculada e cândida açucena.

Como na cruz, da triste Madalena

Aos pés de Cristo, a lágrima sonora

Caia, rolou, qual bálsamo que irrora

A negra mágoa, a indefinida pena...

Caia por vós, esplêndidas crianças

Bando feliz de castas esperanças,

Sonhos da estrela no infinito imersos;

Caia por vós, as músicas formosas,

Como um dilúvio matinal de rosas,

Todo o luar benéfico dos versos!

 

Ambos

Vão pela estrada, à margem dos caminhos

Arenosos, compridos, salutares,

Por onde, a noite, os límpidos luares

Dão às verduras leves tons de arminhos.

Nuvens alegres como os alvos linhos

Cortam a doce compridão dos ares,

Dentre as canções e os tropos singulares

Dos inefáveis, meigos passarinhos.

Do céu feliz na branda curvidade,

A luz expande a inteira alacridade,

O mais supremo e encantador afago.

E com o olhar vibrante de desejos

Vão decifrando os trêmulos arpejos,

E as reticências que produz o vago.

Plenilúnio

Vês este céu tão límpido e constelado

E este luar que em fúlgida cascata,

Cai, rola, cai, nuns borbotões de prata...

Vês este céu de mármore azulado...

Vês este campo intérmino, encharcado

Da luz que a lua aos páramos desata...

Vês este véu que branco se dilata

Pelo verdor do campo iluminado...

Vês estes rios, tão fosforescentes,

Cheios duns tons, duns prismas reluzentes,

Vês estes rios cheios de ardentias...

Vês esta mole e transparente gaze...

Pois é, como isso me parecem quase

Iguais, assim, às nossas alegrias!

    

Os dois

Aos Pobres

— Minha mãe, minha mãe, quanta grandeza

Nesses plácidos, quanta majestade;

Como essa gente há de viver, como há de

Ser grande sempre na feliz riqueza.

Nem uma lágrima sequer — e à mesa

D’entre as baixelas, d’entre a imensidade

Da prata e do ouro — a azul felicidade

Dos bons manjares de ótima surpresa.

Nem um instante os olhos rasos d’água,

Nem a ligeira oscilação da mágoa

Na vida farta de prazer, sonora.

— Como o teu louco pensamento expandes

Filho — a ventura não é só dos grandes

Porque, olha, o mar também é grande e... chore!

Triste

Vai-se extinguindo a viva labareda

Que te abrasava o coração ridente...

Passas magoada pela rua e a gente

Umas converses funerais segreda.

Não tens no olhar o sangue q’embebeda,

Foram-se as rosas do viver contente...

Segues, agora, pobre flor — somente

Da sepultura a essencial vereda.

E vem chegando o tenebroso inverno...

Mas nesse mal devorador e eterno,

Teu organismo já não mais resiste

Às punhaladas da estação de gelo...

E acabará como eu nem sei dizê-lo,

Triste, bem triste, pesarosa, triste!

 

Celeste

Aos Corações Ideais

Lembra-me ainda — ao lado de um repuxo,

Pela brancura de um luar de agosto,

O teu maninho, um loiro pequerrucho

Brincava, rindo, te afagando o rosto...

Lembra-me ainda — as sombras do sol posto,

Numa saleta sem brasões de luxo,

De alguns bordados de fineza e gosto

Delineavas o gentil debuxo...

E o gás que forte e cintilante ardia,

Te iluminava, te alagava... ria...

Da luz ficavas no imponente abrigo.

E agora... deixa que ao cair da noite,

Esta lembrança dentro de mim se acoite,

Como a andorinha no telhado amigo!

[Estas risadas]

Estas risadas límpidas e frescas

Que Pan trauteia em cálamos maviosos

Nesta amplidão dos campos verdurosos,

Nestas paisagens flóreas, pitorescas;

Toda esta pompa e gala principescas

Destas searas, destes altanosos

Montes e várzeas, prados vigorosos,

Louros — talvez como as visões tudescas;

Este luxuoso e rico paramento,

Feito de luz e de deslumbramento

— Do grande altar da natureza imensa.

Aguarda o poeta sacerdote augusto,

Para cantar no seu missal robusto,

A nova Missa da razão que pensa...

 

Aos mortos

Oh! não é bom rir-se de um morto — brusca

Pois deve ser a sensação que aumenta

Desoladora, vagarosa, lenta

Da negra morte tétrica velhusca...

Tudo que em vida, como um sol, corusca,

Que nos aquece, que nos acalenta,

Tudo que a dor e a lágrima afugenta,

O olhar da morte nos apaga e ofusca...

Nunca se deve desprezar os mortos...

Nos regelados e sombrios portos,

Onde a matéria se transforma e urge

Exuberar na planturosa leiva,

Vivem os mortos no vigor da seiva,

Porque dão vida ao que da vida surge!...

 

Luar

Pelas esferas, nuvens peregrinas,

Brandas de toques, encaracoladas,

Passam de longe, tímidas, nevadas,

Cruzando o azul sereno das colinas.

Sombras da tarde, sombras vespertinas

Como escumilhas leves, delicadas,

Caem da serra oblonga nas quebradas,

Vão penumbrando as coisas cristalinas.

Rasga o silêncio a nota chã, plangente,

Da Ave-Maria, — e então, nervosamente,

Nuns inefáveis, espontâneos jorros

Esbate o luar, de forma admirável,

Claro, bondoso, elétrico, saudável,

Na curvilínea compridão dos mortos.

Mocidade

Ah! esta mocidade! — Quem é moço

Sente vibrar a febre enlouquecida

Das ilusões, da crença mais florida

Na muscular artéria de Colosso...

Das incertezas nunca mede o poço...

Asas abertas — na amplidão da vida,

Páramo a dentro — de cabeça erguida,

Vê do futuro o mais alegre esboço...

Chega a velhice, a neve das idades

E quem foi moço, volve, com saudades,

Do azul passado, o fulgido compêndio...

Ai! esta mocidade palpitante,

Lembra um inseto de ouro, rutilante,

Em derredor das chamas de um incêndio!

 

[Vão-se de todo]

Vão-se de todo os pardacentos nimbos...

Chovem da luz as nítidas faíscas

E no esplendor de irradiações mouriscas,

Abrem-se as flores em gentis corimbos.

Muito mais lestas do que amigos fimbos,

Do Azul cortando as bordaduras priscas,

Pombas do mato esvoaçando, ariscas,

Do céu se perdem nos profundos limbos.

A natureza pulsa como a forja...

Pássaros vibram no clarim da gorja,

As retumbantes, fortes clarinadas.

A grande artéria dos assombros pula...

E do oxigênio, a força que regula

Enche os pulmões a largas baforadas.

 

Na fonte

(1ª versão)

Bem ao lado da gruta a fonte corre

Trepidamente, as águas encrespando,

Em murmúrios crebos, levantando

Uns chamalotes prateados — morre

No monte o sol que a luz no oceano escorre

E ainda eu vejo, as sombras afrontando,

Uma mulher que lava, mesmo quando

O sol mais rubro, mais vermelho jorre.

— É num sítio afastado, um sítio ermo...

Pássaros cortam vastidões sem termo,

Borboletas azuis roçam nas águas.

— E a mulher lava, enrubescida a face;

Lava, cantando, como se lavasse

As suas tristes e profundas mágoas.

[A fonte]

(Versão definitiva)

A fonte de águas cristalinas corre

Chamalotes de prata levantando,

E através de arvoredos murmurando,

Entre arvoredos murmurando morre...

No ocaso, o sol, a luz no oceano escorre

E sempre vejo, as sombras afrontando,

Uma mulher que canta e ri, lavando,

Mesmo que o sol muito abrasado jorre.

É verde o campo, deleitável e ermo.

Pássaros cortam vastidões sem termo,

Borboletas azuis roçam nas águas.

E cantando, a mulher, a rir a face,

Lava cantando como se lavasse

As suas grandes e profundas mágoas.

Cega

Parece-me que a luz imaculada

Que vem do teu olhar, todo doçuras,

Não verte no meu ser aquelas puras

Delícias de outra era já passada.

Eu creio que essa pálpebra adorada

Não mais um flóreo empíreo de venturas

Descobre-me — na noite de amarguras,

De dúvidas intérminas cortada.

Não olhas como olhavas, rindo, outrora,

Não abres a pupila, como a aurora

Nascendo, abre, feliz, radiosa e calma.

A sombra, nos teus olhos, funda, existe!...

Tu'alma deve ser bem negra e triste

Se os olhos são, decerto, o espelho d’alma.

 

A Ermida

Lá onde a calma e a placidez existe,

Sobre as colinas que o vergel encobre,

Aquela ermida como está tão pobre,

Aquela ermida como está tão triste.

A minha musa, sem falar, assiste,

Do meio-dia ante o aspecto nobre,

O vago, estranho e murmurante dobre

Daquela ermida que aos trovões resiste

E as gargalhadas funéreas, sombrias,

Dos crus invernos e das ventanias,

Do temporal desolador e forte.

Daquela triste esbranquiçada ermida,

Que me recorda, me parece a vida

Jogada às magoas e ilusões da sorte.

Água-forte

Do firmamento azul e curvilíneo

Cai, fecundando as trêmulas raízes

Dos laranjais, dos pâmpanos, das lizes,

A luz do sol procriador, sanguíneo.

Pelo caminho agreste e retilíneo,

Da tarde aos brandos, triunfais matizes,

A criançada, a chusma dos felizes,

Esse de auroras perfumado escrínio,

Volta da escola, rindo muito, aos saltos,

Trepando, em bulha, aos árvoredos altos

Enquanto o sol desce os outeiros longos...

Vai dentre alados madrigais risonhos,

Do abecedário juvenil dos sonhos,

A soletrar os principais ditongos.

Alma que chora

A João Saldanha

Em vão do Cristo aos olhos dulçurosos

Onde há o sol do bem e da verdade,

Cheios da luz eterna de saudade,

Como dois mansos corações piedosos,

Em vão do Cristo os olhos lacrimosos

E aquela doce e pura suavidade

Do seu semblante, casto, de bondade,

Cor do luar dos sonhos venturosos,

Servem de exemplo a dor escruciante

Que te apunhala e fere a cada instante,

A punhaladas ríspidas, austeras!

Viste partir a tua irmã, se, viste,

Como num céu enevoado e triste

O bando azul das fúlgidas quimeras...

 

Chuva de ouro

A Rainha desceu do Capitólio

Agora mesmo — vede-lhe o regaço...

Como tem flores, como traz o braço

Farto de joias, como pisa o sólio

Triunfantemente, numa unção, num óleo

Mais santo e doce que essa luz do espaço...

E como desce com bravura de aço...

Pois se a Rainha, como um rico espólio,

O seu brioso coração foi dando

Aos pobrezinhos, que inda estão gozando

Bênçãos mais puras qu'os clarões diurnos,

Por certo que há de vir descendo a escada

Do Capitólio da virtude — olhada

Pelos Albergues infantis, noturnos!

 

Primeira a fora

Escute, excelentíssima: — Que aragens

Traz do árvoredo a fresca romaria;

Como este sol é rubro de alegria,

Que tons de luz nas límpidas paisagens.

Pois beba este ar e goze estas viagens

Das brancas aves, sinta esta harmonia

Da natureza e deste alegre dia

Que resplandece e ri-se nas ervagens.

Deixe lá fora estrangular-se o mundo...

Encare o céu e veja este fecundo

Chão que produz e que germina as flores.

Vamos, senhora, o braço à primavera,

E numa doce música sincera,

Cante a balada eterna dos amores...

25 de março

(Recife, 1885)

EM PERNAMBUCO PARA O CEARÁ

A província do Ceará sendo o berço de Alencar e Francisco Nascimento — o dragão do mar — é consequentemente a mãe da literatura e a mãe da humanidade.

Bem como uma cabeça inteiramente nua

De sonhos e pensar, de arroubos e de luzes,

O sol de surpreso esconde-se, recua,

Na órbita traçada — de fogo dos obuses.

Da enérgica batalha estoica do Direito

Desaba a escravatura — a lei cujos fossos

Se ergue a consciência — e a onda em mil destroços

Resvala e tomba e cai o branco preconceito.

E o Novo Continente, ao largo e grande esforço

De gerações de heróis — presentes pelo dorso

À rubra luz da glória — enquanto voa e zumbe.

O inseto do terror, a treva que amortalha,

As lágrimas do Rei e os bravos da canalha,

O velho escravagismo estéril que sucumbe.

 

Ninho abandono

À distinta família Simas, pela morte de seu chefe, o Ilmo. Sr. João da Silva Simas.

O vosso lar harmônico e tranquilo

Era um ninho de luz e de esperanças

Que como abelhas iriadas, mansas,

Nos vossos corações tinham asilo.

Havia lá por dentro tanta crença

E tanto amor puríssimo, cantando,

Que parecia um largo sol faiscando

Por majestosa catedral imensa.

Agora o ninho está desamparado!

Sumiu-se dele o pássaro adorado,

O mais ideal dos pássaros do ninho.

Não se ouve mais a música sonora

Da sua voz — dentro do ninho, agora,

Paira a saudade como um bom carinho.

 

Crença

Filha do céu, a pura crença é isto

Que eu vejo em ti, na vastidão das cousas,

Nessa mudez castíssima das lousas,

No belo rosto sonhador do Cristo.

A crença é tudo quanto tenho visto

Nos olhos teus, quando a cabeça pousas

Sobre o meu colo e que dizer não ousas

Todo esse amor que eu venço e que conquisto.

A crença é ter os peregrinos olhos

Abertos sempre aos ríspidos escolhos;

Tê-los à frente de qualquer farol

E conservá-los, simplesmente acesos

Como dois fachos — engastados, presos

Nas radiações prismáticas do sol!

 

Cristo e a adúltera

(Grupo de Bernardelli)

Sente-se a extrema comoção do artista

No grupo ideal de plácida candura,

Nesse esplendor tão fino da escultura

Para onde a luz de todo o olhar enrista.

Que campo, ali, de rútila conquista

Deve rasgar, do mármore na alvura,

O estatuário — que amplidão segura

Tem — de alma e braço, de razão e vista!

Vê-se a mulher que implora, ajoelhada,

A mais serena compaixão sagrada

De um Cristo feito a largos tons gloriosos.

De um Nazareno compassivo e terno,

D'olhos que lembram, cheios de falerno,

Dois inefáveis corações piedosos!

 

Êxtase de mármore

À grande atriz Apolônia.

O mármore profundo e cinzelado

De uma estátua viril, deliciosa;

Essa pedra que geme, anseia e goza

Num misticismo altíssimo e calado;

Essa pedra imortal — campo rasgado

A comoção mais íntima e nervosa

Da alma do artista, de um frescor-de-rosa,

Feita do azul de um céu muito azulado;

Se te visse o clarão que pelos ombros

Teus, rola, cai, nos múltiplos assombros

Da Arte sonora, plena de harmonia;

O mármore feliz que é muito artista

Também — como tu és — à tua vista

De humildade e ciúme, coraria!

 

Inverno

Amanheceu — no topo da colina

Um céu de madrepérola se arqueia

Limpo, lavado, reluzindo — ondeia

O perfume da selva esmeraldina.

Uma luz virginal e cristalina,

Como de um rio a transbordante cheia,

Alaga as terras culturais e arreia

De pingos d'ouro os verdes da campina.

Um sol pagão, de um louro gema d'ovo,

Já tão antigo e quase sempre novo

Surge na frígida estação do inverno.

— Chilreiam muito em árvores frondosas

Pássaros — fulge o orvalho pelas rosas

Como o vigor no espírito moderno.

 

Falando ao céu

Falas ao Céu, Amor! Em vão tu falas!

Mas o céu, esse é velho, esse é velhinho,

Todo ele é branco, faz lembrar o linho

Dos leitos alvos onde tu te embalas.

A alma do céu é como velhas salas

Sem ar, sem luz, como lares sem vinho

Sem água e pão, sem fogo e sem carinho,

Sem as mais toscas, as mais simples galas.

Sempre surdo, hoje o céu é mudo, é cego...

Jamais o coração ao céu entrego,

Eu que tão cego vou por entre abrolhos.

Mas se queres tornar jovem e louro

Dá-lhe o bordão do teu amor um pouco

Fala e vista, com a vida dos teus olhos...

Gloriosa

A Araújo Figueiredo

Pomba! dos céus me dizes que vieste,

Toda c’roada de astros e de rosas,

Mas há regiões mais que essas luminosas.

Não, tu não vens da região celeste

Há um outro esplendor em tua veste,

Uma outra luz nas tranças primorosas,

Outra harmonia em teu olhar — maviosas

Cousas em ti que tu nunca tiveste.

Não, tu não vens das célicas planuras,

Do Éden que ri e canta nas alturas

Como essa voz que dos teus lábios tomba.

Vens de mais longe, vens doutras paragens,

Vens doutros céus de místicas celagens,

Sim, vens de sóis e das auroras, pomba.

O chalé

É um chalé luzido e aristocrático,

De fulgurantes, ricos arabescos,

Janelas livres para os ares frescos,

Galante, raro, encantador, simpático.

O sol que vibra em rubro tom prismático,

No resplendor dos luxos principescos,

Dá-lhe uns alegres tiques romanescos,

Um colorido ideal silforimático.

Há um jardim de rosas singulares,

Lírios joviais e rosas não vulgares,

Brancas e azuis e roxas purpúreas.

E a luz do luar caindo em brilhos vagos,

Na placidez de adormecidos lagos

Abre esquisitas radiações sulfúreas.

Delírio do som

O Boabdil mais doce que um carinho,

O teu piano ebúrneo soluçava,

E cada nota, amor, que ele vibrava,

Era-me n’alma um sol desfeito em vinho.

Me parecia a música do arminho,

O perfume do lírio que cantava,

A estrela-d’alva que nos céus entoava

Uma canção dulcíssima baixinho.

Incomparável, teu piano — e eu cria

Ver-te no espaço, em fluidos de harmonia,

Bela, serena, vaporosa e nua;

Como as visões olímpicas do Reno,

Cantando ao ar um delicioso treno

Vago e dolente, com uns tons de lua.

 

Ilusões mortas

A Virgílio Várzea

Os meus amores vão-se mar em fora,

E vão-se mar em fora os meus amores,

A murchar, a murchar, como essas flores

Sem mais orvalho e a doce luz da aurora.

E os meus amores não virão agora,

Não baterão as asas multicores,

Como as aves mansas — dentre os esplendores

Do meu prazer, do meu prazer de outrora.

Tudo emigrou, rasgando a esfera branca

Das ilusões, — tudo em revoada franca

Partiu — deixando um bem-estar saudoso

No fundo ideal de toda a minha vida,

Qual numa taça a gota indefinida

De um bom licor antigo e saboroso.

 

O sonho do astrólogo

As fulgurosas, rútilas estrelas

Como mundos de mundos seculares,

Formando uns arquipélagos, uns mares

De luz — como eu deslumbro o olhar ao vê-las.

Ah! se como eu sei compreendê-las,

Sentir-lhes os seus filtros salutares,

Pudesse, da amplidão fria dos ares

Arrancá-las, na mão sempre trazê-las;

Que vagalhões de assombros palpitantes

Não me viriam perpassar, faiscantes,

Dentro do ser, nuns doutros murmúrios.

Eu saberia muito mais a causa

Da evolução que nunca teve pausa,

Que é uma audácia transbordando em rios.

 

Cristo

Cristo morreu, ó tristes criaturas,

Era matéria como vós, morreu;

E quando a noite sepulcral desceu

Gelou com ele o oceano das ternuras.

Nunca outro sol de irradiações mais puras

Subiu tão alto e tanto resplendeu,

Nunca ninguém tão firme combateu

Da humanidade todas as torturas.

Morreu, que se ele, o Deus, ressuscitasse,

Limpa de sangue e lágrimas a face,

Os seus olhos tranquilos, virginais,

Dons inefáveis, corações piedosos,

Tinham de abrir-se muito dolorosos,

Também chorando quando vós chorais!

Frutas de maio

Maio chegou — alegre e transparente

Cheio de brilho e música nos ares,

De cristalinos risos salutares,

Frio, porém, ó gota alvinitente.

Corre um fluido suave e odorescente

Das laranjeiras, como dos altares

O incenso — e, como a gaze azul dos mares,

Leve — há por tudo um beijo, docemente.

Isto bem cedo, de manhã — adiante

Pela tarde um sol calmo, agonizante,

Põe no horizonte resplendentes franjas.

Há carinhos, da luz em cada raio,

Filha — e eu que adoro este frescor de maio

Muito, mas muito — trago-te laranjas.

 

Eterno sonho

Quelle est donc cette femme?

Je ne comprendrai pas.

Félix Arvers

Talvez alguém estes meus versos lendo

Não entenda que amor neles palpita,

Nem que saudade trágica, infinita

Por dentro dele sempre está vivendo.

Talvez que ela não fique percebendo

A paixão que me enleva e que me agita,

Como de uma alma dolorosa, aflita

Que um sentimento vai desfalecendo.

E talvez que ela ao ler-me, com piedade,

Diga, a sorrir, num pouco de amizade,

Boa, gentil e carinhosa e franca:

— Ah! bem conheço o teu afeto triste...

E se em minha alma o mesmo não existe,

É que tens essa cor e é que eu sou branca!

Risadas

Às Criaturas Alegres

Fantasia, ó fantasia, tropo ardente

Da aurora alegre undiflavando as bandas

Do adamascado e rúbido oriente,

Ó fantasia, águia das asas pandas.

Tu que os clarins do sonho mais fulgente

Das Julietas, feres, nas varandas,

Ó fantasia dos Romeus, ó crente,

Por que países meridionais tu andas?!

Vem das esferas, entre os sons que vibras.

Vem, que desejo emocionar as fibras,

Quero sentir como este sangue impulsas.

Noiva do sol que os sóis preclaros gozas

Para rimar umas canções de rosas,

Como risadas de cristal, avulsas...

 

Ave! Maria...

Ave! Maria das Estrelas, Ave!

Cheia de graça do luar, Maria!

Harmonia de cântico suave,

Das harpas celestiais branda harmonia...

Nuvem d'incensos através da nave

Quando o templo de pompas irradia

E em prantos o órgão vai plangendo grave

A profunda e gemente litania...

Seja bendito o fruto do teu ventre,

Jesus, mais belo dentre os astros e entre

As mulheres judaicas mais amado...

Ó Luz! Eucaristia da beleza,

Chama sagrada no Evangelho acesa,

Maravilha do Amor e do Pecado!

 

Impassível

Teu coração de mármore não ama

Nem um dia sequer, nem um só dia.

Essa inclemente natureza fria

Jamais na luz dos astros se derrama.

Mares e céus, a imensidade clama

Por esse olhar d'estrelas e harmonia,

Sem uma névoa de melancolia,

Do amor nas pompas e na vida chama.

A Imensidade nunca mais quer vê-lo,

Indiferente às comoções, de gelo

Ao mar, ao sol, aos roseirais de aromas.

Ama com o teu olhar, que a tudo encantas,

Ou se antes de pedra, como as santas,

Mudas e tristes dentro das redomas.

 

Verônica

Não a face do Cristo, a macilenta

Face do Cristo, a dolorosa face...

O martírio da Cruz passou fugace

E este Martírio, esta Paixão é lenta.

Um vivo sangue a face te ensanguenta,

Mais vivo que se o Deus o derramasse;

Porque esta vã paixão, para que passe,

É mister dos Titãs a luta incruenta.

Se tu, Visão da Luz, Visão sagrada

Queres ser a Verônica sonhada,

Consoladora dessa dor sombria

Impressa ficara no teu sudário

Não a face do Cristo do Calvário

Mas a face convulsa da Agonia!

 

Símiles

(Desterro)

Pedro traiu a fé do Apostolado.

Madalena chorou de arrependida;

E nessa mágoa triste e indefinida

Havia ainda uns laivos de pecado.

Tudo que a Bíblia tinha decretado,

Tudo o que a lenda humilde e dolorida

De Jesus Cristo apregoou na vida,

Cumpriu-se à risca, foi executado.

O filho-Deus da cândida Maria,

Da flor de Jericó, na cruz sombria

Os seus dias amáveis terminou.

Pedro traiu a fé dos companheiros.

Madalena chorou sob os olmeiros

Jesus Cristo sofreu e... perdoou.

Exilada

Bela viajante dos países frios

Não te seduzam nunca estes aspectos

Destas paisagens tropicais — secretos,

— Os teus receios devem ser sombrios.

És branca e és loura e tens os amavios

Os incógnitos filtros prediletos

Que podem produzir ondas de afetos

Nos mais sensíveis corações doentios.

Loura Visão, Ofélia desmaiada,

Deixa esta febre de ouro, a febre ansiada

Que nos venenos deste sol consiste.

Emigra destes cálidos países,

Foge de amargas, fundas cicatrizes,

Das alucinações de um vinho triste...

Sonetos

Do som, da luz entre os joviais duetos,

Como uma chusma alada de gaivotas,

Vindos das largas amplidões remotas,

Batem as asas todos os sonetos.

Vão — por estradas, por difíceis rotas,

Quatorze versos — entre dois quartetos

E duas belas e luzidas frotas

Rijas, seguras, de mais dois tercetos.

Com a brunida lâmina da lima,

Vão céus radiosos, horizontes acima,

Pelas paragens límpidas, gentis,

Atravessando o campo das quimeras,

Aberto ao sol das flóreas primaveras,

Todo estrelado de áureos colibris.

 

Decadentes

Richepin, Rollinat! gritos sangrentos

Da carne alvoroçada de desejos,

Mosto de risos, lágrimas e beijos,

Estertores de abutres famulentos.

Desesperado frêmito dos ventos,

De harpas, sutis, fantásticos harpejos,

Clarins de guerra, e cânticos e adejos

De aves — todos os vivos elementos.

Tudo flameja e nas estrofes canta,

Estruge, zune, em borbotões levanta

Noites, luares, fulgurantes dias.

Mas nessa ideal temperatura forte

Tudo isso é triste como a flor da morte

Que brota dentro das caveiras frias...

 

Olavo Bilac

Vim afinal para o solar dos astros,

De irradiações puríssimas e belas,

Numa viagem de alterosos mastros,

Numa viagem de saudosas velas...

Das alegrias nos febris enastros

Que as almas prendem para percebê-las,

Vim cantando e feliz, fugindo aos rastros

Da terra de onde vi e ouvi estrelas.

E por aqui, nas lúcidas paisagens,

Vestido das mais fluídicas roupagens

Tecido de ouro, nos clarões imersos...

Ando a gozar, entre lauréis e palmas,

O que cantei na terra, junto às almas,

Na eterna florescência dos meus versos.

Doente

As unhas perigosas da bronquite

Nas tuas carnes sensuais e moles

Não deixarão que o teu amor palpite

Nem que os olhares pelos astros roles.

É fatal a moléstia. Só permite

Que te acabes por fim e que te estioles.

Sem que em teu peito o coração se agite,

Sem que te animes, sem que te consoles.

Vai se extinguindo a polpa dessas faces...

Mas se ainda hoje em mim acreditasses,

Como no tempo virginal de outrora,

Tu curar-te-ias com pequeno esforço

Das serranias através do dorso,

Pela saúde dos vergéis afora.

Lirial

Vens com uns tons de searas,

De prados enflorescidos

E trazes os coloridos

Das frescas auroras claras.

E tens as nuances raras

Dos bons prazeres servidos

Nos rostos enlourecidos

Das parisienses preclaras.

Chapéu das finas elites,

De roses e clematites,

Chapéu Pierrette — entre o sol

Passando, esbelta e rosada,

Pareces uma encantada

Canção azul do Tirol.

 

To sleep, to dream

Dormir, sonhar — o poeta inglês o disse...

Ah! Mas se a gente nunca mais sonhasse

Ah! Mas se a gente nunca mais dormisse

E a ilusões não mais acalentasse?

E o que importava que o futuro risse

De um visionário que tal cousa ideasse;

Se não seria o único que abrisse

Uma exceção da vida humana à face?...

Se os imortais filósofos modernos

Que derrubaram todos os infernos,

Que destruíram toda a teogonia.

Orientando a triste humanidade,

Deixaram, mais e mais, a piedade

Inteiramente desolada e fria?

 

No campo

Acordo de manhã cedo

Da luz aos doces carinhos:

Que rosas pelos caminhos!

Que rumor pelo árvoredo!

Para o azul radioso e ledo

Sobe, de dentro dos ninhos,

O canto dos passarinhos

Cheio de amor e segredo.

Dentre moitas de verdura

Voam as pombas nevadas,

Imaculadas de alvura.

Pelas margens das estradas

Que penetrante frescura

Que femininas risadas!

 

Visão medieva

Quando em outras remotas primaveras,

Na idade-média, sob fuscos tetos,

Dois amantes passavam, mil aspectos

Tinham aquelas medievais quimeras.

Nas armaduras rígidas e austeras,

Na aérea perspectiva dos objetos

Andavam sonhos e visões, diletos

Segredos mortos nas extintas eras.

O fantasma do amor pelos castelos

Mudo vagava entre os luares belos,

Dos corredores nas paredes frias.

Não raro se escutava um som de passos,

Rumor de beijos, frêmito de abraços

Pelas caladas, fundas galerias.

 

Roma pagã

Na antiga Roma, quando a saturnal fremente

Exerceu sobre tudo o báquico domínio,

Não era raro ver nos gozos do triclínio

A nudez feminina imperiosa e quente.

O corpo de alabastro, olímpico e fulgente,

Lascivamente nu, correto e retilíneo,

Num doce tom de cor, esplêndido e sanguíneo,

Tinha o assombro da carne e a forma da serpente.

A luz atravessava em frocos d’oiro e rosa

Pela fresca epiderme, ebúrnea e cetinosa,

Macia, da maciez dulcíssima de arminhos.

Menos raro, porém, do que a nudez romana

Era ver borbulhar, em férvida espadana

A púrpura do sangue e a púrpura dos vinhos.

 

Espiritualismo

Ontem, à tarde, alguns trabalhadores,

Habitantes de além, de sobre a serra,

Cavavam, revolviam toda a terra,

Do sol entre os metálicos fulgores.

Cada um deles ali tinha os ardores

De febre de lutar, a luz que encerra

Toda a nobreza do trabalho e — que erra

Só na cabeça dos conspiradores,

Desses obscuros revolucionários

Do bem fecundo e cultural das leivas

Que são da Vida os maternais sacrários.

E pareceu-me que do chão estuante

Vi porejar um bálsamo de seivas

Geradoras de um mundo mais pensante.

 

Plangência da tarde

Quando do campo as prófugas ovelhas

Voltam a tarde, lépidas, balando

Com elas o pastor volta cantando

E fulge o ocaso em convulsões vermelhas.

Nos beirados das casas, sobre as telhas

Das andorinhas esvoaça o bando...

E o mar, tranquilo, fica cintilando

Do sol que morre as últimas centelhas.

O azul dos montes vago na distância...

No bosque, no ar, a cândida fragrância

Dos aromas vitais que a tarde exala.

Às vezes, longe, solta, na esplanada,

A ovelha errante, tonta e desgarrada,

Perdida e triste pelos ermos bala...

 

Alma antiga

Põe a tua alma francamente aberta

Ao sol que pelos páramos faísca,

Que o sol para a tua alma velha e prisca

Deve de ser como um clarim de alerta.

Desperta, pois, por entre o sol, desperta

Como de um ninho a pomba quente e arisca

À luz da aurora que dos altos risca

De listrões d’ouro a vastidão deserta.

Vai por abril em flores gorjeando

Como pássaro exul as canções leves

Que os ventos vão nas árvores deixando.

E tira da tua alma, ó doce amiga,

Almas serenas, puras como a neve,

Almas mais novas que a tua alma antiga!

 

Vanda

Vanda! Vanda do amor, formosa Vanda,

Macuana gentil, de aspecto triste,

Deixe que o coração que tu poluíste

Um dia, se abra e revivesça e expanda.

Nesse teu lábio sem calor onde anda

A sombra vã de amores que sentiste

Outrora, acende risos que não viste

Nunca e as tristezas para longe manda.

Esquece a dor, a lúbrica serpente

Que, embora esmaguem-lhe a cabeça ardente,

Agita sempre a cauda venenosa.

Deixa pousar na seara dos teus dias

A caravana irial das alegrias

Como as abelhas pousam numa rosa.

 

Êxtase

Quando vens para mim, abrindo os braços

Numa carícia lânguida e quebrada,

Sinto o esplendor de cantos de alvorada

Na amorosa fremência dos teus passos.

Partindo os duros e terrestres laços,

A alma tonta, em delírio, alvoroçada,

Sobe dos astros a radiosa escada

Atravessando a curva dos espaços.

Vens, enquanto que eu, perplexo d’espanto,

Mal te posso abraçar, gozar-te o encanto

Dos seios, dentre esses rendados folhos.

Nem um beijo te dou! abstrato e mudo

Diante de ti, sinto-te, absorto em tudo,

Uns rumores de pássaros nos olhos.

 

Luar

Ao longo das louríssimas searas

Caiu a noite taciturna e fria...

Cessou no espaço a límpida harmonia

Das infinitas perspectivas claras.

As estrelas no céu, puras e raras,

Como um cristal que nítido radia,

Abrem da noite na mudez sombria

O cofre ideal de pedrarias caras.

Mas uma luz aos poucos vai subindo

Como do largo mar ao firmamento — abrindo

Largo clarão em flocos d’escumilha.

Vai subindo, subindo o firmamento!

E branca e doce e nívea, lento e lento,

A lua cheia pelos campos brilha...

 

Celeste

Vi-te crescer! tu eras a criança

Mais linda, mais gentil, mais delicada:

Tinhas no rosto as cores da alvorada

E o sol disperso pela loira trança.

Asas tinhas também, as da esperança...

E de tal sorte eras sutil e alada

Que parecias ave arrebatada

Na luz do Espaço onde a razão descansa!

Depois, então, fizeste-te menina,

Visão de amor, puríssima, divina,

Perante a qual ainda hoje me ajoelho.

Cresceste mais! És bela e moça agora...

Mas eu, que acompanhei toda essa aurora,

Sinto bem quanto estou ficando velho.

 

A partida

Partimos muito cedo — A madrugada

Clara, serena, vaporosa e fresca,

Tinha as nuances de mulher tudesca

De fina carne esplêndida e rosada.

Seguimos sempre afora pela estrada

Franca, poeirenta, alegre e pitoresca,

Dentre o frescor e a luz madrigalesca

Da natureza aos poucos acordada.

Depois, no fim, lá de algum tempo — quando

Chegamos nós ao termo da viagem,

Ambos joviais, a rir, cantarolando,

Da mesma parte do levante, de onde

Saímos, pois, faiscava na paisagem

O sol, radioso e altivo como um conde.

 

Canção de abril

Vejo-te, enfim, alegre e satisfeita.

Ora bem, ora bem! — Vamos embora

Por estes campos e rosais afora

De onde a tribo das aves nos espreita.

Deixa que eu faça a matinal colheita

Dos teus sonhos azuis em cada aurora,

Agora que este abril nos canta, agora,

A florida canção que nos deleita.

Solta essa fulva cabeleira de ouro

E vem, subjuga com teu busto louro

O sol que os mundos vai radiando e abrindo.

E verás, ao raiar dessa beleza,

Nesse esplendor da virgem natureza,

Astros e flores palpitando e rindo.

 

O mar

Que nostalgia vem das tuas vagas,

Ó velho mar, ó lutador Oceano!

Tu de saudades íntimas alagas

O mais profundo coração humano.

Sim! Do teu choro enorme e soberano,

Do teu gemer nas desoladas plagas

Sai o quer que é, rude sultão ufano,

Que abre nos peitos verdadeiras chagas.

Ó mar! ó mar! embora esse eletrismo,

Tu tens em ti o gérmen do lirismo,

És um poeta lírico demais.

E eu para rir com humor das tuas

Nevroses colossais, bastam-me as luas

Quando fazem luzir os seus metais...

 

Manhã

Alta alvorada. — Os últimos nevoeiros

A luz que nasce levemente espalha;

Move-se o bosque, a selva que farfalha

Cheia da vida dos clarões primeiros.

Da passarada os voos condoreiros,

Os cantos e o ar que as árvores ramalha

Lembram combate, estrídula batalha

De elementos contrários e altaneiros.

Vozes, trinados, vibrações, rumores

Crescem, vão se fundindo aos esplendores

Da luz que jorra de invisível taça.

E como um rei num galeão do Oriente

O sol põe-se a tocar bizarramente

Fanfarras marciais, trompas de caça.

 

Rir!

Rir! Não parece ao século presente

Que o rir traduza, sempre, uma alegria...

Rir! Mas não rir como essa pobre gente

Que ri sem arte e sem filosofia.

Rir! Mas com o rir atroz, o rir tremente,

Com que André Gil eternamente ria.

Rir! Mas com o rir demolidor e quente

Duma profunda e trágica ironia.

Antes chorar! Mais fácil nos parece.

Porque o chorar nos ilumina e nos aquece

Nesta noite gelada do existir.

Antes chorar que rir de modo triste...

Pois que o difícil do rir bem consiste

Só em saber como Henri Heine rir!...

 

Ideal comum

(Soneto a quatro mãos)

Dos cheirosos, silvestres ananases

De casca rubra e polpa acidulosa,

Tens na carne fremente, voluptuosa,

Os aromas recônditos, vivazes.

Lembras lírios, papoulas e lilases;

A tua boca exala a trevo e a rosa,

Resplande essa cabeça primorosa

E o dia e a noite nos teus olhos trazes.

Astros, jardins, relâmpagos e luares

Inundam-te os fantásticos cismares,

Cheios de amor e estranhos calafrios;

E teus seios, olímpicos, morenos,

Propinando-me trágicos venenos,

São como em brumas, solitários rios.

 

Aspiração

Quisera ser a serpe astuciosa

Que te dá medo e faz-te pesadelos

Para esconder-me, ó flor luxuriosa,

Na floresta ideal dos teus cabelos.

Quisera ser a serpe venenosa

Para enroscar-me em múltiplos novelos,

Para saltar-te aos seios cor-de-rosa.

E bajulá-los e depois mordê-los.

Talvez que o sangue impuro e rutilante

Do teu divino corpo de bacante,

Sangue febril como um licor do Reno

Completamente se purificasse

Pois que um veneno orgânico e vorace

Para ser morto é bom outro veneno.

 

Sensibilidade

Como os audazes, ruivos argonautas,

Intrépidos, viris e corajosos

Que voltam dos orientes fantasiosos,

Dos países de Núbios e Aranautas.

Como esses bravos, que por naus incautas,

Regressam dos oceanos borrascosos,

Indo encontrar nos lares harmoniosos

De luz, vinho e alegria as mesas lautas.

Tal o meu coração, quando aparece

A tua imagem, canta e resplandece,

Sem lutas, sem paixões, livre de abrolhos.

A meu pesar, louco de ver-te, louco,

As lágrimas me correm pouco a pouco,

Como o champanhe virginal dos olhos...

 

Glórias antigas

Rubras como gauleses arruivados,

Voltam da guerra as hostes triunfantes,

Trazem nas lanças d’aço lampejantes,

Os louros das batalhas pendurados.

Os escudos e arneses dos soldados

Rutilam como lascas de diamantes

E na armadura os músculos vibrantes,

Rijos, palpitam, batem nervurados.

Dentre estandartes, flâmulas de cores,

Trazem dos olhos rufos de tambores,

Ruídos de alegria estranha e louca.

Chegam por fim, à pátria vitoriosa...

E então, da ardente glória belicosa,

Há um grito vermelho em cada boca!

 

Pássaro marinho

Manhã de maio, rosas pelo prado,

Gorjeios, pelas matas verdurosas

E a luz cantando o idílio de um noivado

Por entre as matas e por entre as rosas.

Uma toilette matinal que o alado

Corpo te enflora em graças vaporosas,

Mergulhas, como um pássaro rosado,

Nas cristalinas águas murmurosas.

Dás o bom dia ao Mar nesse mergulho

E das águas salgadas ao marulho

Sais, no esplendor dos límpidos espaços.

Trazes na carne um reflorir de vinhas,

Auroras, virgens músicas marinhas,

Acres aromas de algas e sargaços!

 

A freira morta

(Desterro)

Muda, espectral, entrando as arcarias

Da cripta onde ela jaz eternamente

No austero claustro silencioso — a gente

Desce com as impressões das cinzas frias...

Pelas negras abóbadas sombrias

Donde pende uma lâmpada fulgente,

Por entre a frouxa luz triste e dormente

Sobem do claustro as sacras sinfonias.

Uma paz de sepulcro após se estende...

E no luar da lâmpada que pende

Brilham clarões de amores condenados...

Como que vem do túmulo da morta

Um gemido de dor que os ares corta,

Atravessando os mármores sagrados!

 

Claro e escuro

Dentro — os cristais dos tempos fulgurantes,

Músicas, pompas, fartos esplendores,

Luzes, radiando em prismas multicores,

Jarras formosas, lustres coruscantes,

Púrpuras ricas, galas flamejantes,

Cintilações e cânticos e flores;

Promiscuamente férvidos odores,

Mórbidos, quentes, finos, penetrantes.

Por entre o incenso, em límpida cascata,

Dos siderais turíbulos de prata,

Das sedas raras das mulheres nobres;

Clara explosão fantástica de aurora,

Deslumbramentos, nos altares! — Fora,

Uma falange intérmina de pobres.

 

Magnólia dos trópicos

A Araújo Figueiredo

Com as rosas e o luar, os sonhos e as neblinas,

Ó magnólia de luz, cotovia dos mares,

Formaram-te talvez os brancos nenúfares

Da tua carne ideal, de correções felinas.

O teu colo pagão de virgens curvas finas

É o mais imaculado e flóreo dos altares,

Donde eu vejo elevar-se eternamente aos ares

Viáticos de amor e preces diamantinas.

Abre, pois, para mim os teus braços de seda

E do verso através a límpida alameda

Onde há frescura e sombra e sol e murmurejo;

Vem! com a asa de um beijo a boca palpitando,

No alvoroço febril de um pássaro cantando,

Vem dar-me a extrema-unção do teu amor num beijo.

 

Hóstias

A Emílio de Menezes

Nos arminhos das nuvens do infinito

Vamos noivar por entre os esplendores,

Como aves soltas em vergéis de flores,

Ou penitentes de um estranho rito.

Que seja nosso amor — sidério mito! —

O límpido turíbulo das dores,

Derramando o incenso dos amores

Por sobre o humano coração aflito.

Como num templo, numa clara igreja,

Que o sonho nupcial gozado seja,

Que eu durma e sonhe nos teus níveos flancos.

Contigo aos astros fúlgidos alado,

Que sejam hóstias para o meu noivado

As flores virgens dos teus seios brancos!

 

Boca imortal

Abre a boca mordaz num riso convulsivo

Ó fera sensual, luxuriosa fera!

Que essa boca nervosa, em riso de pantera,

Quando ri para mim lembra um capro lascivo.

Teu olhar dá-me febre e dá-me um brusco e vivo

Tremor as carnes, que eu, se ele em mim reverbera,

Fico aceso no horror da paixão que ele gera,

Inflamada, fatal, dum sangue rubro e ativo.

Mas a boca produz tais sensações de morte,

O teu riso, afinal, é tão profundo e forte

E tem de tanta dor tantas negras raízes;

Rigolboche do tom, ó flor pompadouresca!

Que és, para mim, no mundo, a trágica e dantesca

Imperatriz da Dor, entre as imperatrizes!

 

Psicologia humana

A Santos Lostada

Por trás de uns vidros d’óculos opacos

Muita vez um leão e um tigre rugem,

E como um surdo temporal estrugem

Os ódios dos covardes e dos fracos.

Partir pudesses, ó poeta, em cacos,

Vidros que ocultam almas de ferrugem,

Que espumam de ira, tenebrosas mugem,

Mugem como de dentro de uns buracos.

Que essas sombrias, dúbias almas foscas

Que parecem, no entanto, como moscas,

Inofensivas, babam como as lesmas.

Mas tu, em vão, tais vidros partirias,

Pois que no mundo, eternamente, as frias

Almas humanas serão sempre as mesmas!

 

Os mortos

Ao menos junto dos mortos pode a gente

Crer e esperar n’alguma suavidade:

Crer no doce consolo da saudade

E esperar do descanso eternamente.

Junto aos mortos, por certo, a fé ardente

Não perde a sua viva claridade;

Cantam as aves do céu na intimidade

Do coração o mais indiferente.

Os mortos dão-nos paz imensa à vida,

Dão a lembrança vaga, indefinida

Dos seus feitos gentis, nobres, altivos.

Nas lutas vãs do tenebroso mundo

Os mortos são ainda o bem profundo

Que nos faz esquecer o horror dos vivos.

 

Floripes

Fazes lembrar as mouras dos castelos,

As errantes visões abandonadas

Que pelo alto das torres encantadas

Suspiravam de trêmulos anelos.

Traços ligeiros, tímidos, singelos

Acordam-te nas formas delicadas

Saudades mortas de regiões sagradas,

Carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.

Um requinte de graça e fantasia

Dá-te segredos de melancolia,

Da Lua todo o lânguido abandono...

Desejos vagos, olvidadas queixas

Vão morrer no calor dessas madeixas,

Nas virgens florescências do teu sono.

 

O cego do Harmonium

Esse cego do harmonium me atormenta

E atormentando me seduz, fascina.

A minh’alma para ele vai sedenta

Por falar com a sua alma peregrina.

O seu cantar nostálgico adormenta

Como um luar de mórbida neblina.

O harmonium geme certa queixa lenta,

Certa esquisita e lânguida surdina.

Os seus olhos parecem dois desejos

Mortos em flor, dois luminosos beijos

Fanados, apagados, esquecidos...

Ah! eu não sei o sentimento vário

Que prende-me a esse cego solitário,

De olhos aflitos como vãos gemidos!

 

Horas de sombra

Horas de sombra, de silêncio amigo

Quando há em tudo o encanto da humildade

E que o anjo branco e belo da saudade

Roga por nós o seu perfil antigo.

Horas que o coração não vê perigo

De gozar, de sentir com liberdade...

Horas da asa imortal da Eternidade

Aberta sobre tumular jazigo.

Horas da compaixão e da clemência,

Dos segredos sagrados da existência,

De sombras de perdão sempre benditas.

Horas fecundas, de mistério casto,

Quando dos céus desce, profundo e vasto,

O repouso das almas infinitas.

 

Aleluia! Aleluia!

Dentre um cortejo de harpas e alaúdes

Ó Arcanjo sereno, Arcanjo níveo,

Baixas-te à terra, ao mundanal convívio...

Pois que a terra te ajude, e tu me ajudes.

Que tu me alentes nas batalhas rudes,

Que me tragas a flor de um doce alívio

Aos báratros, às brenhas, ao declívio

Deste caminho de ânsias e ataúdes...

Já que desceste das regiões celestes,

Nesse clarão flamívomo das vestes,

Através dos troféus da Eternidade

Traz-me a Luz, traz-me a Paz, traz-me a Esperança

Para a minh’alma que de angústias cansa,

Errando pelos claustros da Saudade!

 

Rosa negra

Nervosa Flor, carnívora, suprema,

Flor dos sonhos da Morte, Flor sombria,

Nos labirintos da tu’alma fria

Deixa que eu sofra, me debata e gema.

Do Dante o atroz, o tenebroso lema

Do Inferno a porta em trágica ironia,

Eu vejo, com terrível agonia,

Sobre o teu coração, torvo problema.

Flor do delírio, flor do sangue estuoso

Que explode, porejando, caudaloso,

Das volúpias da carne nos gemidos.

Rosa negra da treva, Flor do nada,

Dá-me essa boca acídula, rasgada,

Que vale mais que os corações proibidos!

 

Vozinha

Velha, velhinha, da doçura boa

De uma pomba nevada, etérea, mansa.

Alma que se ilumina e se balança

Dentre as redes da Fé que nos perdoa.

Cabeça branca de serena leoa,

Carinho, amor, meiguice que não cansa,

Coração nobre sempre como a lança

Que não vergue, não fira e que não doa.

Olhos e voz de castidades vivas,

Pão ázimo das Páscoas afetivas,

Simples, tranquila, dadivosa, franca.

Morreu tal qual vivera, mansamente,

Na alvura doce de uma luz algente,

Como que morta de uma morte branca.

 

No Egito

Sob os ardentes sóis do fulvo Egito

De areia estuosa, de candente argila,

Dos sonhos da alma o turbilhão desfila,

Abre as asas no páramo infinito.

O Egito é sempre o amigo, o velho rito

Onde um mistério singular se asila

E onde, talvez mais calma, mais tranquila

A alma descansa do sofrer prescrito.

Sobre as ruínas d’ouro do passado,

No céu cavo, remoto, ermo e sagrado,

Torva morte espectral pairou ufana...

E no aspecto de tudo em torno, em tudo,

Árido, pétreo, silencioso, mudo,

Parece morta a própria dor humana!

 

Ocasos

Morrem no Azul saudades infinitas

Mistérios e segredos inefáveis...

Ah! Vagas ilusões imponderáveis,

Esperanças acerbas e benditas.

Ânsias das horas místicas e aflitas,

De horas amargas das intermináveis

Cogitações e agruras insondáveis

De febres tredas, trágicas, malditas.

Cogitações de horas de assombro e espanto

Quando das almas num relevo santo

Fulgem de outrora os sonhos apagados.

E os braços brancos e tentaculosos

Da Morte, frios, álgidos, nervosos,

Abrem-se pare mim torporizados.

 

Repouso

A cabeça pendida docemente

Em sonhos, sonha o sonhador inquieto,

Repousa e nesse repousar discreto

É sempre o sonho o seu bordão clemente.

Cego desta Prisão impenitente

Da Terra e cego do profundo Afeto,

O sonho é sempre o seu bordão secreto

O seu guia divino e refulgente.

Nem no repouso encontra a paz que espera,

Para lhe adormecer toda a quimera,

Os círculos fatais do seu Inferno.

Entre a calma aparente, a estranha calma,

O seu repouso é sempre a febre d’alma,

O seu repouso é sonho, e sonho eterno.

 

Resquiescat...

Grande, grande Ilusão morta no espaço,

Perdida nos abismos da memória,

Dorme tranquila no esplendor da glória,

Longe das amarguras do cansaço...

Ilusão, Flor do sol, do morno e lasso

Sonho da noite tropical e flórea,

Quando as visões da névoa transitória

Penetram na alma, num lascivo abraço...

Ó Ilusão! Estranha caravana

de águias, soberbas, de cabeça ufana,

De asas abertas no clarão do Oriente.

Não me persiga o teu mistério enorme!

Pelas saudades que me aterram, dorme,

Dorme nos astros infinitamente...

 

Doce abismo

Coração, coração! a suavidade,

Toda a doçura do teu nome santo

É como um cálix de falerno e pranto,

De sangue, de luar e de saudade.

Como um beijo de mágoa e de ansiedade,

Como um terno crepúsculo d’encanto,

Como uma sombra de celeste manto,

Um soluço subindo a Eternidade.

Como um sudário de Jesus magoado,

Lividamente morto, desolado,

Nas auréolas das flores da amargura.

Coração, coração! onda chorosa,

Sinfonia gemente, dolorosa,

Acerba e melancólica doçura.

 

Harpas eternas

Hordas de Anjos titânicos e altivos,

Serenos, colossais, flamipotentes,

De grandes asas vívidas, frementes,

De formas e de aspectos expressivos.

Passam, nos sóis da Glória redivivos,

Vibrando as de ouro e de Marfim dolentes,

Finas harpas celestes, refulgentes,

Da luz nos altos resplendores vivos

E as harpas enchem todo o imenso espaço

De um cântico pagão, lascivo, lasso,

Original, pecaminoso e brando...

E fica no ar, eterna, perpetuada

A lânguida harmonia delicada

Das harpas, todo o espaço avassalando.

 

Dupla Via-Láctea

Sonhei! Sempre sonhar! No ar ondulavam

Os vultos vagos, vaporosos, lentos,

As formas alvas, os perfis nevoentos

Dos Anjos que no Espaço desfilavam.

E alas voavam de Anjos brancos, voavam

Por entre hosanas e chamejamentos...

Claros sussurros de celestes ventos

Dos Anjos longas vestes agitavam.

E tu, já livre dos terrestres lodos,

Vestida do esplendor dos astros todos,

Nas auréolas dos céus engrinaldada

Dentre as zonas de luz flamo-radiante,

Na cruz da Via-Láctea palpitante

Apareceste então crucificada!

 

Titãs negros

Hirtas de Dor, nos áridos desertos

Formidáveis fantasmas das Legendas,

Marcham além, sinistras e tremendas,

As caravanas, dentre os céus abertos...

Negros e nus, negros Titãs, cobertos

Das bocas vis das chagas vis e horrendas,

Marcham, caminham por estranhas sendas,

Passos vagos, sonâmbulos, incertos...

Passos incertos e os olhares tredos,

Na convulsão de trágicos segredos,

De agonias mortais, febres vorazes...

Têm o aspecto fatal das feras bravas

E o rir pungente das legiões escravas,

De dantescos e torvos Satanases!...

 

Entre chamas...

Sonhei que de astros no Infinito presa

Vagavas, brandamente adormecida,

Nas chamas siderais resplandecida,

A carne, em chamas, no Infinito, acesa...

E eu pasmava de encanto e de surpresa

Vendo a constelação indefinida

Da tua carne flamejando vida,

Dentre os íris radiantes da beleza...

E o teu corpo, nas chamas palpitando,

Os astros em redor maravilhando,

Por entre a auréola dos clarões cantava...

Então, de sonho em sonho, absorto, mudo,

Eu senti alastrar, vibrar por tudo

Toda a infinita sensação da lava!...

 

O anjo da redenção

Soberbo, branco, etereamente puro,

Na mão de neve um grande facho aceso,

Nas nevroses astrais dos sóis surpreso,

Das trevas deslumbrando o caos escuro.

Portas de bronze e pedra, o horrendo muro

Da masmorra mortal onde estás preso

Desce, penetra o Arcanjo branco, ileso

Do ódio bifronte, torso, torvo e duro.

Maravilhas nos olhos e prodígios

Nos olhos, chega dos azuis litígios

Desce à tua caverna de bandido.

E sereno, agitando o estranho facho,

Põe-te aos pés e a cabeça, de alto a baixo,

Auréolas imortais de Redimido!

 

Salve! Rainha!...

Ó sempre virgem Maria, concebida sem pecado original,

desde o primeiro instante do teu ser...

Mãe de Misericórdia, sem pecado

Original, desde o primeiro instante!

Salve! Rainha da Mansão radiante,

Virgem do Firmamento constelado...

Teu coração de espadas lacerado,

Sangrando sangue e fel martirizante,

Escute a minha Dor, a torturante,

A Dor do meu soluço eternizado.

A minha Dor, a minha Dor suprema,

A Dor estranha que me prende, algema

Neste Vale de lágrimas profundo...

Salve! Rainha! por quem brado e clamo

E brado e brado e com angústia chamo,

Chamo, através das convulsões do mundo!...

 

[Brancas aspirações]

Brancas Aparições, Visões renanas,

Imagens dos Ascetas peregrinos,

Hinos nevoentos, neblinosos hinos

Das brumosas igrejas luteranas.

Vago mistério das regiões indianas,

Sonhos do Azul dos astros cristalinos,

Coros de Arcanjos, claros sons divinos

Dos Arcanjos, nas tiorbas soberanas.

Tudo ressurge na minh’alma e vaga

Num fluido ideal que me arrebata e alaga,

No abandono mais lânguido mais lasso...

Quando lá nos sacrários do Cruzeiro

A lua rasga o trêmulo nevoeiro,

Magoada de vigílias e cansaço...

 

Violinos

Pelas bizarras, góticas janelas

De um tempo medieval o sol ondula:

Nunca os vitrais viram visões mais belas

Quando, no ocaso, o sol os doura e oscula...

Doces, multicores aquarelas

Sobre um saudoso céu que além se azula...

Calma, serena, divinal, entre eras,

A pomba ideal dos Ângelus arrula...

Rezam de joelhos anjos de mãos postas

Através dos vitrais, e nas encostas

Dos montes sobe a claridade ondeando...

É a lua de Deus, que as curves meigas

Foi ondular pelos vergéis e veigas

Magnólias e lírios desfolhando...

 

Guerra Junqueiro

Quando ele do Universo o largo supedâneo

Galgou como os clarões — quebrando o que não serve,

Fazendo que explodissem os astros de seu crânio,

As gemas da razão e os músculos da verve;

Quando ele esfuziou nos páramos as trompas,

As trompas marciais — as liras do estupendo,

Pejadas de prodígios, assombros e de pompas,

Crescendo em proporções, crescendo e recrescendo;

Quando ele retesou os nervos e as artérias

Do verso orbicular — rasgando das misérias

O ventre do Ideal na forte hematemese.

Clamando — é minha a luz, que o século propague-a,

Quando ele avassalou os píncaros da águia

E o sol do Equador vibrou-lhe aquelas teses!

 

[Deus esculturou-te]

À grandiosa atrizinha brasileira Julieta dos Santos,

homenagem no dia do seu benefício.

Isto pensava, isto escrevo;

Isto tinha n’alma, isto vai no papel,

Que d’outro modo não sei escrever.

(Alm. Garrett)

Deus esculturou-te no molde das auroras

Ó misto de prodígio, herdeira dos assombros

E soube colocar-te por sobre os débeis ombros

Dos mundos do ideal, as músicas sonoras!

Cravou-te nessa fronte o gênio que fulmina.

Dos astros fez-te os olhos, os risos de alvoradas

E deu-te o vaporoso das grandes matinadas

A maga compleição talmática, divina!

E disse-te: ao tablado!... eleva-te, arrebata

A alma de granito suplanta-a, dilata...

Reergue-te na luz, exalta-te, deslumbra!...

E mostra as mil falanges de bravos, hodiernas

As tuas criações quais mágicas lanternas

Deixando todo o orbe envolto na penumbra.

17 de janeiro de 1883.

 

Aspiração

Tu és a estrela e eu sou o inseto triste!

Vives no Azul, em cima nas esferas,

No centro das risonhas primaveras

Onde por certo o amor eterno existe.

E nem de leve a glória vã me assiste

De erguer o voo às olímpicas quimeras

Do teu brilho ideal, lá onde imperas

Nesse esplendor a que ninguém resiste.

Enquanto te fulgires nas alturas

Eu errarei nas densas espessuras,

Da terra sobre a rigidez de asfalto.

Embalde o teu clarão me enleva e clama!

Mas como a ti voarei, se senti a chama,

Sou tão epqueno e o céu tão alto?

 

Abstração

Cava, investiga a fonte dos instintos,

Da grande Ciência prodigiosa e viva...

Busca na escura Idade primitiva,

Desce aos antigos, fundos labirintos.

Que nunca mais como apertados cintos

De aço, tu tragas a razão cativa;

Que sintas cada vez mais expressiva

A luz, e os erros para sempre extintos.

Porém por mais que tanto te aprofundes

Que a humanidade, os séculos inundes

Com toda a ciência que o teu crênio encerra;

Sempre terás, homem moderno, a mágoa

Do princípio de tudo – como o da água

Que livre sai do coração da terra.

 

Asas de ouro

(Aos anos de Horácio de Carvalho)

Oh! vinte anos enfim! – Chegaste ao cume

Da glória e mais do amor – desses carinhos

Que a alma recebe no frescor dos ninhos,

Nos roseirais abertos em perfume.

Que te estrele de sonhos em cardume

Essa cabeça doce como arminhos,

E te gorjeiem muitos passarinhos

Dos teus olhos leais no vivo lume.

Bom dia! jovem rei! noivo aloirado

Da primavera que auroresce o prado,

Noivo da mocidade e da alegria.

Uma chusma de trêmulos canários

Flavos, trinantes, vindos de céus vários

Vá ao teu quarto gorjear: Bom dia!

1887

 

Jesus

Jesus que amava as mães e as criancinhas,

E que nasceu tão cândido e risonho,

Tendo no olhar a placidez de um sonho

Mais leve do que um sonho de andorinhas;

Esse Jesus que o orgulho das rainhas

Abate e quebra com um ar tristonho

Na cruz – ante esse séquito medonho

De sombras que entristece as criaturinhas;

Quando com seus apóstolos ceava,

Jesus, que os bons e os fracos adorava,

Quando bebia gota a gota o vinho;

Não sabia, por certo, o Jesus casto

Que neste mundo enganador e vasto

Só há bem poucas gotas de carinho.

 

Trompa de Roldão

Rude e membrudo deus peludo, hirsuto,

Convulso como um torvo Laocoonte,

Em que mundo, em que céu, em que horizonte

Foste gerado assim horrendo e bruto?

Que fruto podre, que maldito fruto

Envenenado, d’algum pétreo monte

Tragaste – que só tens no olhar, na fronte

E dentro d’alma o mais tremendo luto?

Que devastadas e longínquas terras,

Que sociedades, religiões e guerras

Deram-te à Dor o aspecto assim profundo?

Quem és, ó deus peludo, ó deus nefando?...

Ah! és o homem, bem sei, e vens calçando

A pata de Satã por sobre o mundo!

 

À pátria livre

Nem mais escravos e nem mais senhores!

Jesus desceu as regiões celestes,

Fez das sagradas, perfumosas vestes

Um sudário de luz pra tantas dores.

A terra toda rebentou em flores!

E onde havia só cardos e ciprestes,

Onde eram tristes solidões agrestes

Brotou a vida cheia de esplendores.

Então Jesus que sempre em todo mundo

Quis ver o amor ser nobre e ser profundo,

Falou depois a escravas gerações:

— Homens! A natureza é apenas uma...

Se não existe distinção alguma

Por que não se hão de unir os corações?!

1888

 

O rio

O rio em turbilhões ei-lo crescendo...

E no seu leito as largas forças vivas

Das profundas correntes impulsivas

Como o sangue na artéria vão fervendo.

No arrebatado cachoeirar tremendo

Florestas de hera, tinhorões, esquivas

Plantas e troncos de árvores altivas

Vão sobre o rio desaparecendo.

Tudo o rio consigo arroja e arrasta

E a natureza vegetal devasta

Nos explosivos borbotões das águas.

Tal os meus sonhos límpidos e amados

Rio abaixo também foram levados

Pela corrente indômita das mágoas.

 

Joia

Humilde como Ester, eu não conheço

Ninguém, nem conheci pessoa alguma

Que fosse joia tal e de tal preço,

Mais casta e muito mais do que uma espuma.

Nem quero que haja igual —  pois eu nem desço

A mais definições – porque isto, em suma,

A gente deve até, num manto espesso

De emoções encobrir, num véu de bruma.

E faz-me recordar um tipo exato

De estranha irradiação – sim, que eu, de fato

Lhe disse, de uma vez, que pareciam

Seus olhos musicais e nazarenos,

Duas brilhantes gotas dos serenos

Que desse azul dos páramos caíam.

 

A volta

Voltamos juntos pela mesma estrada

Tu em caminho rias doidamente;

E a tua fresca e musical risada

Era a canção mais doce e mais nitente.

Foi bem longe o passeio, a caminhada

Certo que havia de ficar ardente

A luz do teu olhar de pomba amada

Que voa pelo azul resplandecente.

Palpitava-te o seio alabastrino,

Arfava-te, de manso, como um hino

De puro amor, entre os rendados jolhos.

E embora a tua carne assim cansasse

Oh! podes rir! – Por mais que eu só te olhasse

Não se cansavam de te olhar meus olhos.

 

Balada matinal

Cantam agora os pássaros nos ramos

Dos verdejantes, flébeis arvoredos...

E que adoráveis, íntimos segredos

Eles dirão, que nós não deciframos...

Coleiros, sabiás e gaturamos

Cantam felizes, joviais e ledos,

Na densa mata verde dos silvedos

Profundos como os sonhos que adoramos.

Vem tu agora, ó dríade dos campos,

Vem comigo colher os frutos lampos

Do casto amor com que a tu’alma abrasas,

Que enquanto assim os pássaros cantarem

E pela mata flórida voarem,

O meu amor te estenderá as asas.

 

Recordação

Foi por aqui, sob estes arvoredos,

Sob este doce e plácido horizonte,

Junto da clara e pequenina fonte,

Que murmura lá baixo os seus segredos...

Recordo bem todos os cantos ledos

Da passarada – e lembro-me da ponte

Por sobre a qual via-se além, de fronte,

O mar vinil batendo nos rochedos.

Sinto a impressão ainda da paisagem,

Do tom muito tocante da folhagem,

Das culturas rurais, do sítio agreste.

A luz do dia vinha então morrendo...

Foi por aqui que eu pude ficar crendo

O quanto pode o teu olhar celeste.

1887

 

Lágrimas

Lágrimas tu! mulher encantadora!

Não te bastara então essa pobreza,

Era mister pagar à natureza

O tributo da dor esmagadora?

Era preciso à luta vencedora

Dar um quinhão de sangue de pureza

Cristalizado em lágrimas, na acesa

Voragem de uma vida aterradora?

Sim, todos nós andamos por calvários,

Deixando as almas, castos relicários,

Entre as brumas chorosas do desgostos.

Chora! e que eu beba, humílimo de rastros,

As lágrimas que choras, como uns astros,

Como estrelas no céu desse teu rosto.

1888

 

Filosofando

Ontem à tarde, alguns trabalhadores,

Habitantes de além, de serra a serra,

Cavando e revolvendo a dura terra,

Do sol entre os prismáticos fulgores,

Estavam – cada qual tinha os ardores

Da febre de lutar, à luz que encerra

Toda a nobreza do trabalho – e que erra

Só na cabeça dos conspiradores.

E dos obscuros revolucionários

Do bem fecundo e cultural das leivas

Que são da vida os maternais sacrários.

E pareceu-me que do chão estuante

Vem porejar um bálsamo de seivas

Geradoras de um mundo mais pensante.

 

Aos pobres

— Minha mãe, minha mãe, quanta grandeza

Nesses palácios, quanta majestade;

Como essa gente há de viver, como há de

Ser grande sempre na feliz riqueza.

Nem uma lágrima sequer —  e à mesa

Dentre as baixelas, dentre a imensidade

Da prata e do ouro – a azul felicidade

Dos bons manjares de ótima surpresa.

Nem um instante os olhos rasos d’água,

Nem a ligeira oscilação da mágoa,

Na vida farta de prazer, sonora.

— Como o teu louco pensamento expandes!

Filho, a ventura não é só dos grandes;

O mar também é grande e quanto chora!

 

[Deixe-nos ficar...]

Deixemo-nos ficar pelo menos apenas

Um momento ao frescor das verdes arueiras

Pintalgadas de sangue. Hão de vir as serenas

Aves de Abril cantar nos leques das palmeiras.

Todo este mar recorda um tendal de açucenas

A luz do sol descendo as altas cordilheiras...

E essa voz musical é a voz das cantilenas

Dos que vêm a remar nas célebres baleeiras.

Neste lindo lugar, se existe a f’licidade,

Sentimo-na no peito, em plena alacridade.

E, portanto, Maria, a hora que nós passamos

Nesta Ilha tão formosa, é um bem que me parece

Nunca mais acabar! Ah! quem morar pudesse

Não numa casa, mas na frescura dos ramos...

 

Bom dia

Muito bom dia. Vejo-a incomparável

Com seus ares radiosos de Madona;

Quer parecer-me que esta nossa zona

Meridional tornou-a bem saudável.

Gosto de ver a cor tão adorável,

Essa onda de sol que funciona

No rosto mais grácil de quem é dona

Como a senhora, dum olhar amável.

Lindos campos em fora sei que habita,

No ninho dum chalé por entre flores,

Cheio de graça lírica, infinita.

Pois muito bem. Saúdo-a com ardores!

E agora que já está forte e bonita,

Diga-me lá, como se vai de amores?

 

Frutas e flores

(Presente de festa)

Laranjas e morangos — quanto às frutas,

Quanto às flores, porém, ah! quanto às flores,

Trago-te dálias rubras, d'essas cores

Das brilhantes auroras impolutas.

Venho de ouvir as misteriosas lutas

Do mar chorando lágrimas de amores;

Isto é, venho de estar entre os verdores

De um sítio cheio de asperezas brutas,

Mas onde as almas — pássaros que voam —

Vivem sorrindo às músicas que ecoam

Dos campos livres na rural pobreza.

Trago-te frutas, flores, só apenas,

Porque não pude, irmã das açucenas,

Trazer-te o mar e toda a natureza!

1887

 

A piedade

Ah! Mal de ti, ó Deus das Escrituras,

Se do Calvário no sinistro drama

Não houvesse sentido aquela chama

De amor que se alastrou nas almas puras.

Não! Não te fora o cálix de armaguras

Tão doloroso, tão cruel se o trama

Urdido por Judá contra quem ama

Não existisse de entre as criaturas.

Sim! inda temos um Judá – ainda

Quem ama o bem, a luz, a crença linda,

Sofre contigo, em prol da humanidade.

Ficaste, é certo, inanimado e exangue,

Morreste Deus – mas do teu belo sangue

Nasceu a branca flor da piedade.

1887

 

As ondas

Ação e reação, as ondas representam,

No movimento insano, divergente

Ação e reação da vida consciente,

No sistema das lutas que sustentam.

Elementos contrários que se enfrentam,

Que se propulsam muito heroicamente;

Embate singular e transcendente

De ideias, de paixões que em nós rebentam.

Ondas do mar, ondas prodigiosas

Às quais em francas vibrações nervosas

Os pensamentos descem como as sondas.

Ondas azuis e verdes e cor de ouro,

Sois para mim como um fetiche mouro.

Por isso eu tiro o meu chapéu às ondas.

 

O cão do fidalgo

Quando eu o vejo no salão radioso,

Cabeça aberta, sacudindo os guisos,

Deitado às vezes nos tapetes lisos,

Como um paxá no harém voluptuoso;

Todo embebido no luar de um gozo

Que vem de azuis e estranhos paraísos,

Como que um brilho especial de risos

Doces, leais, no olhar vitorioso;

Lembro essa triste humanidade, aquela

Que dentro em si traz uivo de procela

Com rugidoras fúrias de trovão.

Pasmo e me assombro da ironia ardente

Porque bem sei que existe muita gente

Menos feliz até do que esse cão.

1887

 

Mães

Mães! Sim, as mães são somente aquelas

Que atravessam da vida o mar chorando,

Que vão desamparadas caminhando

Pelo triste calvário das procelas.

Mães! sejam tranquilas, sejam elas

As mães do amor universal e brando,

Tenham o sentimento venerando

Da fé, da crença, celestiais e belas;

Desfraldem elas como um estandarte,

Aqui, ali, além, por toda a parte,

A esperança vital, com todo o brilho;

Que as mães serão as mães da heroicidade

E hão de provar a toda a humanidade

Que só as mães tornam herói um filho!

1888

 

Libertas

Ao insigne dramaturgo e notável publicista Arthur Rocha

Em face da história, em face do direito,

Em face deste séc’lo que banha-se de luz,

Eu venho, recordando-vos o prólogo da cruz

Trazer-vos a odisseia qu’irrompe-me do peito.

É feita de sorrisos, de prantos de crianças,

De cânticos de amor, de brandas alvoradas,

De cousas alvo-azuis, de nuvens iriadas,

De pérolas de luz, de rubras esperanças.

É feita de perfumes e brandos magnetismos,

De raios de luar e cândidos lirismos,

De auroras, de harmonias, de sol e de poder!

É feita de justiça, virtude e consciência,

De sãs convicções na máxima eminência:

Chama-se liberdade e é filha do dever!

In: Artista (Rio Grande do Sul) e datado: “Rio Grande, 2 de junho de 83”.

 

Águia do ideal

A Julieta dos Santos

A arte!?... a arte?!... O sentimento, a estética,

Todo o conjunto de paixões estoicas,

— Sérias paixões – originais, heroicas

E acentuadas pela luz elétrica;

Esse vigor alevantado e novo,

Forma o brasão de quem trabalha e gera

No seu talento em claro sol que impera...

— Sol triunfante que deslumbra o povo!

E tu que és, excepcional criança,

D’um porvir belo a delicada esp’rança,

A estrela d’alva de arrebóis cingida;

Do palco, em meio, a genial coorte,

Segues na vida sem pensar na Morte...

Foges da morte... procurando a Vida!...

Cambiantes

In: Julieta dos Santos

(Typ. Industrial, 80p. Pernambuco, 1884.)

 

Campesinas

 

Ao ar livre

A Virgílio Várzea

Tu trazes agora o peito

Como essas urnas sagradas,

Repleto de gargalhadas,

Sonoro, bom, satisfeito.

Por dentro cantam assombros

E causas esplendorosas

Como latadas de rosas

Dos muros entre os escombros.

Quando o ideal nos alaga,

Embora as lutas do mundo,

Levanta-se um sol fecundo

Do peito em cada uma chaga.

Voltou-se a seiva de outrora,

De outro, mais forte e destro,

Iluminado maestro,

Das harmonias da aurora.

Fulgurem por isso as musas,

As belas musas, por isso...

Voltou-te o passado viço,

Foram-se as mágoas, confusas.

Agora, quando eu dirijo

Meus passos, à tua porta,

Sinto-te um bem que conforta,

Vejo-te alegre e mais rijo.

Porque afinal pela vida

Nem tudo se desmorona

Quando se vaga na zona

Da mocidade florida.

Gostas de ver pelos ramos

Das verdes árvores novas,

A chocalhar umas trovas,

Coleiros e gaturamos.

Já podes bem comer frutas,

Os teus simpáticos jambos,

E ouvir alguns ditirambos

Da natureza nas grutas.

Podes olhar as esferas,

Com ar direito e seguro,

De frente para o futuro,

De lado para as quimeras.

Não tenhas cofres avaros

De santos — na luz te afoga,

E a alma arremessa e joga

Por esses páramos claros.

Reúne os sonhos dispersos

Como andorinhas vivaces

E o colorido das faces

Ao coberto dos versos.

Como uns lábaros vermelhos,

Contente como os lilases,

As crenças dos bons rapazes

Tem prismas como os espelhos.

 

Nos campos

Por entre campos de seara loura

De alegre sol puríssimo batidos,

Passam carros chiantes de lavoura

E raparigas sãs, de coloridos

Que a luz solar que as ilumina e doura

Lembram pomares e jardins floridos,

Por entre campos de seara loura.

A Natureza inteira reverdece

Pelos montes e vales e colinas;

E o luar que freme, anseia e resplandece,

Movido por aragens vespertinas,

Parece a alma dos tempos que floresce...

Enquanto que por prados e campinas

A Natureza inteira reverdece.

A paz das coisas desce sobre tudo!

E no verde sereno d’espessuras,

No doce e meigo e cândido veludo,

Tremem cintilações como armaduras

Ou como o aço brunido dum escudo;

Enquanto que das límpidas alturas

A paz das coisas desce sobre tudo!

A casa, a rude tenda construída,

Onde habitam as mães e as crianças

Promiscuamente, nessa mesma vida

De perfume lirial das esperanças,

Como é feliz, dos astros aquecida!

Aquecida do Amor nas asas mansas

A casa, a rude tenda construída.

As bocas impolutas e cheirosas

Das raparigas, pródigas belezas

De finos lábios púrpuros de rosas,

Abrem, cheias de angélicas purezas,

As cristalinas fontes murmurosas

De risos, refrescando em correntezas

As bocas impolutas e cheirosas.

Da vida aurora rica do seu sangue

Flameja a carne em báquicas vertigens!

E quem tiver uma epiderme exangue

Para ficar com essas faces virgens,

Para não ser mais pálida nem langue,

Tem de beber das cálidas origens

Da viva aurora rica do seu sangue.

Lindas ceifeiras percorrendo searas

Nos campos, ó bizarras raparigas,

Pelas manhãs e pelas tardes claras

Vós desfolhais sorrisos e cantigas

Que deixam ver as pérolas mais raras

Dos dentes brancos, frescos como estrigas...

Lindas ceifeiras percorrendo searas!

 

A borboleta azul

No alegre sol de então

De uma manhã de amor,

A borboleta solta no fulgor

Da luz, lembrava um leve coração.

Ia e vinha e a voar

Gentil e trêfega, azul,

Sonoramente a percorrer pelo ar,

Como um silfo tenuíssimo e taful.

Sobre os frescos rosais

Pousava débil, sutil,

Doirando tudo de um risonho abril

Feito de beijos e de madrigais.

Que doce embriaguez

O voo assim seguir

Da borboleta azul, correndo, a vir

Do espaço pela Etérea candidez!

Fazendo, tal e qual,

O mesmo giro assim,

O mesmo voo límpido, sem fim,

Nos mundos virgens de qualquer ideal.

Ir como ela também

Em busca das loucas

E tropicais e fulgidas manhãs

Cheias de colibris e sol, além...

Ir com ela na luz

De mundos através,

Sem abrolhos nas mãos, cardos nos pés,

Ó alma, minha, que alegria a flux!...

No alegre sol de então

De uma manhã de amor

A borboleta solta no fulgor

Da luz, lembrava um leve coração.

 

Renascimento

Canta ao sol, como as cigarras

A tua nova alegria.

No Azul ressoam fanfarra

Da grande vida sadia.

Alerta, um clarim de alerta

Àquela antiga saúde:

— À clara janela aberta

Para o mar salgado e rude.

Que volte, ruidosa, agora,

Como um pássaro marinho,

A tua saúde, a aurora

Do teu sangue, estranho vinho.

E como espiga madura

Floresce outra vez a vida,

Resplandece à formosura,

Ó torre de ouro florida!

Quero-te em rosas festivas

A polpa das carnes brancas.

E rindo-te às forças vivas

Com rubras risadas francas.

Formosa, soberba e nua,

Nesse olhar que tudo abrange,

Na fronte um diadema, em lua

Num talhe curvo de alfanje;

Vem! o sol é teu amante!

Ah! vem mergulhar nos braços

Do flavo sultão radiante

Do harém azul dos espaços.

 

Abelhas

Gotas de luz e perfume,

Leves, tênues, delicadas,

Acesas no doce lume

De purpúreas alvoradas.

Pingos de ouro cristalinos

Alados na esfera, ondeando,

Dispersos por entre os hinos,

Da natureza vibrando.

Sorrisos aéreos, soltos,

Flavas asas radiantes,

Que levam consigo envoltos

Da aurora os sóis fecundantes.

Da aurora que a primavera

Faz cantar, brota no peito

E floresce em folhas de hera

O coração satisfeito.

Essa aurora produtiva

Do amor soberano e eterno,

Que é nas almas força viva

E nas abelhas falerno.

Nas doudejantes abelhas

Que dentre flores volitam

E do sol entre as centelhas

Resplendem, fulgem, palpitam.

Zumbem, fervem nas colmeias

E rumorejam no enxame

Pelas flóridas aleias

Onde um prado se derrame.

Assim mesmo pequeninas

E quase invisíveis, quase,

Com as suas asitas finas,

De etérea de fluida gaze.

Ah! quanto são adoráveis

Os favos que elas fabricam!

Com que graças inefáveis

Se geram, se multiplicam.

Nos afãs industriosos

Que enlevo, que encanto vê-las

Com seus corpos luminosos

D'iriante brilho d'estrelas.

E nas ondas murmurosas

Dos peregrinos adejos

Vão dar ao lábio das rosas

O mel doirado dos beijos.

 

Besouros...

Marche, marche, marche a verve!

Bandeiras, clarins, tambores,

Marchar!

À poncheira ideal, que ferve,

Sons, aromas, chamas, cores!

Cantar!

Que este diabo vem, saudoso,

Das profundezas do arcano,

Viver!

O vinho maravilhoso

Da forma raro e renano,

Beber!

Vem beber o vinho iriado,

O Falerno, claro e quente,

Haurir!

Num paladar requintado,

Todo inflamado e fremente

Sentir!

Que o sangue da verve vibre

Raja, raja, raja, raja,

Taful!

E a alma do sol se equilibre

Para que mais sonhos haja

No azul!...

Mas este diabo tão fino,

Que de tudo dá o acorde

Genial!

Este caproide genuíno,

Verde, verde, morde, morde,

Fatal.

 

Papoula

A Oscar Rosas

Assim loura és mais formosa

Do que se fosses trigueira:

Corpo de eflúvios de rosa

Com esbeltez de palmeira.

Vestida de cor da aurora

Leve dos fluidos da graça,

És uma estrela sonora

Que, em sonhos, pelo éter passe.

Resplandece em teu cabelo

Um fulgor de sol dourado,

Que só de senti-lo e vê-lo

Fica tudo iluminado.

Do teu branco leque aberto

Que lembra uma asa de garça,

Aspiro um perfume incerto,

Talvez a tua alma esparsa.

Num resplendor de madona

E altivez de corça arisca

Surges da luz entre a zona

Com quebrantos de odalisca.

Que venha o duque normando

De castelos escoceses

Com seu ar bizarro e brando

Amar-te os olhos ingleses.

E entre aromas e frescores

E revoadas de abelhas,

Como num campo de flores

Que esse olhar vibre centelhas.

Que cantem na tua boca

As alegrias radiadas,

Numa ideal rajada louca

De voos de passaradas.

Que como os astros no espaço,

Teu encanto resplandeça...

Com pelúcias no regaço

E asas de ave na cabeça.

E que os teus dois seios puros

Que o amor fecundando beija

Fiquem cheios e maduros

Com dois bicos de cereja.

Campesinas

I

Camponesa, camponesa,

Ah! quem contigo vivesse

Dia e noite e amanhecesse

Ao sol da tua beleza.

Quem livre, na natureza,

Pelos campos se perdesse

E apenas em ti só cresse

E em nada mais, camponesa.

Quem contigo andasse à toa

Nas margens duma lagoa,

Por vergéis e por desertos,

Beijando-te o corpo airoso,

Tão fresco e tão perfumoso,

Cheirando a figos abertos.

II

De cabelos desmanchados,

Tu, teus olhos luminosos

Recordam-me uns saborosos

E raros frutos de prados.

Assim negros e quebrados,

Profundos, grandes, formosos,

Contêm fluidos vaporosos

São como campos mondados.

Quando soltas os cabelos

Repletos de pesadelos

E de perfumes de ervagens;

Teus olhos, flor das violetas,

Lembram certas uvas pretas

Metidas entre folhagens.

III

As papoulas da saúde

Trouxeram-te um ar mais novo,

Ó bela filha do povo,

Rosa aberta de virtude.

Do campo viçoso e rude

Regressas, como um renovo,

E eu ao ver-te, os olhos movo

De um modo que nunca pude.

Bravo ao campo e bravo a seara

Que deram-te à pele clara

São rubores de alvorada.

Que esses teus beijos agora

Tenham sabores de amora

E de romã estalada.

IV

Através das romãzeiras

E dos pomares floridos

Ouvem-se as vezes ruídos

E bater d’asas ligeiras.

São as aves forasteiras

Que dos seus ninhos queridos

Vêm dar ali os gemidos

Das ilusões passageiras.

Vêm sonhar leves quimeras,

Idílios de primaveras,

Contar os risos e os males.

Vêm chorar um seio de ave

Perdida pela suave

Carícia verde dos vales.

V

De manhã tu vais ao gado

A cantar entre as giestas,

Com tuas graças modestas,

Correndo e saltando o prado.

E a veiga e o rio e o valado

Que todos dormem as sestas

Acordam-se ante as honestas

Canções desse peito amado.

As aves nos ares gozam,

Entre abraços se desposam,

No mais amoroso enlace.

E as abelhas matutinas

Que regressam das boninas

Voam-te em torno da face.

VI

As uvas pretas em— cachos

Dão agora nas latadas...

Que lindo tom de alvoradas

Na vinha, junto aos riachos.

Este ano arados e sachos

Deixaram terras lavradas,

À espera das inflamadas

Ondas do sol, como fachos.

Veio o sol e fecundou-as,

Deu-lhes vigor, enseivou-as,

Tornou-as férteis de amor.

Eis que as vinhas rebentaram

E as uvas amaduraram,

Sanguíneas, com sol na cor.

VII

Engrinaldada de rosas,

Surge a manhã pitoresca...

Que linda aquarela fresca

Nas veigas deliciosas!

Que bom gosto e perfumosas

Frutas traz, madrigalesca

A rapariga tudesca

Que vem das searas cheirosas!

Como os rios vão cantando,

Em sons de prata, ondulando,

Abaixo pelos marnéis!

Que carícia nas verduras,

Que vigor pelas culturas,

Que de ouro pelos vergéis!

VIII

Orgulho das raparigas,

Encanto ideal dos rapazes,

Acendes crenças vivazes

Com tuas belas cantigas.

No louro ondear das espigas,

Boca cheirosa a lilases,

Carne em polpa de ananases

Lembras baladas antigas.

Tens uns tons enevoados

De castelos apagados

Nas eras medievais.

Falta-te o pajem na ameia

Dedilhando, a lua cheia,

O bandolim dos seus ais!

IX

 

No campo santo

Morreste no campo um dia,

Como uma flor desprezada.

Clareava a madrugada,

Azul, vaporosa e fria.

Sobre a agreste serrania,

Numa ermida branqueada

Por uma manhã doirada

Um sino repercutia.

Teu caixão, de camponesas

E camponeses seguido,

Desceu abaixo às devesas.

Ganhou o atalho comprido

De casas em correntezas

E entrou num campo florido.

X

Pelos vales e colinas

Os bandos das pombas voam...

E as latadas das boninas

As rentes cercas coroam.

Entre o rumor das campinas

Os carros de bois ressoam...

E nas névoas matutinas

Já os raios do sol coam.

Que aurora flor das auroras!

Nas frescas águas sonoras

Boiam ilhas de verdura.

E na fita dos caminhos

Onde trinam passarinhos

Vens vindo a rir, formosa.

XI

Fostes à fonte buscar água

E tinha secado a fonte...

Pobre flor do monte

Tiveste a primeira mágoa.

Porém se uma alma na frágua

Das dores, sem horizonte,

Queres ver, sentir defronte

Dos olhos, manda, que eu trago-a.

Vou t’a levar à presença

Para que vejas a imensa

Mágoa atroz que a devorou.

E saibas, o sol das flores,

Que a fonte dos seus amores

Eternamente secou.

XII

A pomba o voo descerra

Para além dos infinitos,

Deixando todos os ritos

Das religiões cá da terra.

Ganha o mar e ganha a serra

Em busca de novos mitos

Desses bíblicos Egitos

Da Fé, que vagueia e que erra...

Quem tem sede de carinhos

Faz como pomba, procura

Corações que sejam ninhos.

Vai em busca da ventura,

Da paz dispersa em caminhos

Que vão dar à sepultura.

XIII

Fui aos morangos do prado

E nunca os vi tão formosos...

Que perfume delicado,

Que cores, que tons preciosos.

Cor de sangue atravessado

De acesos sóis radiosos

Num rubro ocaso doirado,

Por horizontes calmosos;

Através da luz da aurora

Vivaz e fresca e sonora,

Num resplendor nunca visto;

Pareceram-me umas gotas

De sangue das carnes rotas

Das mãos e dos pés de Cristo.

XIV

Os olhos das adoradas

São como os campos festivos

Cheios dos brilhos mais vivos

Das alegres madrugadas.

Como as frescas alvoradas

Há pelos campos estivos

Lindos cantos expressivos

De camponesas medradas;

Nos olhos das que adoramos

Há aves cantando e ramos

Noivados do nosso amor.

Perspectivas radiantes

Só vistas pelos amantes

De almas abertas em flor!

XV

De manhã cedo os rebanhos

Saltam, galgam montanhosos

Alcantis esplendorosos,

Cheios de brilhos estranhos.

E quando após os amanhos

Dos terrenos vigorosos

Os lavradores sequiosos

Regressam de afãs tamanhos;

Quando o sol no ocaso em chamas

Veste as árvores de lhamas

E luminosos veludos;

Entre as trêmulas guitarras

Das nostálgicas cigarras

Quedam-se os gados lanzudos.

XVI

São tantas as sementeiras

Como as estrelas são tantas...

Ah! que virgens bebedeiras

Vêm dos aromas das plantas.

Nas terras alvissareiras

De novas colheitas santas,

Que brotos de trepadeiras,

Que vinhas quantas e quantas.

Como a seiva e o viço estoura

Pelos campos da lavoura,

Num frenesi de novilho...

Só tu, infecunda e triste,

De gelo, nunca sentiste

Os vivos germens de um filho!

XVII

Por estas manhãs sonoras

Em tudo a luz vibra e salta

E arroios, várzeas esmalta

De deslumbrantes auroras.

São mais alegres as horas,

Nem o humor às almas falta

E de uma força mais alta

Fecundam-se as virgens floras.

Os aspectos da verdura

Recebem formas serenas

D’encantos e de frescura.

Ah! que ruflados de penas

Na luz que canta na altura,

Nas folhagens de açucenas!

1889

 

Na vila

Nos ervaçais vibrou o sol agora,

Nas fitas verdes dos canaviais...

Como rompesse loura e fresca a aurora

Agora o sol vibrou nos ervaçais.

Murmurejam de alegres os caminhos

Que até parecem, límpidos, cantar

Na música melódica dos ninhos

Que vai nos ares se cristalizar.

Floresce tudo, em toda parte flores

Neste maio feliz, e tão feliz

Que as plantas exuberam de vigores

Desde a profunda, pródiga raiz.

Noivam as aves junto dos riachos

No seu alado alvorecer de amor;

E o coqueiral, com os amarelos cachos,

Pompeia de riquíssimo verdor.

Fluem na sombra meigas fontes claras

Sob o frondente e vasto laranjal

E para além magníficas searas

Se estendem como um leito virginal.

Na serena paz vegetativa

Faz docemente tudo adormecer

Mas num sono de luz doirada e viva,

Quase a dormência de quem vai morrer...

Ah! que o silêncio, a solidão dos ermos,

Das agrestes paragens do sertão

Se dão saúdes a espíritos enfermos

Também supremas nostalgias dão!

A volúpia letal do meio-dia,

Nas horas encalmadas, sob a luz,

Dá duma campa a atroz melancolia

Assinalada numa simples cruz.

Depois o campo na mudez da vila,

Aquela eterna e soberana paz

Da imensa vastidão sempre tranquila

Como que punge e que entristece mais!

 

Os risonhos

Pastores e camponesas

De rudes almas esquivas

Passam entre as candidezas

Das estrelas fugitivas.

Parece que nada os punge,

Nada os punge e sobressalta.

A lua que os campos unge

No firmamento vai alta.

E eles passam sob a lua,

De queixas desafogados,

A cabeça livre e nua,

Na florescência dos prados.

Seres meigos e singelos,

Mulheres de lindo rosto,

Lábios cálidos e belos,

Do quente sabor do mosto.

Pastores de tez morena,

Queimados ao sol adusto:

Claridade bem serena

No fundo do olhar bem justo.

Neles tudo é riso e festa,

Neles tudo é festa e riso,

Frescuras brandas de giesta

E graças de Paraíso.

Simples, toscas e felizes,

Sem ter um laivo de mágoa:

Almas das verdes raízes,

Limpidez de gota d'água.

Neles tudo é paz de aldeia

E ri com os risos mais frescos...

O céu inteiro gorjeia

Idílios madrigalescos.

Seduzido por miragens

Caminha o bando risonho

Dessas virentes paragens,

Levado na asa de um sonho.

Nele tudo ri sem ânsia

E com doçura secreta;

E como uma nova infância

Cantantemente irrequieta.

Encantos de mocidade,

Saúde, fulgor, vigores,

Dão-lhe a doce suavidade

Maravilhosa das flores.

Os corações, florescentes,

Vão nesses peitos cantando

E rindo em festins ardentes

E dentre os risos sonhando.

Ri na boca, ri nos olhos,

Nas faces o bando, rindo

O bom riso sem abrolhos,

Que lembra um campo florindo.

Rindo em sonoras risadas,

Rindo em frêmitos vivazes,

Rindo em risos de alvoradas,

Rindo em risos de lilases.

Os campos entontecidos

Nos vinhos da lua clara

Ficam bizarros, garridos,

De vitalidade rara.

As águas claras das fontes

Vibram lânguidas sonatas

E as nuvens vestem os montes

Das visões mais timoratas.

Na copa dos arvoredos,

Nas orvalhadas verduras

Há sonâmbulos segredos

E murmuradas ternuras.

E o bando festivo passa

Rindo, alegre, casto e suave,

Iluminado de graça,

Mais leve que um voo de ave.

Podeis rir, almas ditosas,

Almas novas como frutos

De vinhas miraculosas

De pomares impolutos.

Podeis rir, almas eleitas

Que os anjos percebem tanto

Lá das esferas perfeitas

Nas harmonias do Encanto.

Almas brancas, Páscoas leves,

Alvos pães de áureos altares,

De mais candidez que as neves

E a madrugada nos mares.

Almas sem sombras ferozes

Nem espasmos delirantes.

Eco das bíblicas vozes,

Caminhos reverdejantes.

O vosso riso é bendito,

Os vossos sonhos são castos,

O estrelamento infinito

De mundos claros e vastos.

Podeis rir, peitos ufanos,

Belas almas feiticeiras,

Vós tendes nos risos lhanos

O trigo das vossas eiras.

A vossa vida é planície,

Não tem declives funestos:

Sois torres que a superfície

Assenta nos dons modestos.

A vossa vida é bem rasa,

Preso à terra o vosso esforço;

Nem mesmo um frêmito de asa

Vos faz agitar o dorso...

Sois como plantas vencidas

Conquistadas pela terra,

Dando à terra muitas vidas

E tudo que a Vida encerra.

É do vosso sangue moço

Que na terra se derrama,

Que sobe o rubro alvoroço

De ocasos de sóis em chama.

Manchas, ao certo, não tendes

E nem trágico flagício,

Almas isentas de duendes,

Lavadas no Sacrifício.

Das pedras, nos vossos ombros,

A rigidez não carrega.

Em jardins tornam-se escombros

E em luz a crença que é cega.

Desses perfis adoráveis,

Na curva casta dos flancos

Brotam viços inefáveis

Dos florescimentos brancos.

Podeis rir! ó benfazeja

Bondade de nobre essência,

Deus vos chama e vos deseja

Na estrelada florescência.

Um anjo vos acompanha

Nessa estrada matutina

E convosco a ideal montanha

Sobe da graça divina.

O flagelo deste mundo,

Nesses corações não pesa.

Enquanto o Horror vai profundo

Vossa alma tranquila reza.

Contritos e de mãos postas,

Humildemente de joelhos,

O Demônio, pelas costas,

Não vem vos dar maus conselhos.

Vós sois as sagradas reses

Votadas ao azul Sacrário.

Deus vos olha muitas vezes

Com o seu olhar visionário.

Mas quando, como as estrelas,

Adormecerdes um dia,

Voando mais perto a vê-las

Na Paragem fugidia.

Quando na excelsa Bonança

Afinal adormecerdes,

Nos olhos toda a esperança

Levando dos prados verdes.

Quando lá fordes, subindo

Para as límpidas Alturas,

Profundamente dormindo,

Em busca das almas puras.

Praza aos céus que nos caminhos

Da eterna Glória, das palmas,

Mais brancas que os claros linhos

Possais encontrar as almas!

 

Dispersas

 

Away!

A meu distinto amigo e talentoso jovem José Arthur Boiteux

O livro, esse audaz guerreiro,

Que conquista o mundo inteiro,

Sem nunca ter Waterloo!...

                                                                 (Castro Alves)

Avante, sempre nessa luz serena,

Empunha a pena, sem temor, com fé!...

Eleva as turbas as ideias d’ouro,

Que um tesouro tua fronte é!...

Eia, caminha nessa senda nobre

Na pátria pobre, no teu berço aqui!...

Prossegue altivo, sem parar, constante,

Faz-te gigante, diz depois: Venci!...

Ala-te à glória num voar titânio,

Burila o crânio de fulgor sem fim!...

E entre o livro d’imortais perfumes

Calca os ciúmes d’imbecil Caim!

Imita os grandes, incansáveis vultos

Que lá sepultos no pó negro estão!...

Anda, romeiro dos vergéis divinos,

Mergulha em hinos a gentil razão!

Estás na quadra radiante e linda,

É cedo ainda para enfim descrer!

És jovem... pensas... és portanto um bravo

Ser ignavo... é sucumbir... morrer!

Vamos, caminha, mesmo embora exangue

Da fronte o sangue vá rolar-te aos pés!

Agita a alma qual febris as vagas,

Que dessas chagas brotarão lauréis!

Além do livro, colossal, enorme,

Que nunca dorme perscrutando os céus!.

Acima dele supernal, potente

Está somente, tão-somente Deus!

Vai! ... vai rasgando, percorrendo os ares,

Novos palmares, meu gentil condor!

Depois de teres pedestal seguro

Lá do futuro te erguerás senhor!...

Qual Ney ousado que, ao vibrar da lança,

Nutre esperança de ganhar, vencer,

Assim co’a ideia vai lutar, trabalha,

Vence a batalha do dinal saber.

Eia que sempre na brasílea história

De alta glória colherás o jus!...

O livro augusto do porvir descerra,

Sê desta terra precursor da luz!!!

 

Poesia

 C'est la musique la poésie de l’âme;

 et la gloire est Dieu, ce sont les

 deux choses les plus charmantes, les

 plus belles, les plus grandes de la vie!

(Do Autor)

Da música escutando preclaras harmonias

Vendo em cada lábio brilhar ledo sorriso

Vendo luz e flores e tanto entusiasmo

Julguei-me transportado ao célico Paraíso!

Foi sonho na verdade — mas hoje realizado

Vos dá, distintos sócios, venturas mais de mil,

A vós que à frente tendo Penedo, grande, forte,

Subis, alistridente, qual ave mais gazil!

E quando executais as vossas belas peças

As notas quais gemidos vagam n’amplidão

Parece que o infinito derrama sobre vós

Centelhas sublimadas só d’inspiração!

Da arte de Mozart vós sois grandes romeiros

Lutais como nas vagas o triste palinuro,

Os olhos tendes fitos na glória que dá brilho

No livro tricolor e ovante do futuro!

Hoje que os sorrisos assomam em vossos lábios

Que da “Guarani” alçais áureo pendão,

Eu humilde e fraco — com flores inodoras

Somente aqui vos venho fazer uma ovação!

Quando há só coragem, força, intrepidez

Quando se alimenta no peito divo ardor,

O homem não recua, caminha p’ro progresso

Co’a fronte sempre erguida, sem ter menor temor,

Sem ter algum trabalho jamais s’alcança trono

Sem ter valor e força jamais se tem lauréis

P’ra vossa grande glória, além do grã futuro

Deus já tem eretos milhares de docéis!

Mas dentre vós vulto sereno se destaca

Qual Rodes portentoso, imenso, verdadeiro

Que nunca recuou sequer um só momento

Que sempre em trabalhar foi pronto companheiro!

É este vosso sócio, digno diretor

Que forte não pensou jamais em recuar!

É José Gonçalves — águia valorosa

A quem, altivamente, eu ouso aqui louvar!

Vencendo mil tropeços, altiva os derribando

A bela “Guarani” se mostra triunfante

Foi como esses heróis — na mão sustenta o gládio

— O gládio da vitória serena e radiante!

Portanto erguei ridente a fronte ao infinito!

Erguei ó grandes bravos a fronte toda luz!

Eis, a senda é bela, sublime, é grandiosa

Avante pois ness’arte, avante, avante, sus!

E agora concluindo palavras pobrezinhas

Que eu pronunciar humilde vim aqui,

Saúdo fervoroso — do imo de minh’alma

A essa tão gentil, simpática “Guarani”!

 

Saudação

(Desterro, 14 nov. 1880)

Qual o que não exulta ao ler uma epopeia!

Qual o que a ver dor não lhe estremece o crânio,

Em confusões cruéis?! Qual o que tem fresca, sublime, pronta a ideia,

E do altar da caridade no supedâneo,

Não deixa alguns lauréis?!

(Do Autor)

Ontem, grande desgraça

Que o povo se abraça

D’Itajaí em geral!

Ontem, o cetro divino

Que se tornando ferino

Tudo esmaga afinal!

Ontem, prantos e dor...

Grandes gritos d'horror...

A fatal confusão!

Ontem, lampas perdidas

De centenas de vidas,

Que nas águas lá vão!

Ontem, negras as vagas,

Os belos céus, essas plagas,

— Onde existe o Senhor!

Ontem, — fatalidade!

A pobrezinha cidade

Toda envolta em negror!

Hoje, oh! Deus sempiterno!

— O teu gládio superno

De bonança a irradir,

Veio ao povo esmagado

Ao tredo peso do fado

Fazer do caos ressurgir!

Hoje, o íris brilhante

Lá nos céus, radiante,

Já se faz divulgar!

E todo o povo prostrado

Te agradece arroubado

Mas ainda a chorar!

E corações caridosos

Farão a dar pressurosos

Os seus globos gentis!

Dai! é doce a esmola!

Ela aos pobres consola,

Torna-os ledos, gazis!

A miséria chorava

Em delírio bradava

Por um pouco de pão!

E eles foram dizendo

— Ide, pois vos mantendo,

Aqui tendes a mão!

E vós — lá no tablado,

O mor rasgo, elevado,

De fazer acabais!

E um rasgo de glória

De brilhante memória

Pros vindouros anais!

Vós fazeis do cenário

Um dinal santuário

Trabalhando p’ra pobres!

Mostrais bem que nas almas

Possuís celsas palmas

De ações muito nobres!

P’ra louvar amadores,

Tantas lutas, labores,

Tanta excelsa virtude!

Ah! me falta uma lira

Que um poema desfira...

Ai! me falta alaúde!

Só Deus pode dar louros

De mil glórias, tesouros,

Como vós mereceis!

Pois que feitos são divos,

Tão imensos, altivos

Só d’heróis ou de reis!

Amadores briosos!

Vós sois tão valorosos

Qual os bravos na guerra!

Sois os nautas valentes

Socorrendo ridentes

Quem cá gema na terra!

Amor, Deus, Caridade

— E a sublime trindade

Radiante de Luz!

Donde vós, amadores,

Lá colheis os fulgores,

De mil graças a flux!

 

A imprensa

(Desterro, 21 nov. 1880)

A Imprensa e brilhante como o meteoro,

sublime como os arrebóis do cerúleo

infinito!

(Do Autor)

A lâmpada gigantesca

Das glórias do porvir,

Turíbulo majestoso

No mundo a irradir,

É a imprensa tesouro

E c'roa de verde louro

A fronte do escritor!

E centelha sublimada

Que vem do céu arrojada

A treva dando fulgor!

— O homem nasceu pequeno

Mas com as letras cresceu

Foi como o vulto de Rodes

Que lá tão alto s’ergueu!

Foi preciso — estudando

Co’a própria ideia lutando

Mergulhar-se na luz!

Foi preciso ter glória,

Brilhante, leda memória,

Colher renomes a flux!

Foi preciso mil lutas

Mil labores insanos

P'ra descobrir nesses mundos

Da diva luz os arcanos!

Foi preciso que um bravo

Não mostrando-se ignavo

Mas inspirado por Deus!

A pedra bruta talhasse

E a luz então derramasse

Qual seiva santa dos Céus!

Foi preciso os séculos

Ainda um pouco nas trevas

Erguessem as frontes bem alto

E devastassem mil selvas!

Foi preciso que o mundo

Sentisse abalo profundo

Ao desvendar— se o saber!

Foi preciso que os entes

Ou se erguessem potentes

Ou tombassem a morrer!

Mas não! — o homem ergueu-se,

Quase, quase com Deus

Tirou a fronte da treva

E só pregou-a nos Céus!

Viu o futuro de louros

E quis colher os tesouros

Que dão renome sem fim!

Sonhou, sonhou co’a vitória

E o gládio teve da glória

Qual o grão Bernardim!

O homem, gênio sublime,

Caminha, com seu bordão

Até achar o brilhante

A luz, a luz da razão!

Tropeça um pouco, se tomba

Ergue-se, voa qual pomba

E indo a luz descobrir,

Busca ouvir no infinito

Do eco ao longe este grito:

Trabalha para o porvir!

Quando os povos modernos,

Sentirem no coração

Uma ardente centelha

Que caia lá d'amplidão!

Deixarão esses vícios,

Insanos, negros, fictícios

Que dão só noite ao viver!

E irão curvados a ela

Depor-lhe verde capela

Farão então por crescer!

Camões, Milton, Abreu,

Já da vida sem lampas,

Erguei-vos crânios altivos

Espedaçai essas campas!

Dizei — se o homem caminha

Se na treva definha

A quem se deve louvar?!...

S’as letras seguem ovantes

Dizei ó nobres gigantes

A quem se ergue alcaçar?!!...

E Guttemberg esse herói,

Essa vergôntea dinal,

Que co'escopro na destra!

Foi das letras fanal!

Ao descobrir a imprensa

Essa epopeia imensa

Para toda a nação,

Com glória ingente sonhava

Na luz por certo nadava

Já tinha os louros na mão!

 

Versos

(Desterro, 9 abr., 1881)

Admirai Carrara, Canova, Rafael, Murillo, Mozart e Verdi e tereis as sublimes, mais que sublimes, as divinas encarnações da arte!

(Do Autor)   

Bravo, prole bendita

Pois à glória infinita

O lutar vos conduz!

É assim — trabalhando

Sempre e sempre estudando

Que se alcança mais luz!

Contemplai estas flores

Estes tantos lavores

Contemplai o painel!

Repetindo orgulhosos

Estes feitos briosos

São dum belo pincel!

Eia, jovens, avante!

Ser artista é brilhante,

Trabalhar é uma lei!

Não são só os c’roados

Que merecem em brados

Ter as honras de rei!

O artista qu'é pobre

É tão rico, é tão nobre

Qual potente césar!

E a glória bem cedo

Lhe murmura o segredo

— És artista — és sem par!

Não temais os pampeiros

Sois gentis brasileiros

Deveis pois progredir!

Quem vos traça na história

Vossa augusta memória

É um deus — O Porvir!

Levantai-vos potentes

Altanados, ingentes

E fazei-vos Criseus!

Só quem pode vergar-vos

E pensar obumbrar-vos

Mais ninguém — é só Deus!

Não fiqueis ignavos

Que o futuro dá bravos

Vos dizendo — estudai!

Sois humanos — portanto

Se há de trevas um manto

Apressai-vos, rasgai!

Nossa pátria querida

Necessita mais vida,

Necessita crescer!

É preciso contudo

Que tenhais como escudo

Quem vos mostra o saber!

E de obreiros altivos,

Que sereis redivivos

Que sereis imortais,

Achareis vossos nomes

Vossos grandes renomes

Nas mansões divinais!

Perdoai-me estas flores

Que tão murchas, sem cores

Nada podem valer!

São ofertas sinceras

Arrancadas deveras

Para vir vos trazer!

Palinuros — à frente

Esse trilho é ridente

Dás-vos honra, louvor!

Quem o braço vos guia

Nunca, nunca entibia —

— É artista... e pintor!

É a vós a quem falo

E se hoje eu não calo

Estas vãs expressões!

É que a louca alegria

Em minh'alma irradia

Com fulgentes clarões!

O trabalho enobrece

Glorifica, engrandece

Aos artistas quais vós!

Que zombando da sorte

Têm a tela por norte

Os pincéis por faróis!

Eia! nessa carreira

Qual a nau sobranceira

Indo o mar a fender!

Quando há negros abrolhos,

Mil cachopos, escolhos

É mais belo o vencer!

Se o lutar é dos grandes

Que são gêmeos dos Andes

Que não sabem tombar!

Colhereis uma glória

Mais suprema memória,

Trabalhando, a lutar!

Deus, o Deus sublimado

Disse ao homem num brado,

Da sidérea mansão!

— Vai depressa arrimar-te

Aos arcanos da arte,

Que terás um bordão!

Onde há braços d’artista

E seu ponto de vista

Decepar escarcéus!

E seu gládio seguro

Vai cavar o futuro

Vai rasgar negros véus!

E lá quando os vindouros

Vos c'roarem de louros

Vos erguerem docel!

Bradarão altaneiros:

— Exultai brasileiros,

Ressurgiu Rafael!

Não temais os insanos,

Insensatos humanos

Bajulantes e maus!

Trabalhai muito embora!

Há de vir uma aurora

P’ra arrancá-los do caos!

....................

Away, estudantes

Sois vergônteas pujantes

A lauréis tendes jus!

Caminhai com coragem,

Qu’esta é a romagem

Dos apóstolos da luz!!!...

Ao decênio de Castro Alves

Quem sempre vence e o porvir!

No espadanar das espumas

Que vão à praia saltar!

Nos ecos das tempestades

Da bela aurora ao raiar,

Um brado enorme, profundo,

Que faz tremer todo o mundo

Se deixa logo sentir!

E como o brado solene,

Ingente, celso, perene,

É como o brado: — Porvir!

Pergunta a onda: — Quem é?...

Responde o brado: — Sou eu!

Eu sou a Fama, que venho

C’roar o vate, o Criseu!

Dormi, meu Deus, por dez anos

E da natura os arcanos

Não posso todos saber!

Mas como ouvisse louvores

De glória, gritos, clamores,

Também vim louros trazer.

Fatalidade! — Desgraça!

Fatalidade, meu Deus!

Passou-se um gênio tão cedo,

Sumiu-se um astro nos céus!

As catadupas d’ideias,

De pensamento epopeias

Rolaram todas no chão!

Saindo a alma pra glória

Bradou pra pátria — vitória!

Já sou de vultos irmão!

Foi Deus que disse: — Poeta,

Vem decantar a meus pés.

Na eternidade há mais luz,

Dão mais valor ao que és.

Se lá na terra tens louros,

Receberás cá tesouros

De muitas glórias até!

Terás a lira adorada

C’o divo plectro afinado

De Dante, Tasso e Garret!

Então na terra sentiu-se

Um grande acorde final!

O belo vate brasílio

Pendeu a fronte imortal!

O negro espaço rasgou-se

E aquele gênio internou-se

Na sempiterna mansão.

A sua fronte brilhava

E o áureo livro apertava

Sereno e ledo na mão...

E o mundo então sobre os eixos

Ouviu-se logo rodar!

É que ele mesmo estremece

A ver um vulto tombar.

É que na queda dos entes

Que são na vida potentes,

Que têm nas veias ardor,

Há cataclismos medonhos

Que só sentimos em sonhos

Mas que nos causam terror!...

E o coração s'estortega

E s'entibia a razão!

No peito o sangue enregela

E logo a história diz: — Não!

Não chore a pátria esse filho,

Se procurou outro trilho

Também mais glórias me deu!

E quando os séculos passarem

Se hão de tristes curvarem

Enquanto alegre só eu?...

Oh! Basta! Basta! Silêncio!

Repousa, vate, nos Céus!

Que muito além dos espaços

Os cantos subam dos teus!

Se nesta vida d'enganos

Não são bastante os humanos

Pra te render ovações!

Perdoa os fracos, ó gênio,

Que pra cantar teu decênio

Somente Elmano ou Camões!

 

Entre a luz e sombra

Ao dia 7 de Setembro

Libertas Lux Dei!!...

Surge enfim o grande astro

Que se chama Liberdade!...

Dos sec'los na imensidade

Eterno perdurará!...

Como as dúlias matutinas

Que reboam nas colinas,

Nas selvas esmeraldinas

Em honra ao celso Tupá!...

Eram só cinéreas nuvens

Os brasíleos horizontes!

Curvadas todas as frontes

Caminhavam no descrer! —

As brisas nem murmuravam...

Os bosques nem soluçavam...

Os peitos nem se arroubavam...

— Estava tudo a morrer!...

De repente, o sol formoso

Vai as nuvens esgarçando.

As almas vão palpitando,

Cintilam magos clarões!...

E o Índio fraco, indolente

Fazendo esforço potente

Dos pulsos quebra a corrente,

Biparte os acres grilhões!...

Por terra tomba gemendo

O vão, atroz servilismo...

Rui a dobrez no abismo...

Eis a verdade de pé!...

Enfim!... exclama o silvedo

Enfim!... lá diz quase a medo

Selvagem, nu Aimoré!...

Assim, brasílea coorte,

Falange excelsa de obreiros,

Soberbos,calmos luzeiros

De nossa gleba gentil,

Quebrai os elos d’escravos

Que vivem tristes, ignavos,

Formando delas uns bravos

— P'ra glória mais do Brasil!...

Lançai a luz nesses crânios

Que vão nas trevas tombando

E ide assim preparando

Uns homens mais p'ro porvir!

Fazei dos pobres aflitos

Sem crenças, lares, proscritos,

Uns entes puros, benditos

Que saibam ver e sentir!...

Do carro azul do progresso

Fazei girar essa mola!

Prendei-os sim, — mas à escola

Matai-os sim, — mas na luz!

E então tereis trabalhado

O negro abismo sondado

E em nossos ombros levado

Ao seu destino essa cruz!!...

Fazei do gládio alavanca

E tudo ireis derribando;

Dormi, co’a pátria sonhando

E tudo a flux se erguerá!

E a funda treva cobarde

Sentindo homérico alarde,

Embora mesmo que tarde

Curvada assim fugirá!...

Enfim!... os vales soluçam

Enfim!... os mares rebramam

Enfim!... os prados exclamam

Já somos livre nação!!...

Quebrou-se a estátua de gesso...

Enfim!... — mas não... estremeço,

Vacilo... caio, emudeço...

Enfim de tudo inda não!!...

 

Sete de setembro

Liberdade! Independência!...

Eis os brados grandiosos

Que quais raios luminosos

Fulguraram lá nos céus!...

Eis a mágica — Odisseia

Que duns lábios rebentando,

Foi o povo transformando,

Foi rompendo os negros véus!...

As colinas, prados, montes,

As florestas seculares

— Os sertões, os próprios mares

Exultaram com fervor!

E os brados retumbaram

Pela lúcida devesa,

Pela virgem natureza

Com homérico clangor!...

Qual artista consumado,

Qual um velho estatuário

Do Brasil no azul sacrário,

Essa data vos traçou,

— O triunfo mais pujante,

A eleita das ideias,

A major das epopeias

— Q'inda igual não se gerou!...

Mas embora, meus senhores

Se festeje a Liberdade,

A gentil Fraternidade

Não raiou de todo, não!...

E a pátria dos Andradas

Dos — Abreu, Gonçalves Dias

Inda vê nuvens sombrias,

Vê no céu fatal bulcão!...

Muito embora Rio Branco,

Esse cérebro profundo

Que passou por entre o mundo,

Do Brasil como um Tupã!...

Muito embora em catadupas

Derramasse o verbo augusto,

Da nação no enorme busto

Inda a mancha existe, há!...

É preciso com esforço,

Colossal, estranho, ingente,

Ir o cancro, de repente

Esmagar que nos corrói!...

É preciso que essa Deusa,

A excelsa Liberdade,

Raie enfim na Imensidade

Mais altiva como sói!...

Sai da larva a borboleta

Com as asas auriazuis

E um disco vai — de luz

A deixar onde passou!

No entanto o grande berço

Das façanhas de Cabrito

Inda espera um novo grito

Como o — Basta — de Waterloo!...

Eu bem sei que Guttemberg

Que esse Fulton primoroso

Faust, Kepler grandioso

Trabalharam té vencer!

Mas embora tropeçassem

Acurando os seus eventos,

Tinham sempre tais portentos

A vontade por poder!...

Eia! sim! — p’ra Liberdade

Irrompei qual verbo eterno,

Como o — Fiat — superno

Pelos ares a rolar!

Eia! sim! — que nossa pátria

Só precisa — mas de bravos...

E em prol desses escravos

Seu dever é trabalhar!!...

Somos filhos dessa gleba

Majestosa aonde o gênio

Como o astro do proscênio

Solta as asas, mui febril!

Dos selvagens Tiaraiús

E dos brônzeos Guaicurus...

Somos filhos do Brasil!...

Esperemos, tudo embora!...

Pois que a sã locomotiva,

Do progresso imagem viva

Não se fez a um sopro vão!.

Aguardemos o momento

Das mais altas epopeias,

Quando o gládio das ideias

Empunhar toda a nação!...

Esperemos mais um pouco

Q’inda há almas brasileiras

Que se lembrarão, sobranceiras,

Que é preciso progredir!...

Inda há peitos valerosos

Que combatem descobertos

Por florestas, por desertos,

Mas c'os olhos no porvir!...

Inda há lúcidas falanges

Lutadores denodados

Que se erguem transportados

Burilando a sã razão!...

Inda há quem se recorde

Do Egrégio Tiradentes

Que do sangue as gotas quentes

Derramou pela nação!!...

Já nas margens do Ipiranga

Patrióticos acentos

Vão alados como os ventos

Pelos páramos azuis!!...

Vamos! Vamos! — eia! exulta,

Jovem pátria dos renomes...

— Vibra a lira, Carlos Gomes!

Bocaiuva, espalha luz!!...

 

Três pensamentos

Nasceste no Brasil — filha d’América,

Tu sabes conservar nas débeis veias

No lúcido pulmão

O sangue efervescente e purpurino

A força de subir ao céu da história.

As lutas da razão!...

Nasceste no Brasil — em meio às plagas

Da grande natureza mais pujante

E cheia de arrebol!...

E sabes obumbrar os astros fulvos

E lanças raios mil por toda a parte,

Soberba como o sol!...

Nasceste no Brasil e o eco ovante

Das glórias sublimadas que tu colhes

Por este céu azul,

Vem férvido, viril e acentuado

Assaz repercutir com mais verdade

Aqui... aqui no sul!...

 

Paranaguadas

Que importa que tu fales

Que importa que tu files

Que importa que não cales,

Que importa que tu fales

Que importa que te rales,

Que importa-me essa bílis

Que importa que tu fales

Que importa que tu files.

[Zat.]

 

Questão Brocardo

— Pife, pufe, pafe, pefe

Pafe, pefe, pife, pufe —

A cacholeta no chefe —

— Pife, pufe, pafe, pefe

Estoure como um tabefe

E o ventre de raiva entufe —

— Pife, pufe, pafe, pefe

Pafe, pefe, pife, pufe!

[Zot.]

 

Sempre

Se é certo que o amor é um bem profundo

Se é certo que o amor é um sol ardente,

Eu hei de amar-te sempre neste mundo

E sempre, sempre, sempre — eternamente.

[Zut.]

 

Beijos

Nesta tebaida infinita

Da vida, na sombra oculto,

Eu gosto de olhar o vulto

De uma criança bonita.

Porque afinal as crianças,

Como eu deslumbro-me ao vê-las,

Cintilam como as estrelas,

Florescem como esperanças.

Dentro de mim se projeta

A luz cambiante dos prismas

E batem asas as cismas

Qual passarada irrequieta.

E batem asas e ruflam,

Pelas artísticas plagas,

As auras que as grandes vagas

Dos fundos mares insuflam.

E digo, ó mães, se uma aurora

Fosse a minh’alma sincera,

Os clarões todos eu dera

A uma criança que chora.

Porque se a luz fortalece

Arbustos e as andorinhas,

Também por certo às criancinhas

Conforta, avigora, aquece.

E eu que aplaudo e que rimo

Tudo isso que a luz se regre,

Na vibração mais alegre

As criancinhas estimo.

Portanto, assim, sem refolhos

Beijando a Olga, beijando

Meus sonhos vão, irradiando,

Se derramar em seus olhos!

 

Questão Brocardo

Triolé fura essa pança

Do Delegado — és um russo,

Revolução n’esta dança...

Triolé fura essa pança,

Fura, fura como a lança

Ou como no boi um chuço;

Triolé fura essa panca

Do Delegado — és um russo.

[Zat.]

 

[Pinto, Pinta]

Pinto, pinta — ponta à ponta

Tanta ponta, Pinto pinta

Que pinta se pinta a pinta

Pinto — pinta — ponta à ponta.

Pinto é ponto mas não ponta

Mas se pinta por um pinto

E já que o Pinto se pinta

Eu pinto-lhe a pinta ao Pinto.

[Zat.]

 

Piruetas

Finou-se um tal inglês

Gastrônomo e patife

Que tanto — de uma vez

Comeu, comeu e esparramou-se em bife;

Que um dia de jejum,

Pela pança rotunda e quixotesca,

Teve um parto... comum,

Um feto original... de carne fresca.

[Zat.]

 

As devotas

I

Enquanto o sino bimbalha,

Bimbalha, bimbalha e tine,

Lançai do olhar a migalha

— Enquanto o sino bimbalha —

À raça que se amortalha

No horror que não se define...

Enquanto o sino bimbalha

Bimbalha, bimbalha e tine.

II

Perto da Igreja a senzala,

O Cristo junto aos escravos

E, pois, deveis visitá-la,

Perto da Igreja, a senzala

E procurar transformá-la

Da luz às palmas, aos bravos!...

Perto da Igreja a senzala,

O Cristo junto aos escravos.

III

E tão-somente por isto

Enquanto o sino bimbalha,

Bem antes de terdes visto

— E tão-somente por isto —

Todo o martírio do Cristo,

O vosso amor que lhes valha,

E tão-somente por isto,

Enquanto o sino bimbalha.

[Zat.]

 

[De claque]

De claque, casaca e luva,

De luva, casaca e claque

Ao rendez-vous da viúva,

De claque, casaca e luva,

Tu vais — arrostas a chuva

No macadam — plaque, plaque...

De claque, casaca e luva,

De luva, casaca e claque.

[Zat.]

 

[Meus esplêndidos]

Meus esplêndidos desejos

Emigram, como beijos,

Pelo azul espaço, em curvas,

Rasgando essas brumas turvas;

Pelo sol das primaveras,

Batendo as asas brancas,

Como, batem, quimeras...

.......................

Voai, andorinhas francas!

[Coriolano Scevola]

 

[Nunca se cala]

Nunca se cala o Callado

E sempre o Callado, fala

Callado que não se cala,

Nunca se cala o Callado,

Callado sem ser calado,

Callado que é tão falado...

Nunca se cala o Callado

E sempre o Callado, fala.

[Zat.]

 

[Estoure como]

Estoure como o champagne

O triolé — pule e salte

E como os gatos arranhe,

Estoure como o champagne

E a cara dos erros lanhe

E como o sol nunca falte...

Estoure como o champagne

O triolé — pule e salte.

[Zot.]

 

[Parece um céu]

Parece um céu estrelado

Esta vida de nós dois

Depois d’aquele passado...

Parece um céu estrelado

Largo, puro, undiflavado

Depois do pesar, depois,

Parece um céu estrelado

Esta vida de nós dois.

[Zut.]

 

[Levantem esta bandeira]

Levantem esta bandeira

Da posição de farrapo;

Da terra azul brasileira

Levantem esta bandeira

Que sente o horror da esterqueira

Da escravidão — negro sapo.

Levantem esta bandeira

Da posição de farrapo.

[Zat.]

 

Olhares

Teus traquinantes olhinhos

Continhas, Ziza, parecem;

Zigzagam sempre, tontinhos

Teus traquinantes olhinhos;

Tão pretos, tão redondinhos

Olhinhos que me embevecem,

Teus traquinantes olhinhos

Continhas, Ziza, parecem.

[A.C.]

 

[Nas explosões]

Nas explosões de bons risos

Os triolés petulantes

Chocalhem, tinam, precisos

Nas explosões de bons risos,

Tilintem como mil guisos

Sonoros, raros, vibrantes

Nas explosões de bons risos,

Os triolés petulantes.

 

[Preso ao trapézio]

Triolé — pega estes zotes

E dá-lhes de baixo acima

Preso ao trapézio da rima

Na mais artística esgrima

D’estouros e piparotes,

Preso, ao trapézio da rima

Triolé — pega estes zotes.

[Zat.]

 

Grito de guerra

Aos senhores que libertam escravos.

Bem! A palavra dentro em vós escrita

Em colossais e rubros caracteres,

É valorosa, pródiga, infinita,

Tem proporções de claros rosicleres.

Como uma chuva olímpica de estrelas

Todas as vidas livres, fulgurosas,

Resplandecendo, — vós tereis de vê-las

Rolar, rolar nas vastidões gloriosas.

Basta do escravo, ao suplicante rogo,

Subindo acima das etéreas gazas,

Do sol da ideia no escaldante fogo,

Queimar, queimar as rutilantes asas.

Queimar nas chamas luminosas, francas

Embora o grito da matéria apague-as;

Porque afinal as consciências brancas

São imponentes como as grandes águias.

Basta na forja, no arsenal da ideia,

Fundir a ideia que mais bela achardes,

Como uma enorme e fulgida Odisseia

Da humanidade aos imortais alardes.

Quem como vós principiou na festa

Da liberdade vitoriosa e grande,

Há de sentir no coração a orquestra

Do amor que como um bom luar se expande.

Vamos! São horas de rasgar das frontes

Os véus sangrentos das fatais desgraças

E encher da luz dos vastos horizontes

Todos os tristes corações das raças...

A mocidade é uma falena de ouro,

Dela é que irrompe o sol do bem mais puro:

Vamos! Erguei vosso ideal tão louro

Para remir o universal futuro...

O pensamento é como o mar — rebenta,

Ferve, combate — herculeamente enorme

E como o mar na maior febre aumenta,

Trabalha, luta com furor — não dorme.

Abri portanto a agigantada leiva,

Quebrando a fundo os espectrais embargos,

Pois que entrareis, numa explosão de seiva,

Muito melhor nos panteões mais largos.

Vão desfilando como azuis coortes

De aves alegres nas esferas calmas,

Na atmosfera espiritual dos fortes,

Os aguerridos batalhões das almas.

Quem vai da sombra para a luz partindo

Quanta amargura foi talvez deixando

Pelas estradas da existência — rindo

Fora — mas dentro, que ilusões chorando.

Da treva o escuro e aprofundado abismo

Enchei, fartai de essenciais auroras,

E o americano e fértil organismo

De retumbantes vibrações sonoras.

Fecundos germens racionais produzam

Nessas cabeças, claridões de maios...

Cruzem-se em vós — como também se cruzam

Raios e raios na amplidão dos raios.

Os britadores sociais e rudes

Da luz vital às bélicas trombetas,

Hão de formar de todas as virtudes

As seculares, brônzeas picaretas.

Para que o mal nos antros se contorça

Ante o pensar que o sangue vos abala,

Para subir — é necessário — é força

Descer primeiro a noite da senzala.

 

[Da lua aos raios]

Da Lua aos raios prateados

Que no horizonte se espargem,

Como fulguram os prados

Da lua aos raios prateados,

Há vagos silfos alados

Do rio azul pela margem

Da lua aos raios prateados

Que no horizonte se espargem.

[Zat.]

 

[Teus belos olhos]

Teus olhos belos por dentro

De grandes colorações,

Parecem ter pelo centro

Teus olhos belos por dentro

A luz vital onde eu entro

E saio imerso em clarões...

Teus olhos belos, por dentro

De grandes colorações.

[Zot.]

 

Adalziza

Tens um olhar cintilante,

Tens uma voz dulçurosa,

Tens um pisar fascinante,

Tens um olhar cintilante

Cheio de raios, faiscante

Ó criatura formosa,

Tens um olhar cintilante,

Tens uma voz dulçurosa!...

 

[Teus olhos]

Teus olhos — esses carinhos,

Esse casal de ilusões

Tão doces como os arminhos,

Teus olhos — esses carinhos

Parecem ser os dois ninhos

Das minhas consolações,

Teus olhos — esses carinhos

Esse casal de ilusões!...

[Cruz]

 

Ser pássaro

Ah! Ser pássaro! ter toda a amplidão dos ares

Para as asas abrir, ruflantes e nervosas,

Dos parques através e dos moitais de rosas,

Nos floridos jardins, nas hortas e pomares.

Ser pássaro, cantar, subir, voar na altura,

Pelos bosques sem fim, perder-se nas florestas,

Das folhagens do campo em meio da espessura,

Das auroras de abril nas cristalinas festas.

Tecer no tronco seco ou no tronco viçoso

O quente lar do amor, o carinhoso ninho,

De onde sairá mais tarde o pipilar mavioso

De um outro mais gentil e meigo passarinho.

Não temer o verão e não temer o inverno

Para tudo alcançar na leve subsistência,

No contínuo lidar, no labutar eterno,

Que é talvez da alegria a mais feliz essência.

Viver, enfim, de luz e aromas delicados

Nascido dentre a luz, gerado dentre aromas,

Sonorizando o azul, sonorizando os prados

E dormindo da flor sob as cheirosas comas.

Voar, voar, voar, voar eternamente,

Extinguir-se a voar, no matinal gorjeio,

E ser pássaro, é ter em cada asa fremente

Um sol para aquecer o frio de algum seio.

 

O Botão da rosa

A uma atriz

O campo abrira o seio às expansões frementes

Das árvores senis, dos galhos viridentes.

Caía a tarde fresca

Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca.

A iluminada esfera

Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem,

Dava um brilho-cetim às verdes folhas d’hera.

No ar uma harmonia avigorada e casta,

No crânio uma vertigem

Duma ideia viril, duma eloquência vasta.

Tardes formosíssimas,

Ó grande livro aberto aos geniais artistas,

Como tanto alargais as crenças panteístas,

Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas.

Quanta vitalidade indefinida, quanta,

Na pequenina planta,

No doce verde-mar dos trêmulos arbustos,

Que misticismo, justos,

Bebia a alma inteira ao devassar o arcano

Das árvores titãs, das árvores fecundas

Que tinham, como o oceano,

Febris palpitações intérminas, profundas.

Esplêndidas paisagens

Opunhas o largo campo às vistas deslumbradas.

As múrmuras ramagens,

À luz serena e terna, à luz do sol — que espadas

De fogo arremessava, em frêmitos nervosos,

Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos,

Tinham falas de amor, segredos vacilantes

Finos como os brilhantes.

A música das aves

Cortava o éter calmo, em notas multiformes,

Límpidas e graves

Que estouravam no ar em convulsões enormes.

Aqui e além um rio

Serpejava na sombra, em meio de um rochedo

Áspero e sombrio.

O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo

E o espírito mudo,

Como um herói gigante avassalavam tudo...

Nuns madrigais risonhos

Abria-se o país fantástico dos sonhos.

Alavam-se os aromas

Leais, inexauríveis

Das largas e invisíveis

Selváticas redomas.

A seiva rebentava

Em ondas — irrompia

Na doce e maviosa e plácida alegria

De uma ave que cantava,

Dos belos roseirais

Que ostentavam a flux as rosas virginais.

E as jubilosas franças

Dos árvoredos altos,

Rígidos, atléticos,

Derramavam no campo uns fluidos magnéticos

Dumas vontades mansas.

A doce alacridade ia explosindo aos saltos.

E toda a natureza

Robusta de saúde e estrênua de grandeza

Libérrima e vital,

Erguia-se pujante, audaz e redentora,

No gérmen material da força criadora,

Dentre a vida selvagem mística, animal...

Dos roseirais preciosos

Nos renques primorosos,

Numa linda roseira abria castamente,

Como um sonho de luz numa cabeça ardente,

O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa.

Tinha essa cor formosa,

Tinha essa cor da aurora,

Quando ensanguentada em rubro a vastidão sonora

Era um botão feliz

Sorrindo para o Azul, zombando da matéria.

Tinha o leve quebranto e a maciez etérea

Que uma estrofe não diz.

Das pétalas macias,

Das pétalas sanguíneas,

Doces como harmonias

Brandas e velutíneas

Uns perfumes sutis se espiralavam, raros,

Pela mansão do Bem, pelos espaços claros.

Perfumes excelentes,

Perfumes dos melhores,

Perfumes bons de incógnitos Orientes.

Matéria, não deplores

O viver natural dos vegetais alegres;

Eles são mais ditosos

Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos;

E por mais que tu regres

Ó matéria fatal, a tua vida inteira,

No rigor da higiene;

E por mais que a maneira

Do teu grande existir, desse existir — perene

De ironias e pasmos,

Explosões de sarcasmos

Tu completes, matéria — ó humanidade ousada —

Com a ciência altanada;

E por mais que no século,

Tu mergulhes a ideia, o prodigioso espéculo,

Será sempre maior e exuberante e forte,

Ó matéria fatal,

Essa vida tão rica

Que se corporifica

Na valente coorte

Do poder vegetal.

Era um botão feliz,

Cuja roseira, impávida,

Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos — ávida

De completa fragrância,

Palpitava com ânsia

Desde a própria raiz.

E entanto o sol tombara e triunfantemente

Como um supremo Rubens,

Jorrando à curvidade etérea do poente,

O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens,

Numa distribuição simpática de cores,

De tintas e de luzes

De galas e fulgores

Rubros como o estourar dos fervidos obuses.

O cérebro em nevrose,

No pasmo que precede a augusta apoteose

De uma excelsa visão perfeitamente bela,

De uma excelsa visão em límpidos dóceis,

Exaltava o acabado artístico da Tela

E o gosto dos pincéis.

Caíam da amplidão em névoas singulares

Os pálidos crepúsculos.

Os fúlgidos altares

Do homem primitivo — a relva, o prado, o campo

Onde ele ia buscar a força de uma crença

Que então lhe iluminasse a alma escura e densa

Morriam de clarões — os poderosos músculos

Da fértil mãe de tudo — a natureza ingente —

Deixavam de bater. — O olhar do pirilampo

Oscilava, tremia — azul, fosforescente.

As sombras vinham, vinham

Lembrando um batalhão d’espectros que caminham

E a casta nitidez sintética das cousas

Tomava a proporção das funerárias lousas.

Completara-se então o mais extraordinário,

O mais extravagante

Dos fenômenos todos:

A noite. — Enfim descera a treva do Calvário,

A treva que envolveu o Cristo agonizante.

Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos.

A abóbada espaçosa, a física amplitude,

Mostrava a profundez da angústia de ataúde

De um operário pobre,

Quando se escuta o dobre

Amplíssimo e funéreo,

Sinistro e compassado,

Rolar pela mansão gloriosa do mistério,

Assim com um soluço aflito, estrangulado.

Devia ser, devia

Por uma noite assim,

Como esta noite igual,

Que derramou Maria

A lágrima da dor, — que o célebre Caim

Sentiu do crânio as convulsões do Mal.

Mas o botão de rosa,

Traído pelo estranho zéfiro da sorte,

Rolou como uma cisma

Intensa e luminosa

Ardente e jovial em que a razão se abisma

E foi cair, cair no pélago da morte,

Em um dos mais raivosos,

Em um dos mais atrozes

Rios impetuosos,

Cheios de surdas vozes,

Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito,

Em meio à placidez

Dos astros no infinito

E a mesma irracional e fúnebre mudez.

Depois e além de tudo,

Além do grave aspecto inteiramente mudo,

Ao tempo que morria

O cândido botão — em um dos tantos galhos

Virentes da roseira — alegre no ar se abria

Um outro que ostentava as pétalas sedosas,

As pétalas gracis de cores deliciosas,

De cores ideais.

As auras musicais

Passavam-lhe de leve,

Nos tímidos rumores,

De um ósculo mais breve

E dentre a exposição das delicadas flores,

Das rosas — o botão

Aberto ultimamente as cúpulas austeras,

As plagas da esperança, a irmã das primaveras,

Pendido um quase nada, esbelto na roseira,

Mostrava aquela unção,

A ínclita maneira

De quem se glorifica

Subindo ao céu azul da majestade pura,

Da eterna exuberância,

Da fonte sempre rica,

Da esplêndida fartura

Da luz imaculada — a egrégia substância

Que faz das almas claras

Pela fecundidade olímpica do amor,

Magníficas searas,

De onde se difunde a vida sempiterna,

A vida essencial, a lei que nos governa,

A ideia varonil do poeta sonhador.

A arte especialmente, esse prodígio, atriz,

Como o botão de rosa

Tão meigo e tão feliz,

Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego,

Na treva silenciosa,

Onde o espírito vai, atordoado e cego,

Cair, entre soluços,

Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços,

Ou pode equilibrar-se em admirável base

Estética e profunda,

Assim, bem como o outro, a mais radiosa altura.

Deves sondá-la bem nesta segunda fase.

Precisas para isso uma alma mais fecunda.

Precisas de sentir a artística loucura...

 

[Ó Adalziza]

Ó Adalziza dos sonhos;

Estrela dos firmamentos

Dos meus cantares risonhos

Ó Adalziza dos sonhos

Rasga esses véus enfadonhos

Dos teus louros pensamentos,

Ó Adalziza dos sonhos,

Estrela dos firmamentos.

[Zat.]

 

[Enquanto este sangue]

Enquanto este sangue ferve

Com força, com toda a força,

Palpite a fibra da verve

Enquanto este sangue ferve

Esmague-se o que não serve

Na treva o Mal se contorça,

Enquanto este sangue ferve,

Com força, com toda a força.

[Zot.]

 

[Como um cisne]

Como um cisne, est’alma frisa

O mar de luz de teus olhos,

Ó simpática Adalziza

Como um cisne, est’alma frisa,

Vagueia, paira, desliza

Sem naufragar nos escolhos

Como um cisne, est’alma frisa

O mar de luz de teus olhos.

[Zat.]

 

[Merece o bom]

Merece o bom do Vidal

Que é mesmo um Joca de truz,

Ter também com o seu Fiscal,

Merece o bom do Vidal

Um banquete bambual,

De cem milhões de bambus

Merece o bom do Vidal

Que é mesmo um Joca de truz!

[Zot.]

 

[Zulmira]

Zulmira dos meus amores,

Zulmira das minhas cismas,

Resplandece como as flores,

Zulmira dos meus amores

Abre os olhos sedutores

Nos quais a minh'alma abismas,

Zulmira dos meus amores,

Zulmira das minhas cismas.

[Zat.]

 

[Deixai]

Deixai que a minh'alma escassa

De luz — aos astros emigre

Como gaivota que passa

Deixai que a minh'alma escassa

De amor — na plúmbea desgraça

De atrozes garras de tigre,

Deixai que a minh'alma escassa

De luz — aos astros emigre.

[Zot.]

 

[Quando ela]

Quando ela está de colete,

Espartilhada, irradiante

Vestida de azul-ferrete

Quando ela está de colete

Em mim cruzando o florete

Do seu olhar — que elegante

Quando ela está de colete,

Espartilhada, irradiante.

[Zut.]

 

[Ó cintilante quiquia]

Ó cintilante Quiquia,

Menina dos meus olhares,

Flor azul da simpatia,

Ó cintilante Quiquia,

Rasga este céu da alegria

Dos meus risonhos cantares,

Ó cintilante Quiquia,

Menina dos meus olhares.

[Zat.]

 

[Olhos pretos]

Olhos pretos, sonhadores

Ó celeste Carolina,

Como são esmagadores

Olhos pretos sonhadores,

Como vibram dos amores

A noss'alma cristalina,

Olhos pretos, sonhadores,

Ó celeste Carolina.

[Zot.]

 

[Se estala a estrofe]

Se estala a estrofe de fogo,

Se explose a estrofe do Bem,

Como o verbo demagogo

Se estala a estrofe de fogo,

Não ceda o espírito ao rogo

Do Mal que os erros contêm,

Se estala a estrofe de fogo,

Se explose a estrofe do Bem!

 

Amor!!!...

 Oferecido à Ilma. Sra. D. Pedra como prova de imensa amizade e profundo amor que lhe consagra

O Autor.

Amor, meu anjo, é sagrada chama

Que o peito inflama na voraz paixão,

Amo-te muito eu t’o juro ainda

Deidade linda que não tem senão!

Virgem formosa, d’encantos bela,

Gentil donzela, meu amor é teu.

Vou consagrar-te mil afetos tantos

Puros e santos qual também Romeu!

Flor entre as flores, a mais linda, altiva

Qual sensitiva, só tu és, ó sim.

Esses teus olhos sedutores, belos

De mil anelos, me pedirão a mim.

Anjo, meu anjo, eu te adoro e amo.

Por ti eu chamo nas horas de dor.

Sem ti eu sofro; um sequer instante

De ti perante só me dás valor.

Meu peito em ânsias só por ti suspira

Como da lira a vibrante voz!

Te vendo eu rio e senão gemendo

Vou padecendo saudade atroz!

Amor ardente de meu coração

Santa paixão em todo peito forte

Eu hei de amar-te até mesmo a vida

Deixar, querida, e abraçar a morte!

 

[Ó flora]

Ó Flora, ó ninfa das rosas,

Ó frescura dos morangos,

Abre as pupilas radiosas,

Ó Flora, ó ninfa das rosas,

Dá-me as estrelas formosas

Do olhar repleto de tangos,

Ó Flora, ó ninfa das rosas,

Ó frescura dos morangos.

[Zat.]

 

[Morena dos olhos pretos]

Morena dos olhos pretos

Dos olhos pretos, morena,

Escuta os vagos duetos

Morena dos olhos pretos,

Faremos ambos, tercetos,

Com esta esfera serena,

Morena dos olhos pretos,

Dos olhos pretos, morena.

[Zot.]

 

[Embora]

Embora eu não tenha louros

Como esses grandes heróis

E nem da ideia os tesouros,

Embora eu não tenha louros,

Talvez nos tempos vindouros

Traduza o poema dos sóis,

Embora eu não tenha louros

Como esses grandes heróis.

[Zat.]

 

[Ó Alzira]

Ó Alzira, Alzira, Alzira,

Estrela resplandecente,

Resplandecente safira,

Ó Alzira, Alzira, Alzira,

As vibrações desta lira,

Acorda do sono ardente,

Ó Alzira, Alzira, Alzira,

Estrela resplandecente.

[Zot.]

 

[Aos relâmpagos]

Aos relâmpagos sulfúreos

Na esfera zigue-zagando

Como esses pobres tugúrios,

Aos relâmpagos sulfúreos

Se douram, brilham purpúreos

Fulguram de quando em quando,

Aos relâmpagos sulfúreos

Na esfera zigue-zagando.

[Zot.]

 

[À sombra espessa]

À sombra espessa de um álamo

Quando nasceu-me a paixão,

Crescendo aos beijos do tálamo

À sombra espessa de um álamo

Que de harpas senti, que cálamo

Por dentro do coração

A sombra espessa de um álamo

Quando nasceu-me a paixão.

[Zat.]

 

Rosa

A Moreira de Vasconcelos

Et, rose, elle a vécu ce que vivent les roses,

l’espace d'un matin.

         (Malherbe)

Rosa — chamava-se a estrela

Daquelas flóreas paragens;

Era escutá-la e era vê-la

Metida em brancas roupagens

Todas de pregas e tufos,

De laçarotes e rendas,

Ou mesmo ouvir-lhe os arrufos

Ou surpreender-lhe as contendas

Nas lindas tardes radiadas

Por cores de silforamas

E sentir logo, inspiradas

Do amor, as férvidas chamas.

Ela era um beijo fundido

Ao cintilar de uma aurora,

Um sonho eterno espargido

Nos belos sonhos de Flora.

E tinha uns longes sublimes

De grande força lasciva,

A transudar, como uns crimes

Do sangue, da carne altiva.

Contava tudo... mas tanto,

Em turbilhões, em cascata,

Que recordava esse canto

Uma garganta de prata.

E quando os poetas, rapazes,

A viam passar, vibrante,

Mostrando as curvas audazes,

Do corpo todo radiante,

Diziam de entre os primores

De estrofes mais dulçurosas:

— Tu és a gêmea das flores,

Das rosas, perfeitas rosas.

Convulsionado e sem regra

O coração nos palpita;

Andas alegre e se alegra

A gente quando te fita.

Tens umas coisas estranhas

Nas refrações da pureza...

Umas finuras tamanhas...

Uma sutil gentileza...

Ficas rosada se um tico

Alguém te diz, de mais franco...

Mas como fica tão rico,

Tão belo o rubro no branco,

Nesse grácil e tão claro,

Sereno e cândido rosto

Que é mesmo um céu puro e raro

Das alvoradas de agosto.

Depressa cobre-te o pejo

A face nova e adorada,

De sorte que sem desejo

És — Rosa e ficas rosada.

Dos risos colhes a messe

E és doce como o conforto,

És casta como uma prece

Gemida ao lado de um morto.

Para que a dor não te obumbre

A glória de flores junca

Tua vida e, por isso, nunca

Nas mágoas terás vislumbre.

Permita o bom sol que inunda

De luz os bosques — permita

Que sejas sempre fecunda

De gozo e sempre bonita.

........................

Agora, quando alguém passa

Por onde a estrela morava,

Olhando pela vidraça

Bem junto da qual bordava,

Repara um silêncio triste

Na sala — em crepes envolta,

Onde parece que existe

Profunda lágrima solta.

E sente por dentro d’alma

Aquela angústia que esmaga

Bem como em noites sem calma

A vaga esmaga outra vaga.

Apenas as flores lindas

Que vendo Rosa morriam

Com brejeirices infindas

De invejas que renasciam,

Sem mais inúteis ciúmes,

Abrem os frescos pistilos,

Jogando aos céus, em perfumes,

Os seus melhores sigilos.

..................

No entanto a luz soberana

Do amor desfilam as rimas

Dos poetas — como um hosana

A quem já goza outros climas.

Rosa — chama-se a estrela

Daquelas flóreas paragens;

Era escutá-la e era vê-la

Metida em brancas roupagens,

Para exclamar: — Dentro dela

Existe a fibra gloriosa...

Ninguém viu coisa mais bela

Nem Rosa... tão bela rosa!...

[Do Cirrus e Nimbus]

 

[Quando estás]

Quando estás de laçarotes

E de plissês e fichus,

De rendas e de decotes,

Quando estás de laçarotes,

Toilette de chamalotes,

Quanto esplendor, quanta luz,

Quando estás de laçarotes

E de plissês e fichus.

 

[Da ideia]

Da ideia nos mares jônios

A barca das tuas cismas

Soprada por bons favônios

Da ideia nos mares jônios,

Vai livre dos maus demônios,

Batida da luz dos prismas,

Da ideia nos mares jônios

A barca das tuas cismas.

 

[Como um assombro]

— Como um assombro de assombros

A rapariga — um rainúnculo,

Da serra pelos escombros

Como um assombro de assombros,

Quando vê de enxada aos ombros

O noivo — lembra um carbúnculo,

Como um assombro de assombros

A rapariga — um rainúnculo.

 

[Como fortes]

— Como fortes gargalhadas

Por um templo de cristal,

Sonoramente vibradas,

Como fortes gargalhadas,

Sinto ideias baralhadas

N’um frágil descomunal

Como fortes gargalhadas

Por um templo de cristal.

 

[Da bruma]

Da bruma pelos países

Pelos países da bruma,

Longe dos astros felizes,

Da bruma pelos países,

Tu vais perdendo os matizes

Da luz e da glória em suma,

Da bruma pelos países,

Pelos países da bruma.

 

[Epitáfio]

(5 out. 1885)

Alma pura e gentil, tão cedo arrebatada

Da doce mocidade aos sonhos cor-de-rosa,

Esta prova de Amor — pungente e dolorosa

Recebe lá no céu, oh! Alma idolatrada.

 

Saudação

Ao Liceu de Artes e Ofícios

Como esta luz é serena,

Como esta luz é sincera;

Como eu vejo a primavera

Num lápis e numa pena.

Que prismas de luz ardente,

Que prismas de luz suave;

Como eu sinto um canto de ave

Em cada boca inocente.

Sim! Que o estudo é como a aurora

Que nos entra pela casa,

Num vivo fulgor de brasa,

Vibrante, alegre, sonora.

Ele rasga a treva espessa,

Num só momento — cantando;

Vai estrelas semeando

Em cada tenra cabeça.

Tira os crânios do letargo

Da ignorância — pois entra

Como um sol e se concentra

Num esplendor muito largo.

Quem, ó Arte imaculada,

Medisse o ser da criança,

Pela alma de uma esperança

Pela alma de uma alvorada.

Quem aos páramos subindo,

Eternamente pudesse,

Dos astros a loura messe

Arrancar — depois abrindo

Os peitos das criancinhas

Jogá-los dentro e beijá-las

Cheias de pompa e das galas

Que a luz concede às rainhas!...

Pois que a treva entre fulgores,

É como, dentre ataúdes,

Rebentar como virtudes,

As mais simpáticas flores.

Ah! Ninguém sabe, por certo,

Quanto é bom, quanto é saudável,

Sentir a crença adorável

Como um clarão sempre aberto.

Ver os germens do futuro

No campo eterno da escola

Brilhando como a corola

De um lírio cândido e puro.

Ver morrer — como uns invernos

Da vida, os velhos colossos

E ver erguerem-se os moços

Como verões sempiternos.

Mães, ó mães tão estremosas,

Dos vossos ventres fecundos

Saem todos esses mundos

Das ideias fulgurosas.

Tudo isso quanto há escrito

De pensamento e crenças

Saiu das fontes imensas

De um grande amor infinito.

E desde a escrita a leitura

E desde um livro a uma carta,

A bondade sempre farta

Das mães — esplende e fulgura.

Bom dia ao mestre que é guia

Das belas crianças louras!

Bom dia às mães porvindouras,

À mocidade — Bom dia!

 

Frêmitos

I

Ó pombas luminosas

Que passais neste mundo eternamente

Só a cantar os madrigais de rosas,

Atravessados de um luar veemente,

Inundados de estrelas e esplendores,

De carinhos, de bênçãos e de amores.

II

Ó virgens peregrinas,

De meigo olhar banhado de esperanças,

Que perfumais com lírios e boninas

A aurora de cristal das louras tranças,

Que atravessais constantemente a vida

Do sol eterno, da visão florida.

III

Amadas e felizes

Gêmeas da luz das frescas alvoradas,

Vós que trazeis nas almas as raízes

Do que é são, do que é puro — ó vós amadas

Prendas gentis do paternal tesouro,

Iriados corações de fluidos de ouro.

IV

É para vós que eu quero

Engrinaldar de tropos e de rimas,

Num doce verso artístico e sincero,

Esgrimir com belíssimas esgrimas

A estrofe e dar-lhe os golpes mais seguros

Para que brilhe como uns astros puros.

V

É só a vós, apenas,

Que eu me dirijo, límpidas auroras,

Que pelas tardes plácidas, serenas,

Passais, galantes como ingênuas Floras,

Coroadas de flor de laranjeira,

Noivas, sorrindo à mocidade inteira.

VI

Porque é de vós que deve,

De vós que o sonho eterno dulcifica,

Partir o lume quando cai a neve,

Surgir a crença poderosa e rica.

Porque afinal, o que se chama crença,

Senão o amor e a caridade imensa?

VII

Os tristes e os pequenos

Em quem descansam brandamente os olhos,

Esses humildes, rotos Nazarenos

Que vivem, morrem suportando abrolhos,

Senão nos grandes entes piedosos

Que dão-lhes força aos transes dolorosos?

VIII

Oh, sim que a força eterna

Parte dos corpos rijos da saúde,

Perante a lei da vida que governa,

O nobre, o rei, o proletário rude;

Parte dos seres fartos de carinhos

Como de paz e de alegria os ninhos.

IX

Eu peço para todos

E peço a vós que sois as fortalezas

Da esperança, da fé — a vós que os lodos

Da miséria, do vício, das baixezas,

Não denegriram essas consciências

Castas e brancas como as inocências.

X

Nem se esperar devia

Que eu tentasse bater a outras portas,

Quando vós sois o exemplo de Maria;

Não andais mudas, regeladas, mortas

Pela noite voraz da sepultura

E escutareis os dramas da amargura.

XI

Não julgueis que eu vos peça,

Uma alvorada feita de um sorriso;

A minh'alma garante e vos confessa

Que se crê nas mansões do Paraíso,

É porque vós reinais por sobre a terra

E o Paraíso dentro em vós se encerra.

XII

A vós, a vós compete

A glória do dever — porque assim como

A luz do sol na lua se reflete,

Também das aflições no duro assomo,

Da pobreza refletem-se nas almas,

Vossas imagens, como auroras calmas.

XIII

Portanto, a mocidade

Vossa, terá de ser de hoje em diante,

Enquanto a esmagadora atrocidade

Da peste — nos vorar d’instante a instante,

Quem se há-de encarregar desta manobra

Do galeão da vida que sossobra.

XIV

E para isso, ó rainhas

Da juventude — tendes as quermesses

Que dão bons frutos assim como as vinhas;

As matinées de cânticos e preces,

Os cintilantes, pródigos bazares

Onde a luz salta extravasando em mares.

XV

Enquanto a mim, na arena

Da heroicidade humana que consola,

Oh, faz-me bem a vibração da pena,

Pelo amor, pelo afago, pela esmola,

Como um radiante e fulgido estilhaço

De sol febril no mármore do Espaço!

 

Gusla da saudade

 A Santos Lostada  pela morte

do seu velho pai.

Nunca mais, nunca mais esses teus olhos

Palpitarão nos olhos seus honestos

Nem hão de vê-lo em ânsias por escolhos.

Ele morreu, morreu — e os mais funestos

Lutos da dor feriram como abrolhos

Teu lar e os teus — serenos e modestos.

Que incalculável explosão de prantos

Não inundou as almas preciosas

Dos teus irmãos, da tua mãe — uns santos

Que peregrinam nestas lacrimosas

Sendas da vida, em mágoas, sem encantos

Como sem luz e sem orvalho as rosas.

Ah! formidável lei cruel da vida,

Lei da matéria, da mudez das lousas,

Da eterna noite atroz, indefinida;

Tens o segredo intérmino das cousas,

E nessa dura e tenebrosa lida,

Oh! nem sequer um dia só repousas.

Quem sabe, ó morte, ó lúgubre, quem sabe

O teu poder fatal, desapiedado

Onde se oculta e se resume e cabe.

Pois nem que o céu puríssimo, azulado

Cair aos pedaços, tombe e se desabe

Na profundez do abismo ilimitado

E a crença humana espavorida, em gritos,

Palpando o nada, esquálida, gemendo

Rasgue a amplidão de estranhos infinitos,

Nunca da morte saberão o horrendo

Mistério rijo e surdo dos granitos

Os corações que vivem combatendo?!...

Não! A Ciência penetrou, o estudo

Do pensador, abriu mais horizontes

Nesse problema silencioso e mudo.

O pensamento constelou as frontes,

Deu a razão o mais brunido escudo

E construiu as luminosas pontes

De onde se vai, com grande olhar, seguro,

Atravessar as regiões sonoras

Dos Ideais que irrompem do Futuro;

E sem contar dos séculos as horas,

E sem temer as mil visões do Escuro,

Alegremente ao fresco das auroras.

Mas entretanto, ó meu amigo, escuta,

Toda a saudade, a grande nostalgia

Nos deixa frios, mortos para a luta.

Porque, olha, a morte é sempre uma agonia!

 

Smorzando

O véu da tarde cai pelas quebradas

Das serras altaneiras;

As aves condoreiras

Rompem da mata em místicas risadas

O largo espaço intérmino cindindo.

A livre natureza,

Humildemente, pura, vai caindo,

Caindo de joelhos

Como esse denso véu

Cai na viril e rútila grandeza

Do sol que desce em borbotões vermelhos

Como uma mancha tropical no céu.

E vibra a Ave-Maria

Como um soluço, estranho, indefinido;

Talvez como um gemido

Dentre a escalvada e agreste serrania.

E desce e desce e desce

De toda a imensidade

A salutar carícia de uma prece,

O eflúvio da saudade

Que alaga o nosso peito heroicamente

Como o luar de um treno

Mavioso e emoliente,

Mais doce que o sorrir do Nazareno.

 

Giulietta Dionesi

 (Desterro)

Ao seu violino

Ah! Giulietta! Os sons do teu violino

Choram, suspiram, rugem como o leão

Lembram sonoro rio cristalino

E tem soluços como um coração.

Ó da harmonia divinal sereia!

Rosas e estrelas e canções de ninhos

Nas cordas do violino que gorjeia

Passam cantando como os passarinhos.

Não sei que estranho espírito sereno

Para a harmonia essa alma te inspirou

Que dentro dum violino tão pequeno

A música do espaço concentrou!

Ah! peregrina do país do sonho

Flor luminosa de região sonora,

No teu suave coração risonho

Vibram triunfantes os clarins da aurora.

Tudo dentro de ti gorjeia e trina,

Como trina e gorjeia o rouxinol

Nas paisagens silvestres da campina,

Aos esplendores siderais do sol.

Quem não há de chorar e rir não há de

De amor, de saudade e de esperança,

De assombro, vendo que na tenra idade

Já és tão grande, sendo uma criança?!

Os astros do cerúleo firmamento,

As meigas flores, o infinito mar

Que digam como tu nesse instrumento

Sabes sorrir e sabes soluçar...

Domadora feliz do som profundo,

Deusa imortal de ignotas harmonias,

Vai triunfar nas vastidões do mundo,

Da glória nas eternas sinfonias.

 

Filetes

 (Desterro)

I

Ó pérola nitente,

Ó pérola do amor,

Ó imã redolente

Das pétalas da flor;

Ó lágrima sutil,

Ó lágrima ideal,

Do côncavo de anil

Caída no cristal

Do lago transparente,

Harmoniosamente,

Aos flocos do luar...

Tu és como as essências,

Conheces as ciências

Ocultas... de matar!

II

Cintila a estrela-d’alva

Bem como o olhar do crente!

Perpassa no ambiente

O fresco olor da malva.

Um tic de lirismo,

Simpático e harmônico,

Derrama no sinfônico

Riacho — um misticismo.

Há músicas supremas,

Um mundo de problemas

Nos montes seculares.

E como um lírio roxo,

A alma em canto frouxo

Emigra para os ares.

 

Versos à infância

 (Desterro)

I

Nos roseirais, ao vir da madrugada,

Desabrocham no val todas as rosas,

Nos galhos cheios de uma luz doirada,

Meigas e frescas, rubras, perfumosas,

Nos roseirais, ao vir da madrugada.

Como em bocas cheirosas e vermelhas

Pousam beijos de amor e de ventura,

O mel lhe sugam todas as abelhas

Pousando em cima da corola pura

Como em bocas cheirosas e vermelhas.

Desde os campos, o bosque, até aos montes

Tudo renasce num jardim de flores;

E pelo azul do céu, nos horizontes,

Há os mais vivos, raros esplendores,

Desde os campos, o bosque, até aos montes.

Pelos ninhos sonoros, delicados,

Cantam e trinam muitos passarinhos

Nos altos arvoredos enflorados,

A margem verdejante dos calminhos,

Pelos ninhos sonoros, delicados.

Às borboletas brancas e amarelas,

Azuis, cor de ouro, cor de prata e brasa,

Leves, ligeiras, tênues e singelas,

Abrem a fine talagarça da asa,

As borboletas brancas e amarelas.

Tudo no val acorda de desejos

À musica dos cantos mais risonhos;

E as aves soltas, peregrinos beijos,

Dizem, cantando, que através de sonhos

Tudo no val acorda de desejos.

II

Na alma da infância, tal e qual roseiras,

Abrem festões de límpida fragrância

Os sonhos e as quimeras passageiras

Que são mais próprias do vergel da infância,

Na alma da infância, tal e qual roseiras.

O pequenino coração ditoso

Canta canções de uma ave pequenina;

E é um encanto ver assim radioso

No peito de uma cândida menina

O pequenino coração ditoso.

A existência de sol das criancinhas

Lembra um pomar de frutas bem serenas,

Por onde os colibris e as andorinhas

Gozam amores sacudindo as penas,

A existência de sol das criancinhas.

Não sei dizer se adore mais crianças

Ou mais também as flores de um arbusto;

Nessas tão puras, castas semelhanças

Eu, para ser bem carinhoso e justo,

Não sei dizer se adore mais crianças.

 

Triste

 (Desterro)

Em junho, que é mês do frio,

Perdes todo o colorido,

Tens um tom vago e sombrio

De dor, de mágoa e gemido.

Não sei que tristeza é essa

De tão doloroso cunho

Que perdes a cor depressa

Assim que vem vindo junho.

Ficas branca e desmaiada,

Lembrando a lua serena,

Fraca, pálida e gelada,

Como frágil açucena.

Vão-se-te as rosas da face

Emurchecendo e sumindo

Num crepúsculo vivace

De tudo o que estas sentindo.

Ai! no entanto pelos prados

Onde os dias resplandecem

Risonhas como noivados

Em junho as rosas florescem...

 

Fonte de amor

Trago-a à tua presença

Para que vejas a imensa

Mágoa atroz que a devorou.

E saibas, ó flor das flores,

Que a fonte dos seus amores

Eternamente secou.

Foste à fonte buscar água

E tinha secado a fonte.

Aí, flor azul do monte,

Tiveste a primeira mágoa.

Porém se uma alma na frágua

Das dores sem horizonte

Queres ver, sentir defronte

Dos olhos, manda que eu trago-a.

 

Naufrágios

 (Desterro)

I

O Mar! O mar! Quem nunca viajasse...

Quem nunca dentre dúvidas sentisse

O coração e ai, nunca embarcasse...

Oh! quem do mar as cóleras punisse!

Ora o mar e sereno, e calmo, e manso,

As vagas são melódicos arpejos

Dando à embarcação leve balanço,

Como um afago maternal de beijos.

Ora o mar franco, livre e transparente,

Tão tranquilo que está, tão brando, rindo,

Que até parece, que até cuida a gente

Que os corações podem boiar, dormindo.

Ora ferve, rebenta, estoura, estala,

Rude, feroz, em convulsões; profundo,

Abrindo a corpos pavorosa vala

E mundos de agonia num só mundo!

II

Filho! Filho! Adeus, querido,

Vou viajar para além,

Sejas de Deus protegido...

Que sempre me queiras bem.

Vou deixar-te nesta terra,

Entregue aos destinos teus;

Filho, o que este adeus encerra

Só o pode saber Deus.

Levo as crenças em pedaços,

Como pedaços de céus.

Vou ver mar, vou ver espaços

Ver temporais, escarcéus.

Filho amado, vou deixar-te

Cá na terra, pelo mar;

Porem, crê, de qualquer parte,

Crê, meu filho, hei de voltar.

III

Adeus, noiva, vou-me embora,

Vou-me com Deus, é preciso.

Que colhas em cada aurora

Muita messe de sorriso.

Sou soldado, o meu destino

É viver bem longe, é certo,

Longe do canto divino

Da tua voz, sol aberto.

Custa bem esta partida

A mim que entanto sou forte.

Ninguém sabe o que é a vida

Para quem vive da morte.

Da morte, sim, pomba amada;

Que as minhas crenças já mortas

Tu, com essa alma estrelada

Sem tu sequer me confortas.

Perdi pai, perdi carinhos

De mãe, de irmãos e de todos.

Eu sou como a flor de espinhos

Nascida por entre lodos.

Tu vieste, ó noiva, apenas,

Como um íris de esperanças,

Dar-me alvoradas serenas,

Encher-me de confianças.

Só em ti confio, espero

Com ardor, com fé veemente,

Pomba de luz que eu venero,

Doce vésper do oriente.

Adeus, pois chegou a hora,

Vou-me com Deus, minha filha;

Não chores, que o mar não chora:

— Olha, vê que canta e brilha.

IV

Adeus, esposa estremosa,

Vou-me, não sei para quando

Voltar — minh'alma saudosa

Por meus filhos vai chorando.

Ficam-te eles no entretanto

Pra tirarem-te os pesares,

Para enxugarem-te o pranto

Que há de ser maior que os mares.

Maior que os mares, não minto,

Não exagero tão pouco,

Porque ai, só tu e só eu sinto

O nosso amor como é louco.

Vou-me às viagens, aos dias

Passados entre horizontes

E mares e ventanias

Sem arvoredos, sem montes.

Os dias de céus eternos

E de mar ilimitado,

Com tempo de atroz infernos

Com tempo de sol doirado.

Adeus! Cá dentro do peito

Há dois corações unidos;

Sobre um o mar tem direito,

Sobre outro — os filhos queridos.

V

Eis as canções e adeuses de saudade

Que as desgraçadas almas palpitantes

Soluçam na sombria imensidade

Desta vida de angústias lacerantes.

Ao mar! Ao mar! Frescas aragens puras

Aflam nas ondas maviosamente.

Que balada de plácidas venturas,

Que sinfonias, que gemer dolente!

Os céus abertos, claros, luminosos

Lembram a candidez branda das virgens.

Vítreos ares, magníficos, radiosos

Onde o sol arde em férvidas vertigens.

Lindíssimos painéis, bela paisagem

Abre na vista do viajante o ouro

Da luz que salta como uma homenagem

De oriental, esplêndido tesouro.

Vai bem, vai muito bem, mesmo, o navio.

As vagas desenrolam-se de leve.

Parece um berço por de sobre um rio

Manso, prateado, espúmeo, cor de neve.

Vive-se a bordo como em terra. — As vagas

Nunca foram tão doces e tão meigas,

Como em desertas, viridentes plagas

É doce e meigo o mole chão das veigas.

Viver assim, na realidade, é gozo

Que até parece não haver na terra!

Tão belo é o mar, tão calmo e bonançoso,

Tal confiança nos semblantes erra!

Vogando assim a embarcação, quem pensa

Ir acordado afora pela Vida?!

Tudo é um sonho de esperança imensa

Um bom sonho de aurora indefinida.

VI

Súbito os ares enchem-se de noite

E grita e zune, zargunchando o vento

Que esbraveja, morde com rijo acoite

O mar que espuma e empola num momento.

Não estrugem os raios pela treva

Não ha trovões bravios rebentando

Como canhões que estouram, — mas se eleva

Do oceano um vendaval que vai urrando

Com fúrias e com cóleras enormes

Como potros sanhudos relinchando

Em pinotes e berros desconformes.

Caiu talvez no mar o etéreo espaço,

Toda a cúpula azul tombou, quem sabe?

Céus! há lutas ali, de braço a braço.

Horror! Crível será que o mundo acabe?

Ninguém calcula o que será tudo isso...

Mas os ventos elétricos, largados

Nas amplidões do mar antes submisso,

Rugindo vão como desesperados.

Deus, ó meu Deus, todas as bocas gritam,

E se afervora mais e mais a crença.

Mas, onde os astros muita vez palpitam

No céu, há noite cada vez mais densa.

Ah! que mudez de túmulo nos ares.

Nada responde, oh! nada então responde;

Mas onde está o grande Deus dos mares

E da terra, onde está, aonde, aonde?

Tudo está mudo — a natureza inteira,

Tudo emudece e não responde nada;

E só os vendavais têm a maneira

De responder dando uma gargalhada.

Gargalhada de lágrimas atrozes,

De lágrimas de morte e de agonia

Que abafa e extingue na garganta as vozes,

Gera a coragem que e a luz do dia.

Ó valentes e rudes marinheiros

Vindos da pátria para pátria nova,

Que sepultais amores verdadeiros

Do tão profundo coração na cova;

Ó viajantes de longe, de países

Onde a vida cintila e canta alerta

Como um turbilhão de aves felizes

Numa campina de rosais, deserta;

Ó vós todos que vindes lá do oceano,

Entre as mais bruscas e hórridas tormentas.

Lá do mar, alto, a vela, a todo o pano,

Com as almas ansiosas e sedentas,

De chegar cedo ao porto desejado,

Calculai, calculai o quanto é triste

Ver dar à praia um pobre desgraçado

Em cuja carne a podridão existe!

À praia! À praia! Dai à praia, morto,

Rejeitado por ondas convulsivas,

Indo encontrar na sepultura o porto,

Deixando ao mundo as ilusões mais vivas.

O eterno amor de mãe, de filho, esposa,

Tanta fé, tanto riso de alegria,

Tanta coisa dourada, ai tanta coisa

Que ao recordar toda a nossa alma esfria.

Morrer no mar, os nervos contraídos,

Numa asfixia atroz, cerrando os dentes,

Num abismo de cores e gemidos,

De maldições e de uivos de descrentes;

Morrer no mar, sem o farol amigo,

Esse farol que os náufragos anima,

Fora de proteção, fora de abrigo,

Sem sequer uma luz no espaço, em cima;

Morrer no mar, sem astros no infinito,

Na solidão das águas, fria, imensa,

Enquanto a treva aura de granito,

Ri-se de tudo, com indiferença;

Morrer no mar, só e desamparado

E num terror que não acaba nunca,

Vendo rasgar o corpo enregelado

O desespero como garra adunca.

É horrível! Bem sei! Mas ai daqueles

Que morrem mesmo assim lá no mar fundo

Sem ter alguém que ao menos neste mundo

Derrame uma só lágrima por eles!

 

[Em maio]

(27 mai. 1890)

Em maio, que é mês das flores,

É até bem natural

Que do lar entre os amores

Esteja em festa um natal.

E quem possui rosas

Nem lírios na ocasião

Mande flores carinhosas

Que brotam no coração.

 

 Arte

(1ª versão)

Como eu vibro este verso, esgrimo e torço,

Tu, o poeta moderno, esgrime e torce;

Emprega apenas um pequeno esforço,

Mas sem que nada a pura ideia force.

Para que saia vigoroso o verso,

Como organismo que palpita e vibra,

É mister um sistema altivo e terso

De nervos, sangue e músculos e fibra.

Que o verso parta e gire como a flecha

Que do alto do ar, aves, além, derruba

E como um leão ruja feroz na brecha

Da estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.

Para que tenhas toda a envergadura

De asa, o teu verso, como a cimitarra

Turca apresente a lâmina segura,

Poeta, é mister como um leão, ter garra.

Essa bravura atlética e leonina

Só podem ter artistas deslumbrados

Que sorveram com lábios e retina

A luz do amor que os fez iluminados.

Nem é preciso, poeta, que te esbofes

Para ferir um verso que fuzile;

Põe a alma e muitas almas nas estrofes

E deixa, enfim, que o verve tamborile.

Busca palavras límpidas e novas,

Resplandecentes como sóis radiosos

E sentirás como te surgem trovas

Belas de madrigais deliciosos.

Busca também palavras velhas, busca,

Limpa-as, dá-lhes o brilho necessário

E então verás que cada qual corusca,

Com dobrado fulgor extraordinário nódoas

Que as frases velhas são como as espadas

Cheias de nódoas de ferrugem, velhas,

Mas que assim mesmo estando enferrujadas

Tu, grande artista, as brunes e as espelhas.

Que toda a vida e sensação de estilo

Está na frase, quando se coloca,

Antiga ou nova, mas trazendo aquilo

Que soa como um tímpano que toca.

Como o escultor que apenas fez de um bloco

A estátua — com supremo e nobre afinco

Estuda a natureza num só foco:

A prata, o bronze, o cobre, o ferro, o zinco.

Estuda dos rubins, estuda do ouro

E dos corais, da pérola e safira,

Todo esse íris febril radiante e louro

Que e a centelha de sol em toda a lira.

Estuda todos os metais, estuda,

Desce a matéria prodigiosa e vasta,

Estuda nela a natureza muda,

Os veios de cristal da origem casta.

Estuda toda a intensa natureza

Feita de aromas, de canções e de asas

E sente a luz da cor e da beleza

Rir, flamejar e arder, iriar em brasas.

Faz dos teus pensamentos argonautas

Rasgando as largas amplidões marinhas

Soprando, a lua, peregrinas flautas,

Como os pagãos sob o dossel das vinhas.

Assim, pois, saberás tudo o que sabe

Quem anda por alturas mais serenas

E aprenderás então como é que cabe

A natureza numa estrofe apenas.

Assim terás o culto pela forma,

Culto que prende os belos gregos da arte

E levarás no teu ginete, a norma

Dessa transformação por toda a parte.

Enche de alegres vibrações sonoras

A tua ideia pródiga e valente,

Põe nela todo o incêndio das auroras

Para torná-la emocional e ardente.

Derrama luz e cânticos e poemas

No verso e fá-lo musical e doce

Como se o coração, nessas supremas

Estrofes, puro e diluído fosse.

Que a abelha de ouro do teu verso esvoace,

Fulja como um fuzil numa borrasca.

Que o verso quando é bom por qualquer face

Lembra um fruto saudável desde a casca.

Com arte, forma, cor, tudo isso em jogo,

Engrinaldado e rútilo de crenças

O sonho cresce — o pássaro de fogo

Que habita as altas regiões imensas.

E canta o amor, o sol, o mar e o vinho,

As esperanças e o luar e os beijos

E o corpo da mulher — esse carinho —

Canta melhor, vibra com mais desejo.

Canta-lhe a sinfonia dos olhares

A cálida magnólia austral das pomas,

E quando então tudo isso enfim cantares

Em tudo põe a fluidez de aromas.

Vibra toda essa luz que do ar transborda

Como todo o ar nos seres vai vibrando

E da harpa do teu sonho, corda a corda,

Deixa que as ilusões passem cantando.

Na alma do artista, alma que trina e arrulha,

Que adora e anseia, que deseja e ama,

Gera-se muita vez uma fagulha

Que explose e se abre numa grande chama.

Pois essa chama que a fagulha gera,

Que enche e que acende o espírito de força,

Sobe pela alma como primavera

De rosas sobe por coluna torsa.

Faz estrofes assim, de asas de rima,

Depois de fecundá-las e acendê-las

De amor, de luz — põe lágrimas em cima,

Como as eflorescências das estrelas.

 

Arte

(versão definitiva)

Como eu vibro este verso, esgrimo e torço,

Tu, Artista sereno, esgrime e torce;

Emprega apenas um pequeno esforço

Mas sem que a Estrofe a pura ideia force.

Para que surja claramente o verso,

Livre organismo que palpita e vibra,

É mister um sistema altivo e terso

De nervos, sangue e músculos, e fibra.

Que o verso parta e gire — como a flecha

Que d’alto do ar, aves, além, derruba;

E como os leões, ruja feroz na brecha

Da Estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.

Para que tenhas toda a envergadura

De asa e o teu verso, de ampla cimitarra

Turca, apresente a lâmina segura,

Poeta, é mister, como os leões, ter garra.

Essa bravura atlética e leonina

Só podem ter artistas deslumbrado:

Que souberam sorver pela retina

A luz eterna dos glorificados.

Busca palavras límpidas e castas,

Novas e raras, de clarões radiosos,

Dentre as ondas mais pródigas, mais vastas

Dos sentimentos mais maravilhosos.

Busca também palavras velhas, busca,

Limpa-as, dá-lhes o brilho necessário

E então verás que cada qual corusca

Com dobrado fulgor extraordinário.

Que as frases velhas são como as espadas

Cheias de nódoa, de ferrugem, velhas

Mas que assim mesmo estando enferrujadas

Tu, grande Artista, as brunes e as espelhas.

Faz dos teus pensamentos argonautas

Rasgando as largas amplidões marinhas,

Soprando, à lua, peregrinas flautas,

Louros pagãos sob o dossel das vinhas.

Assim, pois, saberás tudo o que sabe

Quem anda por alturas mais serenas

E aprenderás então como é que cabe

A Natureza numa estrofe apenas.

Assim terás o culto pela Forma,

Culto que prende os belos gregos da Arte

E levará no teu ginete, a norma

Dessa transformação, por toda a parse.

Enche de estranhas vibrações sonoras

A tua Estrofe, majestosamente...

Põe nela todo o incêndio das auroras

Para torná-la emocional e ardente.

Derrama luz e cânticos e poemas

No verso e torna-o musical e doce

Como se o coração, nessas supremas

Estrofes, puro e diluído fosse.

Que as águias nobres do teu verve esvoacem

Alto, no Azul, por entre os sóis e as galas,

Cantem sonoras e cantando passem

Dos Anjos brancos através das alas...

E canta o amor, o sol, o mar e as rosas,

E da mulher a graça diamantina

E das altas colheitas luminosas

A lua, Juno branca e peregrine.

Vibra toda essa luz que do ar transborda

Toda essa luz nos versos vai vibrando

E na harpa do teu Sonho, corda a corda,

Deixa que as Ilusões passem cantando.

Na alma do artista, alma que trina e arrulha

Que adora e anseia, que deseja e que ama

Gera-se muita vez uma fagulha

Que se transforma numa grande chama.

Faz estrofes assim! E após na chama

Do amor, de fecundá-las e acendê-las,

Derrama em cima lágrimas, derrama,

Como as eflorescências das Estrelas...

 

O duque

Quando o duque voltava da caçada

Alegre num clarim d’aço vibrante

De alacridade moça e evigorada

Dum ruidoso e trêfego estudante.

Quando ele vinha com seu ar bizarro

De atravessar os vales e as colinas,

Sadio aspecto fresco como um jarro

Cheio de leite às horas matutinas.

Em toda a aristocrática varanda

Alta e vistosa, ampla, aberta em janelas,

Ele vibrava, de uma e outra banda,

Canções de amor, nostálgicas e belas.

Do salão nobre entre tapeçarias

De Gobelins, riquíssimas e raras,

Iam vibrando aladas harmonias

Da sua voz, esplêndidas e claras.

Todas as fluidas, leves, calmas, frescas

Manhãs azuis, serenas e formosas,

Loura mulher das regiões tudescas

O seu bom dia era mandar-lhe roses.

Floria, é certo, em grande amor, floria

Gerado pelo eflúvio dessas flores,

Pois quando o duque não as recebia

Era o mais infeliz dos caçadores.

Tão doce amor lembrava aquelas lendas

Dos medievais castelos esquecidos,

Quando visões de nuvens e de rendas

Apareciam nos balcões floridos.

A caça, a caça, eternamente a caça!

Quanto melhor, mais fácil não lhe fora

A conquista das aves do que a graça

De conquistar essa beleza loura!

Para possuí-la como noiva amada,

Aceso há muito nas paixões insanas,

Arrostaria a caça mais ousada

Dos javalis nas selvas africanas.

E sempre as lindas rosas matutinas

Vinham-no perfumar todos os dias,

Quando saltava aos vales e as colinas,

Bizarro e são, dentre as tapeçarias.

Tempos passaram sobre tais amores!

Mas depois de casado fez surpresa

Saber que o duque, o rei dos caçadores,

Não tinha o mesmo amor pela duquesa.

 

A espada

I

Cavalheiros, os tempos já passados,

De pajens, de canzéis, de fidalguia,

De castelos, de reinos brasonados.

Ar cortesão de graça e fantasia

Através dos olhares e dos beijos

— No silêncio de cada galeria...

Foi nesse bravo tempo dos lampejos

De espadas, de punhais e de couraças

Por combater frementes de desejos.

No tempo dos floreios e das caças

Dos assaltos alegres e bizarros

Como as sonoras vibrações das taças.

Em que as almas airosas como jarros,

Cheios de vinho espumejante e ardente

Eram de glória vencedores carros!

Foi no tempo fidalgo e refulgente,

Quando o heroísmo fantasioso amava

A linha e a chama de luzida gente,

Que esta cena galharda se passava,

Quando um donzel partia para guerra

Como a nobreza do solar mandava.

O pai, um tronco transudando a terra,

Forte e viril, presença de profeta

Que no seu flanco a valentia encerra.

Barbas serenas de bondoso asceta

Em cuja alvura doce e veneranda

Vê-se a vontade e a intrepidez completa.

Fronte banhada de meiguice branda

A que o dever e os ríspidos conselhos

Dão sempre a austeridade que age e manda.

Lembra um ocaso de clarões vermelhos,

Musgoso, triste, desolado muro,

Por onde o luar abre fulgor d’espelhos.

E esse semblante que parece duro,

Áspero e torvo, trouxe-o dos combates,

Do torvelinho do nevoeiro escuro.

Dos pelouros sanguíneos escarlates,

De fogo aberto em turbilhões, vorazes,

Dos impulsivos, bélicos rebates.

Mas, bem olhadas, as feições audazes

Desse velho patriarca destemido

Tinha a suavidade dos lilazes.

Nos olhos, um passado consumido

Entre aventuras e colóquios belos

Como que faz um verdadeiro ruído...

Sente-se neles noites de castelos

Gozadas em amores dadivosos,

Em madrigais, em íntimos desvelos.

Cavalgadas, torneios donairosos,

Sonho feliz de rica mocidade,

Requintes ideais, cavalheirosos.

Tudo se sente na tranquilidade

Desse deus varonil da força antiga

Feito com o rijo bloco da Verdade.

Tudo se sente nessa paz amiga

Que as crenças do passado às outras crenças

Vagas, futuras, para sempre liga.

Tudo se sente vir das névoas densas

E da ridente e cândida meiguice

Das suas barbas límpidas e imensas.

Sim! tudo da quase criancice

Que dão aos homens esses tons nevoentos

Da enregelada e trêmula velhice.

Porém, reatando aéreos pensamentos...

Comecemos na cena detalhada

Que já das eras se espalhou nos ventos.

É nada mais que a história duma espada,

História curta, mas interessante

Duma espelhante lâmina timbrada.

Não é pelo aço ou lâmina espelhante

Que irei contar, pois são comuns os aços,

Mas pelo nobre e original rompante.

Pelo ardimento que os primeiros braços

Que a manejaram com pujança e brio

Nela gravaram, com profundos traços.

II

O velho, em pé, atlético e sombrio

Diante do filho armado cavaleiro,

No aspecto dum leão ruivo e bravio.

Fala-lhe claro, d’alto e sobranceiro,

Numa solene e enérgica atitude

De quem nos prélios sempre foi primeiro.

O filho, grave o escuta e atende a rude

Lhanez estoica de palavra augusta

Que dos lábios lhe sai, com tal saúde.

Calmo, sem se mover, firme a robusta

Figura solarenga do estoicismo,

O velho disse esta nobreza justa:

"Aqui tens esta espada que o heroísmo

Dos teus avós honrou nessas campanhas,

Com o mais ousado, intrépido civismo.

Freme ainda hoje em convulsões estranhas,

Palpita e anseia dentro da bainha

Sonhando a luta, as implacáveis sanhas.

Tu, para a teres, como eu sempre a tinha,

Num triunfo imortal, quase divino,

De gládio que o valor maior continha;

É necessário um grande ardor leonino,

Que sejas bem idólatra do nome

Que fez de mim o extremo paladino.

A ferrugem, tu vês, o aço consome...

Porém, neste aço que ainda aqui fulgura,

Se houver ferrugem, tira-a com o renome.

Aqui tens, pois, a lâmina segura,

Alma e brasão da nossa velha casa

Coberta de ovações, famosa e pura".

Calou-se um instante, como a ave que a asa

Fechou no voar, já quase que abatida,

Caindo exausta junto a moita rasa.

O filho, mudo e respeitoso, erguida

A valente cabeça leal de moço,

Formoso estava, porejando vida.

E enquanto o velho, impávido colosso,

Calara-se num momento, emocionado

Ficara o filho em íntimo alvoroço.

Mas de repente, como iluminado

Por um clarão de glórias já extintas,

Tornou o velho, aos poucos transformado:

"Podes partir! Porém nunca desmintas

Nas pelejas o dom da nossa fama,

Por menos força que no peito sintas.

Como um clarim, por toda a parte aclama

O vigor deste ferro e do teu pulso

No combate que ruja, ulule e brama,'.

E cada vez mais pálido e convulso,

Mais nervoso e febril e mais altivo

Bradou ainda, num tremendo impulso:

"Se tu, que és da minh'alma o exemplo vivo,

Meu filho, tens de ser como um cobarde,

Como um vilão abjeto e repulsivo;

Não faças mais de fidalguia alarde,

Pega esta espada, meu Afonso, pega

E quebra-a de uma vez, que não é tarde.

Pois em lugar de fazer dela entrega

Aos sequiosos, feros inimigos

Antes a quebre a cólera mais cega.

Ei-la, aqui tens, a leoa dos perigos,

Que como outrora em minha mão lampeja

Da bravura e da fama nos abrigos.

Se não a tens de honrar nessa peleja

Escuta bem, ó meu amado filho,

Quebra-a, e o teu nome nem manchado seja.

Como eu faria noutra idade e brilho,

Com outras energias musculares,

Segue-me tu no denodado trilho,,.

E assim falando, em gestos singulares,

E agigantado corpo retesando

E um tom sinistro esparso nos olhares;

A cabeça nos ares agitando

Numa alucinação, — enorme ereto,

Como heroica visão, deblaterando...

Fitando bem o filho predileto,

Como se de repente lhe brotasse

A força hercúlea dum poder secreto.

O velho, qual um templo que abalasse,

A mão crispada, lívida e nervosa,

Com todo o esforço a lhe afluir na face,

Partiu no joelho a espada vitoriosa.

 

Imutável

(Revista do Norte, 1 ago., 1902)

Morrem as virgens, nos seus leitos castos,

Entre a mole e finíssima cambraia...

E a lua fria nos espaços vastos

Serenamente dentre as nuvens raia.

O ocaso da velhice a fronte enturva

E faz entristecer como um outono...

E o sol na doce e fulgente curva

Surge acordando os vegetais do sono.

A Dor lanceia os peitos lutadores

E rasga fundo a carne nas entranhas...

Pelas campinas vão brotando flores,

Brotam flores pelo alto das montanhas.

Brilha o sorriso cândido da infância

Na pequenina boca perfumada...

O espinho, o cardo, as urzes sem fragrância

Brilham também aos cantos de alvorada.

As lágrimas rebentam-nos dos olhos

Em turvos rios de atros sentimentos...

O mar bravio ruge nos escolhos

E estoura sob as convulsões do vento.

As mães, no berço, embalam docemente

Os filhos, com os mais íntimos carinhos...

Nas árvores do campo recendente

Vão as serpentes devorando os ninhos.

Passa na estrada um límpido noivado

Cheiroso a rosa e a flor de laranjeira...

O coveiro, já velho e encarquilhado

Abre uma cova à sombra da nogueira.

Ó profundo contraste incomparável,

Eterna lei, ciclópica ironia...

Como tu és estranha e formidável!

Força impassível! Natureza fria!

 

O sol e o coração

Sol, coração do Espaço que flamejas,

O coração é qual tu, sol de utopias...

Mas, coração, dize-me: — Que desejas?...

Foram-se já todas as alegrias,

Ó Sol! E tu, coração, que ainda adejas,

Que fazes sobre as mortas fantasias?!...

Podes brilhar, ó Sol, vivo e fulgente!

E tu, coração, que me iludiste,

Também podes bater, inutilmente.

Crença, Ilusão, Amor, já nada existe,

Não mais levarás sobre a corrente

Da tenebrosa dúvida mais triste.

Longe, mui longe, em regiões caladas,

Emudecidos pelo Esquecimento,

Estão hoje esses sonhos de alvoradas.

Foram-se, há muito, soltos pelo vento

Entre as grandes ruínas derrocadas

Do meu amargo e pobre pensamento,

Entre as profundas, tétricas ruínas

Em que o doce fantasma desses sonhos

Atravessou em lágrimas divinas.

Fantasma ideal, de cânticos risonhos

Que da vida encontrei pelas colinas

E hoje vaga entre bulcões medonhos!

Fantasma que eu amei, visão errante

Que sempre junto a mim vivia perto,

Por mais longe que eu fosse e mais distante.

Visão que era como a água do deserto

Para o meu coração sempre anelante,

Sequioso de amor e sempre aberto...

Ó pobre coração, em vão te agitas,

Em vão tu bates, coração estreito,

Tal qual tu, Sol, nos páramos crepitas.

Nada mais, para mim, de satisfeito

Brilha com o Sol nas plagas infinitas,

Como não canta o coração no peito...

Podes, enfim, sumir-te nos Espaços

Sol! E tu, coração, sempre batendo,

Quebrar da terra os "Transitórios Laços,,

Eternamente desaparecendo!...

 

Sapo humano

A Emiliano Perneta

Oh sapo! eu vou cantar tuas misérias, sapo,

Vou tirar, nesse lodo onde habitas de rastros,

Umas vivas canções do teu nojento papo,

Da crosta esverdeada umas centelhas de astros.

E canções de tal forma e tais e tais centelhas,

Que todas possam ir, miraculosamente,

Transformadas, pelo ar, em rútilas abelhas

Com o íris voador de cada asa fulgente.

Que tu, tredo animal, tu, triste sapo hediondo,

Não és o vil, o torpe, o irracional, que a lama

Em camadas envolve o atro ventre redondo,

Dos tempos imortais nessa fecunda chama.

Não és o sapo histrião de imundas esterqueiras,

O sombrio Caim nos lamaçais errantes,

O clown gargalhador das charnecas rasteiras,

Que ri-se para o sol com riso ironizante.

Não és o sapo atroz, coaxador, visguento,

Que rouco ruge e raiva a noite os seus horrores,

E para o constelado e mudo firmamento

Faz ecoar os mais surdos e ásperos tambores.

Mas és o sapo humano, esse asqueroso e feio,

Nascido de roldão na lúgubre miséria

E que do mundo vão no pavoroso seio

Lembra o negro sarcasmo enorme da Matéria.

Mas és o sapo humano, o sapo mais abjeto

Do crime aterrador, do tenebroso vício

Mas que ainda possuis o brilho de um afeto

Que te livra, talvez, do eterno precipício.

Por ora na tua alma a noite cruel, cerrada,

Não caiu de uma vez, como terrível fora.

Nela ainda há clarões de límpida alvorada,

Um prenúncio feliz de aurora redentora.

Ainda tens coração que pulsa no teu peito

Por uns filhos gentis, ingênuos, pequeninos,

Que são o grande amor, o sentimento eleito

Vencendo esses fatais instintos assassinos.

Tu semelhas de um charco a superfície nua

E vítrea, que no campo, aos ares, adormece,

Que se em cheio lhe bate a luz do sol, da lua,

Para a vasta amplidão cintila e resplandece.

Pois no teu organismo, assim sinistro e torvo,

Repleto de vibriões do vício — essas crianças,

Sorriem virginais, oh! solitário corvo,

Com sorrisos de luzes e barcarolas mansas.

O amor que regenera os ínfimos bandidos,

Não reduziu, enfim, tu'alma a ignóbil trapo.

E eis por que, num viver de pântano e gemidos,

Cantam dentro de ti aves e estrelas, sapo!

 

 

Diante do mar

Para matar o letargo

Da vida, e o profundo tédio,

Fui, em busca de remédio,

Ao cais arejado e largo.

E vi o mar formidando,

Cheio de mastros e velas,

Ocultos clarins vibrando

Pela boca das procelas.

Vi tropéis e tropéis bruscos

De ondas revoltas e crespas

Com rijos ferrões de vespas

Ferreteando os ares fuscos.

Vi os límpidos navios

Jogados do mar incerto

Como seres erradios

Por inóspito deserto.

Vi tudo nublado, tudo,

Céus e mares e horizontes;

E sobre a linha dos montes

Cair o silêncio mudo.

E eu lembrei-me quando a aurora

Sobre aquelas esverdeadas

Águas jorrava sonora

A luz em puras golfadas.

Lembrei-me desses supremos

Dias acres de alegria

Na vaga loura e macia

As leves palmas dos remos.

Do resplendor das viagens

Num encanto matutino

A doçura das aragens,

Por sobre o mar cristalino.

A bicar as doces ilhas

De pedra, musgos e flores,

Cheias de ervas e frescores

E naturais maravilhas.

Que ela a tudo perfumasse

Como um rosal que floresce

Que tudo que nela houvesse

Resplandecesse e cantasse.

Ou ver na frente das casas,

Dos vales e das colinas

Os pombos batendo as asas,

Entre festões de boninas.

Ir a pesca alegre e fresca

Por suavíssimos luares,

Numa lua pitoresca,

Em cima dos salsos mares.

Quando flexível canoa

Vai deixando um vivo rastro,

Fundo, aberto, feito de astro,

Na vaga que brilha e soa.

Quando na margem campestre

De rios indefinidos

Sente-se o aroma silvestre

Dos aloendros floridos.

Lembrei-me até das regatas

Numa hora deliciosa

De manhã cheirando a rosa,

Toda de fúlgidas pratas.

D’embarcar, como um fidalgo,

Para aventuras de caça,

Em companhia do galgo

Que é das caçadas a graça.

Ir d'espingarda e d’estilo,

Por madrugadas serenas,

Sem males, sem dor, sem penas,

Peito bizarro e tranquilo.

Bater as aves no mato

Por entre arvoredos graves,

Ou da beira de um regato

Ver saltar em bando as aves.

E da ventura nos jorros

Voltar da caça repleto

Vendo ao longe o rubro teto

Da casa e o verde dos morros.

Ou então ir como um duque

Nas praias de mais beleza

Gozar na choça de estuque

Uns olhos de camponesa.

Sentir do equóreo elemento,

Sobre as serras verdejantes,

Ruflantes e sussurrantes

As ventarolas do vento.

Deixar o espírito, avaro

De vida, saúde e força,

Disparar — alada corça —

Pelo azul radioso, claro.

Assim, talvez que o Nirvana

Do tédio e letargo imenso

Não fosse uma dor humana,

Dentre um nevoeiro tão denso.

 

Brumosa

Inglesa! Por toda a parte

Onde vás, chamam-te inglesa

E cobrem de pompas de arte

A pompa dessa beleza.

Mas tu, num soberbo encanto

De nevada e fria rosa,

Ó meu pálido amaranto!

Não és inglesa, és brumosa.

A tua carne alvorece

Em lactescências de opala,

Brilha, fulge e resplandece

E um fino aroma trescala.

És a límpida camélia

Nos jardins reais plantada

Ou essa lânguida Ofélia

Melancólica e nevada.

O teu corpo imaculado,

Flor de místicas origens,

Parece um luar velado

E lembra florestas virgens.

Com o teu amor ilumina

A minh’alma envolta em crepe,

Ó vaporosa neblina,

Ó branca e gelada estepe!

 

Sganarelo

Esse que eu agora rimo

É viscoso como a lesma

Pegajosa sobre o limo,

Sinistro como aventesma.

Feia coisa, enorme bicho,

Pavoroso mastodonte

Feito do horror a capricho,

Com cornos rijos na fronte.

Todo o ventre se lhe estufa

De obesidade lasciva,

Se fala a voz urra e bufa

Lembrando a locomotiva.

Na terrível carantonha

Retorcida, escalavrada,

Lhe estruge, às vezes medonha,

Formidável gargalhada.

E à luz do sol, que corusca,

Nas praças, à luz do dia,

A sua presença brusca,

Tem uma ardente ironia.

A língua rubra e convulsa

Sai-lhe da boca em espasmo,

Enquanto no olhar lhe pulsa

A blasfêmia do sarcasmo.

Capra figura profunda,

Atroz e amedrontadora,

Que larga entranha fecunda

Foi a tua geradora?!

Que aborto de ventre estranho

Pode gerar esse aborto

Assim feroz e tamanho,

Peludo, estroncado e torto?

De que idades tão antigas,

Pré-históricas vieste?

Mais hostil do que as urtigas,

Mais nefando de que a peste!

Trazes a pata esmagante,

A pata do bronze trazes;

Que é no espírito diamante

E que é nas almas lilazes.

Possuis o sangue da verve

Resplandecente, infinita,

Que ruge, palpita e ferve

E canta e soluça e grita.

Vens como imagem da Morte,

Da Morte hedionda e nefasta,

Das iras ao vento forte,

Do desespero a vergasta.

Desmancha-te em cabriolas

De doido polichinelo,

Que os teus membros lembrem molas

Como um palhaço amarelo.

Faz nos músculos esgrimas,

Pula trapézios e barras

E salta saltando estas rimas

Que vão saltando bizarras.

Acrobata da miséria

Estica os nervos, estica

E ri, ri tu da matéria

Da gente fidalga e rica.

És medonho?! isso que importa?

Ri! mas ri alto na praça,

Se a desgraça não foi morta,

Ah! deixem rir a desgraça!

Satanás sujo e potrudo

Nas cambalhotas te inspire.

Eia! vá! desdém por tudo,

Por tudo, e o tempo que gire!

Faz que o século se agite

De eternas risadas grossas

E como com dinamite

Arromba o mundo com troças.

Fura o estúrdio Sancho Pança

Com estocadas de riso

E mete-o também na dança

Dos saltos, se for preciso.

Destrói tudo, vai, desaba,

De tudo faz estilhaços

E a golpes de riso acaba

Os erros córneos e crassos.

Fura os ventres mais rotundos

Com aguilhões de chacota

E manda ao Mestre dos mundos

Um exemplar da risota.

Na tal luxúria gorducha,

Na velha e calva luxúria

Rebente risos em ducha,

Com toda a sátira e fúria.

Ri! até que se transforme,

O rebelado do inferno!

O riso num facho enorme

Aceso no sol moderno!

 

Desmoronamento

Dentro do coração, no côncavo do peito

Choro a grande ilusão do amor, desfalecida,

Dentre o gozo feliz, nostálgico da vida;

Já exangue, afinal, já morto, já desfeito.

Por visões que adorei num vago tempo incerto

Não sei por que razão avivo agora as mágoas,

Num pranto doloroso e triste, como as águas

Do mar grosso a bater sobre o costão deserto.

Tu, ó doce visão de perfumosas tranças,

Todo o meu puro e terno sentimento invades

E eu não sei o que fiz das minhas esperanças

Que de longe que vão parecem mais saudades.

Tudo o que houve em meu ser de compaixão e crença

Para sempre secou, secou já como um rio;

Para sempre também subi ao escombro frio

Da dúvida mortal, avassalante, imensa.

Para sempre me achei sem bússola e sem rumo

No fundo de regiões estranhas e afastadas...

As almas que eu amei, vi mudas e apagadas,

Vi tudo se sumir numa espiral de fumo.

Bem depressa fiquei como um ermo remoto

Como torvo areal sem plantas e sem fontes,

Donde apenas se vê rasgar a terra o broto

Do cardo retorcido e áspero dos montes.

Muitas vezes, porém, como entre os arvoredos

Onde juntas, no val, todas as aves cantam

No meio do rumor, de sombras e segredos,

Sinto dentro de mim que uns sonhos se levantam.

Borboleteio, a rir, por entre os sons e as flores,

Como um pássaro azul de uma plumagem linda

E canto alegremente a canção dos amores,

Que este peito viril sabe cantar ainda.

Lembro então corações que já me abandonaram,

Que eu senti palpitar, por sobre o meu pulsando,

Que vão hoje através das afeições chorando,

Que sofreram comigo e que comigo amaram.

Entretanto a minh’alma em voo largo e ufano,

De repente triunfal, de súbito gloriosa,

Tem a pompa de sol, vermelha e luminosa,

Da púrpura esvoaçante e aberta de um romano.

E esse fulgor, que vem dos meus sonhos dispersos

Na névoa do passado, errantes e dolentes;

Dá-me árdidos corcéis fogosos e frementes

Para atrelar, jungir ao carro destes versos.

Claramente recordo e penso nas estradas

Que percorri, que andei às ilusões, sozinho,

Vendo que todo o amor das virginais amadas,

Tinha a mesma fatal embriaguez do vinho.

Quantos entes febris, que o amor embriaga e ofusca

Assim, durante a vida, ansiosamente exaustos,

Não encontram, talvez, dessas visões em busca,

As Margaridas vãs dos ilusórios Faustos!

 

Clarões apagados

Flor de planta aromática, sinistra,

Nascida nas inóspitas geleiras,

Célebre flor que o meu Ideal registra,

Trepadeira das raras trepadeiras.

Serpe nervosa entre as nervosas serpes,

Carnívora bromélia da luxúria

De gozo tetaniza como as herpes

Da tua boca a polpa atra e purpúrea.

O teu amor, que lembra vinhos de Hebe

E essa áspera feição do abeto fusco,

Como um réptil que salta numa sebe,

Saltou-me ao peito, impetuoso e brusco.

Eu ia por estranhos descampados,

Por extensos desertos impassíveis,

Na trágica visão dos naufragados

Perdidos entre os temporais terríveis.

Sem rumo certo, num sombrio inferno,

Sozinho, sobre a desolada areia

Arrastando a existência, de onde, eterno

Um sapo coaxa e um rouxinol gorjeia.

Quando tu de repente, então surgiste

Beleza das belezas redentoras,

Tendo essa meiga formosura triste

Das formosas e flébeis pecadoras.

Fosse talvez uma tremenda insânia

Tão alta erguer o meu amor, tão alto;

Mas este coração frio, da Ucrânia,

Anelava galgar o céu de um salto.

E fui, galguei, subi, voei na altura,

Além dos verdes píncaros do monte,

Donde resplende a tua formosura

No clarão das estrelas do horizonte.

Foi o mesmo que se eu num templo entrasse

E aí num formidável sacrilégio,

As angélicas vestes arrancasse

Das santas de áureo diadema régio.

Como um leão sem juba e garra, preso,

Na indiferença, já morreu comigo

Todo esse amor profundamente aceso

Na ideal constelação de um sonho antigo.

Apenas pelo saara imorredouro

Do longínquo passado, ergue, altaneira,

Majestosa folhagem no sol d'ouro,

Dessas recordações a alta palmeira...

 

Mendigos

Mendigos! Ah! são mendigos

Que voltam de vãos caminhos,

Que atravessaram perigos,

Urzes, pântanos, espinhos.

Que chegam desiludidos

Das portas a que bateram;

Humanos, grandes gemidos

Que nos tempos se perderam.

Que voltam como partiram,

Com mais amargor na volta

E mais sonhos que se abriram

Das estrelas na recolta.

Mendigos ricas no entanto,

Das pompas da natureza

E das auréolas do Encanto,

Os vinhos da sua mesa.

Mendigos que o sol, apenas,

Torna nababos felizes,

Torna um pouco mais serenas

As convulsas cicatrizes.

Mendigos que acham requinte

Na fumaça de um cachimbo,

Deixando que labirinte

O sonho em tão leve nimbo.

Mendigos da luz da aurora

Cantando celestemente,

Fresca, límpida, sonora,

Pelas fanfarras do Oriente.

Mendigos de áureas estradas,

De sonâmbulas veredas,

De riquezas encantadas,

Sem pedrarias e sedas.

Mendigos d'estranho aspecto

E sempiterna vigília,

Filhos nômades, sem teto,

De milenária Família.

Mendigos que erram eternos

Sem fadigas e sem sono,

Sob o augúrio dos Infernos,

Das Ilusões sobre o trono.

Mendigos de plaga nova,

De novas terras e mares,

Divinizados na cova

Como as hóstias nos altares.

Mendigos da grande esmola

Da luz das estrelas nobres,

Que fulge e dos altos rola,

Entre as suas mãos tão pobres!

Mendigos de céus remotos,

De sóis dos mais velhos ouros;

Com a sua fé e os seus votos

E os seus secretos tesouros.

Mendigos de olhar severo,

Boca murcha, meio amarga...

Tendo um vago reverbero

De sonhos na fronte larga.

Mendigos de ínvias florestas

E de bosques fabulosos,

De melancólicas sestas

Nos crepúsculos brumosos.

Mendigos da Eternidade,

Tremendo dos sóis, dos frios,

Nas mortalhas da Saudade

Amortalhados sombrios.

Mendigos dos Infinitos,

Das Esferas inefáveis,

Noctambulando malditos

Nos rumos imponderáveis.

Mendigos de fome e sede

De água e pão de outros mundos,

Embalados pela rede

Dos Idealismos profundos.

Mendigos do azul Mistério,

Cuja alma — nívea sereia —

Fica saciada no aéreo

Pão branco da lua cheia!

 

Asas perdidas

 A Carlos Jansen Júnior

Afora, pelo azul indefinido e largo,

Passam asas sutis, pelo éter, longe, afora,

Como que a demandar outra mais doce aurora

Que a desta vida atroz, toda veneno amargo.

Não as asas assim, bem longe, pela curva,

No vago, na amplidão, perdidas pelos ares

Até virem caindo os véus crepusculares,

Toda a angústia do acaso, emocional e turva.

E diante dessa dor das tardes que esmaecem

As asas, pelo espaço, em voos desgarrados

Como a oração final dos tristes naufragados,

Longinquamente, além, tênues desaparecem

Cai então de uma vez a sombra dos segredos.

E na serena paz das noites adormidas,

Entre o fundo chorar dos calmos arvoredos,

Ninguém verá jamais essas asas perdidas.

E as asas o que são no firmamento errantes,

Perdidas pelos tempos, esparsas pelas eras

Senão os sonhos vãos, mundos alucinantes

Cheios do resplendor das flóreas primaveras?!

Por isso, eu quando o Azul repleto de asas vejo

Muito alto, céu acima, os páramos rasgando,

Toda a minh'alma oscila e treme num desejo

Em busca das regiões da dúvida, chorando!

 

Anjo Gabriel

Na calma irradiação das noites estreladas

Alto e claro aparece, alto, aparece, claro,

Alvo, claro, no luar das estrelas prateadas,

No triunfal esplendor celestemente raro.

O seu busto de Excelso, a sua graça fina,

A linha de harpa ideal do seu perfil augusto,

Estremecem de luz, de uma luz peregrina,

Do secreto fulgor de um sentimento justo.

Serenidade e glória e paz do Paraíso

Flutuam-lhe na face alvorecida e doce

E quando ele sorri é como se o sorriso

Claros astros semear por todo o espaço fosse.

Leve, loura, radial, a soberba cabeça

Eleva-se da flor do níveo colo louro

E não há outro sol que tanto resplandeça

Como o sol virginal dessa cabeça de ouro.

As mãos esculturais, de ebúrnea transparência,

De divina feitura e de divino encanto,

Lembram flores sutis de sonhadora essência

Da etérea languidez e de etéreo quebranto.

Das madeixas reais largo deslumbramento

Num flavo jorro cai, com sagrado abandono...

E sai do Anjo o quer que é de vago e de nevoento

Que lembra o despertar sonâmbulo de um sono...

De alto a baixo, do Azul, desfilando das brumas,

Abre todo ele em flor como nevado lírio,

Belo, branco, eteral, do candor das espumas,

Banhado nos clarões e cânticos do Empíreo.

Maravilhoso e nobre ergue no braço ovante

Um gládio singular que rútilo cintila...

Enquanto o seu olhar de mágico diamante

Aflora em plenilúnio através da pupila.

Que o seu olhar, então, esse, recorda tudo

O quanto há de tranquilo e luminoso e casto.

Maio de ouro a florir meigos céus de veludo

E a neve a cintilar sobre o monte mais vasto.

Do puro albor astral das asas majestosas

Desprendem-se no Azul mistérios de harmonia...

Entre as angelicais suavidades radiosas

Parece o Anjo Gabriel o alto Enviado do Dia!

Na chama virginal de tão rara beleza

Brilha a força de um Deus e a mística doçura...

E sai das seduções de tamanha pureza

Toda a melancolia errante da ternura.

Do suntuoso agitar das delicadas vestes

Tecidas de jasmins, de rosas, de açucenas,

Vem o aroma cristão dos aromas celestes

Todas as imortais emanações serenas...

Transfigurado, excelso, agigantado, imenso,

Na candidez hostial das formas impecáveis,

Fica parado no ar, levemente suspenso

De raios siderais, de fluidos inefáveis.

Mas quando o seu perfil nas amplidões floresce

E das asas se lhe ouve a música sonora

Quando ele agita o gládio e as madeixas, parece

Que vai noctambular pelo Infinito afora.

E alto, branco, de pé, destacado no Espaço,

Eleito das Regiões de estranhas Primaveras,

Traça, com o gládio no ar, alevantando o braco,

Uma cruz de Perdão na mudez das Esferas!

 

Crianças negras

Em cada verso um coração pulsando,

Sóis flamejando em cada verso, e a rima

Cheia de pássaros azuis cantando

Desenrolada como um céu por cima.

Trompas sonoras de tritões marinhos

Das ondas glaucas na amplidão sopradas

E a rumorosa musica dos ninhos

Nos damascos reais das alvoradas.

Fulvos leões do altivo pensamento

Galgando da era a soberana rocha,

No espaço o outro leão do sol sangrento

Que como um cardo em fogo desabrocha.

A canção de cristal dos grandes rios

Sonorizando os florestais profundos,

A terra com seus cânticos sombrios,

O firmamento gerador de mundos.

Tudo, como panóplia sempre cheia

Das espadas dos aços rutilantes,

Eu quisera trazer preso à cadeia

De serenas estrofes triunfantes.

Preso à cadeia das estrofes que amam,

Que choram lágrimas de amor por tudo,

Que, como estrelas, vagas se derramam

Num sentimento doloroso e mudo.

Preso à cadeia das estrofes-quentes

Como uma forja em labareda acesa,

Para cantar as épicas, frementes

Tragédias colossais da Natureza.

Para cantar a angústia das crianças!

Não das crianças de cor de oiro e rosa,

Mas dessas que o vergel das esperanças

Viram secar, na idade luminosa.

Das crianças que vêm da negra noite,

Dum leite de venenos e de treva,

Dentre os dantescos círculos do açoite,

Filhas malditas da desgraça de Eva.

E que ouvem pelos séculos afora

O carrilhão da morte que regela,

A ironia das aves rindo a aurora

E a boca aberta em uivos da procela.

Das crianças vergônteas dos escravos

Desamparadas, sobre o caos, à toa

E a cujo pranto, de mil peitos bravos,

A harpa das emoções palpita e soa.

Ó bronze feito carne e nervos, dentro

Do peito, como em jaulas soberanas,

Ó coração! és o supremo centro

Das avalanches das paixões humanas.

Como um clarim a gargalhada vibras,

Vibras também eternamente o pranto

E dentre o riso e o pranto te equilibras

De forma tal que a tudo dás encanto.

És tu que à piedade vens descendo.

Como quem desce do alto das estrelas

E a púrpura do amor vais estendendo

Sobre as crianças, para protegê-las.

És tu que cresces como o oceano, e cresces

Até encher a curva dos espaços

E que lá, coração, lá resplandeces

E todo te abres em maternos braços.

Te abres em largos braços protetores,

Em braços de carinho que as amparam,

A elas, crianças, tenebrosas flores,

Tórridas urzes que petrificaram.

As pequeninas, tristes criaturas

Ei-las, caminham por desertos vagos,

Sob o aguilhão de todas as torturas,

Na sede atroz de todos os afagos.

Vai, coração! na imensa cordilheira

Da Dor, florindo como um loiro fruto

Partindo toda a horrível gargalheira

Da chorosa falange cor do luto.

As crianças negras, vermes da matéria,

Colhidas do suplício a estranha rede,

Arranca-as do presídio da miséria

E com teu sangue mata-lhes a sede!

 

Velho vento

Velho vento vagabundo!

No teu rosnar sonolento

Leva ao longe este lamento,

Além do escárnio do mundo.

Tu que erras dos campanários

Nas grandes torres tristonhas

E és o fantasma que sonhas

Pelos bosques solitários.

Tu que vens lá de tão longe

Com o teu bordão das jornadas

Rezando pelas estradas

Sombrias rezas de monge.

Tu que soltas pesadelos

Nos campos e nas florestas

E fazes, por noites mestas,

Arrepiar os cabelos.

Tu que contas velhas lendas

Nas harpas da tempestade,

Viajas na Imensidade,

Caminhas todas as sendas.

Tu que sabes mil segredos,

Mistérios negros, atrozes

E formas as dúbias vozes

Dos soturnos arvoredos.

Que tornas o mar sanhudo,

Implacável, formidando,

As brutas trompas soprando

Sob um céu trevoso e mudo.

Que penetras velhas portas,

Atravessando por frinchas...

E sopras, zargunchas, guinchas

Nas ermas aldeias mortas.

Que ao luar, pelos engenhos,

Nos miseráveis casebres

Espalhas frios e febres

Com teus aspectos ferrenhos.

Que soluças nos zimbórios

Os teus felinos queixumes,

Uivando nos altos cumes

Dos montes verdes e flóreos.

Que te desprendes no espaço

Perdido no estranho rumo

Por entre visões de fumo,

Das estrelas no regaço.

Que de Réquiens e surdinas

E de hieróglifos secretos

Enches os lagos quietos

Revestidos de neblinas.

Que ruges, brames, trovejas

Ó velho vândalo amargo,

No sonâmbulo letargo

De um mocho rondando igrejas.

Que falas também baixinho

Lá da origem do mistério,

Trazendo o augúrio sidéreo

E certa voz de carinho...

Que nas ruas mais escusa,

Por tardes de nuvens feias,

Como um ébrio cambaleias

Rosnando pragas confusas.

Que és o boêmio maldito,

O renegado boêmio,

Em tudo o turvo irmão gêmeo

Do sonhador Infinito.

Que és como louco das praças

Nos seus gritos delirantes

Clamando a pulmões possantes

Todo o Inferno das desgraças.

Que lembras dragões convulsos,

Bufantes, aéreos, soltos,

Noctambulando revoltos

Mordendo as caudas e os pulsos.

Ó velho vento saudoso,

Velho vento compassivo,

Ó ser vulcânico e vivo,

Taciturno e tormentoso!

Alma de ânsias e de brados,

Consolador companheiro

Sinistro deus forasteiro

D'espaços ilimitados!

Tu que andas, além, perdido,

Tateando na esfera imensa

Como um cego de nascença

Nos desertos esquecido...

Que gozas toda a paragem,

Toda a região mais diversa,

Levando sempre dispersa

A tua queixa selvagem.

Que no trágico abandono,

No tédio das grandes horas

Desoladamente choras,

Sem fadigas e sem sono.

Que lembras nos teus clamores,

Nas fúrias negras, dantescas,

Torturas medievalescas

Dos ímpios inquisidores.

Que és sempre a ronda das casas,

A gemente sentinela

Que tudo desgrenha e gela

Com o torvo rumor das asas.

Que pareces hordas e hordas

De hirsutos, intonsos bardos

Vibrando cânticos tardos

Por liras de cem mil cordas.

Ó vento languido e vago,

Ó fantasista das brumas,

Sopro equóreo das espumas,

Ó dá-me o teu grande afago!

Que a tua sombra me envolva

Que o teu vulto me console

E o meu Sentimento role

E nos astros se dissolva...

Que eu me liberte das ânsias

De ansiedades me liberte,

Pairando no espasmo inerte

Das mais longínquas distâncias.

Eu quero perder-me a fundo

No teu segredo nevoento,

Ó velho e velado vento,

Velho vento vagabundo!

 

Marche aux flambeaux

I

Rompe na aurora o sol que a terra esbofeteia

Com látegos de chama, iriando o pó e a areia,

Iriando os vegetais de ricas pedrarias,

Dos rubis e cristais das ourivesarias;

Aurora acesa em cor de púrpura de cravos

Opulentos, febris, ensanguinados, bravos;

De ritmos leves de harpa e frêmitos e beijos

Que são da natureza os trêmulos arpejos;

Aurora que sorri, que traz pomposamente

Todo o raro esplendor da luz resplandecente,

Das paisagens loucas no fúlgido matiz

O aroma a derramar da meiga flor de lis.

Na alegria dos tons os pássaros cantando

Vão as asas abrindo, entre os clarões ruflando,

Asas emocionais, que assim dentre clarões

Palpitam num fervor de alados corações.

E no luxo oriental de etéreo Grão-Mongol

Como um Baco feliz rubro flameja o sol.

II

Filósofos titãs, filósofos insanos

Que destes turbilhões, que destes oceanos

De lutas e paixões, de sonho e pensamentos

Espalhásteis no mundo aos clamorosos ventos

A Ciência fatal, talvez como um veneno,

Que os tempos abalou no caminhar sereno;

Filósofos titãs, que os séculos austeros

No flanco da Matéria abris, graves, severos,

Sobre o escombro da fé, da crença e da esperança,

Da civilização o trilho que hoje alcança

No seu aço viril as regiões supremas,

Traçado em novas leis, doutrinas e problemas;

Vós que sois no Saber os monges da existência

E só acreditais na força da Ciência,

Que da morte sabeis os filtros invisíveis,

Narcóticos, sutis, incógnitos, terríveis,

Não sabeis, entretanto, apóstolos sombrios,

Como a luz da Ciência os homens estão frios,

Como o tudo ficou num doloroso caos

E os seres que eram bons, rudes, egoístas, maus.

Em vão! em vão! em vão! os vossos largos crânios

Lutaram pelo Bem dos Bens contemporâneos!

Tudo está corrompido e até mais imperfeito...

Não há um lírio são a florescer num peito,

De piedade, de amor e de misericórdia...

Se brota uma virtude o ascoso vício morde-a,

Envilece, corrompe e abate essa virtude

Com o cinismo revel dum epigrama rude...

E até muita alma vil, feroz, patibular,

Impunemente sobe ao mais sagrado altar.

Por isso vão passar perante a turbamulta

Como abrupta avalanche, enorme catapulta,

Numa marche aux flambeaux, os famulentos vícios

Que cavaram no globo horrendos precipícios,

Os vícios imortais, que infestam tribos, greis,

Povos e gerações, seitas, templos e reis

E que são como a lava obscura da cratera

Que subterraneamente em tudo se invetera.

Com toda intrepidez hercúlea de acrobata

Vou sobre eles soltar, gloriosa, intemerata,

A sátira que tem esporas de galhardo

Cavaleiro ideal que joga a lança e o dardo.

Vou com esse altanado e muscular esforço

De quem galga triunfal o soberano dorso,

A crista vigorosa, altiva, sobranceira,

Da mais agigantada e vasta cordilheira.

III

Lobos, tigres, chacais, camelos, elefantes,

Hipopótamos, ursos e rinocerontes,

Leopardos e leões, panteras acirrantes,

Hienas do furor, membrudos mastodontes

Tredas feras do mal, soturnos dromedários,

Serpentes colossais que rastejais na treva,

Monstros, monstros cruéis, medonhos, sanguinários,

Cuja pata esmagante a presa aos antros leva;

Ó ventrudos judeus, opíparos, obesos,

De consciência obtusa, ignóbil e caolha

Que no mundo passais grotescamente tesos

Com honras de entremez e grandezas de rolha;

 Gafentos histriões, ridículos da moda,

Que fingis entender Berlim, Londres, Paris,

Mas nos altos salões, por entre a fina roda,

Meteis sordidamente o dedo no nariz;

Brasonados truões, inúteis como eunuco,

Que as pompas ostentais de aurífero nababo

Mas apenas valeis como um limão sem suco,

Tendes rabo no corpo e dentro d'alma rabo;

Nobres de papelão, milionários vândalos

De ventre confortado e rosto rubicundo,

Que no torvo cancã no cancã dos escândalos

Sois o horrendo espantalho, a ignomínia do mundo;

Ó deuses do milhão, ó deuses da barriga,

Que sentindo a aguilhada intensa da luxúria

Buscais a mais em flor e linda rapariga

Para então vos fartar na luxuriante fúria;

Gamenhos de toilette e convicções de lama

Onde tudo afinal se atola e se chafurda,

Que do clube e do esporte sintetizais a fama

Mas tendes para o Bem a fibra sempre surda;

Palhaços, clowns senis, hediondos borrachos

Que aos trambolhões urrais afora no universo,

Desdenhando de tudo e até rindo dos fachos,

Do clarão do saber em toda a parte imerso;

Almas negras, servis, d’ergástulos caóticos,

Gerado no paul das lúgubres voragens,

Do crime nos bulcões, nos vícios mais despóticos

Aos quais tanto rendeis eternas homenagens,

Manequins, charlatães, devassos do bom-tom,

Que viveis nas Babéis das grandes capitais

Apodrecendo sempre infamemente com

O cancro do dinheiro as forcas virginais;

Mascarados tafuis de gordos ventres de ouro,

Ó bonzos do deboche e cínicos esgares,

Que sois o único sol esterlinado e louro

Das parvas multidões, das multidões alvares;

Fidalgos de barril, sicofantas, malandros

Do templo e do bordel, da crápula de harém

Que ao puro mar do Ideal, com torpes escafandros,

Arrancais, p'ra vender, a pérola do Bem;

Ó trânsfugas, ladrões que difamais a terra,

Que tudo poluís, do próprio lodo a flor,

A serena humildade, — intrepidez da guerra.

Aos beijos maternais, ao nupcial amor;

Espíritos de treva, espíritos de barro

Que enegreceis de horror o sangue das papoulas

E das ostentacões vos aclamais no carro,

Cobertos de cetins, arminho e lantejoulas;

Que se vem de repente o Nada sepulcral

Nunca deixais, sequer, no tétrico leilão,

No leilão da memória, estranho, universal,

Nem um som a vibrar do estéril coração!

Dentre feras brutais de ríspidos penhascos

E a torrente caudal de rijos versos francos

E a zombaria e o riso e as sátiras e os chascos,

Nesta marche aux flambeaux ides passar, aos trancos

Do mundo os naturais, zoológicos museus

Despejem pare fora as pavorosas massas,

Para virem reunir-se aos tábidos judeus

Irromper e seguir e desfilar nas praças.

Que a cada mate, a entranha, o seio virgem se abra

Jorrando tigres, leões, panteras do seu centro

E na dança infernal, estrupida, macabra,

Siga a marche aux flambeaux pelo universo a dentro.

Gargalhadas abri a rubra flor sangrenta

Da humanidade vã na amargurada boca

Vai agora passar a marcha truculenta

Sob o espingardear duma ironia louca.

E desfila e desfila em becos e vielas

E torna a desfilar por vielas e por becos

às risadas da turba, estultas e amarelas

Que tem o áspero som de gonzos perros, secos...

E desfila e desfila, estrídula e execranda,

Das praças na amplidão, rugindo em mar desfila,

Enquanto além dardeja, heroica e formidanda,

A metralha do sol que rútilo fuzila...

E mastodontes vão de braço dado a sérios

Burgueses que já são bem bons comendadores

E marqueses de truz, com ares de mistérios

De lunetas gentis e aspectos sonhadores

Dão o braço fidalgo e airoso das nobrezas

Aos ursos boreais, enquanto os conselheiros

Os condes, os barões, os duques e as altezas

Lá vão de braço dado aos lobos carniceiros.

E nessa singular, atroz promiscuidade,

Animais e truões de catadura suína

Gordalhudos heróis da infâmia e da maldade,

Vendidos da honradez, velhacos de batina

Bobos, cães, imbecis, humanos crocodilos

E déspotas, jograis, todos os miseráveis

De todas as feições e todos os estilos,

Uns aos outros lá vão jungidos, formidáveis!...

Mas a marche aux flambeaux derrama um pesadelo,

A agonia dum tigre, em sonhos, sobre um ventre,

Agonia mortal que envolve tudo em gelo...

E desfila e desfila entre sarcasmos e entre

As sátiras-fuzis, relampejando açoite,

Por essa imensa aurora, estranhamente imensa

Por um sol que angustia e que não tem da noite

Para a Miséria a sombra atenuante e densa.

Os vícios, as paixões, os crimes, ódios e erros,

Na marcha, de roldão, caminham fraternais

Com bandidos, vilões, burgueses rombos, perros

E focas e mastins, macacos e chacais.

Aos sobressaltos vão como visões, fantasmas

Bichos de toda a casta, anões de chapéu alto,

Deixando em convulsão todas as almas pasmas

E o globo num tremendo e fundo sobressalto.

E nas praças, ao sol, confundem-se os bramidos,

Os uivos com a expressão humana misturados,

Através do sussurro e bruscos alaridos

Das chacotas bestiais, dos risos trovejados.

E segue e segue e segue, afora, légua a légua

Essa marche aux flambeaux, ciclópica, estupenda

Caminha atravessando um longo sol sem trégua,

Um dia secular, um dia de legenda;

Caminha atravessando um sol de foco aberto,

Por um dia fatal, interminável, mudo,

O dia do remorso, aterrador, incerto

Que em todo o coração crava um punhal agudo.

Mas eu quero assim mesmo, eu quero-vos assim,

Em marcha tropical, à crua e ardente luz

Que vos seja uma febre indômita, sem fim,

Um cautério de fogo a vos queimar o pus

Venéreo da Moral, carbonizando-o até

Para que nunca mais se sinta dele a origem

Nem volte, como sempre, então, a ser o que é,

Deixando-vos no mundo inteiramente virgem;

Eu quero-vos assim, de fachos apagados,

Apagados, ao alto, os joviais flambeaux,

Que os tereis de acender nos campos ignorados

Que de sóis de Vingança a Eternidade arou.

E depois de vagar às sátiras de todos,

Na evidência da luz, numa perpétua aurora;

De caminhar ao sol, por tremedais, por lodos,

No tédio do sarcasmo, o tédio que a devora,

Essa Marcha afinal penetrará aos urros,

Titânica, sinistra e bêbada, irrisória,

Num caos de pontapés, coices, vaias e murros,

Na eterna bacanal ridícula da História.

 

O órgão

(Inacabado)

Um largo e lento vento dormente

Taciturnas lágrimas sonâmbulas, sinfônicas

Um esquecimento amargo

Uma sombria clausura de almas

Suspirando e gemendo solitárias harmonias

Vago luar de esquecimento e prece,

Dessa melancolia que anda errando

No mar e nas estrelas ondulando,

Pela minh'alma etereamente desce.

Na minh'alma, dos Sonhos anoitece

O Sentimento que ando transformando

Em hóstia de ouro

Sombra e silêncio

 

Rosa

És Rosa – isso diz tudo...

Se a rosa tem espinhos,

Meus olhos de veludo,

Tu tens espinho, flor...

Tens límpidos carinhos

Mas tens também espinhos

Que ferem todo o amor.

Tens límpidos carinhos,

Meus olhos de veludo,

Mas tens também espinhos...

És Rosa – isso diz tudo.

Isso diz tudo – és rosa...

Colhida na roseira

Da vida perfumosa

E seja como for,

De tal ou qual maneira

Que colham-te à roseira

Darás prazer e dor!...

De tal e qual maneira,

Da vida perfumosa,

Serás como a roseira...

Isso diz tudo – és Rosa!

1884

 

História gentil

I

Astro, diz-me o que é feito

Da tua antiga radiação tão bela

Quando na azul e curvilínea tela

Ias em pompa, em galas, satisfeito?...

O que é da tua fama

Do teu clarão tão fulguroso e aberto,

Do teu clarão tão matinal e esperto,

Astro, responde, o que é da tua chama?...

Onde ficou perdido,

Em que mundo de cânticos deixaste

Aquele resplendor em que radiaste,

Aquela luz e aquele colorido?...

Em que sítio afastado

Ficou-te o lume, todo o esbrazeamento

Que tinhas no teu louro firmamento

De luminosos sonhos estrelados?...

Diz-me tu, ó meu Astro,

Tu que as estrelas, tu que os sóis altivos

Deixavas humilhados e cativos

Adorarem-te, amarem-te de rastro?...

Onde escondeste, aonde

Aquela luz flamante como brasas,

Luz que radiando pareceu ter asas,

Ó Astro, fala, explica-me, responde?

II

Assim eu perguntava

Ao astro do Ideal que via em sonhos,

Nos brancos ares fúlgidos, risonhos,

Porém, esse astro nem sequer falava.

Se ele que anda tão alto

Perdeu o seu clarão resplandecente,

Quanto mais tu que andas constantemente

Por sobre o pó e a rigidez do asfalto?...

Se ele que lá em cima,

na vastidão dos páramos distantes

rege, constela os mundos palpitantes,

Perdeu a grande luz que afaga e anima?...

Quanto mais tu, criança,

Que se constelas, reges cousa alguma,

É com certeza o amor que te perfuma

Os roseirais floridos da esperança!

1884

 

Ritmos

À maneira de Blasco

I

Quem tem amores não dorme

Diz cantiga popular...

Não há nada mais conforme

Ao sentido de amar.

II

Quem espera sempre alcança,

Afirma um velho anexim...

No entanto quanta esperança

Tem princípio e não tem fim.

III

Quem espera desespera!

Esse outro antigo sifão

Diz a verdade sincera

Que existe no coração!

1886

 

Recordações

Recordações! – E para que de tudo

Aquilo que morreu e está passado,

Frio, gelado, para sempre mudo,

Recordar o perfume idolatrado?!

Para que prosseguir, tomar ainda

Às mesmas passageiras ilusões,

Se ao mesmo tempo que começa finda

A crença e a fé dos nossos corações?

Para que revolver cinzas tão frias

E sofrer mais que nas passadas eras

O tormento, o pesar que as alegrias

No peito faz emurchecer deveras?

Oh! deixemos dormir no esquecimento

Os sonhos findos, ilusórios, vãos;

E sejamos, num doce pensamento,

Na vida, apenas como dois irmãos.

 

Sombra adorada

Sempre a recordação daquela morta!

Sempre esta dor e sempre esta saudade

Que um dia pela minha mocidade

Um féretro deixou, passando à porta.

Para que havia de morrer tão cedo

Aquela que os meus beijos aqueceram,

E para sempre eles também morreram

Como o luar por entre um arvoredo.

Oh! antes como as monjas, ao exílio

Ela entregasse o corpo alabastrino

Do que extinguir a vida como um hino,

Depois de tanto amor e sacrifício.

Oh! antes nunca eu lhe notasse o rosto,

Nem a treva vital dos seus cabelos,

Que não teria agora de assim vê-los

Hirtos, gelados para meu desgosto.

Era a mais infeliz das criaturas

Essa que amei com todos os carinhos!

Nasceu, viveu só através de espinhos,

No desespero atroz das amarguras.

Mas, afinal os pobres infelizes

Que mais sabor podem gozar no mundo

Senão o de sentir no chão profundo

As convulsivas, trêmulas raízes!

Ah! corações ideais dos gondoreiros,

Canções de amor, suavíssimas baladas,

Falai-me das saudades afastadas

Dos amantes que vivem forasteiros.

Barcarolas do além, canções dos mares,

Voando como límpidas gaivotas

Para longínquas amplidões remotas,

Falai, dizei-me o que é que são pesares.

Vede como estas mágoas dilaceram,

Rasgam d’espadas todo o nosso peito,

Leito sombrio, devastado leito

Onde os sonhos de amor todos se geram.

Os colibris, todas as aves, tudo

Que voa para longe dos espaços,

Ah! quantos beijos soltos, oh! que abraços

Tão frios já no esquecimento mudo.

Que dor que devem ter os próprios astros

Perdidos pelo tédio das esferas...

Quanto pranto terão as primaveras...

Que saudades de outro porto os mastros!

Quanto mais eu que a dor me punge e corta,

Que saudade tamanha, ah! que saudade

Terei da minha triste mocidade

Que foi contigo, desgraçada morta!

 

Light and shade

À Memória de Arão Ramos

 

Infância

I

Infância! infância! toda a madrugada

Da vida entre rosais brancos passada!

Florescência de beijos

Abertos, como lírios, dentro d’alma

À luz do amor, celestial e calma,

Transbordante de harpejos.

Vaga feita de plácidas bonanças

Onde o verde batel das esperanças

Adoradas, assoma...

Céu brilhante de aurora todo o dia

Flor de sol orvalhado de alegria,

Inundada de aroma.

Sonho que resplandece.

Peregrina balada deliciosa,

Canção d’ave gentil e primorosa

Que nos prende e adormece.

Infância! infância! Toda a madrugada

Da vida entre rosais brancos passada!

 

Mocidade

II

Depois a mocidade

Com toda a revoada de mistérios,

Fremente d’ansiedade,

Inundada de cânticos aéreos.

Ai! esta mocidade! Quem é moço

Sente vibrar a febre indefinida

Das ilusões, da cença mais florida,

Na vigorosa artéria de colosso.

Das incertezas nunca mede o poço.

Asas abertas na amplidão da vida,

Páramos adentro, de cabeça erguida,

Vê  do futuro o mais alegre esboço.

Chega a velhice, a neve das idades,

E quem foi moço então, lê com saudades

Do azul passado o emocional compêndio.

Ai! esta mocidade palpitante,

Lembra um inseto de ouro, rutilante,

Em derredor das chamas de um incêndio!

 

Morte

III

Não conheci a pura infância dele;

Mas, conheci-lhe a mocidade, embora

A mocidade franca e leal daquele

Que não me escuta agora!

Muitas e muitas vezes

Por céus tranquilos de raiados meses,

Em Maio, por exemplo,

Íamos nós, vibrantes, como o dia,

Dos siderais turíbulos de prata

Da floresta – esse templo,

Ver exalar-se em nítida cascata

O aroma, como um fluido de harmonia.

Sentados junto ao rio

Quase sempre vizinho do oceano,

Nós víamos passar a todo o pano,

Através de floresta, algum navio.

E as ondas que na praia dialogavam

E o rio, numa branca eflorescência,

Pareciam dizer o que pensavem

Os nossos corações sobre a existência!

Falávamos então de muitas cousas,

De náufragos na vaga rude e triste,

Da virgindade em flor por sob as louças,

De tudo o quanto neste mundo existe...

Falávamos de artistas,

De livros e de espíritos gloriosos;

Ele adorava os poetas luminosos,

Tinha nevroses pelos realistas.

E que atestem tudo isto

Os pássaros ruidosos, barulhentos,

Que como um turbilhão de pensamentos,

Num rumor imprevisto,

Ruflando as asas pandas

Vinham, quem sabe de onde, de que bandas,

Pousando nas ramagens,

Ouvir o som estrídulo e ardente

Das nossas impolutas homenagens

Aposteosando os homens do presente!

Que asseverem as aves

Que nos cascateavam na cabeça,

Dentre a floresta espessa,

Os trinados melódicos, suaves.

Talvez que algum pedaço

De uma passada e tímida ventura

Que elas soubessem bem, traço por traço,

E ali viessem, de garganta pura

Cantar, cantar, na verde imensidade,

Como terna balada de saudade.

IV

Depois da infância e mocidade – a morte!

A sepulcral, fria e rajada forte,

Os convulsivos ventos

Tenebrosos, fatais, como soluços,

Esfuziando pelos firmamentos,

Tombando logo o lutador de bruços,

Fraco, gélido, exangue,

Completamente inerme

E sem mais ter as explosões de sangue

Na carne aonde já rasteja o verme!

Ele morreu inda bem moço, é certo

Constelado de crenças

Como de estrelas o horizonte aberto

Cheio de vivas radiações imensas.

Ele emigrou no inverno

Para além, como trêmula andorinha

Rasgando o espaço eterno.

Nem no corpo nem n’alma ele não tinha

A gelada velhice

E abria-se em meiguice,

Do amor, da esp’rança, do ideal no cúmulo.

De sorte que era então

Franco e leal como qualquer aldeão

Simples, humilde e rude.

Entretanto, lá foi, na juventude,

Envelhecer de podridão no túmulo!

(Maio, 26, 1887)

Publicado em Regeneração, de 5 de abril de 1887, sob o título: Light and Shade. Uelinton Farias Alves o publicou sob o título À Memória de Arão Ramos.

 

Idealizações

Os meus desejos perdem-se de manso

Nesse teu colo alvíssimo e celeste

Que eu de adorar nunca os meus olhos canso.

Não sei que paz olímpica me deste,

Que bonançoso e plácido remanso,

Que este meu ser é como um prado agreste,

Onde nas frescas, múrmuras folhagens,

Do sol pagão o ouro resplendente

Cai, qual da luz fulgentes homenagens.

Não sei que brilho ou que clarão ardente

Deste à minh’alma! e que sutis aragens

Emprestaste ao batel onipresente

Destes meus sonhos que ei-lo vai-se agora,

Coroando de pâmpanos e rosas,

Pelo oceano de cristal da aurora.

Vai navegando para as luminosas

Regiões da vida esplêndida e sonora

Que tens sob essas pálpebras formosas.

Mas uma vez chegando ao porto amado,

Porto de luz, sem noites nem escolhos...

Se esse batel achar-se naufragado,

Será, meu amor, nos mares dos teus olhos.

 

Confidências

Põe tua mão no meu peito...

Vê que bate um coração

Que quando está satisfeito

É por ti, por outras não!

Tu deixas ao desamparo

Nas horas de maior dor,

Com esse teu peito avaro,

Que tanto sofre de amor.

Em vez de seres o arrimo

Do meu profundo sofrer,

Esqueces quanto eu te estimo,

Sem que eu possa te esquecer.

Agora estás a meu lado,

Agora estás junto a mim;

Já não sou tão desgraçado

E posso viver, enfim!

Perdoo-te esse tormento

De tantos dias fatais

Em que tu no pensamento

Nem me trouxeste jamais.

Perdoo-te a indiferença

E todo o desprezo atroz

Que deste à saudade imensa

E às ânsias da minha voz.

Tudo, tudo te perdoo

Porque torno a ser feliz;

Porque volta aquele voo

Dos nossos tempos febris.

Sinto-te agora bem perto,

Bem presa nos braços meus,

Por baixo de um céu aberto

Que me lembra os olhos teus.

A funda melancolia

Que me acabrunha o existir,

Vem, com os raios da alegria

Do teu amor, extinguir.

Que todo o passado agora

Rebente em flores – e pois

Que seja uma nova aurora

Sobre as almas de nós dois.

Que esse amor, que esse desejo

Que outrora nos inflamou,

Se outrora parou num beijo

Num beijo, continuou.

Vem contrita e piedosa

E compassiva e leal

E misericordiosa,

Com teu amor virginal.

Que isto vai ser um martírio,

Nem eu sei o que será,

Minha casta flor do lírio,

Nem como acabará.

Mas só tu mereces tanto

De sacrifícios e até

Que eu, com lágrimas, o encanto

Deste amor encha de fé.

Só tu tens tido constância

Durante as separações

Dando-me brilho e fragrância

Ao resto das ilusões.

Pois Tu és tão pura e boa

E tanta virtude tens

Que o teu amor me abençoa

E dá-me o maior dos bens.

Porque nunca achei na vida,

Tanto (que) em vão procurei

Uma alma compadecida

Como essa que em ti achei.

Perdido, errante no mundo,

Por longe, no norte e sul,

Vivi, desse amor profundo

De primaveras do Azul.

Afinal, bom é que eu volte

Dos teus afagos ao sol

E da crença as asas solte

Num voo de rouxinol.

Que eu de mais nada preciso

Para viver junto a ti

Senão do astro de um sorriso

Que já nos teus olhos vi.

Nada mais preciso e quero

Para adorar-te, sequer,

Senão do afeto sincero

De tua alma de mulher.

Não do luxo e da riqueza,

De galas e de ouropéis,

Nem mesmo até da beleza,

Que são cousas infiéis!

Mas da graça do semblante,

Da asa dum olhar sutil,

Que passa febricitante

Num enleio senhoril.

Dos caminhos e atrativos,

Desse vago não sei quê

Que forma os encantos vivos,

Naturais, que ninguém vê.

Dum doce enlevo infinito,

Como se sente em Jesus,

E que abre um clarão bendito

De suavíssima luz.

Assim te quero e procuro,

Desejo e busco outra vez:

Com teu olhar assim puro,

Simples nessa candidez.

E peço ao mar bravo e rude

Todo o esplendor singular

De vigorosa saúde,

A fim de poder te amar!

1887

 

À que está morta

Morta, morta de amor e de saudade,

Separada de mim por longo espaço,

Penetraste da cova a imensidade

Sem o meu louco e derradeiro abraço.

Cedo gelaste em meio de uma estrada

Constelada d’estrelas luminosas

E no regaço e à trança perfumada

Em vez de beijos meus levaste rosas.

Não pude, longe, errante, por desertos,

Nesses ínvios atalhos vãos da vida

Mandar-te, como pássaros incertos,

Os sonhos da minh’alma condoída.

Cedo gelaste, ó carne dos meus beijos,

Por entre a podridão da terra escura...

Oh! não nascer a flor dos meus desejos

Da tua boca saborosa e pura.

Não te nascer dos olhos sedutores,

Voluptuosos, tropicais, ardentes

O bálsamo vital de tantas dores,

A saúde da fé para os descrentes.

Que lágrimas febris hei de eu, chorando,

Verter em cima dessa campa fria

Se as lágrimas em mim já vão secando

Nesta vida de trágica ironia!

Que eu, afinal, semelho-me às crianças

Cheias das verdes ilusões primeiras: -

Pois para perfumar as esperanças

Plantei no meu quintal muitas roseiras.

Que elas brotem agora, que floresçam

Para ventura dos meus pobres olhos,

Que vermelhas e brancas resplandeçam

Por sobre dores e por sobre escolhos.

Que elas perfumem todo o meu sentido

E vão, na cova onde o teu corpo existe,

Dizer que neste peito emudecido

Há o silêncio de uma dor mais triste.

 

Feia

O teu semblante divino,

Onde uma cisma vagueia,

Tem a tristeza de um sino

Que vibra em remota aldeia.

Para afastar os pesares

A natureza tem flores,

As noites os seus luares,

As almas os seus amores.

A roseira tem a rosa,

A cerejeira cereja

E o noivado a perfumosa,

Celeste benção da igreja.

E para o encanto dos olhos

Há no céu tantas estrelas

Que mesmo através de sobrolhos

É feliz quem pode vê-las.

Só tu não tens para as mágoas

As flores da natureza;

Luares entre essas fráguas,

Amores, nessa tristeza.

Não tens rosas de roseira

Nem benção do noivado,

Nem frutos da cerejeira

Do teu sorriso adorado.

E nem teus olhos ao menos

O encanto d’estrelas doura,

Pomba de voos serenos

Perdida em seara loura.

Não sei que dor, nem que sorte,

Nem que sina te entristece

Que andas branca como a morte

E bem mais vaga que a prece.

Ai! tua sina é ser feia!

Mas não é a pior sina...

Muito pior é a da areia

Levada na aragem fina!

 

Bandolim do luar

Por entre a branca flor do jasmineiro

Cai o luar melancólico e casto,

Num leve, suave, trêmulo nevoeiro

E no silêncio taciturno e vasto

Exala-se um perfume, um doce cheiro...

Cai o luar melancólico e casto

Por entre a branca flor do jasmineiro.

Cai o luar melancólico e casto

Nas orvalhadas, nítidas verduras

E no silêncio taciturno e vasto,

Nas veludas, meigas espessuras

Cai o luar melancólico e casto,

Nas orvalhadas, nítidas verduras

E no silêncio taciturno e vasto.

Num leve, suave, trêmulo nevoeiro

Vagos aspectos límpidos cintilam

À lua cheia e branca de janeiro,

As ondas na ardentia irial fuzilam,

Num leve, suave, trêmulo nevoeiro

Vagos aspectos límpidos cintilam

À lua cheia e branca de janeiro.

E no silêncio taciturno e vasto,

Abre-se a flor dos íntimos desejos,

Cai o luar melancólico e casto

Numa lânguida música e beijos

E no silêncio taciturno e vasto

Abre-se a flor dos íntimos desejos,

Cai o luar melancólico e casto.

Exala-se um perfume, um doce cheiro

De rosas, lírios, heliotropos, fenos

Nesta lua amorosa de janeiro,

De candidez e de clarões serenos,

Exala-se um perfume, um doce cheiro,

De rosas, lírios, heliotropos, fenos

Nesta lua amorosa de janeiro.

Por entre a branca flor do jasmineiro

Vão em visões os sonhos perpassando,

Os fantasmas gentis do amor primeiro

Vaporosas roupagens ondulando

Através do luar o mensageiro

Dos sonhos, das visões que vão passando

Por entre a branca flor do jasmineiro...

1887

 

Verão

(Insetos)

Pelos estios enormes,

Nas caladas morbidezas,

Nas atmosferas de brasas,

Os insetos multiformes

Ardem, com flamas acesas,

Voam com fogo nas asas.

Entre os tórridos aspectos,

Nos inflamados ardores,

Nas tropicais perspectivas

Zumbem quentes os insetos

D’apopléticos calores,

Como iriais centelhas vivas.

Na labareda sangrenta

Do sol profundo e nervoso,

De calidíssima origem,

A chusma d’insetos, lenta,

Zumbe, ferve no ar pomposo,

Numa elétrica vertigem.

Ferve a chusma undiflavada

Na sangrenta labareda,

Em goivos no ardente espaço;

E na forte luz vibrada

As suas asas de seda

São rijas como asas d’aço.

Que só o equilíbrio e a força

Da natureza impulsora

Pode fazer – os radiarem

Sem que uma asa se contorça,

Sem na chama geradora

As antenas estalarem!

 

Fuzis

(Ao carnaval)

Abram-se as urnas de prata

Das alegrias sonoras,

Lampejantes como auroras

Do azul rolando em cascata.

Estalem as gargalhadas

Joviais e cristalinas,

Na forte explosão das minas,

No retinir das espadas.

Batam asas os sorrisos

Convulsos, doudos, frementes,

Nervosos como serpentes,

Tilintantes como guisos.

Vibre forte e vibre ao largo

A retumbante fanfarra

Da fantástica algazarra

Que quebra os tons do letargo.

Afora a noite – e um bom dia

De ruidosos prazeres,

Alague todos os seres,

Em turbilhões de harmonia.

Rompa – ardente como a bala

Dos canhões vermelhos, rompa

Em ressonância de trompa,

Entre jogos de bengala

A legião cintilante

Dos vigorosos rapazes,

Alegres, vivos, audazes,

Num resplendor deslumbrante.

É soltar, a toda a força,

Os nervos da hilariedade,

Para que esplenda a igualdade,

Para que o mal se contorça;

Indo enchendo, indo insuflando

De vida os pulmões da verve,

Enquanto um bom sangue ferve

Na sociedade, radiando.

Que as alegrias floridas,

São como um grito de Alerta,

Jorrando em noss’alma aberta

Deslumbramento de vidas.

Acima pelo ar, acima

Os pavilhões multicores,

Como dilúvios de flores,

Como coriscos de rima.

Embriagai as esferas

com harmonias ignotas,

De forma que as próprias notas,

Lembrem céus de primaveras.

É rir, é rir – entre a pura

Alacridade de Momo;

É rir, é rir – assim como

Quem ri ao sol que fulgura.

Palpite fibra por fibra,

Como vagas, como mares,

Na curva eterna dos ares

O entusiasmo que vibra.

E o Carnaval, irradiando

Na florescência das rosas,

Salte em pompas luminosas,

Vibrando, cantando, rindo!

1887

 

Flowers

Pelos vergéis não há flores,

Foi-se o aspecto soberano

Das rosas, mas teus amores

Dão rosas de todo ano.

Suspirem essas campinas,

Gemam vales congelados:

Pela tu’alma as boninas

Florescem mais que nos prados.

Solucem as laranjeiras

Sem flores nas suas ramas;

Tu tens flores quando queiras

Porque és formosa e porque amas.

Não há jardim mais florido

Que o teu coração cheiroso...

Junto dele é ressequido

Qualquer pomar viçoso.

Canta lá, como em floresta,

O bando das esperanças,

Tal qual a doirada festa

De pombas e de crianças.

Teu coração faz encanto

Vê-lo assim, fresco e risonho,

Com tanto carinho, tanto,

Tanto amor e tanto sonho.

Vê-lo em c’roas e em grinaldas

De heliotropos e rosas,

Verde como as esmeraldas

Das folhagens cetinosas.

Vê-lo bater, abrir asas

Como ave de primavera

Por entre as acesas brasas

Dos acasos da quimera...

1887

 

Tédio e riso

A vida pela cidade

Não tem dos campos no estio

A doce felicidade

Da correnteza de um rio.

Tudo são sombras, tumulto,

Pesadelos tormentosos

Em que os risos são ocultos

Por densos véus tenebrosos.

Fumo, torres, monumentos,

Soberanos edifícios,

Tudo fala dos pensamentos,

Sem nunca esconder os vícios.

Praças, templos de granito,

Ostentações formidáveis,

Tudo se enleva num grito

De tédios imponderáveis.

Dentro do luxo, do orgulho

Dos ouropéis e das sedas

Estruge e brame o marulho

Da dor, nas ondas mais tredas.

Que ser feliz é ser forte,

Ter no peito um sol fecundo

Que apague a ideia da morte

E das misérias do mundo.

Ter d’aço e bronze a radiosa

Vontade feita harmonia,

Que floresce como a rosa

E que chama alegria.

Pois dos vínculos intensos

Do sangue, como raízes,

Brotam os lírios imensos

Do amor das almas felizes.

E enquanto em rio o ouro corre

Nas cidades de ar sombrio,

Nos campos a paz não morre,

Gozada à margem de um rio.

 

Cabelos e olhos

Na escura treva espessa de uns cabelos,

No loiro sol doirado de umas tranças,

Que de amorosos e profundos elos,

Quanta ilusão e quantas esperanças.

Se a noite ou o claro dia das madeixas

Tivesse voz e com ardor falasse,

Que turbilhão de desoladas queixas

Talvez por muito tempo nos contasse.

E os beijos quentes, os supremos beijos

Cheios do coração dos que se adoram

Cantariam de amor e de desejos

Os sons que nuns cabelos se evaporam.

Repetiram toda a cavatina

Em que os amantes vivem doidamente:

Alma com alma em região divina,

Lábios unidos num fervor calente.

E os olhos que traduzem quase tudo

Do nosso apaixonado sentimento

Que mundo de afeições, gelado e mudo,

Não nos diriam, solto já no vento...

Que originais, que cândidos mistérios,

Que ventura serena e luminosa

Uns olhos secos e doces, límpidos, etéreos

Não cantariam, numa luz saudosa.

Que impenetráveis, tristes aventuras,

Que desesperos trágicos, infindos,

Quantas quimeras ideais e puras

Não nos diriam tantos olhos lindos.

De uns olhos quantos sonhos e quanta crença,

Que pássaros de afagos e carinhos

Não teriam de abrir sua asa imensa

Como de dentro da maciez de ninhos.

Cabelos e olhos! – A alma indefinida

É presa da emoção destes cuidados,

Duns olhos e cabelos, que na vida

Servem de talismã aos desgraçados!

 

Auréolas

Conheço um poeta audaz que faz das suas rimas

Estrelas colossais de rútilos clarões,

Rimas que vão buscar os mais estranhos climas

Onde a vida palpita em novos corações.

Poeta varonil, tranquilo, extravagante,

Radioso como o sol, pujante como as raças,

Que esgrime e joga o verso e quebra num instante

As difíceis (...) como se fossem taças.

Ao lê-lo bom humor simpático e sadio

Insufla-me aos pulmões o éter do vigor

E escorre-me um luar mavioso como um rio

No cândido estendal suavíssimo do amor.

É certo que me alegra, é certo que me exalta

Seu verso magistral, de múltiplas surpresas,

Da qual o sol, a vida, o ruído pula e salta.

E o mundo e todo o mundo e todas as grandezas.

Em cada estrofe anseia e canta um céu diverso.

Um triunfo, uma glória olímpica de herói;

E há pelo organismo ideal de cada verso

Muita vez um spleen satânico que dói.

A ideia que ele expõe e as rimas inefáveis,

Da mais resplandecente originalidade,

Cintilam pelo ar, serenas e adoráveis,

Como frutos do sol, pomos de virgindade.

E vão rompendo a flux e afora, castamente,

Estrofes divinais, banhadas num azul,

Livres, impetuosas, livres como a enchente

Dos mares e a rajada elétrica do sul.

Cada estrofe que vibra é como uma alvorada

De tom imaculado, etéreo, diamantino;

E a ideia é sempre bela, embora complicada

Com o rico frontal de um templo manuelino.

Em borbotões joviais a poesia eterna

Rebenta-lhe feliz, pomposa, oriental,

Pois que ele é o timoneiro, o nauta que governa

A manobra gentil na barca do Ideal.

E dão-me um bem estar seus versos superiores,

O seu áureo tropel de rimas tão sonoras,

Como um branco dilúvio excepcional de flores,

Como duchas febris, puríssimas, de auroras.

 

Trovas

Um brigue de velas pandas,

E bandeirolas nos mastros,

Andou por aquelas bandas,

Rutinado pelos astros.

Rutinou sempre pra Leste,

Com marujosos portugueses,

E ao cabo de muitos meses

Voltou com vento Nordeste.

E o trouxe ele no bojo?

— Trouxe quarenta cativos;

Peitos tristes, aflitivos,

No mais tristíssimo apojo.

E assim que foram chegados

Batizou-os o vigário.

E depois de batizados,

Que suplício extraordinário!

Todos à roça, ao trabalho,

Doentes ou não doentes,

Sob o maldito espantalho

Dos chicotes reluzentes.

E quem, triste, se queixava

De não ter força e saúde,

Incontinente apanhava

A chicotada mais rude.

 

Aos professores do Liceu de Artes e Ofícios do Desterro

Assim. Nas lutas da Ideia

Sois os mais fortes heróis,

Cantando sempre a Epopeia

Da Luz, na arena dos Sóis!

Sois os enormes condores

Das amplidões das esp’ranças,

Que encheis de auroras e flores

O crânio azul das crianças.

É muito digno o Ensino

Que leva às almas o pão

Do bem! É nobre um menino

Levar um livro na mão.

Por isso eu sempre coroo

Com meu olhar a quem vai

Para o Futuro, num voo,

Como Moisés no Sinai.

Fitando as leis da Verdade,

Esse Evangelho que leva

Toda alma da Humanidade

Fora dos antros da Treva!

Bem. Eu quero em vossos rastros

(Incompleto, faltando o final do poema).

 

“Porque o amor uma vez interrompido”

Porque o amor uma vez interrompido

Não tem a igual efervescência de antes,

E fica indiferente, enfraquecido

Como os vagos amores inconstantes...

Perde todo o calor e toda a forte

Chama que as duas almas aqueceu;

E se parece a regiões da morte

Onde em sepulcros uma flor nasceu.

Que nunca mais teus olhos me procurem

Cheios de afago e de carinho cheios...

Que seja o amor que eles contritos jurem

Como de uns olhos para mim alheios.

Pois tudo o que os teus olhos me disserem

Para reatar um fio que quebrou,

Lembra punhais e lanças que ainda ferem

A ventura que cedo se acabou.

Não me recordes, não me lembres esse

Passado alegre e ao mesmo tempo triste...

Porque eu estou como se já morresse

E dentro em mim já nada mais existe.

Se eu torno a ver-te presa nos meus braços,

Se eu sinto a palma dessa mão tocar

Na minha, e a beijo, como os frouxos laços

Do nosso afeto têm de se apertar?!

Não! Não! Deixa-me assim! Que eu viva embora

Dessa recordação de dor, sozinho!

E se em caminho eu te encontrar agora

Não te lembres de mim pelo caminho.

Que eternamente nós nos separemos

Pela existência, sem saudades mais!

E um dia, que talvez nos encontremos,

Que nenhum de nós dois olhe pra trás!

(Incompleto, sem o início)

 

Sob as árvores

Eu caminhava taciturno e incerto

Por debaixo das árvores solenes...

Tu a meu lado caminhavas perto,

Cheia de aromas e clarões perenes.

E as árvores vitais, luminosas,

Formando verde abóbada d’espaços

Cercavam-nos de sombras silenciosas

E nos abriam docemente os braços.

No meio dos rumores da folhagem

Ouvíamos, mais flébeis e mais finas,

As músicas chorosas da ramagem

Das esgalhadas e altas casuarinas.

E essa música lânguida e sensível,

Desfeita em sons alados, peregrinos,

Parecia uma arcada indescritível

Dos mais harmoniosos violinos.

E eu quis saber do coração profundo

Das árvores atléticas e calmas

Por que é que sempre neste vasto mundo

É a dor o grilhão das nossas almas.

Se nós que vamos soluçando e rindo

Dos vendavais sob a vergasta forte,

Não estamos talvez nos iludindo,

Vivendo para atordoar a morte!

Se o frio corpo, o coração já morto

Por dentro de uma cova escura e rasa,

Não tem a gente o mesmo igual conforto

Que dentro da afeição da sua casa!

Se o cadáver gelado e ressequido,

Dentre a ironia trágica dos vermes,

Não solta ao menos nem um só gemido

Que vibre à flor das murchas epidermes!

Se há criaturas tão desiludidas

Das venturas e glórias mais insanas,

Que não fiquem dolentes e vencidas

Sob o togante das paixões humanas!

Mas, oh! somente às legiões serenas

Das interrogações desses assuntos,

O teu olhar me respondia apenas

Com o brilho ideal de muitos astros juntos!

1888

 

Tramway-coração

Sobre o seio vital da terra que fumega

Avança o trem de ferro o bojo formidável

E na febre voraz e na vertigem cega

Arroja-se veloz ao Templo imperscrutável.

Tudo acorda ao estridor dos aços inflamados,

Dos rígidos metais ao retumbante berro

Com que ele agita e faz solavancar os prados

Com seus largos pulmões flamívomos, de ferro.

Ganha relvas e vales, brenhas e montanhas,

O bramido de fogo ao espaço arremessando,

Um bramido feroz de vibrações estranhas

De sinistro animal pré-histórico bufando.

Brame e tremendamente afora vai bramindo,

Dentre a noite a correr ou dentre o sol profundo;

E os ventres colossais dos túneis investindo

Vão perder-se afinal nas amplidões do mundo...

Da vida das paixões na elétrica corrente

Iguais ao trem de ferro há corações que correm,

Que arrojam-se febris no gozo de repente

E perdem-se no mundo e loucamente morrem!

1888

 

O pomar

Nada mais fresco e mais purificado

Do que um pomar todo ele aberto em flores,

Onde um sol festival e purpureado

Deixa cair brilhantes esplendores.

Fica tudo risonho e perfumado

Quando das rosas vão se abrindo em cores.

Tudo freme de beijos e harmonias,

Harmonias de amor e quentes beijos

Acesos como as grandes alegrias

Ou como as almas ébrias de desejos;

E os pássaros – aladas fantasias,

Vibram nos ninhos trêmulos harpejos.

De cada flor explode uma alvorada

De aromas leves e canções cheirosas;

E à luz do dia pelos céus vibrada

Lírios, papoulas, violetas, rosas

Abrem num riso a boca delicada

Cheio de emanações deliciosas.

Nada possui mais cândida frescura

Do que essa doce e casta natureza!

Tudo toma outro encanto e formosura,

Uma irial e lírica beleza

Quando o pomar na esplêndida verdura

Pompeia falas, luxos de princesa.

E nada causa tanto encantamento

Como sentir em roda da paisagem

O aroma virginal que traz o vento

Quando faz agitar toda folhagem

Num sutil arrepio brando e lento

De momentânea, murmurante aragem.

Há madrigais, idílios e ruídos

Soltos, dispersos entre os arvoredos,

Idílios, madrigais indefinidos

Dos amorosos, íntimos segredos...

E dos altivos céus resplandecidos

Descem os dias prósperos e ledos.

Toda a beleza do pomar encanta,

Prende e seduz as almas e os olhares;

E essa ventura emocional é tanta

Que faz abrir os belos nenúfares

E faz cantar o coração, que canta

Como todas as aves dos pomares.

1888

 

“Que venha o duque normando”

Que venha o duque normando

De castelos escoceses

Com seu ar bizarro e brando

Amar-te os olhos ingleses.

E entre aromas e frescores

E revoadas de abelhas,

Como num campo de flores,

Que esse olhar vibre centelhas.

Que cantem na tua boca

As alegrias radiadas,

Numa ideal rajada louca

De voos de passaradas.

Que como os astros no espaço

Teu encanto resplandeça...

Com pelúcias no regaço

E asas de ave na cabeça.

E que os teus dous seios puros,

Que o amor fecundo beija,

Fiquem cheios e maduros,

Com dous bicos de cerejas.

1888

(Incompleto, sem o início)

 

Clarim!

(Hino da pátria aos moços)

Como sabres flamejantes

A outros quentes do sol,

Resplandecei triunfantes,

Como sabres flamejantes

E como um facho ou farol!

Ó moços! nos peitos bravos

Vibre o clarim d’avançar!

Nem da Dor sintais os travos,

Ó moços! nos peitos bravos

Feitos só para lutar!

Desfraldadas as bandeiras

Das esperanças vitais,

Ergam-se almas altaneiras,

Desfraldadas as bandeiras

Das nobres glórias marciais.

Que a fronte vos resplandeça

Nos prélios virgens do Bem!

Enquanto a esperança cresça

Que a fronte vos resplandeça

Para além e para além!

Que para além, no futuro,

É morte, é gozo, é viver!

E vós sois o palinuro

Que para além no futuro,

Tendes um mar a vencer,

De metralhas em metralhas

A profundez da razão

Abra as heroicas batalhas

De metralhas em metralhas

Com o bronze do coração!

As avalanches dos fortes

São como os leões do Amor...

E para afrontar as mortes

As avalanches dos fortes

Riem, cantam sob a Dor!

Vibre, pois, eternamente

Em sons d’alerta o clarim

Que acorda a falange ardente;

Vibre, pois, eternamente

Pelos séculos, sem fim!

Através dos sons gloriosos

Desse clarim marcial,

Da luz nos cristais ruidosos,

Através dos sons gloriosos

Rompe a aurora boreal!

Com flores em catadupa,

Em catadupa de sóis,

Do Mazepa na garupa,

Com flores em catadupa

Glorificai os heróis!

Os hinos de uma vitória

São de flores e de luz!

E na conquista da glória

Os hinos de uma vitória

Têm o esplendor de Jesus!

Com ramos, palmas e flores,

Na campanha varonil,

Ante o rufar dos tambores,

Com ramos, palmas e flores,

Combatei pelo Brasil!

Nua a espada, altivo o peito,

Desassombrados, correi!

E em nome do deus – Direito –

Nua a espada, altivo o peito,

Com o sangue heroico, vencei!

Que esse ardor de antigos Gracos

Enflore os vossos lauréis;

Porque não é para os fracos

Que esse ardor de antigos Gracos

Vem dos tempos através!

Mais alto do que as montanhas

Desfraldai às amplidões

O pavilhão, nas campanhas

Mais alto do que as montanhas,

Sobre os outros pavilhões!

Vamos! é tempo! à vanguarda!

Erguida ao espaço a cerviz!

E dentre os bransões da farda

Vamos! é tempo! à vanguarda!

É tempo de ser feliz!

Que se enraíze na almas

O valor que os bravos fez

E que reverdeça em palmas,

Que se enraíze nas almas

Toda a força da altivez!

Os fulgentes astros de oiro,

Num voo d’águia, arrancai!...

E da História no tesoiro

Os fulmegentes astros de oiro,

Como frutos, semeai!

Os fundos prantos vertidos,

Em meio ao vosso troféu,

Pelos mortos e feridos,

Os fundos prantos vertidos

Tornam-se em astros no céu!

São como estrelas de arados,

Da crença no reflorir,

Da Pátria os filhos amados

São como estrelas de arado

Sobre as terras do porvir!

1889

 

Versos à Dorvalina

Todo o jardim dos afetos

Que eu te dou continuamente

Vai cheio dos mais secretos

Perfumes, rola inocente.

Há nele rosas e lírios,

Muita flor desconhecida

Como é a flor dos martírios

E das lágrimas da vida.

Flor do vale e flor do prado,

Flor do campo e da colina,

Lembrando o teu rosto amado

Gentil criança divina.

Muita flor como esperança

Verde flor de primavera,

Só própria para criança

Que crê, que sonha e que espera.

Dá-me agora a flor doirada

Do teu sorriso d’infância,

Tão fresca e tão delicada,

Tão virginal de fragrância.

Dá-me a branca flor singela,

A flor de estrelas da boca...

Que como ave, em torno dela,

Esvoace minh’alma louca.

Que ela me queime e me abrase,

Que me encante e me proteja...

Que eu sinta esse gérmen, quase

Como o amor que em ti viceja.

Que essa flor do teu sorriso,

Como uma árvore, crescendo,

Seja um virgem paraíso

Sobre mim resplandecendo.

Que eu como átomo, perdido

Dentre as pétalas macias,

Esqueça o humano gemido

E as humanas ironias.

Que eu sinta no pólen d’ouro

Da flor ideal dos teus lábios

O poder desse Tesouro

Do amor que conquista sábios.

Que eu não tenha da matéria

Nenhum sentir nem vontade:

Esparso espírito na aérea,

Sideral imensidade.

Que eu me dilua no vento,

Nos espaços e nas águas

E seja no pensamento

O que no peito são mágoas.

Que eu me perca no incorpóreo

E no obsoleto das cousas,

Longe do riso marmóreo,

Gelado e triste das lousas.

Que eu seja um fluido, um perfume,

Um som, um brilho, uma essência.

Como essa que se resume

Na tua doce inocência.

Que talvez assim nas flores

Dispersos, soltos nos ares,

Não soubesse o que são dores

Nem visse o que são pesares.

Talvez que solto, disperso,

Errante, através dos mundos,

Eu não sentisse o meu verso

Chorando males profundos.

Talvez, crianças risonhas,

Que sem a humana impureza,

Pudesse, como quem sonha,

Cantar a tua beleza.

Só puros e só felizes

Podem cantar-te os carinhos;

Os vegetais e as raízes,

As aves dentro dos ninhos.

Todas as cousas serenas,

Colibris, pombos e rosas

Cantem-te a alma de açucenas

E madrugadas cheirosas.

Não quem visse entre muralhas

Onde a luta vã se encerra,

Nas mais estranhas batalhas

Por sete palmos de terra.

1889

 

Castelã

Bela e mais encantadora

Do que todas as belezas...

Graça leve de pastora

Que canta pelas devesas.

Enleios de passarinhos

E brilhos de primaveras,

Com magnetismos de vinho

No olhar azul de quimeras.

Feita de um jorro sadio

De auroras purpureadas...

Carne mais fresca que um rio

De frescas águas prateadas.

Tudo é frio e tudo é raso

Para dizer-te, a capricho,

Que és magnólia para um vaso,

Que és arcanjo para um nicho.

Entre cheirosas espumas

Das tuas sedas e rendas

Esvoaçam, como entre brumas,

Baladas, canções e lendas.

És um mito da Alemanha

Vivendo em montanha alpestre,

No castelo da montanha,

Como ardente flor silvestre.

E tens as pomas à farta;

Polpudas, cheias de aromas...

És assim a loura Marta

Com abundância de pomas.

Esse príncipe que te ama,

Cismando, trágico e grave,

Quando o luar se derrama

Cuida ouvir-te os voos de ave.

Ele vive, airoso e belo,

Como se vive num sonho,

No seu nevoento castelo

Junto de um lago tristonho.

E através do pó flutuante

Do luar saudoso e vago

Julga que és a garça errante

Das águas verdes do lago.

1889

 

Serenata & Outros poemas

A Ilma. Exma. Sra. D. M. A. P. C.

Esse teu corpo, divindade Angélica

Onde a natura colocou beleza,

É um conjunto da mais sã pureza

Dele um perfume, de frescor desatas!

Cruz e Sousa

 

Num baile

Estavas toda de azul,

Tão majestosa e elegante

Que senti naquele instante

Me pulsar o coração!

Cheio d’afeto, de júbilo

Cheio de amor, de ternura

Num momento de ventura

Enlouqueci de paixão!

Então sentei-me ao teu lado

E contemplei teu semblante,

Tão belo, tão radiante,

Tão puro, casto e gentil!

Teus olhos eram luzentes,

A boca rubra e pequena,

A voz mui doce e serena

Qual d’ave em tarde de Abril!

Teu cabelo era aloirado

Tua cintura era breve

E na face mui leve,

Transparecia o rubor!

Teu todo era um conjunto

De encantadora beleza

Que senti minh’alma presa

Aos elos de santo amor!...

E a dança continuava

Com incessante delírio

Enquanto duro martírio

Ia minh’alma rasgar!

Num antro então d’incertezas

Entrou-me a frágil razão

E num mar de escuridão

A louca foi-se a boiar!...

Era por ti que eu sofria

A tempestade moral!

Para depois por meu mal

Suportar a ingratidão!

E sem saber se me amavas

Quis dizer-te o que sentia!...

Insensato! que não via?

Qu’estavas a lutar em vão!

Não via, pois abrasado

Por tão ardente afeição,

Fui presa – dessa atração

Que tinhas sempre no olhar!

E amei-te tanto... mas tanto...

Que quis dizer-te com ânsia

— Oh! virgem dá-me constância!...

Que hei de sempre te amar!

..............................................

Assim, assim, te consagro

O mais eloquente amor!

Enquanto estalo – de dor

Tu vais folgando a sorrir!...

E se lembrares-te um dia

Do infeliz, desgraçado

Desculpa-o, que foi ousado...

Perdão te deve pedir!!...

(O Caixeiro, Desterro, 20 set., 1882, p.3-4)

 

Ignota Dea

Ao prezado amigo Correia de Mello

L’amour est de toutes lês passions la plus forte parce qu’elle attaque à la fois, la tête, lê coeur et lê corps.

(Voltaire)

Ela é um anjo de gentil beleza,

Uma das virgens divinais da terra,

O que su’alma de pudor encerra

Nem pode a lira sem tremer, cantar!...

Nos rubros lábios, cetinais, mimosos

Tem mil sorrisos d’ideais encantos

E os mais castos e sutis quebrantos

no brando olhar!...

Deus fez os mares e o céu e a terra,

Fez os mais astros de uma luz sidérea,

Que se livrando na mansão etérea

Despedem raios do maior fulgor!...

Criou as aves nos vergéis agrestes,

Tudo o que vemos neste globo infindo

Mas nada ainda tão gazil, tão lindo

como essa flor!...

A flux nos ombros delicados dela,

Caem-lhe negras, cetinosas tranças,

Onde se ocultam mil febris esp’ranças

Crenças felizes dum viver do Céu!...

E em seu peito que é de luz sacrário,

Algum mistério primoroso existe,

Bem como a lua que se mostra triste

por entre um véu!...

Será, amigo, essa chama ardente

Chama sagrada que requeima e mata

O que às vezes no olhar retrata

Essa deidade que decanto aqui?!...

Serão amores?! por acaso ao menos

Quando acalenta do porvir seus sonhos

Puros, amenos, com fervor, risonhos

pensará em ti?!

Oh! sim!... de certo, pois te ama... e muito!...

E tu, perdido, desvairado – vagas

Por essas ledas, ignotas plagas

Pelas serenas regiões sem fim,

Quando um sorriso peregrino e santo,

Cheio de aroma, de pureza e graça

Dos lábios dela, levemente passa

sobre o carmim!...

É belo amar-se no calor dos anos!...

Sentir o peito referver de amores,

Sem ter ciência do que são as dores,

O negro pranto deste mundo atroz!...

Ama constante, fervoroso e crente,

Mergulha a alma nesse amor sublime,

Que o doce quadro do prazer dirime...

se afasta veloz!...

O Caixeiro, Desterro, 10 de mar., 1882, p.4.

 

[A alma de Juvêncio]

E a ti, que sentias como poeta, a quem talvez o gênio matou num beijo de fogo, a quem Deus daria na existência a coroa mística dos amores, a glória suas visões, as noites seus perfumes, as luas suas lâmpadas de oiro! Boa Noite!

(Álvares de Azevedo, Orações Fúnebres)

A alma de Juvêncio foi suspensa

Da tarde no arrebol... suavemente

Perdendo-se veloz, alistridente

Nos páramos azuis, na esfera imensa.

Após tardo viver em sombra densa

E sempre a burilar no crânio ardente,

Depôs o alvião, a pena ingente

O nobre lutador. Fatal sentença.

Enquanto o corpo seu na sepultura

Dos vermes jaz enfim, já carcomido,

Faltando-se de horror, de noite escura,

Sua alma, seu espírito, fundido

Dos gênios imortais na luz que apura,

Altivo há de passar soberbo, erguido.

Anuário Catarinense, p.61-62, 1955.

 

Alvorada da indústria

Ao Engenheiro Sebastião Braga

Entreabre a natureza o místico pulmão,

Lembrando quem se ergue, aos tombos, dum letargo

E sente o latejar do rubro coração,

O músculo a distender, hercúleo, brônzeo, largo!

Uivando – o Trem de Ferro – estende a cauda enorme...

Enquanto nuns estranhos, íntimos vocábulos

Os passageiros gazis, nos bons conciliábulos

Orquestram pelo ar, em bando multiforme!...

Os seios tropicais se abalam da floresta

E a amena capital pressente, toda em festa,

Que apagam-se da treva as nódoas e os estigmas!...

Irrompe a exuberância audaz da natureza,

E as almas patriotas, ébrias de surpresa,

Decifram do porvir os rútilos enigmas!!...

Despertador, Desterro, 9 jan., 1884, nº 2163, p.2.

 

Alma do pensamento

À morte de Victor Hugo

O cimo da montanha, a cúspide escabrosa,

galgando entre esplendor, robusta e vigorosa,

a alma do pensamento,

alarga as grandes asas

por sobre o mar de brasas,

que o sol faz explodir do rubro olhar sangrento.

Ou mesmo embevecida

nas pompas o calor da fértil natureza,

nas tardes tropicais, na olímpica surpresa

vibrante desta vida;

nos cálidos fuzis flamívomos que douram

os montes – nos trovões que ríspidos estouram,

da vasta criação nessa alma irradiante,

em toda essa grandeza aérea e triunfante,

cantar o luxo e gala e as virgens do Oriente,

a pérola, o topázio, a opala e a ametista

cujo brilhar aceso e vivo e intermitente

produz fenomenais relâmpagos na vista.

Cantar em doce canto, em cântico melínfluo

o amor, a luz, o bem que os séculos investidos,

num ímpeto largífluo,

rebenta-lhe em cascata, a humanidade ungindo.

A alma do pensamento, essa alma admirável

que perde-se no caos supremo do Insondável,

deve rugir, voar e ser como nevasca,

não ter um só desmaio

mas irromper, vibrar, vibrar bem como o raio

que tudo quebra e lasca,

do côncavo horizonte intérmino e cerúleo,

do largo ventre cheio, inteiramente farto

de gases combustíveis,

matérias explosíveis,

ruindo com fragor no pinheiral mais harto,

no tronco mais hercúleo,

A alma do pensamento,

infrene como o vento,     

deve emocionar-se aos risos de esperanças,

ao soluçar das mães, aos beijos das crianças,

à lúcida vanguarda imensa do trabalho,

saber amar a luz, saber usar do malho,

ser mãe do desgraçado e dar-lhe entre carinhos,

a força e o bem-estar – salubrizados vinhos,

em largas expansões de coisas que deslumbram,

assim como o que sai das trevas que o obumbram,

e pálido e abatido e presa da clorose,

vê músicas, vê sol – augusta apoteose...

Deve afinal rugir no estrondo da procela

e ter aquele som febril e clangoroso,

ardente e atroador e enorme e estriduloso

da trompa marcial – e ter também aquela

serena placidez e os brilhos das estrelas

conforme as vejo eu lá, como eu costumo vê-las,

nos páramos de além, na alegre incomensura,

por onde a inspiração translúcida fulgura!...

Quem não compreender

Os filtros dessa luz pujante de Igualdade

que anima a cada ser,

que forma essa razão da grande humanidade;

quem não compreender os nadas fascinantes

que atiram para a glória os cérebros possantes,

e que erguem do vulgar o busto de Camões,

quem não compreender as mil rutilações

dos céus, dos claros céus, tão límpidos e nus,

os fluidos aurorais, narcóticos da luz;

quem não compreender dos pássaros, das aves

o coro florestal, as músicas suaves,

o meigo cintilar travesso de uns idílios,

o trêmulo fulgir nevrálgico de uns cílios;

quem não compreender sequer o que é virtude,

tudo o que vem do berço e rola na ataúde,

e tudo o que sentimos dentro do organismo,

a forte emanação sulfúrea de um abismo,

e tudo o que tem ar, centelhas, lumes flavos,

os átomos viris e a força da matéria,

os mundos de vapor da abóbada sidérea

e tudo o que perfuma – as rosas, lírios, cravos

e tudo o que nos vibra

— o ser – fibra por fibra

e tudo o que vegeta e cresce e que se agita;

quem não compreender que o astros até palpita,

quem não compreender – herege do Ideal

que a flor, que a pedra vê, que tem artérias – sente toda

esta orquestração simpática e vital,

engana-se a si próprio, à própria carne mente,

porquanto a natureza é sempre exuberante,

nos mostra aberrações, prodígio a cada instante.

E tudo compreendia

o Cristo universal da poética harmonia.

E era assim valente, essa alma extraordinária,

gigântea, portentosa, ideal, tumultuária

do sol que desde os reis aos míseros dos lodos,

jorrava luz e seiva e forças para todos.

E tinha as explosões das pólvoras das minas,

as rubras gargalhadas,

as cóleras ferinas,

as grandes contorções da luta, ensanguentadas

os rábidos Vesúvios

fortes, apopléticos,

os fervidos dilúvios

dos sãos, descomunais e bons entusiasmos,

as doidas cabriolas,

saltos epiléticos,

a esplêndida loucura enorme dos palhaços,

o culto religioso e santo das esmolas,

a vasta compridão eterna dos espaços,

as coisas estupendas

que o Dante assinalou nas trágicas legendas;

a rútila doença artística, nervosa

dos gênios imortais;

e então, sobre isso tudo, a lagrima assombrosa

que afaga e que abençoa os próprios animais...

Porque era como o mar em túrgido maranho,

essa alma onipotente

do cérebro vidente,

Do velho colossal que já nasceu tamanho!

Despertador, Desterro, 3 de jun., 1885, nº 2305, p.4.

 

Cantiga da miséria

Que fundas trevas pesadas

por esta noite sombria...

que mágoa pelas estradas,

Virgem Maria!

Que tristes coisas soturnas,

que noite, igual ao meu dia,

que atroz lamento nas furnas,

Virgem Maria!

Que longas ansiedades

e que profunda agonia,

que amarguradas saudades,

Virgem Maria!

Que sonhos, que pesadelo

de tumba sinistra e fria,

que suor nos meus cabelos,

Virgem Maria!

Que angustiosa e comprida

a luta que me asfixia,

que negra vida sem vida,

Virgem Maria!

Cirrus e Nimbus

Regeneração, Desterro, 16 jul., 1885, nº 151, p.2.

 

O que é o inferno

Sentir as ilusões, puras e belas,

inteiramente mortais e perdidas,

como um milhão simpático de vidas

iluminadas, doces todas elas;

Sentir murchar, como as gentis capelas

da virgindade as crenças tão floridas,

mandando o olhar às tristes avenidas

de uma existência rica de procelas;

Erguer do chão, às vezes, a migalha

de algum consolo envolto na mortalha

de uma ironia, de um sarcasmo eterno!

Entrar em vida num sepulcro mudo,

sem um lar, sem amor, sem luz, sem tudo,

só isso e nada mais é que é o inferno.

Manhã, Desterro, 28 mar., 1886, nº 1, p. 3.

 

Asas de ouro

Oh! vinte anos enfim! – Chegas-te ao cume

Da glória e mais do amor – desses carinhos

Que a alma recebe no frescor dos ninhos

Nos roseirais abertos em perfume.

Deus te estrele de sonhos em cardume

Essa cabeça doce como arminhos

E te gorjeiem muitos passarinhos

Dos teus olhos leais no vivo lume.

Bom dia, jovem rei! Noivo aloirado

Da primavera que auroresce o prado

Noivo da mocidade e da alegria.

Uma chuva de trêmulos canários

Flavos, trinantes, vindos de céus vários

Vá ao teu quarto gorjear: Bom dia!

Regeneração, Desterro, 30 out., 1887.

 

Flores de maio

Ao Sr. Luís Carlos de Saldanha

(Pelos seus anos)

Em maio, que é mês de flores,

é até bem natural

que do lar entre os amores

esteja em festa um natal.

E que não possui rosas

nem lírios na ocasião

mande as flores carinhosas

que brotam no coração!

(Cartão, assinado por Cruz e Sousa, datado: “Maio, manhã de 27, 1890”).

 

Flor espiritual

És um velho, bem sei! Mas entretanto

dentro de ti há muita mocidade...

Há músicas sutis, a suavidade

dum cristalino e sonoro canto.

Banha-te embora em pérolas o pranto

a face iluminada de bondade,

sempre um clarão de límpida saudade

do teu passado lembrará o encanto.

Mas que chores, enfim, eternamente...

Sempre em tu’alma generosa e ardente

hão de sorrir cândidas lembranças

De que foste na estrada do futuro,

o guia, o mestre glorioso e puro,

o divino santelmo das crianças!

Gazeta do Sul, Desterro, 17 de jun., 1890.

 

À Giulietta Dionesi

(Ofertando-lhe rosas)

Para a tua alma delicada e doce

eu estas rosas delicadas trouxe.

Trouxe-te rosas, divinal criança,

para te perfumarem d’esperança.

Rosas que são toda a minh’alma acesa,

no teu mavioso violino presa.

Rosas com que eu te aplaudo os grandes rastros,

Porque não tenho pássaros nem astros.

Jornal do Comércio, Desterro, 16 de out., 1890, p.2.

 

Willis

Luminosa visão feita de gases,

Papoula real tecida de neblinas

leves, etéreas, vaporosas, finas,

com ativos aromas de lilases.

Lírico adorno ideal das minhas frases,

nuvem das madrugadas purpurinas,

Willis juncal de mãos alabastrinas,

de flexuosas correções vivazes.

Floresces no meu Sonho como o trigo,

o trigo de ouro sob o sol floresce

e és a Religião que eu amo e sigo...

O Missal dos Missais, que resplandece,

a mulçumana igreja que eu bendigo

e onde murmuro a pecadora prece!

Revista Ilustrada (Rio de Janeiro), nº 632 p.6, out., 1891.

Versão de “Foederis Arca” publicado em Broquéis:

(Willis segundo uma lenda da Boêmia, Tchecoslováquia, é o nome dado às moças condenadas a sair todas as noites de seus túmulos e dançar até o amanhecer. Cf.: PETIT LAROUSSE. Claude Auge (Dir.). Paris: Librairie Larosse, 1910, p. 1652).

 

Lágrimas

Lágrimas, tu? mulher encantadora!

Não te bastava então essa pobreza,

Era mister pagar à Natureza

O tributo da dor esmagadora?

Era preciso à luta vencedora

Dar um quinhão de sangue de pureza,

Cristalizada em lágrimas na acesa

Voragem de uma vida aterradora?

Sim! Todos nós andamos por calvários,

Deixando às lamas, castos relicários,

Entre as brumas chorosas do desgosto.

Chora! e que eu beba, humílimo, de rastros,

As lágrimas que choras como uns astros,

Como estrelas no céu desse teu rosto.

Santa Catarina Magazine. Rio de Janeiro, 1º nov., 1895.

 

Serenata

É luar! Chega à janela,

Vai alta e branca a Lua bela

E fria...

Ó monja de áureo convento

Surgindo no peristilo,

À tona do firmamento

Tranquilo...

Dentre as celas aparece

Nas tuas vestes talares,

Vem ver dos fluidos luares

A prece...

Essa láctea claridade

Da noite profunda e vasta,

Mais casta que a Castidade,

Mais casta...

Entre os trêmulos nevoeiros

E os magnetismos da Lua,

Ofélia à flor dos salgueiros

Flutua!

O luar por tudo transborda

E tudo alaga e prateia...

Bandolins gemem na corda,

Sereia!

Na corda feita dos fios

Das estrelas palpitantes,

Dos raios, dos amavios

Radiantes!

Ondulam Silfos e Amores

Rendas, sedas e vidrilhos

De imaculados alvores

E brilhos!

Do fundo dos claustros raia,

Hóstias de ouro, monja doente!

Envolva-te essa cambraia

Fulgurante!

Que a Ceres de altas seara

De uma aréola te circunde,

E na luz ideal e clara

Te inunde...

Que a Lua é loura entre entre as louras,

Virginal entre as mulheres

E das etéreas lavouras

A Ceres!

Trilha os límpidos caminhos,

As celeiras luminosas,

De veludosos arminhos,

E rosas!

A todos abre da altura,

A Bíblia dos vagos ritos,

Da Quimera e da Ternura

Dos Mitos...

Vem, ó monja, entre as neblinas

Dos lírios, das açucenas,

Das volatas peregrinas,

Serenas!

Como o luar do Sonho alaga,

Vem vogar do Sonho agora,

Na doce, na branda vaga

Sonora...

Nua e soltos os cabelos,

Monja branca dos Mistérios,

Ressurge através dos gelos

Sidéreos.

Teu corpo ebúrneo e perfeito,

De beleza intemerata,

Tem no luar um níveo leito

De prata...

É luar! Chega à janela,

Vai alta a Lua erradia,

Alta e branca a Lua bela

E fria...

Novidades, 25 mar., 1906, p.1.

 

Julieta dos Santos

 

A ideia ao infinito

 À distinta e laureada atrizinha

 Julieta dos Santos

 "...a fama de teu nome,

 a inveja não consome, o tempo não destrói!...”

                                             (DR. SIMPHRÔNIO)

Era uma coluna de artistas!...

 Ao lado Tasso

Medindo as múltiplas conquistas

 Co’as amplidões do espaço!...

Seguia-se João Caetano

Embuçado da glória no divinal arcano!...

 Depois Joaquim Augusto

Altivo, sobranceiro, erguido o nobre busto.

 Depois Rachel, Favart,

 Fargueil, a espadanar

Nas crispações homéricas da arte,

Constelações azuis por toda a parte!

E em suave ondulação os astros

 Vão de rastros

Roubar mais luz às rúbidas auroras!...

 Quais precursoras

Do mais ingente e mago dos assombros,

Do orbe imenso nos calcáreos ombros,

Rola um dilúvio, um grande mar de estrelas

Que lançam chispas cambiantes, belas!...

Há um estranho amalgamar de cousas

Como os segredos funerais das lousas

 Ou o rebentar de artérias

— Ou o esgarçar de brumas,

 Negras, cinérias

— Ou o referver de espumas,

 Nas longas praias

Alvinitentes, mádidas, sem raias.

 Do brônzeo espaço,

 Das fibras d'aço

Como que desloca-se um pedaço

Que vai ruir com trépido sarcasmo

Nas obumbradas regiões do pasmo...

 — O Invisível

Geme uma música, lânguida, saudosa,

Que vai sumir-se na entranha silenciosa

 Do impassível!

 — O Imutável

 — O Insondável

La vão cair no seio do incriado.

 E o bosque irado

A soletrar uns cânticos titânios

 Lança nos crânios

Aluvião de auras epopeias

 Tétricas ideias!...

E o pensamento embrenha-se nos mares

 E vê colares

De níveas pérolas, límpidas, nitentes

 E vê luzentes

Conchas e búzios e corais, — ondinas

 Que peregrinas

Aspásias são de lúcida beleza,

De moles formas, desnudadas, brancas

 Sendo a primesa

Dessas paragens hiemais e francas!...

 — Ou quais Phrynés

 A quem aos pés

O mundo em ânsias, reverente adora

 E chore e chora!!...

..................

Mas a ideia o pensamento insano

As asas bate em busca de outro arcano,

E o manto rasga do horizonte eterno

 Vai ao superno

Ao Criador, ao Menestrel dos mundos!

E n'uns arroubos, rábidos, profundos

 Em luta infinda

 — Oh! quer ainda

Quer escalar o templo do impossível,

Bem como um raio abrasador, terrível!...

Quer se fartar de maravilhas loucas,

 Quer ver as bocas

Dos colossais Antheus da eternidade!...

Quer se fartar de luz e divindade

 E de saber,

 Depois jazer

Nas invisíveis cobras do insondável,

Bem como um verme, mísero, imprestável!...

 — Ou quer ousado

Descortinar os crimes do passado

E apalpar as gerações dos Gracos

 Dos Espartanos

 E dos Troianos

 E dos Romanos,

 Dos Sarracenos

 E dos Helenos,

E esbarrar nesse montão de ossos

 Por esses fossos

Tredos, medonhos, sepulcrais e frios

 Onde sombrios

Andam espíritos de pavor, errantes

 E vacilantes

Como a luzinha das argênteas lampas,

Lentos e lentos através das campas!...

....................

Mas a ideia, o pensamento audaz

 Quer ainda mais!...

Quer do ribombo do trovão pujante

Já n’um esforço adamastório, tredo

 Embora a medo,

 — O atroz segredo

Com que ele faz a terra palpitante!...

 E quer dos ventos

 Dos elementos

Quer do mistério a solução! — Nas trevas

 Hórridas, sevas,

 A gargalhada

Ríspida, negra irônica, pesada,

Estruge enfim, da morte legendária,

 E a ideia vária

Ainda n'isso ousando penetrar,

 Tenta sondar!...

 E em vão, em vão

A mergulhar-se em tanta confusão

 Não mais compreende

 — O que saber pretende!...

 Assim, oh! gênio,

Na ofuscadora auréola do proscênio

Não sei se és astro, se és Esfinge ou mito,

 Se do infinito

Possuis o encanto, os esplendores grandes,

 Ou se dos Andes

Águia tu és, ou és condor divino,

— Ou és cometa de cuja cauda enorme

 É multiforme

 Só lágrimas de prata

 Ou mesmo se desata

Um vagalhão de palmas, diamantino!!...

Minh'alma oscila e até na fronte sinto

 Medonho labirinto,

 Estúpida babel,

 E vou cair, revel

No pélago sem fim dos nadas materiais!...

 E como os racionais

Eu fico a ruminar ainda umas ideias

 De erguer-te, o novo Talma

Um trono singular, mas feito de — Odisseias

 De brancas alvoradas,

 Olímpicas, nevadas,

Dos êxtases magnéticos, nervosos de minh'alma!

29 de dezembro de 1882.

 

[Ao estrídulo]

 — Os Trópicos pulando as palmas batem...

 Em pé nas ondas — O Equador dá vivas!...

Ao estrídulo solene dos bravos! das plateias,

Prossegues altaneira, oh! ídolo da arte!...

— O sol para o curso p'ra bem de admirar-te

— O sol, o grande sol, o misto das ideias.

A velha natureza escreve-te odisseias...

A estrela, a nívea concha, o arbusto... em toda a parte

Retumba a doce orquestra que ousa proclamar-te

Assombro do ideal, em duplas melopeias!

Perpassam vagos sons na harpa do mistério

Lá, quando no proscênio te ergues imperando

— Oh! Íbis magistral do mundo azul — sidério!

Então da imensidade, audaz vem reboando

De palmas o tufão, veloz, febril, aéreo

Que cai dentro das almas e as vai arrebatando!...

29 de dezembro de 1882.

 

[Dizem que a arte]

Dizem que a arte é a clâmide de ideia

A peregrina irradiação celeste,

E d’isso a prova singular já deste

Sorvendo d’ela a divinal sabeia!.

Da “Georgeta” na feliz estreia,

Asseverar-nos ainda mais vieste

Que és um gênio, que te vás de preste

Tornando o assombro de qualquer plateia!...

Sinto uns transportes fervorosos, ledos

Quando nas cenas de sutis enredos

Fulgem-te os olhos co’a expressão dos astros!...

E as turbas mudas, impassíveis, calmas

Sentem mil mundos lhes crescer nas almas...

Vão-te seguindo os luminosos rastros!...

5 de janeiro de 1883.

 

[Um dia]

Um dia Guttemberg c'o a alma aos céus suspensa,

Pegou do escopro ingente e pôs-se a trabalhar!

E fez do velho mundo um rútilo alcançar

Ao mágico clangor de sua ideia imensa!

Rolou por todo o globo a luz da sacra imprensa!

Ruiu o despotismo no pó, a esbravejar...

Uniram-se n'um lago, o céu, a terra, o mar...

Rasgou-se o manto atroz da horrível treva densa!...

Ergueram-se mil povos ao som das melopeias,

Das grandes cavatinas olímpicas da arte!

Raiou o novo sol das fúlgidas ideias!...

Porém, quem lance luz maior por toda a parte

És tu, sublime atriz, ó misto de epopeias

Que sabes no tablado subir, endeusar-te!...

29 de dezembro de 1882.

 

[É delicada]

É delicada, suave, vaporosa,

A grande atriz, a singular feitura...

É linda e alva como a neve pura,

Débil, franzina, divinal, nervosa!...

E dentre os lábios setinais, de rosa

Libram-se pérolas de nitente alvura...

E doce aroma de sutil frescura

Sai-lhe da leve compleição mimosa!...

Quando aparece no febril proscênio

Bem como os mitos do passado, ingentes,

Bem como um astro majestoso, helênio...

Sente-se n'alma as atrações potentes

Que só se operam ao fulgor do gênio,

As rubras chispas ideais, ferventes!...

29 de dezembro de 1882.

 

[Imaginai]

Imaginai um misto de alvoradas

Assim com uns vagos longes de falena,

Ou mesmo uns quês suaves de açucena

C'os magos prantos bons das madrugadas!...

Imaginai mil cousas encantadas...

O tímido dulçor da tarde amena,

As esquisitas graças de uma Helena,

As vaporosas noites estreladas...

Que encontrareis então em Julieta

O tipo são, fiel da Georgeta

Nos dois brilhantes, primorosos atos!...

E sentireis um fluido magnético

Trêmulo, nervoso, mórbido, patético,

Bem como a voz dos langues pizzicatos!...

4 de janeiro de 1883.

 

[Parece que]

Parece que nasceste, oh! pálida divina,

Para seres o farol, a luz das puras almas!...

Parece que ao estridor, ao frêmito das palmas

Exalças-te feliz a plaga cristalina!...

Parece que se partem, angélica Bambina,

As campas glaciais dos Tassos e dos Talmas,

Lá quando no tablado as turbas sempre calmas

Transmutas em vulcão, em raio que fulmina!...

E quando majestosa, em lance sublimado

Dardejas do olhar, olímpico, sagrado

Mil chispas ideais, titânicas, ardentes!...

Então sente-se n'alma o trêmulo nervoso

Que deve ter o mar, fantástico, espumoso

Nos grossos vagalhões, indômitos, frementes!!...

3 de janeiro de 1883.

 

[Quando apareces]

Quando apareces, fica-se impassível

E mudo e quedo, trêmulo, gelado!...

Quer-se ficar com atenção, calado,

Quer-se falar sem mesmo ser possível!.

Anda-se c'o a alma n'um estado horrível

O coração completamente ervado!...

Quer-se dar palmas, mas sem ser notado,

Quer-se gritar, n'uma explosão temível!...

Sobe-se e desce-se ao país das fadas,

Vaga-se co’as nuvens das mansões douradas

Sob um esforço colossal, titânico!...

E as ideias galopando voam...

Então lá dentro sem parar, ressoam

As indomáveis convulsões do crânio!!...

29 de dezembro de 1883.

 

[Lágrimas da aurora]

Lágrimas da aurora, poemas cristalinos

Que rebentais das cobras do mistério!

Aves azuis do manto auri-sidério...

Raios de luz, fantásticos, divinos!...

Astros diáfanos, brandos, opalmos,

Brancas cecens do Paraíso etéreo,

Canto da tarde, límpido, aéreo,

Harpa ideal, dos encantados hinos!...

Brisas suaves, virações amenas,

Lírios do vale, roseirais do lago,

Bandos errantes de sutis falenas!...

Vinde do arcano n’um potente afago

Louvar o Gênio das mansões serenas,

Esse Prodígio singular e mago!!...

6 de janeiro de 1883.

 

Julieta dos Santos

 Tu passas rutilante em toda a parse

 Oh! sol de nossa pátria, oh! sol da arte!...

(VIRGÍLIO VÁRZEA)

Quando eu te vi pela primeira vez no palco

Avassalando as almas,

N'um referver de palmas,

Cheia de vida e cândido lirismo!

Senti na mente uns divinais tremores...

E louco e louco,

A pouco e pouco

Vi rebentar o inferno cataclismo!...

Mil pensamentos galoparam, céleres

Por minha fronte

E do horizonte

Quis arrancar os astros diamantinos,

Para arrojá-los a teus pés mimosos

E arrebatado,

Fanatizado

Por entre um mar de cintilantes hinos!...

Esse teu busto, a genial cabeça

Tão bem talhada

E burilada

Com o escopro límpido da arte,

Tem umas puras fulgurações suaves

E a tu'alma

Ardente ou calma

Os corações arrasta por toda a parte!...

A encarnação tu és das maravilhas,

A doce aurora,

Branda e sonora

Das teatrais e lúcidas ideias!...

Tens no olhar o filtro que arrebata

E és profética

E magnética,

Possuis na voz o som das melopeias!...

És a escolhida pare as grandes lutes

Esplendorosas

E majestosas!...

E sobre os débeis, delicados ombros,

Bem como Homero a sua lira d'ouro,

Resplandecente,

Trazes pendente

O Infinito enorme dos assombros!...

Quando apareces tudo ri e chore,

Se endeusa, agita,

Como que palpita

N'uma explosão de férvidos louvores!.

E o potentado mais febril da terra

Gagueja um bravo,

E faz-se escravo

O mais severo e nobre dos senhores!...

A Dejaset, uma Favart, Rachel,

O João Caetano

Como um arcano

Imperscrutável, hórrido, terrível!...

Quebram as louças sepulcrais e frias

E te louvando

Vão reinando...

Dizem que é sonho, é mito, é impossível!

Oh! tu nasceste para suplantar, JULIETA

Os grandes mundos,

Os mais profundos

D'ess'arte bela, magistral, divina!...

E esse olhar tão expressivo e terno

Já eletriza

E cauteriza...

É como um raio que a corações fulmina!...

Que sol é este, vão bradando os polos,

Tão sobranceiro,

Que o brasileiro

O vasto império confundindo está?!...

Venham teólogos, venham sábios... todos

Venham troianos,

Venham germanos,

Venham os vultos da Caldeia, lá!...

Oh! resolvei o mais atroz problema,

Fundo mistério,

Alto, sidério

Do gênio altivo na criança, ali!...

Vamos, natura, rasga o véu dos medos,

Dizei ó mares,

Falai luares,

Sombras dos bosques, respondei-me aqui!...

Astros da noite, tempestades, ventos

Erguei as vozes,

Falai velozes

N’um som estranho, n’um clangor audaz!...

E respondei-me e explicai ao orbe

Se essa menina,

Que nos fascina

É um fenômeno ou outro tanto mais!...

Tudo emudece na natura imensa

E desde os Andes,

Dos cedros grandes

Ao verme, à pedra, às amplidões do mar!...

Tudo se oculta na invisível raia

No espaço a bruma,

No mar a espuma

Vão-se esgarçando também, a se ocultar!...

Tudo emudece na natura imensa

Quando na cena

Surges serena

Como a visão das noites infantis!

Dos olhos vivos dos que são teus adeptos

Bem como prata

Eis se desata

A aluvião de lágrimas febris!...

É que tu tens esse poder superno

Real, sublime

Que até ao crime

Faz arrastar o mísero mortal!

É que tu és a embrionária horrível,

Mística, ingente

Que de repente

Fazes de um ser estúpido animal!...

Tudo emudece na natura imensa

Desde nos campos

Os pirilampos

Até as grimpas colossais do céu!...

Tudo emudece e até eu JULIETA,

Já delirante

Vou vacilante

Cair-te aos pés como um servil, um réu!!...

28 de dezembro de 1882.