Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A Funda de Davi, de Humberto de Campos


Edição de Base

Biblioteca Virtual Brasileira

I

COMODIDADE

Ainda no interior do Ceará, na sua fazenda do “Poço Comprido”, no Canindé, a três léguas da Caridade, tivera o coronel Benício Barbosa notícia dos extremos de gentileza a que se entregavam, às vezes, os cariocas. O seu compadre Altino Frota havia lhe dito, mesmo, que a generosidade, no Pio, era de tal modo, que ele encontrara várias moças que, supondo-o sem casa, lhe haviam oferecido a sua, à sombra da Galeria Cruzeiro.

Desembarcado no cais Faroux, passou o coronel dois dias, e duas noites, sem sair do quarto, na residência do seu sobrinho Custódio Barbosa, à rua Senador Dantas. Os onze dias de viagem haviam-no deixado de tal forma, que tudo girava com ele. Tivesse o prédio dois mastros e uma chaminé, e supor-se-ia ainda a bordo, de tantas guinadas que dava.

Ao anoitecer do terceiro dia, resolveu, afinal, conhecer a cidade. Encadernado na roupa nova que comprara em Fortaleza, chapéu-de-sol de cabo de ouro, enrolado no braço, tomou o coronel o rumo da Avenida, por onde perambulou algum tempo, olhando, embevecido, as luminárias. E regressava para a casa do sobrinho, quando, ao lado do teatro Lírico, à subida, quase, da ladeira de Santo Antônio, deu com os olhos em uma grande caixa de zinco, encostada ao muro, por trás da qual desapareciam de vez em quando, indivíduos de todas as classes, que surgiam, pouco depois, do outro lado. Intrigado com aquilo, o velho fazendeiro aproximou-se, com olhares desconfiados. Por trás do zinco ouvia-se, de perto, um barulho de água corrente.

Com a curiosidade peculiar ao sertanejo, o coronel Benício, seguindo os passos de um cavalheiro que ia no rumo da caixa, penetrou, também, nela, para decifrar, logo, aquele mistério. E sorriu, satisfeito: o refúgio de zinco era, apenas, o disfarce de um lugar público de que ele andava à procura, e de que logo se utilizou, à semelhança de dois ou três cidadãos que ali se achavam, na mesma situação ridícula, mas humana.

Mal, porém, começara o fazendeiro a cumprir, com a gravidade que o caso requeria, o dever que a Natureza lhe impusera, eis que chega ao local, também, um dos cambistas da porta do Lírico, levado, até ali, pelas mesmas necessidades. Ao ver, no entanto, tão perto, aquele ancião, achou que era, talvez, ocasião para vender-lhe um bilhete do “Ba-Ta-Clan”, para aquela noite. E foi com esse pensamento que se aproximou do velho, tocando-lhe, de leve, no braço.

— Cidadão! — chamou.

Benício Barbosa voltou o rosto para ele.

— Não quer uma cadeira? — indagou, gentil, o cambista, os bilhetes na mão.

— Não, senhor; não é preciso, não! — agradeceu, sorrindo, lisonjeado, o fazendeiro.

E retomando a posição:

— Eu me arranjo mesmo em pé...

II

O DESARRUMADO

Desde menino, fora assim, o Abelardo. Copo que ele tirasse da mesa, ou vassoura que trouxesse do canto, não voltava, jamais, ao ponto de que saíra. Na escola, quando começou a aprender, punha o tinteiro no lugar do livro, metia a caneta no bolso, guardava o lenço na carteira, e tudo numa confusão, num estouvamento, num desmazelo, de pôr doida a professora. O seu quarto de dormir era um caos. A roupa, que devia estar no cabide, era encontrada no leito, enquanto que a roupa do leito andava, atoa, pendurada pelo cabide. Raro era o dia, em suma, em que a criada não encontrava o travesseiro em cima da mesa de estudo, e o criado-mudo em cima da mesa, ou dentro do guarda-casacas.

— Este meu filho é um desmantelo! — gemia a pobre Dona Engrácia, desolada.

E com as mãos na cabeça:

— Um dia, eu ainda vou encontrar a caçarola na cadeira dele, e ele, sentado, em cima do fogão!

Coisa que o Abelardo pegasse aqui, era, necessariamente, para deixar acolá. O sentimento da ordem, da arrumação, do método, era-lhe desconhecido. Dessem-lhe um livro para colocar na estante, e ficava no caminho, em cima do primeiro móvel. Por isso mesmo, o maior trabalho da casa, de manhã, consistia na reunião das peças do vestuário, que ele ia largando, à noite, ao entrar, desde a porta da rua até o espelho da cama. Chapéu, sapato, paletó, gravata, colarinho, camisa — tudo isso amanhecia espalhado pela escada ou pelo chão, como se lhe faltasse, em absoluto, o sentido da justeza, o senso da propriedade.

Foi, por isso, um espanto para Dona Engrácia, quando o Abelardo lhe foi comunicar, sacudindo, atabalhoadamente, o chapéu, para dentro do petisqueiro:

— Sabes, mamãe? Vou me casar!

— Casar, tu?

— Eu, sim: e já tenho até noiva!

Seis meses após essa comunicação realizava-se, efetivamente, o casamento do Abelardo Viana com a Deolinda Bolonha, filha do general Bolonha Prego, revestindo-se o ato da maior solenidade. Por ocasião da troca dos anéis, meteu o rapaz a aliança da moça no dedo polegar, e tudo tão atrapalhadamente que se tornou preciso a intervenção das pessoas mais próximas.

O casamento exerce, porém, sobre os homens, uma influência tão positiva, que, nessa mesma noite, Dona Engrácia teve certeza de que o filho se achava restabelecido. Aflita, nervosa, a desventurada senhora ficara rondando o quarto dos noivos, nessa inquietação que, em tais circunstâncias, assalta todas as mães. E rondava, pé ante pé, quando percebeu que o rapaz tomara nas mãos a lâmpada de cabeceira.

— Meu Deus! — gemeu a velhinha. — Ele é capaz de pôr a lâmpada no guarda-vestidos!

Um momento depois, porém, sorria, feliz, por ver que o Abelardo, por um desses milagres do casamento, começava a tomar juízo. É que vinha, de dentro, a voz da Deolinda:

— Ora, graças a Deus!

E num elogio, com um beijo:

— Pela primeira vez você bota uma coisa no lugar!

III

DIÓGENES E CLEONICE

Faces encovadas, olhos faiscantes de luxúria e de fome, Cleonice, a antiga pitonisa de Delfos, errava, naquele dia, pelas ruas tortuosas de Atenas. Pelos buracos do manto sujo, estraçalhado pelos cães e pelos marujos do Pireu, viam-se oscilar, como badalos de um velho sino, os dois seios sem vida, conspurcados por todos os devassos da Grécia.

Antiga amante do banqueiro Cálias, que a arrancara ao tormento da trípode, conhecera a filha de Sizínio, de Rodes, todas as delícias da riqueza e do luxo. Oradores e filósofos, artistas e generais, dar-lhe-iam a vida, por um beijo. Vinha do Oriente remoto a púrpura para o seu manto, e era corrente que saíam galeras e caravanas, rumo das ilhas longínquas, e das índias misteriosas, para trazerem de lá o vinho, para a sua mesa, e o perfume, para o seu banho. Quando, à tarde, o seu vulto aparecia na Ágora para ouvir a palavra dos sábios, o próprio Aristômaco, de Quios, sentia tremores na voz, interrompendo o discurso para beber, com a boca dos dois olhos, no límpido córrego da sua beleza.

De braço em braço, de orgia em orgia, chegara, porém, àquela condição. Do leito do atleta Filagro, passara ao dos soldados de Egirálio, acampados nas vizinhanças da Acrópole. E ali estava, à sombra de um muro, como a ruína de si mesma, a chamar com os olhos febris os transeuntes sem rumo, quando viu surgir na curva próxima uma figura de homem. Vinha curvado para a frente, quase de quatro pés, como um bicho. A barba hirsuta e branca misturava-se, no rosto, à cabeleira sem trato, que desabava sobre as orelhas e, às vezes, sobre os olhos. O torso escapava-se-lhe, peludo e nu, dos retalhos do manto, cobrindo apenas um ombro e as partes vergonhosas do corpo.

A megera não careceu de grande esforço para reconhecer, de longe ainda, Diógenes, o filósofo, que vivia num tonel, nas vizinhanças do monte das Ninfas. Ao chegar mais perto, a cortesã contraiu o sobrolho, franzindo, num sorriso de ébria, a boca desdentada. É que Diógenes trazia à mão, junto à terra, não obstante a claridade forte do dia, uma lanterna, em cujo ventre luzia urna luz pequenina.

— Que procuras, Diógenes? — indagou Cleonice, olhando, também, para o chão.

A essa voz conhecida, o filósofo levantou a cabeça, parou um instante, e rosnou:

— Procuro um homem!

— Ah! filho, se é assim, é melhor que te vás! — retrucou, cínica, a antiga amante de Cálias.

E cuspinhando para um lado, num gesto repugnante:

— Eu estou aqui desde manhã, e ainda não encontrei nenhum!...

IV

O POÇO

O rabicho atirado para trás, as guias do bigode caídas aos cantos dos lábios, como duas caudas de rato, Mang-Tsen, orgulho da China e conselheiro de príncipes, meditava em silêncio à sombra da cerejeira sagrada. Mãos cruzadas no ventre, pernas cruzadas no chão, o olhar dominava de lá o horizonte, acompanhando o voo surdo do pensamento. E mergulhava, com a imaginação, nas ondas eternas do tempo, quando Lun-Yu, o discípulo amado, lhe tocou, de leve, no ombro.

— Filho de Li Sáo, — disse-lhe o recém-chegado; — eu tenho o coração como uma colmeia: sinto, nele, o mel que me delicia; mas, ao lado do mel, está a abelha, que me tortura. Disseste-me que eu fosse bom e generoso. Oito vezes já floriu a cerejeira, sem que eu me afastasse do teu conselho. E como a vida é curta e o gozo é breve, eu te pergunto se já não era tempo, acaso, de voltar à minha vida antiga, abandonando o caminho que me traçaste. As minhas obras boas, a minha renúncia aos prazeres durante tantas luas, não bastarão, porventura, para assegurar o repouso do meu espírito no reino eterno das sombras?

Sem voltar o rosto, os olhos e o pensamento no horizonte, as mãos cruzadas no ventre, as pernas cruzadas no chão, Mang-Tsen, orgulho da China e conselheiro de príncipes, não respondeu, logo, ao discípulo. As folhas da cerejeira continuavam a cair, uma a uma, como insetos mortos no voo. O sábio contou até nove, e, terminada a conta, falou assim:

— Lun-Yu, passa por este lugar, a uma profundidade que eu não conheço, uma torrente subterrânea. Pode correr quase à superfície, mas também pode estar muito longe. Queres tu procurá-la para a minha sede?

Durante horas, os joelhos na terra, os dedos sangrando, mergulhou Lun-Yu as mãos nervosas e magras na areia ingrata do solo. O suor caía-lhe, como pérolas de um colar arrebentado, da concha do rosto amarelo. E era quase noite quando tombou, fatigado:

— Não tenho mais forças, Mestre!

— Filho de Tchen-Hai, — observou-lhe o sábio, impassível; — que proveito tiraste do teu esforço, interrompendo o trabalho em caminho?

— Nenhum, Mestre.

E Mang-Tsen:

— Pois a Virtude é assim. Aquele que a ela se vota, e não persevera, é como aquele que cava um poço. O homem que, depois de cavar até setenta braças, abandona a terra por não ter encontrado a fonte, é como se não tivesse cavado, sequer, uma braça!

E continuou, calmo, os olhos no horizonte, as mãos cruzadas no ventre, as pernas cruzadas no chão.

V

A BORBOLETA

Terminada a cerimônia do casamento e despedidos os convidados mais recalcitrantes, o coronel Benevenuto puxou o relógio de ouro do bolso do colete, examinando as horas:

— Sete e dez. O trem está contratado para as oito, e vocês não têm muito tempo a perder. O automóvel levará meia hora daqui à Praia Formosa, de modo que devem sair daqui às sete e vinte, para chegar com antecedência.

O aviso era bom, e prudente. Casados naquela tarde, o Dr. Júlio Ângelo e a Beatrizinha, filha do coronel, não tinham cabeça para aqueles cálculos de momento. E se não fosse o velho, com a sua solicitude, não teriam eles tomado o seu carro especial no trem das oito, e chegado em Petrópolis, onde os esperava outro automóvel para levá-los à chácara das Hortênsias, em que deviam passar a lua de mel.

A noite era de verão, e estava deliciosa. A serra parecia mais alta, e as estrelas mais baixas, como se tivessem descido para espiar, curiosas, o rosto risonho da noiva. E foi sob a doçura daquele céu, acariciados pelo clima incomparável daquelas alturas, que Júlio Ângelo e a sua Beatrizinha dormiram, ou, melhor, se recolheram à alcova nupcial, onde os beijos se cruzavam mais numerosos, e mais brilhantes, do que os vagalumes que enxameavam lá fora, iluminando as moitas floridas.

A manhã seguinte foi digna da noite que a precedera. O sol parecia ter sido areado de novo pelos anjos, e derramava-se por tudo, em torno, num grande jorro de luz. As roseiras estavam derreadas de rosas, como se tivessem multiplicado a fecundidade para a doce glória daquele dia. E sobre as roseiras, acompanhando o balanço das rosas, centenas de borboletas bailavam, rodopiavam, brancas, vermelhas, cinzentas, amarelas, como se o vento estivesse, num ataque de doidice, despetalando sacrilegamente os rosais.

Eram quase nove horas quando Júlio Ângelo abriu a janela que dava sobre o jardim, para gozar, com os pulmões e com os olhos, a glória da manhã. E foi deslumbrado pela claridade forte que puxou para si o corpo frágil da virgem da véspera, que retocava, diante do espelho, o seu penteado singelo, em que o cabelo castanho descia de um lado e de outro sobre as orelhas pequenas.

— Que beleza! — fez a moça, juntando as mãos miúdas, num gesto infantil.

— Vamos dar uma volta pela chácara? — convidou o rapaz.

Obtido o consentimento, que foi um beijo, desceram os dois ao jardim, de onde se divisava o mais soberbo dos panoramas. Ao longe, no vale, o Piabanha rasgava nas pedras o seu manto escuro, deixando na ponta dos rochedos o retalho fervilhante das rendas. Mais longe ainda, eram as montanhas, os cabeços mais altos, em que as plantações punham quadrados mais claros, de vegetação espaçada e recente.

Braço no braço, rosto no rosto, olhavam os dois a paisagem deslumbrante, quando o rapaz deu com os olhos numa borboleta maior que as outras, que acabava de pousar sobre uma rosa.

— Linda! — exclamou Beatrizinha, num entusiasmo de criança.

E ia atirar-se na perseguição do inseto, quando o marido a deteve, indo ele próprio apanhá-la com a cautela requerida. E um minuto depois apresentava à alegria sorridente da moça, entre o polegar e o indicador, preso pelas asas que se espedaçavam, o mimoso lepidóptero desejado. Temendo que o bicho continuasse a debater-se nas suas mãos, Júlio Ângelo pediu à noiva:

— Tens um alfinete?

A moça tirou da blusa um alfinete grande, entregando-o ao rapaz, que atravessou, com ele, de meio a meio, a pobre borboleta, cravando-o, enquanto ela se debatia, no tronco de uma palmeira que havia perto. E admiravam, os dois, a beleza daquelas asas, a delicadeza daquelas tintas, a graça daquela joia da natureza, em que os movimentos da vida, paralisados, pela selvageria do homem, se tornavam cada vez mais tênues, mais espaçados, quando Júlio Ângelo observou:

— Estás vendo? É por isso que dizem que a borboleta é a imagem da mulher!

— Oh! Júlio... — fez a moça, enrubescendo, e escondendo o rosto no ombro do companheiro.

— Sim, — continuou este, sem perceber a malícia feminina; — diz-se isso, porque acham que as borboletas são volúveis como as mulheres, voando de flor em flor, como aquelas voam de coração em coração.

— Ahn! — tornou a noiva, mais tranquila.

E rindo, ainda mais vermelha, afundando o rostinho garoto, de menina, no peito forte do rapaz:

— Eu pensava que era por causa do espeque!...

E abraçou-se com o marido, nervosa.

VI

SOPRANDO A POEIRA

O grande templo católico daquele bairro elegante achava-se quase cheio para a missa das oito. Ao fundo da nave, alto, severo, majestoso, o altar-mor cintilava de ouro e de luzes, dando ideia, na terra, da imponente magnificência do céu. Estiradas para cima, as velas pareciam rezar, com as línguas de chama, um grande cântico silencioso ao Deus das alturas, pela graça misericordiosa daquele suplício, em que morriam, brilhando.

Atravessado de bancos, que pareciam as espinhas de um cetáceo enorme, o templo estava, quase, na penumbra. Sentados, em fileiras, os devotos guardavam silêncio, como se o ouvido de Deus estivesse aberto em cima, no teto, para recolher cada palavra profana. Apenas aqui, e ali, no fervor da oração, uma velhinha pedia mais alto a graça divina, desfiando tremulamente o seu rosário.

Chapéu enrodilhado nas mãos, sapatões sem graxa, barba da semana anterior, calça com joelheiras, paletó ruço, de bolsos pendentes, deixando ver a velha camisa sem colarinho nem gravata, o Tibúrcio, jardineiro do comendador Bonifácio, entrou, respeitoso, no templo. Enxergando com dificuldade naquela meia escuridão propícia aos mistérios eternos, tateou o primeiro banco em que os seus dedos tocaram, e, sentindo, ao contato, que estava sujo de poeira, vasculhou-o com o velho chapéu de feltro, limpando-o de ponta a ponta. Em seguida, ajoelhou, e quedou-se rezando.

Não estava ainda, porém, no terceiro pater, quando se destacou à porta da igreja, como um figurino moderno numa grande moldura antiga, o vulto soberbo de Mme. Torres Valério. Alta, forte, imponente, cabeça levantada, foi entrando pela nave, pisando forte, como quem penetra, autoritária, na própria casa. Dama da alta aristocracia mundana, vestia com o apuro das mulheres de gosto; e foi com essa altaneria que chegou ao banco do Tibúrcio, o único, na fila, que não se achava ocupado.

O destino tem, porém, das suas ironias, ou melhor, das suas perversidades. Ao penetrar na casa de Deus, queria aquela criatura fútil, mesquinha, pecadora, simular, também, atitudes de divindade. E foi, então, quando algum anjo mais garoto, mais vadio, lhe fez interiormente uma cócega irresistível, por efeito da qual, não se contendo mais, a arrogante senhora deixou escapar, com o cansaço, uma espécie de sopro abafado, que, apesar mesmo de abafado, foi percebido com indignação pelos vizinhos mais próximos.

Mergulhado na reza, o Tibúrcio notou, também, aquele suspiro discreto, mas não atinou, logo, com a causa. Era, porém, serviçal e gentil. E foi por isso que, de joelhos, se limitou a erguer os olhos para a moça, informando, as mãos no rosário:

— Pode sentar, que o banco está limpo, dona.

E puxando o chapéu para junto de si:

— Não era preciso soprar...

VII

AS GAIVOTAS

(LENDA MUÇULMANA)

Rosto banhado de pranto, os lindos olhos quase feridos de chorar dia e noite, Noêmia, a prisioneira do sultão Murad, olhava, do alto da torre dourada, o infinito da terra e do mar. Viajava de Samos para Chipre, onde vivia o seu noivo, o príncipe Casimiro, cavaleiro cristão a serviço do seu Deus, quando os piratas do Bósforo se lançaram sobre o navio, trazendo-a para Istambul, onde a tinham vendido para a concupiscência insaciável do Senhor dos Crentes.

Mãos contraídas pelo desespero, braços estendidos para o vácuo, através da grade da torre, a princesinha chorava sem remédio, o cabelo em desalinho, o lindo colo arranhado pela irreverência criminosa dos bárbaros. E tinha os olhos como duas violetas molhadas pelo sereno, quando uma gaivota que passava pousou, fatigada, próximo à janela do minarete.

— Gaivota do céu — gemeu a moça, na sua angústia; — tu, que tens asas, por que não vais dizer ao meu noivo, em Chipre, o perigo em que me encontro? Parte! voa! conta-lhe a minha aflição!

O sofrimento é, na terra, a linguagem de todos os seres. Quando a mulher chora, estremece, à vista do seu pranto, o coração invisível das pedras.

Ouvindo o choro da princesa, a gaivota voou para perto, e, como se entendesse a súplica daqueles soluços, enfiou o bico, entreaberto, pelos varões dourados da grade. Olhos espantados, apesar das lágrimas, a moça, compreendida, tomou, nervosa, de um dos grampos do vestido, e, em um pedaço de pano, escreveu, com o seu próprio sangue, um bilhete ao seu cavaleiro, pedindo-lhe que a fosse salvar.

— Toma, gaivota, parte! Leva-o, de um voo, ao príncipe Casimiro, para que ele venha em meu socorro!

A gaivota ergueu o voo, e partiu. Olhos presos nela, a princesa acompanhou-a por longo tempo, olhando-lhe as asas de neve, que eram como dois lenços que lhe dissessem adeus. Viu-a pairar sobre as casas, sobre as mesquitas, sobre os castelos que marginavam o Bósforo. Viu-a ganhar o mar, em voo largo... De repente, soltou um grito: a gaivota havia deixado escapar do bico, da altura em que ia, o seu bilhete de noiva, o qual, rodopiando, caíra, e se afundara nas ondas!...

Olhos faiscantes de desespero, mãozinhas fechadas, braços estendidos no rumo do Bósforo, a princesinha lançou, então, aquela maldição fulminante:

— Malditas sejais para sempre, gaivotas, ardeolas, grandes e pequenas aves do mar!...

E tombou para trás, morta.

— Desde esse tempo — concluiu o velho xeique, que me narrava essa história, — desde esse tempo as aves marinhas não tiveram mais sossego. Pousam nas pedras um momento; voam; revoam; pairam sobre uma onda, olhando-a; descem; sobem de novo; giram; regiram; gritam, como em alvíssaras; piam, alto, desiludindo-se. E isso até que anoitece, quando se congregam sobre um rochedo, para reiniciarem a faina, infatigáveis, aos primeiros clarões da alvorada.

E passando a mão áspera, enrugada e trêmula, pelo molho da barba grisalha:

— É que elas andam, ainda hoje, à procura do bilhete da princesa Noêmia, para levá-lo, num barulho de asas, ao príncipe Casimiro.

VIII

O TESTAMENTO

Ladeada por duas filas de mesas, em que os escreventes se curvavam entre pilhas de papel, redigindo procurações e escrituras, a vasta sala em que funcionava o cartório do tabelião Távora estava sem grande movimento, àquela hora doce do dia. Ao fundo, em uma grande mesa, alta como um trono, o conhecido notário rubricava documentos, a pena em punho, o pince-nez na ponta do nariz. Era um homenzarrão forte, moreno, barba em ponta, acentuadamente grisalha. Trepado no seu estrado, com aqueles dois renques de funcionários debruçados sobre as mesas baixas, emprestava à sala o aspecto de uma mesquita muçulmana, cujo muezim abençoasse os fiéis de rosto no chão, quando assomou à porta, recortando-se na claridade da rua, a silhueta esbelta e leve da viúva Laurentino Simões.

Andava pelos quarenta anos e era, contudo, uma das mulheres mais bonitas da cidade. Estatura mediana, rosto claro, olhos pretos e grandes, trajava um lindo vestido de luto, em que a severidade do padrão não excluía a graça do feitio. Trazia à mão uma bolsa de seda da cor do vestido, e pendurada do pulso nu, onde faiscavam os brilhantes do relógio de pulseira, a sombrinha artística e negra, como um grande pássaro desfalecido.

Ante aquela aparição, radiosa e grave como o anjo do Sofrimento, os escreventes levantaram a cabeça, e o notário pôs-se de pé no seu púlpito, como quem vai pedir a palavra. À aproximação da moça, desceu, solícito, ao seu encontro, ofereceu-lhe uma cadeira, em um grupo que havia ao lado, e, sentando-se também, pôs-se, inteiramente, à sua disposição.

— Eu sou a viúva do deputado Laurentino Simões — começou a recém-chegada, pousando a bolsa e a sombrinha sobre o sofá. — O senhor o conheceu...

— Perfeitamente, minha senhora; perfeitamente... — fez o tabelião, batendo a cabeça; — dávamo-nos bastante.

— Pois, é por isso mesmo que eu o procuro.

E abrindo a bolsa, para tirar uma nota:

— Como o senhor talvez não ignore, eu era viúva quando casei com o Florentino. Tive a desgraça de perdê-lo; e como tenha quatro filhos, e não sei onde me levará o destino, desejo fazer o meu testamento, assegurando os interesses das crianças.

— Com licença — pediu o notário, levantando-se; — eu vou tomar as notas.

E voltando com o bloco e um lápis:

— O nome, todo, da senhora?

— Alcina Tavares Simões.

— O do seu primeiro marido?

— Antônio Joaquim Barbosa Guerra.

— O das crianças?

— Marina, Leonel, Hermógenes e Judite.

— Todos do mesmo leito?

A essa pergunta da praxe, em se tratando de uma senhora casada duas vezes, Dona Alcina ficou vermelha, até à raiz dos cabelos. Puxou o lencinho da bolsa, passou-o pelo rosto, e informou, nervosa:

— Não, senhor; três, apenas.

E num esforço, dominando a vergonha que a punha cor de tomate:

— O segundo, o Leonel, é do divã da sala...

IX

O FRANGO

Órfão de pai e mãe, o Alfredinho Viana, foi, por misericórdia, recolhido pelo padre Sebastião de Pina, que tratou, logo, de procurar os parentes do menino, afim de entregá-lo. A notícia de que os defuntos nada haviam deixado, contribuiu, porém, para dificultar a tarefa. E foi um trabalho doido, o que teve o sacerdote, para convencer o coronel Trancoso Viana de que o pequeno era filho do seu irmão Viriato, e até seu afilhado, competindo-lhe, pois, tomar conta da criança, substituindo-lhe o pai.

Levado para a casa do tio e padrinho, o garoto começou a sentir, em toda a sua violência, os efeitos da orfandade. Da manhã à noite, não descansava. Madrugada ainda, era atirado para o quintal a partir lenha, consumindo o resto do dia em trabalhos pesados, que a alimentação, reduzidíssima, não compensava. Tal foi, em suma, a vida de trabalho e de fome a que o submeteram, que, com doze anos, o menino não pesava mais de vinte e dois quilos, sendo fraco, e pequeno, como uma criança de nove.

Certa manhã, estava Mme. Trancoso na sala de jantar polindo as unhas, quando se ouviu, no canto da rua, o grito compassado, longo, choroso, de um vendedor de galinhas.

— Alfredo? — chamou a arrogante senhora, para o fundo da casa.

E ao ver surgir o garoto:

— Chame aquele “galinheiro”. Já!

Em menos de dois minutos, estavam o vendedor ambulante e o menino no portão do palacete, às ordens da dona da casa. Esta apareceu, solene, e indagou:

— Tem frangos?

— Muito bons, dona. A senhora vai ver, — informou o homem, enfiando a mão na capoeira das aves.

Puxados alguns pintos, madame ordenou:

— Dê aí ao menino.

Alfredo pegou no primeiro frangote, suspendendo-o pelas asas.

— Está gordo? — perguntou Mme. Trancoso, com gravidade.

— Gordo? — fez o garoto. — Qual o que!

Apalpou os ossos do frango:

— Eh, camarada, que magreza!

E olhando a ave, no bico:

— Você foi criado na casa de seu padrinho? Foi?

X

O CORONEL RODAPÉ

Em todo o Triângulo Mineiro não havia fazendeiro mais econômico, mais apertado de mão, do que o coronel Minervino Antunes, dono do “Bom Princípio” e de outras fazendas da região. Baixinho, miúdo, raquítico, possuía como “cavaignac” cinco ou seis fios de cabelo; e essa modéstia de figura, que lhe valera o apelido de coronel Rodapé, constituía, já, um documento de parcimônia.

— O coronel Rodapé rói as unhas para economizar feijão! — dizia o capitão Bandeira, boiadeiro de Goiás.

— Se o Diabo lhe desse um tostão pela alma, — afirmava outro, — ele fechava negócio no mesmo instante!

Foi, por isso, motivo de espanto, a notícia que circulou na feira, de que o coronel Minervino ia vender uma boiada para vir ao Rio de Janeiro, com a esposa, Dona Vitória, visitar a Exposição.

— É impossível! — exclamavam todos, à medida que o boato se divulgava. — Isso é apenas pretexto para ele vender a boiada.

Mentira ou verdade, o certo é que, uma semana depois, o coronel Minervino Antunes desembarcava na Central do Brasil, trazendo ao lado a mulher e, na mão esquerda, a maleta com dinheiro. Este importava em três contos de réis, os quais deviam dar para hospedagem, roupa nova, passeio e, sobretudo, para os vários divertimentos do Parque das Diversões. Carroussel, chicote, cinema, ondas de aço, tômbolas, cavalinhos, tudo isso tinha de ser visitado, gozado, desfrutado, mas parcimoniosamente, dentro do orçamento aprovado em família.

E uma vez no Rio, começou a pândega. Instalados num hotel de terceira ordem, cuja diária foi discutida tostão por tostão, deu o coronel o braço a Dona Vitória e tomou, firme, o rumo da Exposição.

À porta monumental da grande feira, aproximou-se Minervino de um guichet e indagou:

— Quanto custa um bilhete de entrada, dona?

— Dez tostões, — informou a moça.

E o coronel, disposto a regatear:

— Dez tostões? Quer três patacas, embrulhe dois!

Desiludido de convencer a empregada, o fazendeiro pagou os dois mil réis, segurou as duas senhas, passou na borboleta e, dez minutos depois, estava em frente ao pavilhão em que se guarda o hidroplano de passeio discutindo o preço de uma ascensão, para ele e a mulher. O aviador pedia cento e cinquenta mil réis pelos dois; o coronel começou oferecendo cinquenta, passou para sessenta, chegou a sessenta e cinco, aventurou setenta, e não passava dos cem quando o homem do avião, vendo que se tratava de um passageiro incapaz de ficar em silencio cinco minutos, propôs:

— Então, façamos uma coisa: eu levo o senhor e a sua senhora para um passeio sobre a baía, com uma condição: se o senhor se conservar calado até nós descermos, não pagará nada; se, porém, abrir a boca, pagará os cento e cinquenta mil réis... Está combinado?

— Negócio feito! — concordou o fazendeiro, sem refletir sobre o sacrifício que ia impor, ele mesmo, por espírito de economia, à sua incorrigível loquacidade.

Colocados os dois passageiros no côncavo da nacele, o hidroplano arrancou, estourando e zumbindo como um besouro colossal. À altura de oitocentos metros, o coronel permanecia mudo como um peixe.

— Deixa-te estar, que eu te farei falar! — disse, consigo, o aviador.

E começou a subir, a descer, e a guinar-se no alto como se cabriteasse no oceano sobre as ondas encapeladas. E o coronel, mudo.

— Ahn! é assim? — fez o aviador, indignado com a possibilidade de perder os seus cento e cinquenta mil réis. — Pois, espera!

E, atingindo uma grande altura, começou a fazer o looping-the-loop, em cabriolas furiosas, que deslocavam o ar em redor. E o coronel, nem uma palavra.

Desiludido, após essa prova, de apanhar um vintém que fosse daquele unha de fome, que arriscava a carcaça sem um protesto, unicamente para não desembolsar os cento e cinquenta mil réis, resolveu o aviador tocar para baixo, indo pousar, suave, na baía, guiando o aparelho, em pequena marcha, no rumo do pavilhão. Antes, porém, de aí chegar, dirigiu-se ao coronel:

— O senhor ganhou a viagem... Mas, quando estava lá em cima, não tinha nada, mesmo, a dizer-me?

— Eu? tinha, sim, senhor; mas, se eu abrisse a boca para falar, perdia a aposta. Não era?

— Evidentemente. E que era que o senhor queria dizer-me?

— Ahn! — fez o Minervino, respirando; — eu queria dizer-lhe que, na primeira reviravolta que o senhor deu, a Vitória, minha mulher, caiu no mar...

XI

O REVOLTADO

O Pereira Guedes, da firma Rocha & Guedes, já se achava no escritório, encarapitado no seu alto banco de guarda-livros, quando o comendador Veridiano Rocha, a barriga para a frente, o chapéu de palha para trás, apareceu, arfando de gordura, entre caixas de batatas e pilhas de cebolas.

Antônio Veridiano da Rocha havia chegado ao Brasil com pouco mais de oito anos, e trabalhara vinte e quatro, para ser interessado da casa. Sociedade, porém, só a teve aos quarenta, quando o chefe da firma, o velho Braga, lhe propôs o casamento com a sua filha Teresinha, morena de uns vinte anos, cuja vida se repartia, toda, entre os piqueniques, aos domingos, e a rua do Ouvidor, nos outros dias da semana. Aceita a proposta, entrara o Veridiano para a razão social Braga, Rocha & Cia., a qual se transformou, depois, com a saída do velho Braga, na firma Rocha & Guedes, que passou a girar na praça.

Casada por simples conveniência, após umas leviandades que comprometeriam, ao fim de alguns meses, a honrada velhice do pai, a Teresinha achou que o Veridiano não devia ter sócios, apenas, na casa comercial: deu-lhe comanditários, também, na casa de residência, onde o Dr. Batista Lemos e o senador Firmino Gomes passaram, logo, a contribuir com uma parte das despesas.

Espírito sossegado, o comendador não se afligia muito, com a sua condição. Absorvido pelos negócios, pelo bom nome da sua firma comercial, fazia questão, apenas, do seu crédito na praça. E foi por isso que o Pereira Guedes estranhou naquela manhã, ao vê-lo entrar, agitado, a porta do estabelecimento.

— Bom dia, Guedes! — saudou o desventurado.

— Bom dia, Sr. Rocha! — correspondeu, respeitoso, o sócio.

E vendo-o nervoso:

— O Sr. Rocha está doente?

— Doente, não; mas é que me sucedeu uma dessas coisas que são para revoltar um homem.

O outro suspendeu a soma, que fazia, para ouvi-lo melhor. E o comendador continuou:

— Imagine você, que eu tive de ir, ontem, cavaquear com o Sobreira, no bilhar do canto. Às onze e meia, volto para casa, e, ao chegar, ali, que é que havia de ver, pelo buraco da fechadura? O Dr. Batista Lemos nos aposentos da minha mulher, sentados os dois no leito, conversando alto, e de portas fechadas!

— Oh!... — fez o sócio, deixando cair o lápis, os olhos cravados na face oleosa do capitalista.

— E o senhor, que foi que fez? — indagou o Guedes, prevendo a tragédia.

— Que foi que eu fiz? — repetiu o comendador, indignado. — Que foi que eu fiz?

E abrindo os braços, num gesto de revolta:

— Tive que dormir no sofá...

XII

ETIQUETA

Membro, dos mais ilustres, da família positivista, o capitão Veríssimo de Souza Rosa estava indicado, naturalmente, para acompanhar o seu invicto mestre, e general Cândido Mariano Rondon, na sua segunda expedição a Mato Grosso. Fino, educado, polido, com o conhecimento integral das boas maneiras, ninguém o poderia substituir naquela missão civilizadora, de prender o indígena, com as suas virtudes, e sem os seus defeitos, no curral da civilização.

Mediano de estatura, cara escanhoada e redonda, cabelo partido ao meio, o capitão Veríssimo estava para a missão Rondon, com o seu monóculo e as suas roupas irrepreensíveis, como se achava para a expedição Quartelar aquele inalterável John, das Minas de Salomão. De manhã à noite, não abandonava as luvas. E, por mais de uma vez, teve o general de intervir, conciliador, dirimindo questões com os nambiquaras, que se quedavam, atônitos, boquiabertos, diante do moço oficial. Inteiramente despido, o uru suspenso do pescoço e atirado para as costas, o indígena aproximava-se do capitão, com ares de fraternidade.

— Tire o chapéu! — ordenava, ríspido, o oficial, na língua do bugre.

O desgraçado passava a mão pela cabeça, titubeando, no seu dialeto:

— Chapéu? Mas eu não tenho...

— Então, vá buscá-lo, e tire-o! — impunha Souza Rosa.

E dava-lhe as costas, orgulhoso.

O caso mais característico foi, porém, o que ocorreu acima do Paraná-Mirim, a seiscentos quilômetros do rio da Dúvida, no domínio, ainda, dos índios Uros, que eram, como se sabe, os últimos antropófagos da região. Enviado num reconhecimento, o tenente Sobreira Rocha não voltou mais ao acampamento. Suspeitando alguma traição daquela tribo indomesticável, o general mandou, à sua procura, o capitão Souza Rosa. E o resultado desta última expedição não foi demorado: ao fim de dois dias, dava Souza Rosa em uma clareira, onde os bugres se cevavam com unhas e dentes no corpo do tenente, cuja pele sapecada pelo fogo se despregava, tostada, da carne.

Monóculo na órbita, rebenque na mão, Souza Rosa, estacou, grave, diante daquele espetáculo canibalesco. Assustados, os indígenas olharam-no, os dedos sujos de carne sangrenta.

— Que horror!... — fez o oficial, num soberbo gesto de nojo.

E sacudindo a cabeça, com repugnância:

— Sim, senhores!... Comendo com a mão!?...

XIII

INCONVENIENTES DA MENTIRA

(SOBRE UMA CARICAT URA)

O luxo entontecedor a que se entregara Dona Lolinha havia sacrificado, definitivamente, as finanças do marido. Os credores, que a princípio eram despachados na primeira visita, passaram a ser pagos na segunda, na terceira, na décima, até que começaram a fazer cauda no jardim, ou a encher a saleta, à espera do antigo capitalista.

— Venha amanhã! — dizia o Dr. Gaudêncio, nos primeiros tempos, ao cobrador da joalheria, da costureira, da perfumaria, da chapelaria, das casas que colaboram na elegância feminina.

E o certo é que as contas se amontoaram de tal modo que o antigo milionário já não podia sair, preferindo passar o dia em casa, afim de não ser chacinado, à porta, pela multidão que o procurava.

Sem recursos para solver as dívidas contraídas pela senhora, recorreu o Dr. Gaudêncio ao último dos expedientes clássicos: chamou o criado de confiança e deu-lhe ordens peremptórias:

— Olha, Joaquim: se perguntarem por mim, já sabes: dize que não estou em casa.

Às seis da tarde, o ilustre mundano tocou a campainha, chamando o criado. O Joaquim acorreu, a cara vermelha, escanhoada, e os olhos tão vermelhos como a cara.

— Joaquim, — indagou; — veio alguém me procurar?

— Veio, sr. doutor; veio aí um moço de luneta, perguntar pelo sr. doutor.

— E que respondeste?

— Eu respondi que o patrão havia saído e que eu não sabia quando voltava.

— E ele, que disse?

— Ele disse: “Está bem; isso é que eu queria!”

— E então?

— Então, ele foi enfiando, logo, para o quarto da patroa!

XIV

COSTUMES FILIPINOS

Com a sua bela figura de inglês internacionalizado pelas viagens, o comandante Barbosa Stockler, único revolucionário de 1894 que não voltou à atividade em nossa marinha de guerra, é, na opinião de quantos o conhecem, um maravilhoso conversador. Alto, seco, tostado pelo sol de todos os climas ardentes, rosto escanhoado, olhos azuis, dá a impressão de um explorador de continentes, desses que têm levado mais longe, na terra, as fronteiras da Civilização.

Amigo de infância do almirante Rocha Bordalo, é costume de infatigável corredor de mundos vir dar, de anos a anos, um passeio ao Rio, onde não esquece, jamais, o velho companheiro de estudos. E era no palacete deste, em torno à mesa de jantar, florida de senhoras e rosas, que o riquíssimo aventureiro contava, sorrindo, as últimas curiosidades do seu caminho. Ao tratar-se de um assunto, oferecia ele o contraste. Até que, a propósito da sua condição de celibatário, a palestra tombou, como um fruto na fruteira, sobre coisas de casamento.

— O povo que melhor entende dessa matéria opinou o simpático viajante, — e, entretanto, ainda, o filipino.

O filipino? — fizeram algumas senhoras, com a curiosidade nos olhos.

Sim, senhoras — confirmou Barbosa Stockler. — O filipino é originalíssimo nos seus costumes domésticos, principalmente no que diz respeito à organização da família.

E contou:

— Nas Filipinas, quando dois jovens se querem casar, os parentes dos noivos se põem à procura de duas palmeiras bem retas, da mesma altura, e perto uma da outra. Encontradas, e comunicada a descoberta aos dois candidatos ao matrimônio, vão estes até ao local, em companhia dos amigos e convidados, e põem-se a subir, cada um na sua palmeira. Chegados ao cimo, procuram os noivos balançar as frondes, de modo a aproximar uma da outra, e se darem as mãos. Conseguido isso, fazem o possível para encostar o rosto no rosto, para a troca do beijo nupcial. Se o conseguem, está feito o casamento, que é saudado, em baixo, aos gritos, por todas as testemunhas. Se, porém, não se alcançam um ao outro, está desfeito o noivado, voltando a moça para a casa do pai.

Ao fim dessa história, ouvida entre sorrisos, mlle. Vanda, que a acompanhava duplamente, com o ouvido e com os seus lindos olhos inocentes, aventurou uma pergunta, que os seus quinze anos cândidos não podiam reprimir.

— Papai!

O almirante olhou-a, com a sua ternura de marinheiro. E a menina, com um sorriso a voejar, como uma abelha, na rosa fresca da boca:

— Papai, palmeira nas Filipinas tem espinho? Tem?

XV

DECEPÇÃO

— E agora, como há de ser, minha Nossa Senhora!? — exclamava a pobre dona Heloísa, torcendo as mãos nervosamente.

O caso era, de fato, delicado. A última discussão com o marido tinha-os separado corporalmente, vivendo cada um para seu lado. E essa situação durava um ano, quando a linda senhora sentiu os primeiros indícios da futura maternidade.

— O remédio que eu vejo em tudo isso, — opinara o tenente Bordalo, seu primo, e cúmplice naquela desgraça; — é o seguinte: você toma o mesmo navio em que o Agostinho vai embarcar para a Baía, e, à noite, penetra no camarote dele, e deita-se a seu lado. Quando ele acordar, será tarde: você dirá o que aconteceu durante o sono, e estará tudo fora de perigo.

Aceito o conselho, tomou a moça, no dia seguinte, passagem para o Norte, e com tamanha felicidade que lhe coube um camarote fronteiro ao do marido. E foi escondida no seu beliche que passou a primeira noite de viagem e o dia que se lhe seguiu, e que foi consumido, todo, no porto do Espírito-Santo.

Na segunda noite, já em caminho da Baía, dona Heloísa resolveu realizar, enfim, o seu plano. Perfumada como uma noiva e fresca como uma criança, envolveu-se, por volta das duas horas da manhã, num risonho quimono de seda clara, atravessou o corredorzinho que separava as duas portas, e penetrou, cautelosa, no camarote fronteiro. A escuridão, aí, era propícia. Um vulto masculino estendia-se no beliche largo, e foi com a paixão nascida das grandes saudades que a formosa passageira lhe caiu nos braços, em beijos furiosos, que eram a crepitação viva dos seus sentidos acordados.

Quase manhã, e ainda com escuro, dona Heloísa saiu, recolhendo-se ao seu camarote. Certo, o esposo a havia reconhecido, e iria, mais tarde, pagar-lhe a visita noturna. Soou, porém, a hora do almoço e ele não apareceu. Deu meio-dia. Tilintou a sineta das duas horas, e nada! Às quatro horas dona Heloísa não pôde mais, e chamou o criado.

— O Dr. Agostinho já se levantou?

— Que Dr. Agostinho, minha senhora?

— O Dr. Joaquim Agostinho Rabelo, do camarote fronteiro.

— Ahn! — fez o camareiro, compreendendo a pergunta. — Esse não está mais aí, não, senhora. Esse saltou, ontem, em Vitória.

E com a maior singeleza deste mundo:

— Quem está, agora, no camarote em que ele vinha, é um oficial do Exército, que vai para Pernambuco.

XVI

O FILME

(SOBRE UMA CARICATURA INGLESA)

O sol estava, já, no meio do céu, quando a troupe chegou ao bosque, onde se devia filmar o drama, em cinco partes, O castelo encantado, extraído do romance do mesmo nome. E tudo prenunciava um sucesso, pelo cuidado, pelo carinho, pelo capricho com que se havia preparado o cenário.

A parte humana da peça estava magnificamente distribuída. Ruth Pearson, a formosa estrela do Martírio sagrado, desempenharia o papel de condessa de Vithgorn, a formosa castelã. Roberts Northon faria o conde, com toda a sua brutalidade de fidalgo medieval. Os outros personagens seriam interpretados por vinte outras figuras excelentes, entre as quais se achava Herbert Webster, cuja missão era, talvez, a mais perigosa da peça.

Desempenhando o papel de mateiro, Herbert devia andar pelo bosque, à procura de uma erva prestigiosa que a condessa lhe encomendara. Nesse momento, deve sair ao seu encontro um leão, que parte, na carreira, a persegui-lo. A cinquenta metros do castelo, entretanto, o mateiro deve cair, sendo alcançado pela fera, que o fareja durante algum tempo, seguindo, depois, o seu caminho.

A parte a ser filmada naquele dia era, exatamente, essa: a do mateiro e a do leão. Feito de tábuas e de sarrafos ao meio do bosque, o castelo erguia para o céu, imponente e frágil, as suas torres seculares, levantadas na véspera. Quanto ao leão, este dormia, quieto, em uma jaula de ferro, numa clareira próxima, devendo ser solto no momento determinado.

Tudo pronto assim, o diretor chamou Herbert, afim de ministrar-lhe as últimas explicações.

— Olhe — disse — preste atenção. Nesta cena, o senhor tem que ser perseguido pelo leão numa distância de duzentos metros. A cinquenta metros do castelo o senhor tropeça, cai, e o leão, caindo sobre o senhor, lhe babuja o rosto, o corpo, a cabeça e vai embora.

— Babuja o meu corpo, e vai embora? — indaga, espantado, o artista.

— Sim, senhor. O senhor, então, não compreendeu?

— Compreender, eu compreendi, — informou Herbert.

E coçando a cabeça, preocupado:

— Eu tenho medo é de que o leão não tenha compreendido!...

XVII

O DEVOTO

Alfredo Miguel de Rezende, não obstante a sua condição de oficial do Exército, era um espírito profundamente religioso. Ao contrário dos seus colegas de turma e de posto, em vez de ler os regulamentos militares, os tratados de tática, as memórias dos generais, a sua ocupação consistia na leitura da Bíblia, dos Evangelhos, dos livros de reza, que eram por ele decorados devotamente. Não havia acontecimento da sua vida que não fosse comparado às coisas da religião. As parábolas andavam-lhe na ponta da língua e não havia conversa, por mais simples, que ele não temperasse logo com duas ou três citações da História Sagrada.

Não obstante esse apego à Igreja e às letras cristãs, Alfredo Miguel apaixonou-se por uma das parentas mais próximas, a sua prima Elisa Marques Sardinha, a qual foi conduzida, uma tarde, solenemente, à Candelária, para receber, aí, o seu anel e o seu nome.

A recepção mundana com que a família celebrou o acontecimento acabou antes das onze horas. E tão rápida foi que, à meia-noite, o palacete já se achava completamente fechado, e com sinal de vida, apenas, na alcova dos recém-casados.

Aí, embora quase em segredo, a conversação era animada. De vez em quando, a voz do rapaz, um pouco mais forte, dominava o silêncio com um preceito cristão:

— Aquele que molhar o pão no meu prato, esse me trairá!

Ou, então:

— Quem com ferro fere, com ferro será ferido!

Ia a palestra, assim, nesse diapasão, quando, a uma hora da manhã, um galo cocoricou, no quintal.

— Cumpra-se, de novo, a palavra do Nazareno! — sentenciou o noivo.

Mexeu-se na cama, e ilustrou a frase:

— Antes que o galo cante, tu me “negarás” três vezes!

E soltou um suspiro, desanimado.

XVIII

A SABEDORIA DE CONEÚCIO

(APÓLOGO DO “TSA PAS TSANG KING”)

Certo dia andava Confúcio pelas margens silenciosas do rio Amarelo, colhendo, aqui e ali, um crisântemo atordoado pelas libélulas, quando se aproximaram dele dois camponeses, em cuja humildade a experiência leu, desde logo, os sinais da perfídia.

— Este homem, — disse o primeiro, — tem em dúvida a tua sabedoria. E como eu lhe afirmasse que tu jamais te enganarias, venho pedir-te, Mestre, que nos acompanhes até à aldeia próxima, onde o povo aguarda a tua santa palavra para definitiva solução de uma contenda.

Colhendo, aqui e ali, um crisântemo, o sábio tomou, sem pressa, o caminho do povoado. A barba, lisa e grossa, tombava-lhe pelo peito largo, orlando-lhe o rosto de bronze. E foi assim, com a calma nos gestos e a serenidade no coração, que parou, com os dois guias, à sombra de uma cerejeira, em torno à qual os homens se amontoavam. Amarradas ao tronco da árvore, duas ovelhas olhavam a turba que as cercava, indagando, com os olhos inocentes, o motivo daquela curiosidade.

Entre o silêncio de todos, o homem sem fé explicou o motivo da disputa:

— Estas duas ovelhas, Mestre, são mãe e filha. São, porém, tão semelhantes em tudo que ninguém poderá dizer qual a filha, qual a mãe. Eu assegurei, porém, que a tua sabedoria venceria a dificuldade, esclarecendo essa dúvida de todos nós.

Quieta, olhos pregados no solo, a multidão esperava, ansiosa, a opinião do Mestre. Sem uma palavra, Confúcio afastou-se alguns passos, colheu na terra agreste um punhado de relva úmida, e atirou-a ao chão, entre as duas ovelhas. Uma baixou a cabeça, aspirou a erva, e empurrou-a, com o focinho, para a outra. Esta baixou a boca, e principiou a comer.

Silencioso e bom, o filósofo acompanhava, com os olhos, o gesto manso dos animais. Ao fim de alguns minutos, estendeu o dedo, e indicou a ovelha que devorava o capim.

— Esta é a filha, — disse.

E alçando o dedo:

— Porque só as mães, chineses, se privam do alimento para matar a fome dos filhos!

E voltou para a campina, espantando as libélulas.

XIX

A TINTA

Por maiores que fossem as provas, e mais insistentes as declarações dos amigos, o Sr. Tranquilino Barata não podia acreditar em semelhante miséria. Era impossível que dona Didi, sua mulher, tendo um esposo legítimo de raça branca, e que não era de todo mal parecido, se fosse meter de amores com o Fidelis, um preto que andava bem vestido, era certo, mas que, nem por isso, não deixava de ser preto. Enfim, mais para satisfazer o Júlio Porto, seu compadre e informante, do que para convencer-se a si mesmo, ia, naquele dia, interpelar a rapariga sobre a infâmia que lhe atribuíam.

A cara fechada, para dar maior solenidade ao ato, o honrado comerciante entrou em casa, e foi, logo, chamando a mulher. Para não perder tempo, não entrou em divagações: disse-lhe, claro, o que sabia, o que se boquejava na rua, e queria, logo, satisfações que lhe tranquilizassem a alma.

— Eu, Tranquilino?... Eu?... — gritou a moça, recuando, a mão no peito, como quem acaba de ser ferida no coração.

E atirando-se para um sofá, rebentando no choro:

— Ah, meu Deus!... Como eu sou desgraçada!... E logo agora, quando eu te ia dar um filho!... O meu filho!... O teu filho!... Mas isso não há de ficar assim!... Eu morro!... Eu me mato!...

E levantando-se num repelão. correu, arrancando punhados de cabelo com ambas as mãos, para o interior da casa.

Arrependido, já, do que fizera, da tolice que praticara dando ouvidos ao seu compadre Júlio, o sr. Tranquilino correu atrás, afim de impedir que a Didi, tão virtuosa, tão pura, tão direita, fizesse alguma loucura. Por mais, porém, que corresse, não chegou a tempo de evitar que a moça, de passagem pelo escritório, pegasse o vidro de tinta, e o virasse na boca, tombando para trás, em gritos de envenenada.

O encontro, no dia seguinte, com o seu compadre Porto, quase termina em pugilato. A denúncia era uma infâmia, uma perversidade, uma calúnia miserável.

— Mas, compadre... — aventurou o outro.

— Qual compadre, qual nada! — rugia o marido, ofendido na sua honra, pela suspeita caluniosa desse amigo, que era quase um irmão.

Passaram-se, porém, os meses. Ao fim do oitavo, após o episódio do envenenamento, dona Didi deu ao mundo um pirralho, que pesava, quase, cinco quilos. De fato, trazia apenas um: era escuro, quase preto, como o Fidelis.

— Então, compadre? — observou-lhe, com ares de quem canta vitória, o Júlio Porto.

— Então, o quê?

— A cor do pequeno... Eu não lhe disse?

— Ora, compadre, não me venha mais com isso! — protestou o outro.

— Você fala porque o menino é preto?

E desafiador, para o lado do amigo:

— E a tinta que ela bebeu?

XX

A NOIVA

Quando se anunciou o casamento da Santinha com o dr. Praxedes Correia, a menina apresentou a relação dos seus convidados.

— E o compadre Paulino? Vocês não o convidam — indagou o coronel Souza, dobrando a lista.

— Para que, papai? — retrucou a mocinha. — Ele é capaz, até, de vir ao casamento e não saber o que está se passando!

Paulino Várzea era, realmente, tão surdo, que se poderia, talvez, disparar um canhão a dois passos do seu ouvido, sem que ele se apercebesse do estrondo. E foi com a cara peculiar aos que nada ouvem que compareceu à festa da Santinha, acompanhando-a até a igreja e tomando parte, à noite, no jantar da família.

Vestida de branco, os lindos olhos pisados pela vigília da véspera, Santinha estava deslumbrante de formosura. Poucas vezes se tinha visto noiva tão bonita, no bairro. E era essa a opinião geral, quando o landaulet atravessava as ruas, em cujas esquinas as moças se agrupavam, mandando beijos à companheira feliz.

Encantado com a beleza da filha, o coronel Souza não se cansava de gabá-la, de louvá-la, de elogiá-la. E foi com a vaidade de pai que, à mesa, no momento em que todos saboreavam a sopa de tartaruga, se voltou, de súbito, para o velho Paulino.

— Compadre? — chamou.

E como o surdo o olhasse, por acaso:

— Que tal acha a noiva?

— Como? — interrogou o ancião, arregalando os olhos.

— Como acha a noiva? — tornou o coronel. a voz alta.

O velho Paulino sorriu, como quem acaba de compreender.

— Ahn! — fez, num sinal de cabeça.

E mexendo o prato, com a colher:

— Eu ainda não provei... Mas me parece um pouco quente...

E continuou a esfriar a sopa, calado.

XXI

O SINAL

O templo israelita da rua do Rosário transbordava de fiéis e resplendia de luzes, àquela hora doce da tarde. Forrado de veludo negro, com galões dourados, o trono de que o rabino Isaac Bellikoff devia pregar estava marcado, em cada degrau, por uma fieira de velas, que punham vírgulas de fogo na pontuação daquele poema de crença.

Estirados na largura do salão vasto, os bancos estavam repletos. Eram judeus de toda parte da terra, patenteando cada um nos traços da fisionomia a pureza inalterável do sangue semita: o nariz grande e curvo, em bico de águia, nos tipos masculinos; os olhos vivos, de Judite ou de Agar, no perfil samaritano das mulheres. Os homens, na sua maior parte, vestiam de preto, trazendo a barba negra, e cerrada, como tarja do rosto moreno.

Paramentado solenemente, com o luxo, a imponência, a suntuosidade dos monarcas orientais, o rabino surgiu, entre dois sacerdotes auxiliares, por uma porta lateral.

Era um ancião forte como Sansão, cujas espáduas poderosas lembravam, na sua brutidão, os primeiros reis de Israel. A barba imensa e farta, entremeada de fios brancos, descia-lhe pelo grande peito cintilante de insígnias como se quisesse fazer, dela, o escudo do coração.

A galeria das mulheres, nos bancos, era uma exposição de formosura. Lá estavam, uma ao lado da outra, vestidas com magnificência ou com modéstia, os mais lindos exemplares do povo de Deus: Raquel Benassiz, com o seu rosto pálido e os seus grandes olhos pensativos, Lia Abaobih, de olhos verdes como a onda e cujo colo era como outra onda, coberta de rendas: Rute Abakuk, menina ainda, inocente botão de flor, entregue, antes de desabrochar, à baba de lagarta do velho Abraão Abakuk, a maior fortuna da colônia. E outras Lias; e outras Saras; e outras Judites; e outras Raqueis — estas mais lindas, aquelas mais tristes, todas, porém, confirmando num traço, num gesto, numa particularidade fisionômica, a eternidade de Israel.

De quantas ali se achavam, uma se singularizava, entretanto, pela beleza impressionante. Era Judite Benoliel, rapariga de uns vinte e seis anos, piedosa como Rute e linda como Ester. Brilhavam-lhe nos olhos doces e límpidos, como os de Agar, todas as cintilações do areal. As rosas de Jericó sorriam na sua boca. Andava como as corças do Líbano e o seu beijo devia ter o gosto, o sabor delicioso, do maná, no Deserto. Agasalhava no colo duas rolas brancas, de bico de sangue, e toda ela cheirava, e ondulava, como o vale do Cédron, quando se cobria de flores. A sua voz embalava o ouvido como se a Sulamita respondesse, num cântico, ao esposo que andasse lá fora, no silêncio da vinha. E era, sobretudo, pura: casta como Suzana, tímida como Rebeca.

Imponente, grave, majestoso, o rabino abençoou, primeiro, o povo de Deus. E começou a pregar, tomando por tema a história de Rute e Booz. Em certo momento, escapulindo das Escrituras, começou a verberar as infidelidades do matrimônio:

— Nenhum pecador será tão perseguido por Jeová. E ninguém imagine que ele não ponha um sinal, em cada pecador. E são sinais físicos, evidentes, que eu estou vendo daqui.

E terrível, como o Senhor, no Sinai:

— Cada mulher desonesta, faz-lhe o Deus de Israel nascer, de repente, nos instantes como este, um fio de cabelo na orelha, visível aos olhos dos sacerdotes e que eu estou vendo neste momento!

A essas palavras, ouviu-se um remexer de pés, na assistência. Entre Lia Abaobid e Raquel Benassiz, Judite Benoliel parecia indiferente, os olhos no rabino. De repente, porém, tocou com o cotovelo o braço da amiga.

— Raquel? — chamou, entre dentes.

E a voz trêmula, as mãos geladas, o terror no coração:

— Tens tesourinha aí?

XXII

A SABEDORIA DO CALIFA

A situação cio califado era, então, das mais graves. A fome lavrava no país, e a guerra incendiava as fronteiras, onde o inimigo pilhava os rebanhos, escravizando as populações. E foi quando, com a dor na alma e o susto nos olhos, o califa chamou para dirigir, em seu nome, os negócios públicos, o talento de Eli-Ebn-Akar, preterindo o gênio de Al-Okan, considerado o homem mais sábio de Bassora.

— Fizestes mal, senhor! — disseram-lhe os conselheiros, a quem participara a sua deliberação. — Se tínheis ao alcance da mão a sabedoria incomparável de Al-Okan, por que fostes buscar, muito abaixo dele, o homem da vossa confiança?

Austero, sereno, a grande barba entremeada de pérolas, o califa não respondeu. Mandou, entretanto, que lhe trouxessem um pedaço de madeira, que pôs de pé na extremidade do parque, e algumas pedras, que distribuiu pelos anciãos que o cercavam.

— Cada um de vós — disse — tem de lançar uma pedra para tocar naquele fragmento de tábua, e derrubá-lo. Atirai, um de cada vez!

Num gesto fatigado, o mais velho dos ministros lançou a sua pedra, que esmoreceu no caminho, ficando aquém do ponto visado. Ao segundo aconteceu o mesmo, e ao terceiro, e ao quarto. O quinto, um robusto varão das margens do mar de Oman, atirou o seu calhau, com toda a força dos músculos. O ímpeto fora, porém, demasiado, e a pedra, ultrapassando a raia, foi cair, adiante, sem derrubar a tábua. O último, um homem de meia idade, nem forte, nem fraco, foi o único a acertar, indo com a pedra, justo, no pedaço de madeira, que derrubou.

— Vistes? — disse o califa, apontando-lhe o canto do parque. — Como aquela tábua são os negócios do governo.

E sentenciou:

— Os homens sem talento, não acertam, porque estão aquém da inteligência comum; e os homens de gênio, porque se acham acima do ambiente em que vivem. De modo que, o homem de Estado, para acertar, não deve estar nem acima, nem abaixo, das exigências da administração.

E cofiou a barba, chocalhante de pérolas.

XXIII

A COMODISTA

Não obstante a sua candura, a sua bondade, a singeleza do seu coração, o Pancrácio não podia ver com bons olhos a insistência com que o Luiz Gomes Lopes da Silva, antigo amigo da família, lhe frequentava a casa. A princípio, o rapaz aparecia apenas aos domingos, para o almoço, a que se seguia a partida de pôquer. Depois, começou a julgar-se com direito ao jantar duas vezes por semana, e, finalmente, a meter-se no lar do outro desde as duas da tarde, até à noite, quando o dono da casa chegava do emprego.

Nos primeiros tempos, o honrado funcionário de banco não se preocupou com a presença do intruso; a diuturnidade daquelas visitas foi, porém, calando pouco a pouco no seu espírito, até que, não se podendo mais conter, deliberou, firme, acabar com aquele abuso.

Aquele sábado, escolhera-o o Pancrácio para pôr termo ao escândalo. Vermelho, suarento, barba por fazer, enveredou ele pela casa sem, sequer, tirar o chapéu. Na sala de jantar, deparou o quadro de sempre: dona Janina à máquina de costura, pedalando violentamente, e, ao seu lado, Luiz Lopes, polindo despreocupadamente as unhas cuidadas.

Testa franzida, Pancrácio olhou o grupo, e, sem dar, mesmo, as “boas-tardes”, subiu, com estrondo, a escada que ia dar aos dormitórios. Prevendo a tempestade, dona Janina abandonou a máquina, atirou para um lado a costura, e saiu no seu encalço. Em cima, o desgraçado estourou:

— Isso é uma pouca vergonha, sabe? É uma grandessíssima pouca vergonha!

E resolvido:

— Eu não quero que este sujeito entre mais aqui; sabe? Não quero que ele ponha os pés, outra vez, nesta casa!

Pálida, titubeante, dona Janina não sabia o que dissesse. E foi nesse estado, trêmula, nervosa, perturbada, que aventurou:

— Ele vem aqui, Pancrácio, porque, para mim, é muito melhor.

E estendendo a roupa do marido numa cadeira:

— É para me poupar o trabalho de ir na casa dele...

XXIV

TERESINHA

Empregados, desde meninos, como caixeiros, na mesma casa comercial, o Antônio Marques e o Joaquim Pereira, portugueses de boa têmpera, acabaram tornando-se amigos, quase irmãos. Exilados, ainda na infância, nesta banda do mar, viveram, a princípio, de saudade, trocando pensamentos sobre a pátria longínqua. Pouco a pouco, porém, esta se lhes foi apagando no espírito em formação, cedendo lugar aos ideais de fortuna, de trabalho, de vida nova na sua terra adotiva.

Aos vinte anos, a amizade que os ligara na meninice não havia ainda arrefecido. Pelo contrário: estavam mais unidos, mais presos, mais aproximados, e a tal ponto que, quando o Joaquim falou na possibilidade de constituírem família, o Antônio lembrou:

— Eu tenho, cá, uma ideia.

— Bota-a pra cá, — ordenou o outro.

— É a seguinte: Em vez de nos casarmos, arranjamos por aí uma boa pequena, montamos-lhe uma casa e continuaremos a viver juntos, da mesma maneira. As despesas são menores, e quando a “gaja” não servir, mandamo-la bugiar. É mais prático, mais seguro e mais econômico.

— Tens razão. É boa a ideia... E tu já pensaste quem pode ser a pequena?

— Ainda não. Mas, quem sabe se a Rita, aquela morena, não aceitaria?

— E eu até gosto dela.

— E eu também.

Um mês depois, estava a Rita instalada em uma casa de vila, em São Cristóvão, em companhia do Antônio e do Joaquim. E no fim de onze meses dava ela ao mundo uma criança do sexo feminino, mais clara do que a mãe, e em cujos traços delicados o sangue mestiço se apresentava mais fino, mais claro, mais aperfeiçoado.

— A menina é minha filha! — afirmou o Antônio, com a sua tendência para constituir família.

— Tua, uma ova! — protestou o Joaquim. — O nariz é como o meu, e não há quem, ao vê-la, não diga que eu sou o pai!

— Mas os olhos parecem com os meus!

— Isso, não! Isso, não! A menina ou é filha de um, ou de outro. Dos dois é que não pode ser!

E iam se azedando, quando o Joaquim opinou:

— Pois, bem; não se decide isto agora. Quando a pequena crescer é que se resolve.

Um a um, monótonos e longos, passaram-se os anos. De empregados, que eram, da mesma casa comercial, passaram a sócios. E assim como o eram no estabelecimento, continuaram a sê-lo na casinha da Rita, promovida a palacete, no qual a Teresinha crescera e era, agora, uma encantadora morena de dezessete anos.

Quarentona e gorda, a Rita perdia, de dia para dia, as qualidades que haviam atraído, dezoito anos atrás, os dois amigos inseparáveis. Quanto a estes, mostravam-se ainda fortes, robustos, apenas um pouco obesos, como consequência da vida sedentária e quase sem emoções. E levavam, assim, a existência, quando o Antônio, ao voltarem os dois do almoço, bateu no ombro do sócio:

— Sabes, Joaquim, de uma coisa?

— Que é lá?

— É que a Teresinha é tua filha mesmo!

— Minha, não; é tua! — protestou o outro, dando um passo atrás.

— É tua; e eu vou casar com ela!

— Não, senhor; é sua; e quem casa sou eu!

E foram-se às unhas, disputando a mulata.

XXV

OBEDIÊNCIA À MODA

Maria Flávia acabava de abandonar o piano, quando a mãe, penetrando na sala de visitas, a tomou pela mão, fazendo-a sentar-se no canapé forrado de almofadas.

— Minha filha, — começou a boa senhora, passando a mão cuidada pela cabeleira castanha da moça: — é tempo de tomares uma resolução. Sábado vindouro completas vinte anos. Em torno de ti, sentes os admiradores, os pretendentes, os candidatos à tua mão. Dois deles, principalmente, esperam, apenas, para pedir-te em casamento, o teu primeiro gesto de preferência. Um é o Rafael, que me falou nisso, hoje, à tarde; outro é o Casimiro, que procurou teu pai no escritório. São, ambos, excelentes pessoas, rapazes trabalhadores, estimados, inteligentes. A escolha está, pois, nas tuas mãos. Qualquer dos dois será recebido por nós de braços abertos, como amigo e como filho.

Mordendo, com os dentes miúdos e iguais, a pequenina unha do dedo mínimo, engastada na carne com a perfeição de uma joia, Maria Flávia deixou-se ficar sem responder. Os olhos escuros, queimando num incêndio inocente, pousaram no piano, no tapete, nas cortinas, nos quadros da parede, como duas abelhas sem rumo certo. Enquanto isso, o pensamento, voando por longe, fazia cálculos, estabelecia confrontos, imaginava combinações, como quem estaca, indeciso, diante de duas tábuas diferentes lançadas à face do mesmo abismo. Nessas cogitações, via, de um lado, o Casimiro com a sua testa larga, pensativa, os olhos negros, o rosto moreno, sem rugas, escanhoado — tal qual o vira a última vez, no chá do Glória. Do outro lado, era o Rafael. Filho de alemães, era robusto, calmo de maneiras, com uns olhos muito azuis, muito doces, pele de moça, e o cabelo muito louro, e levemente ondulado, atirado para trás. Dançara com ele o último shimmy, na festa dos Castro Borges, e, sem saber porque, lembrara-se dele até chegar em casa, e, no dia seguinte, até ao anoitecer.

Alisando, meiga, a mãozinha, delicada como uma pétala, que Maria Flávia abandonara entre as suas, dona Marina tentava acompanhar, em silêncio, os pensamentos da filha. Aquele rosto sereno, calmo, impassível, deixava-a, porém, como o indivíduo que, diante de uma lousa, tentasse descobrir, debalde, o paradeiro da alma que dali se evolara.

— Minha filha? — fez dona Marina, de súbito, despertando-a.

— Mamãe?

— Já escolheste?

— Já, mamãe! — declarou a menina, resoluta. — Escolhi o Rafael.

— Está bem. Posso, então, participar-lhe isso? Ele quererá, com certeza, apresentar-te, no sábado, como sua noiva, aos nossos convidados.

— Ah, mamãe! — fez Maria Flávia, mudando, de repente, de tom. — Se é, assim, para sábado, eu prefiro o Casimiro, que é moreno.

A mãe olhou-a, espantada. E ela, com um sorriso nos olhos:

— Fica mais de acordo com o meu vestido azul... Não é?

XXVI

GENTE “CHIC”

Pequeno, magro, com um arcabouço de boneco de pau talhado em caixa de charuto, o comerciante Reginaldo Bragança havia casado pela segunda vez aos cinquenta e cinco anos de idade, quando já descia, passo a passo, a ladeira da vida. Essa, fora a sua primeira tolice; a segunda, consistira em escolher para esposa a Olindina de Aguiar, moça de vinte e sete anos, que, ao aceitá-lo como noivo, só pensou, com certeza, no seguro de duzentos contos feito pelo velhote, e na vida de conforto, de luxo, de brilho mundano, que a sua fortuna lhe garantia.

O palacete Bragança, na Gávea, ficou sendo, com a ascensão de Olindina ao trono do marido, um dos mais confortáveis e luxuosos da cidade. Linda e jovem, a encantadora senhora levava uma existência puramente mundana. Acordava às dez da manhã, almoçava nos seus aposentos, e, quando descia, era já, vestida, e de chapéu, pronta para tomar o automóvel, que a esperava no jardim. O marido, esse, levantava-se às seis da manhã, e, às sete, já estava a caminho do escritório, rodando monotonamente sobre as oito rodas do bonde. Às onze horas, telefonava para a esposa, dava-lhe os bons dias, e, às sete, estavam juntos, à mesa do jantar, — quando não sucedia a madame ficar na cidade com as amigas.

Trabalhador e ingênuo, Reginaldo Bragança considerava-se feliz com essa situação, orgulhando-se de possuir uma mulher tão chic, portadora do seu nome. E foi com essa felicidade fulgindo nos olhos, que ele tomou o fone, naquele dia, fora da hora habitual, para falar, um instante, com a companheira adorada.

Feita a ligação, uma voz atendeu:

— Meu benzinho...

Reginaldo sorriu, sem dizer nada.

— Meu amorzinho... — tornou madame, pondo um beijo em cada sílaba.

Reginaldo corou, feliz.

Meu Alfredinho... — gemeu a moça, no meio de outros beijos.

— Como?... Quê?... Como?...— fez Reginaldo, dando um pulo da cadeira.

— Ah! é o Reginaldo? — estranhou Olindina, do outro lado.

E verificando que era o marido:

— Ah, meu filho, desculpe. Eu não sabia que era você...

E pôs o fone no gancho, serena.

XXVII

MADALENA

Vivia Simão Pedro, ainda, em Jerusalém, divulgando a santa doutrina do Mestre, quando Jesus da Galileia, crucificado pelos judeus, chegou, entre uma revoada de anjos, ao Reino do seu Pai. Nesse tempo, o Céu não tinha portas, nem sentinelas, nem porteiro. Foi preciso que Pedro perecesse, também, em Roma, perseguido pelos infiéis, para que se fechasse o recinto da Bem-aventurança, deixando-lhe uma radiosa porta de ouro, cuja guarda foi confiada ao antigo pescador de Genesaré.

Composto primitivamente de hereges, de almas não purificadas pelo batismo, não podia o mundo mandar à mansão celeste grande número de bem-aventurados. O primeiro, mesmo, que ali entrou depois do Filho de Deus, foi o Bom Ladrão, crucificado, com ele, no cimo do Gólgota. A vida no céu era, por isso mesmo, de uma divina monotonia, como a das campinas risonhas, floridas, mas inteiramente desabitadas.

Um dia, porém, foram expedidas ordens imprevistas, aos serafins, aos anjos, aos arcanjos, aos tronos, e aos primeiros mártires ali abrigados. As estrelas desabrocharam nos canteiros do Infinito, e as flores, multiplicaram-se, cheirando, por todos os interstícios das nuvens.

— Deve ser uma grande santa, Senhor, a que esperais hoje no reino do vosso Pai! — observou o chaveiro ao Filho de Deus.

— Pelo contrário, Simão Pedro! — contestou o Nazareno. — Aquela que hoje vai penetrar no céu, teve, na terra, a mácula do pecado. É Maria da Magdala.

— Maria da Magdala? — fez o Apóstolo. — E tu a perdoaste, Senhor?

— Ela é digna do reino de Deus, Simão Pedro! — tornou Jesus, com um sorriso de misericórdia.

E fazendo curvar a cabeça ao chaveiro:

— Ela é digna do Reino do meu Pai, porque muito amou, e, sobretudo, porque amou com humildade!

E mandou acender pelas alturas, no caminho da Pecadora, as maiores estrelas que hoje se veem no céu...

XXVIII

A HORA SINISTRA

“Não há mulheres desonestas; há homens desonestos” — escreveu, um dia, o brilhante Júlio Dantas. E acrescentava, em uma das páginas mais humanas e admiráveis da literatura contemporânea: “Todas as mulheres têm, na vida, uma hora perigosa. Essa hora decide da sua existência inteira. É a ‘hora do Diabo’. É o instante de fragilidade em que sucumbem para sempre, ou em que para sempre se salvam. O seu triunfo ou a sua perda dependem menos delas do que do homem que nesse instante lhes perturba a inteligência ou os sentidos. Se é um homem digno, estão salvas. Se é um miserável, estão perdidas”.

Leitora assídua e maravilhada do cintilante escritor português, Dona Fúlvia Brandão Botelho havia lido, uma tarde, essa página, e chamado, para ela, a atenção do marido.

— Eu acredito piamente no que ele diz, — sentenciou, acendendo um cigarro, o Dr. Brandão Botelho.

E com ênfase:

— O Júlio Dantas é médico, é homem de ciência, e não ignora esses problemas da psicologia, ou, antes, da fisiologia feminina. É, mesmo, como ele diz: não há mulheres desonestas; há homens desonestos.

À noite, após o jantar na mesa redonda, estavam na sala, conversando, Brandão Botelho, Dona Fúlvia e o engenheiro Alfredo Elias, quando chamaram ao telefone, de repente, o dono da casa. Este lançou o cigarro pela janela, correu a atender, e, dois minutos depois, voltava ao salão.

— É o Julião que me está chamando à casa do Barreto Lopes, para discutir o contrato do carvão.

E consertando o laço da gravata, diante de um vidro da estante:

— Fica aí com o Alfredo, que eu já venho. Dentro de vinte minutos estarei de volta.

Em uma igreja, longe, um relógio da torre pingou, pausado, nove gotas de som na bacia de ouro do Tempo. Em silêncio, Dona Fúlvia, toda em linho branco, os pés afundados no tapete malva, de cintilações prateadas, examinava, atenta, a mocidade robusta do Alfredo Elias. Vagarosos como lesmas, e como as lesmas cobertos de umidade, os olhos negros da moça arrastavam-se pela figura do rapaz, detendo-se aqui e ali, enamorados do caminho. Por sua vez, o engenheiro não se mostrava inativo: percorria, com o olhar, aquele jardim de carne escondido pela neblina da roupa, e com uma insistência tamanha que Dona Fúlvia, toda ela, se arrepiava de voluptuosa indignação.

— Então até já! — fez Brandão Botelho, encaminhando-se para a porta.

Pondo-se de pé, Dona Fúlvia acompanhou o esposo, para despedir-se. À escada, tomou-o pela mão.

— Augusto, como é que tu te vais assim, deixando-me tão sozinha, em companhia do Alfredo?

— Que tem isso, filha? — estranhou o marido, intrigado. — Que tem isso?

Dona Fúlvia sentiu um arrepio de vergonha. E foi vermelha, as faces quentes, as mãos geladas, que soluçou, trêmula, com os olhos no rosto do esposo:

— Ele não será desonesto, Augusto?

XXIX

O VALENTÃO

Companheira infatigável e dedicadíssima daquele famoso cabo eleitoral, Dona Mariana fora, pode-se dizer, o seu anjo da guarda. Era ela que lhe incutia coragem nos pleitos eleitorais, animando-o, entusiasmando-o, empurrando-o para a rua, a fiscalizar os votantes do seu partido. Graças a isso, e àquele cacete, que lhe servia mais de amparo do que de arma, o Eufrásio Mendes ganhava fama de valente, a ponto de ser disputado a peso de ouro pelos vários chefes municipais.

Alto, forte, espadaúdo, o Eufrásio tinha realmente uma figura que infundia respeito. Caminhava pesadão, como um urso, e dizia-se que, de uma cacetada, havia derrubado um touro formidável, no matadouro de Santa Cruz. A sua mão, aberta, enchia, quase, uma balança de açougue. E era fama que ninguém, até então, havia conseguido descer-lhe o braço, quando ele punha o cotovelo na tábua de um balcão, desafiando, arrogante, os mais reforçados carroceiros da praia.

No meio de toda essa gente atemorizada, uma pessoa havia, porém, que não levava muito a sério a valentia do Eufrásio: era Dona Mariana, a esposa do cabo eleitoral, e a quem este devia tudo o que era no mundo, ou, melhor, no conceito dos outros. E foi por isso que, naquele domingo, madrugada ainda, a boa criatura sacudia o marido pelo pé, despertando-o:

— Eufrásio?... Eufrásio?... Acorda, que hoje é dia de eleição, homem!

De um salto, o mastodonte pulou da cama, correu para o banheiro, e, num momento, voltava ao quarto para vestir-se. Enquanto isso, Dona Mariana preparava o café, passava manteiga no pão, arranjando — lhe aquele almoço matinal. E estava nessa faina de boa dona de casa, quando o Eufrásio surgiu, de dentro, paletó preto, calça de brim branco, retorcendo furiosamente os bigodes.

— Que é isso? — fez Dona Mariana, as mãos nas cadeiras, olhando o marido. — De calça nova hoje?

Marchou, resoluta, para ele, tomando-o pelo braço:

— Não, senhor! Vá mudar essa calça, e vestir a calça velha!

E, com ironia, fazendo-o baixar a cabeça:

— Como é que você vai sair de calça branca, criatura! num dia de eleição?!...

XXX

O MURO

O último encontro entre os dois havia sido marcado para aquela tarde. Separar-se-iam como bons amigos, sem rancores, sem revoltas, sem ressentimentos. Tinham vivido na maior harmonia durante um ano e três meses; agora, porém, ele ia casar-se, entrar em novo regime de vida, de modo que aquele afastamento se tornara para os dois inevitável.

O primeiro a chegar fora ela. Alta, clara, elegante, olhos verdes, cabeleira de ouro aparecendo sob os dois lados do chapéu, os dentes muito lindos, e muito iguais, postos em destaque pelos traços de rouge, saltara do automóvel apressadamente, enfiando, a cabeça baixa, pelo corredor estreito da pequena casa que lhes servia de ninho. Ao contrário do que fazia habitualmente, ficou vestida, e de chapéu, sentada no divã da sala, manuseando melancolicamente uma velha revista estrangeira.

Momentos depois, um automóvel parou. E ele penetrou na sala, fechando a porta por dentro.

A situação era de constrangimento recíproco. Sem uma palavra, ele atirou o chapéu para uma cadeira, e, aproximando-se daquela mulher admirável, que fora o maior encanto de sua vida de solteiro, pegou-lhe carinhosamente da mão, depondo nela um beijo que era, ao mesmo tempo, de paixão e de ternura.

O silêncio, às vezes tão leve como as sombras, pesava, agora, entre os dois, como um grande manto de chumbo. E o primeiro a rompê-lo foi ele, a voz trêmula:

— Então, é a última vez... Não?

— Assim é preciso... — confirmou ela, resoluta. — A proposta, aliás, foi tua...

— Sim, eu te propus isso, — confirmou o rapaz, criando ânimo; — eu não saberia ofender-te com uma dualidade, dando-te apenas a metade do coração de que foste senhora absoluta.

Roto, assim, por esse diálogo ligeiro, o manto de chumbo caiu, de novo, entre os dois. Constrangida, outra vez, com o mutismo do rapaz, a moça levantou-se de repente, num repelão.

— Então, está tudo acabado... Não? — exclamou, de pé, concertando a toilette.

— É verdade; está tudo acabado... — gemeu ele, a cabeça caída, as mãos pendentes, em abandono. — Entre nós ergue-se, agora, um grande muro!

— Ergue-se um grande muro!... — fez ela, sacudindo a cabeça, numa confirmação.

E de súbito, estendendo-lhe a mão:

— Então, adeus!

— Adeus!... — gemeu o desgraçado, a mão mole, sem erguer a cabeça, num quase desfalecimento.

E ainda se achava nessa posição, quando o automóvel estourou lá fora, no arremesso da partida.

No dia seguinte, pela manhã, estava o rapaz na cama, abalado ainda pelo episódio da véspera, no momento em que o telefone retiniu, na mesa da cabeceira. Levou o fone ao ouvido, e franziu a testa.

— Ah, é você, Elvira? — observou, espantado.

— ...

— Sim, filha; entre nós, há, agora, como eu lhe disse ontem, um grande muro.

— Como?... No muro?

— Sim, é um muro; mas a gente abre uma portinha!... Vem!

E pulou da cama, contente.

XXXI

O AVIADOR

Carlos Florêncio da Mota iniciava, no Rio, os seus exercícios de aviação roncando com o seu hidroplano de estudo sobre a lagoa Rodrigo de Freitas, quando, em 1917, lhe rebentou no cérebro de vinte e três anos uma ideia generosa: seguir para a Europa e oferecer os seus serviços à França, lutando pelo que era, ou ele supunha, a causa da Civilização. Sem família que o detivesse, vendeu o aparelho, comprou passagem à própria custa e, dois meses depois, examinados os seus papéis e os seus conhecimentos profissionais, levantava ele o primeiro voo ao lado de um piloto, em Saint-Maenehould, para atirar a primeira bomba sobre Verdun.

Terminada a guerra, que lhe valeu apenas um ferimento no braço direito, por bala de fuzil, e duas condecorações por bravura militar, estava o moço aviador em Paris, sofrendo as consequências da vitória, quando conheceu, num restaurante, a Georgete, rapariga de uns dezenove anos, que os alemães haviam afugentado de Laon, sua cidade natal, assim como se afugenta com um tiro a rola adormecida, inocente ainda, no alto ninho em que nasceu. Conheceram-se, entenderam-se, amaram-se. E como a guerra, ou, antes, a paz, havia criado novos hábitos sociais, ficou Carlos Florêncio sob a proteção da francesinha, que lhe dava, com os seus lucros da noite e do dia, o coração todo, o almoço, a roupa e, como complemento, a metade da cama.

A vida tornava-se, porém, dia a dia, mais difícil. E foi quando o rapaz teve outra ideia: embarcar, com a linda companheirinha, para o Brasil, onde encontraria emprego, senão para ele, ao menos para ela. O governo americano possuía milhares de aeroplanos inúteis, que vendia barato. Carlos Florêncio conseguiu um gratuitamente, com o general Pershing. Arranjou transporte para o Rio e, em 1920, em junho, entrava a Guanabara, tão sua conhecida, em companhia da Georgete e do seu aeroplano de combate.

As notícias da imprensa, que o sagrava herói nacional nas terras estrangeiras, facilitaram de algum modo a sua instalação na cidade. Como, porém, iniciar a vida, o trabalho, a atividade rendosa? Um amigo sugeriu-lhe um meio:

— Por que não utilizas o teu aeroplano, explorando o anúncio de produtos comerciais?

— Como?

— Voando sobre a cidade, e atirando, do alto, sobre a Avenida, sobre os prados de corrida, sobre os campos de futebol, prospectos de casas comerciais, de cinemas, de teatros.

A lembrança não era, de todo, má. Carlos Florêncio da Mota aceitou-a e, uma semana depois, rara era a tarde em que a Avenida não sentia descer, como um turbilhão de borboletas que pousassem nas árvores, nos teatros, no asfalto, nos automóveis, na cabeça dos transeuntes, centenas, milhares de papelitos multicores, com reclames dos estabelecimentos de diversões ou de comércio, habituados, aqui, à propaganda inteligente. E a multidão apanhava no ar os prospectos, sorrindo para o céu imenso, enquanto o aviador desaparecia ao longe, na doçura da tarde maravilhosa.

Mais, porém, do que o companheiro nas alturas, perto dos astros, ganhava Georgete, no chão, perto dos homens. Isso, no entanto, pouco incomodava o rapaz. O que havia entre eles era mais, já, um tratado comercial, uma sociedade para exploração diferente, do que mesmo uma aliança de coração.

Certo dia, haviam acabado, os dois, de almoçar, e vestiam-se, cada qual para ganhar a sua vida. Camisinha de seda cor de rosa por sobre a pele da mesma cor, já calçada, com as ligas da cinta repuxando a meia acima dos joelhos, Georgete acentuava com o rouge, diante do espelho, a linha da boca pequenina, quando o rapaz, em camisa e cuecas, indagou, pondo a gravata no colarinho:

— Vais hoje à Avenida?

— Vou, sim, — confirmou a rapariga.

— Com quem vais passar a tarde?

— Sei lá, filho! — fez Georgete num amuo.

E voltando-se para ele, o rouge na mão, com a boquinha de Mae Murray:

— Diga-me uma coisa: quando você atira o seu papelote lá de cima, você sabe na mão de quem vai cair?

E recomeçando a pintura:

— Pois, eu, sou assim...

XXXII

A “BAIANA”

Nascida no Rio de Janeiro, no ano da graça de 1890, Dona Beatriz não perdera, de 1891 até hoje, um único carnaval. Ainda estava no colo materno, e já exibia, em fevereiro, o rostinho carminado com papel de seda, fazendo ressoar em torno, muito espantada, os guizos da fantasia. Quando moça, vestia-se de cigana, de toureiro, de jóquei, de inglês, tendo a preocupação, porém, de pôr em evidência a sua encantadora plástica de adolescente. De 1915 a esta parte, resolveu, entretanto, mudar de figurino. E passou a sair de “baiana”, o pescoço rodeado de voltas de ouro, uma rodilha à cabeça, camisinha de renda fina, os braços à mostra, chinelinha na ponta do pé.

Não obstante a predileção da mulher por essa fantasia nacional, o Dr. Adroaldo não a olhava com bons olhos. Achava um pouco feira-livre, isto é, deixando à mostra alguns recantos do corpo, e só consentia que a moça se exibisse nesses trajes com uma condição.

— Tu sais de “baiana”, mas há de ser de máscara! Ouviste?

Dona Beatriz obedecia. Sábado à noite, lá estava ela na Avenida, o rosto coberto e o colo de fora, a lançar serpentinas, como uma doida, do alto do seu automóvel. E não obstante o disfarce, era fatal o reconhecimento.

— É madame Guerra! — diziam os pierrots, abordando o carro, lança-perfume na mão.

— É a senhora do Adroaldo! — asseguravam os bilontras, dando o cerco.

E o resto, investindo:

— É a Beatriz! É a Beatriz!

Aquilo, se desvanecia de algum modo, servia, também, para irritar a moça.

— Ora, esta! — exclamava a pobre, com aborrecimento. — Não se pode sair, mesmo, sem ser conhecida!

Domingo último, contrariada com aquela perspicácia dos outros, a moça queixou-se ao marido:

— É um horror, filho! Não sei mais o que faça para não me conhecerem! É pisar na rua, mesmo de máscara, e toda a gente sabe logo que sou eu!

— Mas, é natural filha! — ponderou o marido, deitando mostarda no bife. E o remédio, tu sabes qual é.

Dona Beatriz olhou-o, numa consulta. E ele, sem deixar de mastigar, esfregando a mão pelo braço:

— Passa a gilette!

XXXIII

A SURPRESA

O carinho, a ternura, a paixão com que a esposa o recebia todas as tardes quando ele regressava do escritório, fez com que o Dr. João Anselmo, o ilustre engenheiro de minas, confiasse, em absoluto, na sua sinceridade. Como admitir, de fato, que naquele espírito avoejasse qualquer pensamento estranho, se a sua Orminda era, quando ele chegava, uma cheirosa flor de carne, a despetalar-se em beijos, em afagos, em carícias ardentes, no jarro de ouro dos seus braços?

Com a atenção voltada para ele, a acompanhá-lo na vida, nos movimentos, nos gestos, como o helianto acompanha, durante o dia, o curso luminoso do sol, o jovem profissional não tinha dúvidas em abrir as portas do seu lar à visita dos amigos mais íntimos, certo de que a esposa, mesmo em caso de ataque, se saberia defender, inocente, com a couraça do coração. E era certo disso, e, mesmo, com alegria confiante, que via a sua casa procurada, durante o dia, pelo deputado Luiz Moreira, espírito de elite e causeur encantador, que teria o mérito de distrair com a sua palestra polida, e sempre respeitosa, aquela pequena rola solitária.

— É uma felicidade encontrar-se um amigo como o Moreira, — pensava, às vezes, João Anselmo, entre dois cálculos algébricos, na tristeza do escritório. — O que perde a mulher é a solidão, que lhe acorda os maus pensamentos. E é disso que o Moreira livra a Orminda, indo conversar com ela, na minha ausência, quando ela estaria, talvez, pensando em coisas inconvenientes.

O trabalho do conhecido engenheiro terminava, em geral, às seis da tarde. Naquele dia, porém, a saudade era tanta, e tão funda, que lhe subia do coração, como a água que irrompe das profundezas de uma fonte, e se derrama, incontida, pelos bordos de pedra do tanque.

— Vou fazer-lhe uma surpresa! — pensou, contente, João Anselmo, atirando para um lado o lápis, a régua, o maço de papéis de desenho em que fazia, na ocasião, a planta de uma nova galeria na famosa mina do Morro Velho.

Ao penetrar no jardim, pé ante pé, o rapaz prelibava, contente, o susto risonho da companheira, ao senti-lo a seu lado, repentinamente, àquela hora do dia. Na sala de jantar, estacou. Subiu a escada, abafando o atrevimento dos passos na discrição complacente dos tapetes. À entrada da alcova, parou, encantado. De costas para a porta, sentada à beira da cama, Dona Orminda pregava um sopro de renda na espuma de uma camisa. A cabeça levemente baixa, deixava-lhe em evidência a nuca muito clara, muito roliça, posta em maior destaque pela negligência com que suspendera, prendendo-o em cima, o turbilhão do cabelo castanho. Estava tão sossegada, tão calma, tão quieta, afundada no silêncio ambiente, como uma flor submarina mergulhada a cinco mil metros, no eterno mistério das águas. Comovido diante daquele quadro, João Anselmo quis recuar, temendo melindrar com um susto a delicadeza daquela rosa. Tomou, porém, coragem, pôs um joelho na cama, e de um salto, antes que a moça se voltasse, pôs-lhe as mãos nos olhos com força, ao mesmo tempo que, virando a cabeça para trás, lhe cobria de beijos a testa, o nariz, a boca, as faces, os cabelos...

— Engraçadinho!... — fez a linda senhora, com ironia, sem poder desembaraçar-se do agressor. — Deita aí, é que é!

João Anselmo continuava a beijá-la com fúria, com ânsia, com sofreguidão, sem tirar-lhe as mãos dos olhos. E foi incomodada com o exagero daquela carícia, que moça pediu misericórdia:

— Basta! Basta! Não faças mais!

E sacudindo a cabeça irritada:

— Não faças mais, Luiz!

XXXIV

ORGULHO DE POSTO

Alto, forte, musculoso, Antônio Barbosa Fagundes havia sido um dos alunos mais estimados da sua turma, na Escola Naval. Promovido a 2° tenente, recebera a farda, e as responsabilidades do posto, como o prêmio mais honroso da sua vida. Fosse ele almirante, e não exibiria com tanto orgulho, com tanta altivez, aquele galão do uniforme, passeando-o acima e abaixo, à tarde, pela Avenida, pelo Flamengo, pelo interior elegante das grandes casas de chá.

Bonito e moço, era natural que o 2° tenente Barbosa Fagundes gostasse de festas, de danças, de vida mundana. E como, nesta, o galanteio é tudo, não havia senhorita, e mesmo senhora, que não tivesse ouvido os seus protestos de paixão.

— V. Ex. é como o sol, — dizia a uma. — Quando V. Ex. sair da festa, a sala escurecerá!

Ou então:

— Eu era cego; principiei a sentir a luz no dia em que vi os seus olhos!

Durante quatro anos, foi essa a tática do moço oficial. Louvando aqui, lisonjeando ali, poucas senhoras e mocinhas escaparam ao seu galanteio, e, mesmo, às suas declarações de amor. E estava em pleno sucesso, nos salões, quando foi promovido, de súbito, a 1.° tenente.

Com mais um galão no punho, Barbosa Fagundes considerou-se ainda mais irresistível. Foi pelo menos, com essa certeza, que compareceu ao baile de aniversário do comendador Matias Benigno, no qual estreou a sua farda nova, com toda a solenidade do novo posto.

Elegante e soberbo, impressionava com a sua figura. E foi sob o olhar cobiçoso das mulheres que, em certo momento, ao conduzir pelo braço, depois de um fox-trot, a graça de Mlle. Irene Carneiro, sussurrou como de costume, ao ouvido da moça:

— Sabe? O meu coração tombou, de repente, aos seus pés...

Coradinha, nervosa, perturbada, a mocinha sorriu:

— Ora! A quantas moças o senhor não terá dito o mesmo!?...

— Eu, senhorita? — fez Fagundes, formalizando. — Eu?

— O senhor, mesmo. Ainda o mês passado o senhor disse a mesma coisa à minha prima Leonor!

— Ah! — exclamou o rapaz, atrapalhado. — Mas, isso não tem importância.

E com ênfase:

— Nesse tempo... eu era 2° tenente!

XXXV

O PAPAGAIO

Ao fim daquele corredor de hotel, ladeado de quartos, cada um com o seu número, havia uma porta estreita, sem numeração nenhuma. Era a habitação eventual de todos, pois cada hóspede daquele pavimento entrava ali, e saía, demorando-se alguns minutos. Dentro, não havia cama nem guarda-casacas. A mobília era constituída apenas por um lavatório, e por outro aparelho de louça mais baixo, com tampa de madeira, e em que a água espumava, estrondante, toda vez que se puxava uma corrente, que correspondia a uma caixa presa no teto.

Não obstante a modéstia do mobiliário, esse compartimento era mais frequentado, mesmo, do que o próprio salão de visitas. Tão frequentado que, dez e até vinte vezes por dia, quando algum hóspede encontrava a porta fechada, e batia, não era raro ouvir, de dentro, uma voz soturna, a informar, desiludindo-o:

— Tem gente!

Nortista de boa têmpera, o Sr. Otaviano Raposo, proprietário do hotel, havia trazido para o Rio, ao regressar de um passeio a Sobral, um papagaio que estava, ali, na iminência de ser deputado estadual. Era uma ave grande, forte, verde como a bandeira nacional e, como a bandeira, enfeitado de amarelo e de azul. O seu lugar, na casa, era na copa; como, porém, vivia solto, preferia subir pelo encanamento, unido à parede, indo colocar-se à janela, exatamente, do pequeno compartimento sem dono.

Aí, por fora da grade, ouvia ele, dez, vinte, cinquenta vezes, a fórmula clássica do “tem gente”, proferida pelos hóspedes aboletados por um momento. E tantas vezes ouviu-a, que acabou decorando-a, inscrevendo-a no seu pequeno vocabulário. Empoleirado no alto da janela, podia ele ver, por cima do tabique, a pessoa que batia à porta.

E tão solícito era, que informava, logo, à aproximação do hóspede, declinando-lhe o nome:

— Tem gente, senhor Pereira!

Ou, com a língua grossa:

— Tem gente, Dona Genoveva!

Casado em segundas núpcias com a sua antiga datilografa, menina formosíssima e mais moça vinte e dois anos do que o marido, o Sr. Raposo acabou por vender o hotel, mudando-se, com a mulher e o papagaio, para uma pensão da mesma rua. E estava aí muito bem instalado, quando o “louro”, com a sua eloquência mecânica, lhe interrompeu a serenidade da vida.

Proprietário, agora, de uma casa de móveis nas proximidades da Avenida, o Sr. Otaviano saía da pensão muito cedo, deixando a esposa, e os outros hóspedes, ainda ferrados no sono. Almoçava na cidade mesmo, e só regressava, à noite, para jantar.

Certo dia, porém, por volta das 8 1/2 da manhã, resolveu o antigo hoteleiro tornar à pensão, afim de procurar uns papéis que esquecera. Subido o lance da escada, ia pelo corredor em que ficava o aposento do casal, quando, à sua aproximação, o papagaio, que se empoleirara no alto do portal sem vidros, se alvoroçou todo, a andar de um lado para outro. A mão fechada, o comerciante bateu, vibrando os nós dos dedos na tábua da porta, junto à fechadura. Um barulho de correria precipitada, aflita, nervosa, no interior do quarto, fê-lo fechar a cara. E ia insistir, quando o papagaio taramelou, do alto da porta:

— Não bata, não, “seu” Raposo!

E descendo pelo portal, a agarrar-se, ora com os pés, ora com o bico:

— Tem gente...

XXXYI

LÁZARO

A sessão espírita havia começado entre o respeito religioso de todos. À mesa, que era grande e pesada, de madeira de lei e estilo colonial, éramos uma dúzia de pessoas. Em uma das cabeceiras, o médium, o Sr. Abelardo Camargo, um rapaz de grandes olhos tristes e palidez impressionante, que já havia conversado com Victor Hugo, Floriano Peixoto, Carlos VII, Galileu e um faraó Kama-Tcherib, que não figura na história das dinastias, mas que viveu, segundo o seu próprio depoimento, no XI século antes da nossa era.

As relações aristocráticas mantidas no Além pelo Sr. Camargo é que nos reunia, ali, naquela noite serena de julho. A falar verdade, não se sabia, ainda, que espírito nos apareceria, com as suas revelações misteriosas. E estávamos todos na previsão da surpresa, como loucos que esperassem a queda do muro para ver o que havia no quintal do vizinho, quando o diretor da sessão, o Sr. Ataliba, um cavalheiro baixo, de óculos azuis, nos convidou a rezarmos com ele, mergulhando na própria alma num instante de meditação.

Feito isso, e dado o sinal para início dos trabalhos, o Sr. Abelardo começou a estremecer, e a empalidecer mais. E era, todo ele, convulsão e estertor, quando, a uma indagação do mestre da cerimônia, rugiu, entre dentes:

— Lázaro!

— Lázaro? — estranhou o Sr. Ataliba; — Lázaro de quê?

— Lázaro, da Betânia. Irmão de Maria e Marta... Aquele que Cristo ressuscitou ...

A essa informação, os assistentes se entreolharam. Tínhamos à mão a chave de um mistério, cuja tentativa de decifração valera a Renan a maior das campanhas dos seus adversários. Por que, pois, não aproveitar a oportunidade, que era excepcional, inquirindo o paciente sobre o milagre que mais contribuíra, talvez, para levantar os sacerdotes judeus contra o crescente prestígio do Nazareno?

A meu pedido, o Sr. Ataliba interpelou o irmão de Marta:

— Lázaro... em nome de Deus... conte-nos o mistério da sua ressurreição! Diga-nos como reapareceu entre os vivos e como se afundou, de novo, no oceano da morte!

Ruflando como um aeroplano, o médium estremeceu de novo, os dentes apertados:

— Eu era casado... na Betânia... com Sara... filha de Zaqueu... Morri, fui sepultado... Senti o aniquilamento da morte... Quatro dias depois, levantaram a pedra do meu sepulcro... desataram-me os pés... as mãos... os olhos... Uma voz doce, como do céu, ressoou aos meus ouvidos, mandando que eu me levantasse... Ergui-me... abri as pálpebras, e caí de joelhos, chorando de gratidão... Era Jesus de Nazaré, meu Deus e meu Senhor!

— E depois? — indagou, por insinuação minha, o Sr. Ataliba.

— Depois, fui para casa... Maria e Marta mostravam-se aflitas, inquietas, agoniadas ... Perguntei por Sara... A sua ausência me preocupava... E foi, então, que Maria me contou, confortando-me, que minha mulher... a filha de Zaqueu... havia partido, na véspera, com a caravana de Simão, filho de Malaquias!

— E então?...

— Então — tornou Lázaro, pela boca do médium, — então, voltei para o cemitério, puxei a tampa do túmulo sobre mim, fechei os olhos, e morri para sempre...

E num estremecimento, que era um grito:

— Quando o coração é apunhalado, nem Deus o ressuscita!...

Um rugido mais forte, anunciou que o médium ia acordar. Lázaro havia partido.

XXXVII

O BANHO

Pijama de cor duvidosa escorregando pelas duas pernas de cegonha, meias escuras enrodilhando-se no tornozelo, como se se quisessem esconder na furna das chinelas de palha, o Felismino Botelho passeava pelo corredor, como quem aguarda, ansioso e assustado, um grave acontecimento. De um compartimento próximo, vinha o barulho da água jorrando, com força, na grande banheira lavada de novo. A casa era, em suma, em alvoroço, como se se esperasse visita ou tivesse saído para alguém o prêmio grande da loteria.

Gorda, pesada, enorme, a papada a cair pelo peito, o peito a descer pela barriga, e a barriga a despencar pela perna, Dona Raimunda movia-se com lentidão, acima e abaixo, dando ordens. E ouviam-se determinações:

— Luiza, traga o sabão que está na beira do tanque!

Ou:

— Francisca, essa água já está quente?

Esfregando as mãos, nervoso, Felismino ora sentia um contentamento indizível, ora se enchia de susto, de temor, de apreensões, ao lembrar-se que tudo aquilo, aquela balbúrdia toda, era exclusivamente por sua causa. É que ele, tendo de ir ao casamento do seu sobrinho Anacleto, ia, naquele dia, tomar um banho!

Os banhos constituíam, na vida do velho funcionário de Banco, verdadeiros acontecimentos. Havia tomado já uns quatro, em menos de sete anos; e ia tomar o quinto com a maior solenidade, sendo esse o motivo de todo aquele alvoroço na família.

De minuto a minuto, a situação se agravava. Pelo barulho grosso da água, percebia-se que a banheira já estava pelo meio. O sabão, a toalha, a garrafa de álcool, tudo já se achava no banheiro. A chaleira fumegante na mão, a Francisca subiu. Dona Raimunda segurou o vaso pela asa, e, penetrando no quarto de banho, ordenou ao marido, que roía as unhas, nervosíssimo: — Prepara-te, Felismino; eu já vou botar a água quente na banheira.

A esse aviso, a mão trêmula do velhote fez uma cruz na testa, outra na boca, outra no peito, no gesto clássico do “pelo sinal”, e ia fazer o “nome do padre” quando se deteve, interrompido por umas palmas fortes à porta da rua.

— Telegrama! — gritou a voz esganiçada de um estafeta.

Chegando à porta, Felismino Botelho passou o recibo, e, ao abrir o papelucho esverdeado, arregalou a boca e os olhos num sorriso enorme, que iluminou toda a fisionomia.

— Mundinha!... Mundinha!... — gritou, correndo para dentro, a arrastar as chinelas esbandalhadas. — Suspende a água quente!...

E caindo numa cadeira, feliz, como quem acaba de livrar-se da pena de morte:

— O casamento foi adiado...

XXXVIII

AS INTERESSEIRAS

Os historiadores da Grande Guerra, estudando as consequências do formidável conflito, têm apontado como seus efeitos principais, o desequilíbrio econômico e a inquietação social, determinada esta pelo predomínio das classes proletárias. Um psicólogo iria, entretanto, mais longe, e verificaria que o amor, mais que as finanças e as instituições políticas, sofreu a influência nefasta, e irrecusável, da conflagração universal.

Essa verdade é, aliás, facilmente patenteável. Enriquecendo de súbito, milhares de indivíduos grosseiros, transformando-se de antigos pobretões em “novos ricos”, o primeiro gesto desses arrivistas foi atirar-se à conquista das mulheres lindas e finas, suprindo com o dinheiro e com as suas vantagens as qualidades de espírito, de educação e de elegância moral que lhes faltavam. Tentadas pelo demônio do luxo, as mulheres deixaram-se prender por esses brutos afortunados, profanando o amor; e quando, passada a vertigem da guerra, se levantaram da queda, não tinham mais o coração no peito, mas na bolsa de mão, ao lado do baton de rouge e da caixinha de pó de arroz.

Degradada assim pelo interesse, pela corrupção do dinheiro, a mulher chic de hoje é diferentíssima da de 1913. O espírito, a inteligência, a educação, a elegância de maneiras ou de caráter, são laços frágeis, desprezíveis, insignificantes, que os seus pés minúsculos rebentam de passagem. Adoram o “bezerro de ouro”, como os israelitas ao pé do Sinai. E quando alguém lhes aponta a arca da “aliança”, não se prostram diante dela sem olhar, primeiro, os tesouros que vão dentro.

Um caso recente, definiria, talvez, a nova mentalidade da mulher mundana, ou, antes, da mulher que a guerra inventou. Foi uma destas tardes, na Avenida. Alta, forte, majestosa, a linda criatura batia o trottoir com os martelitos de ouro dos seus sapatinhos de Cendrilon, quando sentiu no seu encalço, disfarçando a perseguição elegante, o uniforme branco do Sr. almirante Justino Ribas. Galanteador incorrigível, o simpático marinheiro pôs, logo, em atividade, todos os recursos militares do seu arsenal, atirando, de minuto a minuto, o obus de um vocábulo lisonjeiro na esteira da garbosa nau perseguida.

— Acredite, madame, — sussurrava o ilustre marujo, — que eu irei até à sua porta, nesta marcha em que vamos. E, se me não deixar entrar, ficarei a noite inteira de mãos postas, de joelhos, diante da sua janela!

Passinho ligeiro, a dama não dava palavra. Não voltava, sequer, a cabeça, para ver o seu perseguidor. E este insistia:

— Diga-me, por Deus, onde mora!

E como o silêncio continuasse:

— Será possível, minha Nossa Senhora dos Aflitos, que ela, com orelhas tão lindas, seja surda?

Madame à frente, almirante atrás, iam os dois já nas proximidades do Assírio quando, a uma investida do brilhante marinheiro, a dama declarou, sem voltar-se:

— O cavalheiro não sabe, acaso, que as mulheres como eu são como os telefones públicos?

— ?...

— E não sabe que os telefones públicos só falam quando se lhes põe dois tostões no buraco?

XXXIX

ESCOLA DE CADETES

O Tomaz Lourenço estudava na Escola de Realengo, fazendo pacificamente o seu curso na infantaria, quando, em uma festa em São Cristóvão, conheceu, com os olhos e com o coração, a Adelina Viterbo, que era, por esse tempo, a menina mais bonita do bairro. Olhos claros, quase amarelos, cabelos da cor dos olhos e boca pequena, escandalosamente vermelha, não era o tipo da melindrosa atual, pequenina, frágil, quebradiça. Era forte de corpo, o colo cheio, a nuca redonda, uma dessas criaturas, em suma, de que a gente pode tirar o pedaço, sem que o pai, ou o marido, dê pela diferença.

Dois ou três tangos, um passeio pelo jardim, três confidências ao canto da janela, e estava o namoro iniciado. A continuação devia ser constituída pelas visitas do moço aspirante à casa da família, pelos passeios de automóvel, pelas horas de cinema, pelas intimidades consequentes e, enfim, pelo casamento, que seria o oceano desse riacho que se tornara torrente, e que nascera, como um filete d’água, entre dois sorrisos, num baile.

Certo dia, porém, teve Tomaz Lourenço notícias graves, referentes à noiva. Adelina não era, propriamente, uma moça: era uma escola de cadetes, em que se haviam matriculado, já, outros oficiais. Verdade ou não o que se dizia, o aspirante não apareceu mais em São Cristóvão, até que, dois anos depois, em uma festa na Tijuca, se encontrou, de novo, com aquele maravilhoso pedaço de tentação.

Radiosa, soberba, magnífica, a rapariga não mostrou diante dele, grande abalo de maneiras. Estava mais linda, mais forte, mais deslumbrante. E foi como quem desce de um altar, que se encaminhou para ele, a mão estendida, o braço nu, o sorriso no bico, numa alegria que era, positivamente, um desafio à sua saudade.

— Oh, “seu” ingrato, como está... — saudou, amiga e jovial.

Um diálogo ligeiro, incisivo, colocou-os, de pronto, à vontade.

— Então, não me quis para sua mulher; não? — fez a rapariga, numa queixa.

Tomaz Lourenço mastigou qualquer desculpa, que se tornava ainda mais difícil ante o deslumbramento que lhe causava a beleza da moça.

— Pois, fez mal; sabe? — tornou Adelina, os olhos perdidos numa recordação. — Fez muito mal!

E indicando, com desprezo, com a ponta do beicito vermelho, os dois galões honestos do punho do oficial:

— Você já seria major; sabe?

E afastou-se orgulhosa.

XL

LILI

(SOBRE UMA “CHARGE” DO “HUMORIST”, DE LONDRES)

Aos quatro anos de idade, a Lili mostrava, já, o que seria, quando ficasse moça. Tesa, espevitada, julgava-se, do alto dos seus três palmos, uma senhora digna de respeito. Era, pelo menos, com essa convicção que passava por diante do espelho, retocando o cabelo cortado à inglesa, corrigindo as pregas do vestidinho de cintura, ensaiando, a todo momento, atitudes e modos de andar.

Se, porventura, saía a passeio com D. Rita, ou mesmo, com a governante, não havia, no bonde, moça mais coquette e cheia de circunstâncias: sentava-se com dignidade, puxava o vestido afim de cobrir as perninhas morenas, alteava a cabeça, cruzava as mãozinhas sobre os joelhos — e tudo isso com uma circunspeção de pessoa convencida.

Às vezes, ao surpreendê-la em frente ao guarda-vestidos, ensaiando, diante da lâmina de cristal, gestos de senhora ou de moça, a mãe a tomava pela orelha, afastando-a com bom-humor:

— Sai daí, piolho!

Aos olhos da Lili nada havia de mais insultuoso, de mais agressivo, de mais humilhante. Não seria ela, acaso, uma senhorita? E se não chorava, limitando-se a tremelicar o beicinho vermelho, é porque sabia, por si mesma, que as senhoras não choram.

Nas reuniões a que ia, tinha o cuidado, sempre, de afastar-se das crianças, das rodas infantis, do pessoalzinho da sua idade: preferia a companhia da gente grande, acompanhando com atenção as conversas em torno das modas, rindo, às vezes, a bom rir, com as pessoas graúdas, sem saber, embora, do que se tratava.

Assim emproadinha, a Lili ia se criando voluntariosa, autoritária e, não raro, atrevidinha. Olhava os criados por cima dos ombros, lavava as mãos toda a vez que a sua antiga ama, a Luiza, lhe tocava nos dedos, e, às vezes, até chegava a discutir com Dona Rita, com a certeza, embora, de que acabaria no castigo ou, pelo menos, com um puxão de orelha ou meia dúzia de beliscões.

Com essa precocidade de maneiras, a Lili havia d, necessariamente, dar que fazer à família.

Certo domingo, por exemplo, vinham da missa na Glória, Dona Rita e a pirralha, quando esta, ao entrar em casa, foi, logo, gritando com os criados. Paciente e educada, a boa senhora censurou a filha, aconselhando-lhe maneiras mais doces. Irritada, a pequenina retrucou, com um desaforo do seu tamanho.

— Que é isso, Lili? — estranhou a mãe, com gravidade. — Se continua assim, ponho você de castigo, ouviu?

— Ora, castigo!... sorriu a pequena, zombeteira.

— E não é castigo simples, não. Você vai ficar de castigo no galinheiro!

A essa ameaça, Lili ficou vermelha, como um lacre.

— Que me importa! — estourou, zangada.

E virando-se para a mãe, o rostinho congestionado, o dedinho teso:

— Mas não conte comigo para botar ovo; sabe?

XLI

O “BÔNUS”

Bonde de Copacabana, às 7 horas da noite. Apertados pelos outros passageiros, Paulo Borges e Roberto Mendes contam particularidades da sua vida galante.

PAULO — A minha situação, meu velho, é a menos invejável possível. Agora, estou metido com a Idália.

ROBERTO — A viúva do Sobreira?

PAULO — Exatamente.

ROBERTO — E que esteve com o Efigênio?

PAULO — Essa mesmo.

ROBERTO — Bonitona, está; mas, também, um pouco passada. Ela anda pelos quarenta anos, com a circunstância de ter pertencido ao Xavier, ao Gaudêncio Ramos, ao Epifânio, ao Pereira Lopes, ao Tomazinho, ao Gomide e ao Lopes Lima.

ROBERTO — E ao Mário Felisberto.

PAULO — Desse não sabia. Um a mais, um a menos, dá, porém, tudo na mesma coisa. O certo é que ela está envelhecendo e que eu tenho de aguentar com a herança desses “piratas” todos.

ROBERTO — Mas, a herança não é das piores...

PAULO — Eu sei, menino. Mas a minha situação é a do indivíduo que se vê, de repente, com um bonus da Independência, do qual já destacaram os coupons. Cada um tirou uma “entrada”, deixando-me, apenas, o bonus, que não serve para nada!

ROBERTO — É engano teu, filho! A velha não tem dinheiro?

PAULO — Dizem que tem.

ROBERTO — E não fez testamento?

PAULO — Vai fazer.

ROBERTO — E então, menino? que queres mais?

PAULO — ?...

ROBERTO — Tu não sabes, por acaso, que quem tem o bonus, mesmo sem as “entradas”, é que tem direito ao sorteio?

(Cai o pano... da sanefa)

XLII

“KU-KLUX-KLAN”

Há algumas semanas vinha o público do Rio de Janeiro lendo telegramas alarmantes, em que se contava ter a Ku-Klux--Klan, sociedade secreta dos Estados Unidos, praticado esta ou aquela barbaridade. Que era, porém, essa associação sinistra? Como aparecera? Quais os seus fins? Eram perguntas que ficavam sem resposta, e que só ontem, num artigo interessante, o Correio da Manhã satisfez, informando:

— “A Ku-Klux-Klan é uma instituição cercada da auréola do mistério, da mesma forma que a maçonaria e o carbonarismo, que nasceu nos Estados Unidos, em 1870, em seguida ao triunfo de Lincoln, libertando a população de cor do jugo da escravidão”.

Dada essa informação inicial, aponta o grande matutino, uma por uma, as vítimas da perigosa associação. Aqui, é um alemão chicoteado, por haver negociado com um negro. Ali é um advogado cuja mão é decepada, por ter defendido perante os tribunais um homem de cor. E era essa lista que dona Nininha lia à família, na doce intimidade da sala de jantar, quando, em certo momento, chegou a este ponto:

— “Patrick Switor, branco, pedreiro, teve os bigodes raspados, por ter a Ku-Klux--Klan apurado que ele tinha relações amorosas com uma preta”.

Quando a virtuosa senhora terminou esse período, a filhinha mais nova, a Tetèzinha, encantador diabrete de seis anos, que arrumava as bonecas a um canto, entre a parede e o guarda-pratos, bateu as mãozinhas, com espanto.

— Ah, minha mãezinha! — fez, levantando o rostinho de anjo.

E com os olhinhos muito vivos, muito negros, muito expressivos, no rosto claro da moça:

— É por isso que hoje quase todos os homens andam de bigode raspado... Não é?

XLIII

O DEFUNTO

O coronel Basílio da Mota, falecido ontem na Casa de Saúde do Dr. Poggi, era uma dessas figuras masculinas que têm o destino moral das mulheres. À semelhança de certas senhoras de sociedade, que morrem sem que se possa dizer se foram pecadoras ou virtuosas, o velho fazendeiro paulista afundou-se na morte antes que alguém lhe definisse a inteligência. Para uns, era ele de uma estupidez, de uma cretinice, ou de uma ingenuidade, à altura de Calino; para outros, porém, o que parecia calinada, não era senão agudeza, finura, sutileza de espírito.

Robusto, alto, moreno, com uns olhos muito negros, nariz de semita e uma barba grisalha que lhe espanava o estômago, o próspero agricultor havia-se tornado notável, na pensão em que se hospedara, pela originalidade das suas perguntas ou pelo imprevisto das suas respostas. A princípio, todos, à mesa, achavam graça nos seus ditos, nas suas frases, nas suas indagações, achando-os de um humor puramente britânico; a sua impassibilidade diante da admiração geral foi, porém, despertando suspeitas nos ouvintes, até que, ao transferir-se para a Casa de Saúde, ninguém sabia, mais, se havia ali, atrás daquelas barbas, um sábio ou um tolo.

Da mentalidade do coronel Basílio oferece a medida um caso simples, ocorrido no dia, mesmo, da sua internação no estabelecimento em que morreu. Admirado do seu espírito, ou da sua cretinice, ia o dr. Jaime Poggi, comigo e o coronel, em um automóvel de praça, quando tivemos de parar, de repente, à rua do Catete, para a passagem de um cortejo fúnebre. Era um enterro de pessoa ilustre, ou muito querida. Pelo menos, era o que se concluía do número avultado de automóveis que acompanhavam o corpo, e que desfilavam, morosos, tristes, monótonos, conduzindo cavalheiros de luto. À frente, puxado por duas parelhas negras, cobertas de malha escura, o carro funerário rodava soturnamente no asfalto, conduzindo o caixão agaloado, de onde pendiam coroas de saudade.

A vista do cortejo, os transeuntes paravam, descobrindo-se. O nosso carro parou também, junto ao passeio, deixando-nos quietos, mudos, recolhidos, a cabeça ao vento da tarde. Lentos, em cauda, os automóveis do cortejo desfilavam sempre, carregando gente de preto. Aproveitando a nossa inércia forçada, o coronel Basílio pousou o chapéu coco nos joelhos, arrancou da algibeira uma bolsa de fumo, escolheu uma palha de milho, e preparava-se para enrolar o cigarro, quando o Dr. Poggi, que não havia lido os jornais da manhã, indagou, espantado com aquele acompanhamento:

— Quem será o morto?...

— Ora! o doutor não sabe?!... — fez o coronel, com incredulidade.

E, o dedo estendido, indicando o coche fúnebre:

— É aquele que vai no carro da frente...

XLIV

“LA GARÇONNE”

(SOBRE UNS VERSOS DE JEAN RIEUX)

Farfalhante no seu caríssimo vestido de seda beige, e deixando à passagem um rastro de perfume suave, Mme. Araújo Simpson ajoelha-se diante do confessionário, dentro do qual monsenhor Otaviano Rabelo escuta, a cabeça na mão, o ouvido alerta, as secretas misérias do mundo. Um cheiro bom, de vitória-régia desabotoada ao luar, espalha-se em torno. Um sussurro de prece principia a zumbir, como o voo de uma abelha numa vidraça. E logo, em seguida, a voz, ligeiramente segredada, da formosa pecadora, contando, um a um, os seus pequenos delitos de coração:

— Eu comi carne sexta-feira, passada, padre; e, no sábado, traí meu marido...

— O primeiro pecado, filha, é dos mais graves. Não devia ter comido carne sexta--feira... — fez o confessor, em tom de censura.

E com bondade:

— Adiante... Continue...

— Li um livro escandaloso, padre.

— Um livro escandaloso, filha? — tornou o reverendo, num espanto discreto.

— Sim, senhor, li La Garçonne, de Victor Marguerite.

— Leu-o, apenas?

— Não, senhor. Fiz pior.

— Praticou, então, o que se ensinava nele, filha?

— Pior, padre: emprestei-o!

— Emprestou-o? Colaborou na propaganda da corrupção?

— Sim, senhor.

— A quem o emprestou?

— À minha prima Etelvina.

— E ela, que fez?

— Emprestou-o ao primo Lourenço.

— E ele?

— Passou-o à viúva Siqueira.

— E ela?

— Deu-o ao dr. Borges, médico do Asilo.

— E o dr. Borges, que fez?

— Emprestou o volume à madre Superiora.

— E a madre?

— Não sei, não, senhor.

Monsenhor Otaviano mergulha a mão no bolso da batina, fundo como um abismo e, arrancando de lá um volume brochado, capa marrom, aberto ao meio, indicando o ponto da leitura.

— Não será este, filha?

XLV

A TROVOADA

Um dos mais lindos filmes levados no Rio este ano, foi um em que se trata de um rapaz de origem modesta que vem ao mundo no momento, exatamente, em que o pai é assassinado, numa noite de trovoada. Prosperando pelo trabalho, o órfão consegue, como vingança, casar-se com a filha do assassino. E o castigo que lhe impõe a ela, é conservá-la virgem por toda a vida, concedendo-lhe uma ou outra carícia cerimoniosa mas fugindo, sempre, aos deveres matrimoniais.

A ocasião em que o desgraçado veio ao mundo deixou, porém, no seu destino e na sua saúde, um traço indelével; toda a vez que se anuncia uma tempestade com trovão, perde ele o governo de si mesmo, praticando atos de que absolutamente se não lembra depois. E foi em uma dessas ocasiões que correu a refugiar-se nos braços da esposa e inimiga, deixando-lhe no seio a semente de uma flor humana, que desabrochou, sorrindo ao mundo, nove meses depois.

Eu resumia esse filme, uma dessas noites, à mesa de jantar dos Monteiro Borges, florida de cravos e senhoras, quando uma criaturinha loura, de olhos muito azuis, que prestava atenção ao meu relato, interveio, com um sorriso garoto:

— Ahn! Então, é como o meu marido! o Guilherme, também só se lembra de mim quando ouve trovão. Mas eu é que não sou tola!

E mordendo o brioche, os olhos muito apertados, muito azuis, muito brejeiros:

— Faço desabar, toda noite, no quintal, um monte de latas de querosene!

XL VI

A MÚMIA

“Os antigos egípcios podiam tomar por empréstimo grandes quantias, deixando como garantia nas mãos do credor o cadáver do seu pai. Quando eles não retiravam esse penhor, eram cobertos de infâmia” — HERÓDOTO.

Em Mênfis, perto da décima porta, onde descarregavam as caravanas que vinham do sul através do Deserto, é que ficava o bazar de Hassurbanipal, o agiota persa, que emprestava moedas aos habitantes da cidade, sob a garantia de múmias recentes. Para o interior da casa estreita e baixa, amontoavam-se os caixões de madeira, contendo corpos embalsama dos ou secos. De dentro, vinha um bafo mau de sepulcro, tornado suportável pelo perfume forte das ervas purificadoras.

Magro, espichado, fino como as suas múmias, o velho Hassurbanipal contava, o braço estendido, os caixões penhorados à sua fortuna, quando a sombra de um homem que apareceu à porta se projetou, como uma nuvem, no ambiente sinistro.

— Por Phtah, Hassurbanipal!

— Por Osíris, Ptolomeu, filho de Nedgadhkonis! — correspondeu o velho, voltando-se.

Era um homem moço, ainda, o que acabava de chegar. Vestido de púrpura, trazida de longe através dos areais fulgurantes, mostrava nos modos, no porte, a graça feminina das gentes amolecidas no luxo. Era filho de Nedgadhkonis, que fora a mulher mais formosa de Mênfis, e cuja beleza levara à loucura o príncipe Hihror, cujo túmulo se via fora dos muros, aberto na pedra, a meia altura da colina Delkab.

Ao ver, emoldurado na porta, o vulto do mancebo, o usurário arrepanhou as peles selvagens que lhe cobriam o corpo esquelético, sentou-se num fardo de marfim atirado ao solo, e esperou a palavra do hóspede.

— Hassurbanipal, — começou este, a testa vincada pela tortura de tamanha humilhação; — Hassurbanipal, eu venho à tua casa, entregar-te, como garantia de nove moedas grandes, até que Isis ressuscite sete vezes, o corpo do meu pai.

— Está bem conservado? — indagou o agiota, como quem leva em grande conta a condição da mercadoria.

— Foi embalsamado pelos sacerdotes de Rá, com mirra do Ocidente e cosido com espinhas sagradas.

— Está aí?

O moço foi à porta do bazar e trouxe, com pulso forte, um caixão de madeira que deixara encostado ao muro, abrindo-o aos olhos do usurário. Este olhou a múmia, fechou a caixa, e coutou, uma a uma, as moedas na mão do mancebo.

— Até a sétima festa de Isis, Hassurbanipal! — fez o moço, despedindo-se.

— Até a sétima festa de Isis, Ptolomeu!

Ia o rapaz quase à porta, quando o agiota, que tomava nota num papiro, o chamou:

— Ptolomeu?

O moço voltou-se.

— É teu pai, mesmo?

— É meu pai, sim, — confirmou o mancebo.

E Hassurbanipal, sem levantar o estilete do papiro:

— Qual deles?

XLVII

PATRÕES E CRIADAS

Os homens, na sua maioria, ou na sua quase totalidade, acham que a mulher é um animal extravagante e caprichoso.

— A mulher só não casa com carrapato, — diz um provérbio sertanejo, — porque não lhe pode conhecer o sexo.

E, no entanto, quantas mulheres têm, na sua vida, baixado da condição própria, para conceder um favor leviano a um indivíduo de situação inferior? E quantos homens há, no Rio, que não tenham olhado pecadoramente para a sua copeira, ou atalhado, na rua, a antiga cozinheira da casa?

Os homens são, pois, mais extravagantes do que as mulheres. No dia que estas quisessem, poderiam mostrar aos seus detratores que não são elas que descem da sua situação para nivelar-se, em baixo, com os seus próprios serviçais.

Essa verdade, apurou-a a bondosa dona Carmita por mera coincidência. Estava a jovem senhora, uma tarde, a observar o serviço da cozinheira, mulata nova e sacudida, que se dizia solteira, quando observou:

— Luiza, você está para ter criança?

— Estou, sim, senhora.

— Mas isso é uma vergonha, rapariga! — tornou a moça, censurando-a.

— Vergonha, dona Mimita? Isso, não! — protestou a Luiza. — A senhora também não está para ter um filho?

— Estou, sim; mas é do meu marido.

— E o meu também não é? — fez a cozinheira, distraída.

E continuou a mexer a panela.

XLVIII

A VITRINA

O bonde do Largo dos Leões rolava, pesado, pela praia da Glória, rumo da cidade, parando de esquina em esquina. Vinha repleto de senhoras, de cavalheiros, da carga mundana e fina peculiar aos bairros chiques. E no terceiro banco, a contar da frente, dona Eleonora Falhares, com os seus olhos azuis e o seu vestido cinzento, e a sua filha mais velha, a Tudinha, cujo cabelo farto, e virgem de beijos sem inocência, ainda se debruçava, em cachos negros, pelo mármore casto dos ombros.

Tudinha andava, ainda, naquela idade em que a vida é, aos olhos que se abrem, uma surpresa incompreendida. O mundo passava-lhe, com os seus segredos, pelo espelho da imaginação assustada, como as árvores, os campos, os postes do caminho, vistos apressadamente pelas janelas de um trem em marcha. Não lhe ficava ainda, nos olhos e nos ouvidos, a reminiscência precisa das coisas.

Não obstante isso, dona Eleonora começou a preocupar-se com o tom indiscreto de uma palestra que se havia travado no banco seguinte. Não queria que a filha a ouvisse, e foi com esse pensamento que principiou a mostrar à menina, aqui e ali, os pontos longínquos da baía. A conversa, no outro banco, versava questões de honra, virgindades em perigo, e, embora não tomasse caráter escabroso, era de molde, contudo, a despertar a atenção de uma adolescente curiosa.

Felizmente, o bonde chegou à Galeria Cruzeiro, onde as duas saltaram, encaminhando-se pela Avenida, atravessando a rua da Assembleia, entrando na rua Sete. À rua Gonçalves Dias, pararam, diante de uma vitrina, em cujo interior um manequim, representando uma linda mulher, exibia, num sorriso de louça, uma toilette de baile. Diante daquele espetáculo de elegância, dona Eleonora olhava, atenta, o vestido. E supunha, calma, que a Tudinha fazia o mesmo, quando a menina, de repente, indagou:

— Mamãe, que é honra?

A senhora esfriou. Positivamente, a filha tinha ouvido a conversa do bonde, e procurava apurar, com a máquina do raciocínio, a essência daqueles vocábulos misteriosos.

— A honra?

— Sim, mamãe; a honra da mulher...

Que é?

— A honra da mulher, minha filha... — começou dona Eleonora, medindo, cautelosa, as palavras.

Deteve-se, pensou um instante, e tornou:

— Estás vendo aquela mulher, ali dentro, na vitrina, Tudinha?

— Estou, sim, senhora.

— E estás vendo este vidro, que a separa da rua?

— Sim, senhora.

— Pois bem, minha filha: a honra é, para a mulher, o que é este vidro para aquela figura: impede que ela seja tocada pelos que passam.

Quedou um momento em silêncio, e insistiu:

— A quem está de longe, parece que aquela figura está sem defesa; e, no entanto, ninguém poderá tocá-la. A honra é assim, minha filha.

E sentenciosa:

— É a lâmina de vidro invisível que nos permite a vaidade de sermos vistas sem que alguém nos possa tocar...

XLIX

MAU PORTADOR

Estatura mediana, mais gorda do que magra e mais preta do que as panelas em que fazia o feijão do coronel Junqueira, a Genoveva era, sem contestação, a cafuza mais tentadora da fazenda. Quando, aos domingos, ela se metia no seu vestido de chita ramalhuda para ir à missa na vila, havia, na certa, barulho na feira. Os vaqueiros das cercanias andavam-lhe no faro, como cachorro no rastro de onça. E era de ver a graça, o dengue, a petulância, com que ela subia a ladeira da igreja, rebolindo os quadris redondos e fazendo chocalhar, na cadência da marcha, os argolões de ouro das orelhas.

A Genoveva era, porém, rapariga séria. Desde que se separara do Cantídio, que fora seu marido diante do padre, só concedera confiança ao Joaquim Mascate, ao capitão Lucrécio, ao João Felício, ao coronel Quininho, ao João Padeiro e, ultimamente, ao Benedito Bodoque, empregado na mesma casa, onde tratava da horta e cortava capim para os cavalos. Essa ligação fora devida, no entanto, mais às instâncias do coronel Junqueira, para acabar com a ronda dos candidatos que lhe estavam pondo abaixo acerca da fazenda, do que desejos da Genoveva e, mesmo, às possibilidades do Benedito. Este era um pretalhão forte, robusto, de grandes espáduas e carapinha tratada, mas andava já pelos quarenta e muitos anos, que fatigara em dissipações de toda a ordem, com as mulatinhas das redondezas. Não era, propriamente, um vencido; ressentia-se, apenas, do defeito em que caem os que se excedem na animalidade dos prazeres, dando o seu beijo às pressas, sem esperar pela retribuição.

Os primeiros tempos dessa aliança correram sem incidentes, sem brigas, sem novidades. Terminando o serviço da cozinha e da estrebaria, os apaixonados sentavam-se atrás da casa, num pilão velho; e quando se recolhiam, trancavam-se no mesmo quarto, tornados em esposa e marido, como se o consentimento do coronel houvesse legalizado aquela união.

Certa noite, porém, haviam os dois se recolhido, quando, por volta das onze horas, se ouviu um reboliço no quarto do Benedito e da Genoveva. Era uma discussão violenta, que ia tomando intensidade, a ponto de despertar toda a família adormecida. Acordado com o barulho, o coronel pulou da cama, e, mesmo de camisão, encaminhou-se para o lado de onde vinha o vozerio. Na sala de jantar, percebeu, por algumas palavras ouvidas, que se tratava de uma obrigação mal cumprida, relativa ao serviço da casa. Sorriu com bonhomia maliciosa, e bateu à porta do quarto.

— Que é isso aí? hein? Que discussão é essa?

De saia e camisa, Genoveva abriu a folha da porta.

— O culpado é esse negro, patrão! — foi logo dizendo, como quem não tem cerimônias.

— Já sei! Já sei! — atalhou o coronel, coçando o cavaignac. — É o Benedito que não dá conta do recado; não é?

Genoveva riu.

— Não é isso mesmo, não, patrão. Dar o recado, ele dá.

E coçando a cabeça, a gengiva à mostra:

— Eu estou zangada é porque ele dá o recado, mas... não espera pela resposta!

L

PROCURANDO O ALFREDO

A tradição da fraqueza feminina encontrava em dona Onezinda Fernandez a sua mais eloquente contestação. Senhora resoluta, era, pode-se dizer, o homem da família. E era por isso que o sr. Policarpo Feliciano Fernandez lhe confiava o leme do barco doméstico, expondo-a, tranquilo, às mais perigosas tempestades da vida.

Tímido, vagaroso, atemorizado nos seus contatos com o mundo, Policarpo detinha-se, daquela vez, diante de uma suspeita, como um peru num círculo de carvão. Tinham-lhe dito que o seu irmão, o Alfredo, costumava frequentar uma casa duvidosa para as bandas de São Cristóvão, e era do seu dever apurar o fato, salvaguardando, assim, a dignidade da família. Homem casado, não lhe ficava bem comparecer a um lugar dessa ordem; e era sobre isso que refletia, quando dona Onezinda se ofereceu, abnegada:

— E eu? Por que eu não posso ir?

— Tu tens coragem?

— Ora, meu Deus! por que não?...

Resolvido isso, vestiu dona Onezinda o seu vestido mais lindo — um branco, de rendas, — pôs o chapéu de palha da Itália, empoou-se, perfumou-se, e, meia hora depois, batia à porta interior de um sobrado, próximo à praça da Bandeira. Atendida por uma senhora risonha e desconfiada, entrou para a sala de jantar, onde havia outras moças e alguns rapazes, e contou, a um canto, uma história arquitetada em caminho. Era uma criatura infeliz com o marido. Passava mal. Sofria afrontas. Padecia necessidades. E ali estava, como vítima do destino, para atirar-se à perdição.

Uma hora depois, a campainha do telefone tilintou. Era um homem que procurava uma senhora de branco, chapéu de palha da Itália, que havia entrado ali naquela tarde.

— É comigo? — fez dona Onezinda, correndo a atender.

Posto o fone ao ouvido, reconheceu a voz. Era o marido.

— Que há? — indagou madame.

O sr. Fernandez explicou:

— Olha, houve engano. O homem que costuma frequentar essa casa não é o Alfredo, não. Eu já esclareci o caso.

— E agora? — fez a moça, aborrecida.

— Agora? Volta!

— Voltar? Já? — indagou dona Onezinda.

E dengosa:

— Filhinho?

— Que é? — atendeu o Policarpo.

— Fazes-me um favor?

— ?...

— Deixa-me ficar procurando o Alfredo mais um bocadinho... Sim?

LI

O ARGUEIRO

“Os indígenas da Serra Leoa costumam servir-se da língua para tirar os argueiros. O contato é suave, e é o único que não irrita o órgão da visão” — LAYBARK — Viagens em África.

Mesmo na Baía, terra de pretas bonitas, a Feliciana era bonita. Negra, retinta, podia ser considerada um tipo de beleza da raça. Rosto mais redondo do que comprido; olhos grandes e lânguidos; nariz correto; boca pequena, de beiços arroxeados, patenteando, ao menor movimento, uns dentinhos miúdos e petulantes, — completava essa harmonia de traços com um corpo admirável, de busto jovem e linhas que confirmavam, na terra, as virtudes da geometria divina. Quando ela andava, sentia-se, no ar, um rufo de pandeiro. Pintada de branco, teria a esta hora, ao pescoço, e nos ombros de mármore, o colar de penas da índia e a capa do Parc Royal.

Empregada como copeira na residência do comendador Zacarias Viana, era, ali, a dona da casa. O velho era viúvo, e sem filhos. E quando acabava de jantar, a sua distração consistia em estirar-se numa espreguiçadeira, a um canto da sala de refeições, enquanto a Feliciana se sentava, as pernas cruzadas, no tapete, para contar ao patrão as lendas e costumes dos seus maiores.

Naquela noite, com os arcos voltaicos chiando na rua, à claridade de uma lâmpada, apenas, das três que se abrigavam sob o abat-jour de seda vermelha, o honrado capitalista cofiava as suíças grisalhas, ouvindo a Scherazade africana. E a Feliciana contava, com os olhos muito brancos, brilhando na sombra:

— O melhor meio, mesmo, de tirar argueiro, ioiô, é com a língua.

— Com a língua, Feliciana? — fez o ancião, remexendo-se na cadeira.

— Como não? O senhor sabe que os olhos são muito delicados de tocar. Não é? Uma ponta de lenço, um fio de linha, uma nesga de dedo, tudo isso machuca os olhos da gente. Mesmo quando se assopra, os olhos ficam doendo, com a secura. De modo que, com a língua, não. A língua é macia, pega o argueiro e tira, sem magoar os olhos da pessoa.

Pouco a pouco, foi a conversa da Feliciana mudando de assunto, à semelhança das aves grandes que não confiam na segurança do galho. E o comendador ouvia-a, em silêncio, até à hora do chá.

Cerca das onze e meia, com os criados todos recolhidos, foi a Feliciana chamada ao dormitório do patrão. A princípio, supôs que fosse algum incômodo de digestão, moléstia de velho, que reclamasse qualquer remédio caseiro. Ao entrar, porém, no quarto, estacou, esperando ordens.

— Anda, Feliciana; tira aqui um argueiro — ordenou o velho, bondoso.

— Argueiro, ioiô?... — fez a preta, com espanto.

E recuando, apavorada:

— Onde foi que ioiô já viu cair argueiro na boca da gente?

LII

ORGULHO DE RAÇA

Coroado por quatro cúpulas faiscantes, e por um terraço que toma toda a extensão do edifício, o palacete do visconde de Borba Leite levanta-se, majestoso, na Avenida Atlântica, no ponto mesmo em que a praia faz a sua curva mais linda. É um monumento soberbo como um túmulo egípcio. Pintado de vermelho e ouro, cada varanda, repleta de gerânios e glicínias, é como um colo de mulher de cujo regaço as flores se derramassem.

Dentro, sente-se o luxo atordoado do homem enriquecido depressa. Os tapetes, de pelúcia fina, berram pelo meio das salas na orgia descompassada das cores. Quadros enormes penduram-se pelas paredes, distribuídos menos pelo gosto do que pelo tamanho. Ho salão nobre, há grandes melões de Augusto Petit, e uma Ceia do Senhor, em cópia grandiosa, de Da Vinci. Na sala de jantar, destacam-se, contrafeitos, pequenos motivos galantes do século XVII, e, numa custosa moldura de prata com rubis engastados, o documento em que é concedido o título de visconde a Antônio Francisco de Borba Leite, por serviços prestados na terra à causa da humanidade.

Retirado dos negócios logo depois da guerra, que lhe permitira ganhar cerca de vinte mil contos em dois anos, o visconde de Borba Leite passara a ser, desde que se fizera fidalgo, o contrário, exatamente, do que fora. Os amigos de outrora, pequenos comerciantes de cebola ou de vinho falsificado, tornaram-se, para ele, desconhecidos. Agora, só cumprimentava a senadores, a deputados, a barões e viscondes da sua laia, não dando, mesmo, semelhante honra a simples comendadores da praça.

Convencido da própria importância, costumava o novo representante da nobreza comercial tomar o seu banho de mar, todas as manhãs. Era de notar, porém, que a hora variava, descendo ele à praia ora mais cedo, ora mais tarde, como se fosse regido por uma lei irrevogável.

Há dias, a sra. viscondessa, née Maria Francisca do Espírito-Santo, apurou, na sua singeleza, o motivo daqueles hábitos do marido. O oceano, largo, imenso, barulhento, enrolava as ondas lá fora, para vir desenrolá-las no areal. Gaivotas piavam alto, voando contra o vento, como lenços de pessoas saudosas, e em viagem, que tivessem criado asas para voltar. Um sol de ouro, que fazia refulgir o lençol de areia, convidava os homens para a festa marulhosa das vagas.

Tentada pela alegria das coisas, a viscondessa meteu-se no seu fato de banho, passou por cima o roupão de felpa, e foi convidar o marido:

— Senhor visconde, vamos?

— A esta hora?... — fez Borba Leite, escandalizado. — A senhora viscondessa não vê que o mar ainda está na hora dos pobres?

E como a ex mulata arregalasse a venta:

— A senhora viscondessa não sabe, então, que nós só podemos tomar banho com a maré “alta”?

LIII

UM HOMEM DE PALAVRA

Eu me havia sentado na segunda mesa, à direita, no Café São Paulo, e moía tranquilamente a hipótese do açúcar sobre a possibilidade de uma xícara, quando me bateram cordialmente no ombro.

— Ah, o sr. Vilaça! — fiz, com espanto.

E com simpatia:

— Tome um café... Sente-se...

Afonso Pires Vilaça era funcionário dos Telégrafos, quando eu o conheci, em 1914, pouco antes da conflagração universal. O acaso de uma vizinhança nas Laranjeiras, e uma viagem, depois, a Petrópolis, consolidaram a nossa intimidade. E foi em nome dessas relações eventuais, que ele me foi dizendo, logo, ao puxar a cadeira:

— Sabe quem morreu?

E penalizado:

— O Lima Borges... O comandante Lima Borges... de Petrópolis!... Belo homem! Belo caráter! E, para mim, um amigo insubstituível!

As pautas que se me cavaram na testa diante daquele entusiasmo imprevisto despertaram no meu companheiro de mesa a necessidade de escrever, nelas, os esclarecimentos indispensáveis.

— Sim, senhor! Um belo caráter! — insistiu Vilaça. — Para mim, pelo menos... Quer que lhe conte?

E mexendo o café:

— Imagine o senhor que eu estava casado havia dois anos, quando minha mulher me anunciou, como direi? o seu estado de futura maternidade. Estava com quatro meses contados. E foi, exatamente, quando o governo me designou para servir em Mato Grosso, como chefe da estação de Corumbá.

Tomou o primeiro gole, e continuou:

— Aflito, sem relações de família, não sabia ainda o que fizesse, quando me encontrei com o Lima Borges, que sempre me tratara com simpatia. Falei-lhe nas minhas dificuldades, nos meus cuidados, nas minhas preocupações, contando-lhe ao vivo a minha situação. E não ousava pedir-lhe, sequer, um conselho, quando ele me bateu, amigável, no ombro. — “Vá, — disse-me; — vá descansado, Vilaça; eu tomarei conta da tua mulher; e fique na certeza de que, quando voltar, há de encontrá-la sem a menor alteração”. E apertando-me as mãos:

— “Você há de achá-la como a deixou, fique certo!”

Outro gole, pequeno, e a continuação:

— Aceitei a nomeação do governo, e parti para Mato Grosso. Passei lá ano e meio. Ao fim desse prazo, saltei, de novo, no Rio. Lima Borges havia cumprido a sua palavra. Minha mulher não tinha tido a menor alteração.

E virando a xícara:

— Estava com quatro meses, como a deixei!

LIV

A LADRA

Assim que se foi tornando mulher, aos quatorze anos, a vaidade da Luciana, ou da Lucí, como a chamavam em família, era aquele colo farto, arredondado, quase como o de uma senhora. Certo, a meninota era gorduchita, bem conformada, com umas pernas feitas no torno; o papo da rola chamava, porém, mais a atenção do que tudo isso, fazendo voltar a cabeça aos transeuntes, quando estes a encontravam no caminho do colégio.

Foi por esse tempo que o Pacífico de Magalhães a conheceu. Olhos cúpidos, o rapaz não se cansava de examinar aquele busto forte, e ainda virgem, de menina. E como conhecesse o mundo no que ele tem de melhor ou de pior, imaginava como seria delicioso dormir na doçura daquele vale, entre aquelas duas montanhas de neve, sob uma das quais pulsava, uniforme, o suave tesouro do coração. E como esse desejo fosse crescendo, subindo, se avolumando, o Pacífico entrou, uma tarde, na igreja, rodeado de amigos, para dar o nome de esposo à tentadora virgindade da Lucí.

Com o casamento, a menina começou a engordar. Aos cinquenta e oito quilos que pesava quando tomara o nome de Magalhães, adicionara mais trinta. E o pior, era que, desses oitenta e oito quilos, vinte, pelo menos, se haviam alojado no busto, em duas protuberâncias fatigadas, que o colete dificilmente comprimia. Quando a moça se ia vestir, era uma tortura para acondicionar aquela carga entre as grades de umas barbatanas de ferro. E se, depois de vestida, procurava sentar-se, era de ver a teimosia com que tudo aquilo subia, acumulando-se debaixo do queixo, como os suportes monumentais do seu pequeno rosto redondo.

Aos olhos do Pacífico a gordura da esposa, e principalmente o busto, aparecia como um castigo à sua concupiscência da mocidade. As montanhas de neve que ele sonhou fossem, um dia, a sua pedra de Jacó, metiam-lhe agora receio, ameaçando-o com o seu peso. Se as duas lhe comprimissem, um dia, o rosto magro, o seu atestado de óbito seria igual ao do seu irmão Valentim, apanhado entre dois bondes: esmagamento.

A maior tristeza de dona Lucí, tornada simplesmente dona Luciana, não tinha de provir, entretanto, do pavor que dela tinha o Pacífico. A um mero engano deveu ela, aos trinta anos, o maior desgosto da sua vida.

Residindo na rua Dona Mariana, era costume da moça ir tomar o bonde, todas as tardes, no canto da Voluntários da Pátria. Cabeça afogada no colo, que lhe vinha do queixo ao estômago, ficava a gorda senhora junto ao poste, abanando-se com sofreguidão, para dissimular a falta de fôlego motivada pela marcha. Toda a gente que passava olhava-a com atenção. E quando o curioso continuava o seu caminho, era, não raro, com um ligeiro sorriso de zombaria.

Certo dia, o dia fatal, estava a rotunda senhora junto ao poste, quando ouviu uma gritaria, rua abaixo.

— Pega, ladrão! Pega! Pega! — berravam, na carreira.

À frente do grupo, descalço, muito vermelho e muito sujo, corria um pequeno de dez ou doze anos, empregado de uma quitanda de frutas e verduras, na outra esquina da Voluntários. E vinha ansiado, mais morto do que vivo, quando parou diante de dona Luciana, o dedinho espetado:

— Foi esta... a... mulher!... Foi esta!...

E, cansadíssimo, apontando-a ao guarda-civil, que vinha atrás:

— Foi ... ela... que furtou... as duas... melancias... e escondeu... dentro ... do vestido!...

LV

ENFIM... “SÓ”!

Quem os visse tão juntos, tão agarradinhos, nos teatros, nos cinemas, nas corridas, diria, com certeza, que havia ali uma grande paixão, de parte a parte. A verdade era, porém, que a linda Maria Marta violentava a sua própria natureza com aquele espetáculo de ternura, a que se submetia unicamente para salvar a pobre mãe necessitada.

Moça ainda, a formosa rapariga enviuvara no mês seguinte ao do casamento, e, como os papéis da sua herança não estivessem ainda regularizados, começou a sentir, em casa, a penúria, a fome, as consequências da sua pobreza sem socorro. E via de perto a miséria, quando lhe apareceu, com a bolsa aberta, o comendador Vicente Meireles, que logo reclamou, independente da pretoria e da igreja, todos os direitos de marido.

Sem amor àquele homem, Maria Marta simulava, entretanto, querê-lo. Perante a sociedade, ele era apenas um amigo, um íntimo, um protetor desinteressado. A sociedade não era, porém, cega nem surda, e julgava-os como eles mereciam, sem justificar, de nenhum modo, e em nome de nenhum princípio, as escandalosas concessões da viúva.

— Meu Deus, tomara que eu já me possa libertar deste homem! — dizia a pobre, com horror de si mesma.

E o comendador, com displicência:

— Eu só te largo, filha, quando casares; e mesmo na manhã desse dia ainda serás minha: sabes?

Um dia, porém, foi o caso da herança resolvido, ficando Maria Marta suficientemente garantida contra as necessidades. Isso, porém, não era bastante: o comendador só a deixaria quando ela arranjasse um marido.

— É preciso, entretanto, — refletia a pobre — que o meu noivo não seja como esse monstro, que só pensa em materialidades. Eu tenho necessidade de dormir sossegada, das dez da noite às seis da manhã, sem que alguém me incomode.

E batendo na testa, como quem acaba de ter uma inspiração:

— Vou arranjar um “almofadinha”!

Dias depois, era anunciado, realmente, o casamento da viúva Maria Marta com o delicioso Joãozinho Braga, figura clássica da sua classe, e cuja preocupação consistia em dar beliscões no rosto e morder o beiço, a todo instante, para andar sempre coradinho. E o casamento não demorou, porque Maria Marta queria, quanto antes, libertar-se do comendador.

Na manhã do grande dia, ainda sofreu a noiva, pela manhã, o suplício de suportar o último beijo repugnante do seu antigo protetor. À noite, porém, teve a compensação: quando ela entrou na alcova nupcial encontrou, já, estirado na cama, dormindo serenamente, o seu lindo Joãozinho, tendo à cabeça, amarrada com fita rosa, uma fina touca de rendas.

Ao penetrar no aposento, Maria Marta suspirou, aliviada. Ia dormir, afinal, depois de tantos meses, sem ter quem a incomodasse. E foi com essa certeza que se sentou na cama, exclamando, feliz, no meio do seu suspiro:

— Enfim... sói...

LVI

A LIÇÃO DOS MÓVEIS

Altos funcionários da mesma repartição do governo, Américo de Góis e Feliciano Braga tornaram-se tão amigos, tão íntimos, que jantavam juntos, pelo menos, duas vezes por semana. Como, porém, o primeiro era casado, e o segundo solteiro, era na casa daquele que se davam as reuniões de família, que dona Babí tornava encantadoras com a sua presença de mulher honesta e formosíssima.

Após o jantar, o dono da casa, em geral, subia, a mudar de roupa nos seus aposentos, ficando na sala, apenas, o amigo e madame. E enquanto ele não descia, punham-se os dois a conversar coisas sem interesse, passeando os olhos pelo sofá, pelas cadeiras, pelo piano, pelos móveis espalhados, que a previdência de dona Babí vestira de linho branco. De repente, o marido descia, e nunca teve motivo para a suspeita mais leve, interrompendo uma palestra inconveniente.

Entre homem jovem e mulher bonita não pode haver, jamais, amizade sem pecado. À semelhança das nuvens carregadas que se não podem aproximar sem se lançarem faíscas, duas mocidades de sexo diferente não podem entrar em contato sem o risco de combustão. E foi isso o que sucedeu entre Feliciano Braga e a esposa do melhor dos seus amigos, com a circunstância, apenas, de ter sido ele o único a concentrar eletricidade.

Certo dia, em que Américo de Góis estava para São Paulo, apareceu Feliciano, intempestivamente, para jantar. Acolhido com o mesmo carinho, jantou, e, depois, na sala, aventurou a manifestação do seu pensamento perigoso.

— Eu sei, minha amiga, que é ignóbil a minha proposta; mas, que quer? o amor, tudo justifica... Depois, eu não queria, propriamente, desonrar o meu amigo, que é quase o meu irmão. É uma obsessão, a minha, de ver, pelo menos, o seu colo. Essa ideia atormenta-me, aflige-me, de modo que me dá coragem, como vê, para ser audacioso.

Calma, sem uma contração no rosto formoso e triste, a moça escutou-o, até o fim.

— Não me dá uma resposta? — insistiu o rapaz. — Eu já me contentaria, acredite, com a graça de vê-la decotada, quando eu viesse jantar com o seu marido. Seria um consolo...

A esse pedido, dona Babí sorriu.

— A minha recusa, doutor, é oferecida ao senhor pelos meus móveis de sala. As mulheres, creia-me, são como as mobílias.

E indicando as peças, em redor:

— Para se conservarem, devem estar sempre vestidas.

LVII

A CONVERSÃO

Estendido no leito estreito, em que dormira trinta e seis anos, Abraão Matveievitch passeava os olhos ardentes pelo forro baixo do aposento. As mãos, em que os dedos eram como raízes magras da árvore murcha do braço, cruzavam-se sobre o peito do enfermo, emprestando-lhe, com antecipação, uma triste aparência de morte. A barba, escura e rala, descia-lhe do queixo como os fios revoltos de uma velha vassoura sem préstimo. O rosto, cavado, anguloso, amarelo, denunciava a tuberculose em último grau, confirmada, de perto, pelo rouquido ansiado dos velhos pulmões decompostos.

Antigo dono de uma casa de empréstimos, nos fundos da qual passava, agora, os derradeiros instantes, Abraão não tinha medo da Eternidade. Era impossível que, lá em cima, de onde descia o ouro do sol e onde brilhavam, à noite, as moedas de ouro das estrelas, não valesse para alguma coisa o dinheiro. E quando pensava nisso, apalpava, debaixo da cama, os dois sacos de esterlinos que, por sua morte, lhe deviam deitar no caixão.

A noite toda, passara-a o agiota em vertigens subitâneas, a ponto de o suporem, já, no derradeiro momento. E era esperando por esse momento que se achavam no compartimento contíguo os seus sobrinhos Jacó e Rute Benolaief, cujo único defeito consistia, na opinião do tio, em serem pobres e em se terem convertido ao catolicismo. De minuto em minuto, a porta se entreabria, e dois olhos vivazes pousavam no corpo do enfermo. Foi de uma dessas vezes que, vendo-o transfigurar-se numa vertigem demorada, os dois sobrinhos se precipitaram para o leito, um com um crucifixo, outro com um livro de orações, na esperança de conquistarem aquela alma para a religião católica no momento, mesmo, de apartar-se da miséria do mundo.

Supondo chegado o instante, começou a catequese, a caça daquela ovelha selvagem para o santo rebanho do Senhor. Agarrados às mãos do enfermo, os dois gritavam, atordoados:

— Tio Abraão!... Tio Abraão!... Jure que se converte à lei de Deus! Jure!... Prometa, tio Abraão!

E juntando-lhe as mãos geladas, pronunciando as palavras do juramento, para o moribundo repetir:

— Diga: juro...

— Juro... — fez Abraão, recobrando ânimo, de repente; — juro...

E abrindo os olhos, como numa ressurreição:

— Juro... De quanto?

LVIII

O CATAVENTO

Quando o Feitosa contraiu matrimônio com a Germaninha Gomes, prima do deputado Lobão de Morais, era simples escriturário do Tesouro, com exercício na seção de cheques. Alto, magro, anguloso, cara grande e morena, que escanhoava, diariamente, andava pelos vinte e quatro anos, e a menina, apenas, pelos dezoito. Incumbido, algumas vezes, dos pagamentos na Câmara, entabulou relações com o jovem representante fluminense, do qual se tornou, afinal, sobrinho, pelo seu casamento, quase imprevisto, com a mais linda menina da família.

Germaninha era, em verdade, um belo tipo de mulher. Forte, robusta, majestosa, lembrava, no porte, essas figuras romanas, que simbolizavam outrora a serena grandeza do Império. Cabelos claros e ondulados, pele morena e lisa, olhos negros, boca pequena e vermelha, constituía um dos mais formosos documentos da raça. E foi por isso mesmo que toda a gente estranhou a notícia, quando os jornais anunciaram o seu contrato de casamento com um simples funcionário do governo, que lhe não levava nem dinheiro, nem posição, nem, mesmo, as virtudes físicas reclamadas pela sua mocidade vigorosa.

As mulheres gostam, porém, de surpreender o mundo com o imprevisto das atitudes. Ao saírem os noivos da matriz de São João Batista, na rua Voluntários da Pátria, não havia quem não prenunciasse, independente de um milagre, uma próxima separação. Mais dias, menos dias, Germaninha verificaria a insignificância do seu marido, correndo a outros braços, que a chamariam, pressurosos. E ninguém teria, de certo, nada a censurar-lhe, pois que o sapo devia saber, de sobra, que lhe não é permitido esposar as estrelas.

Ao fim do primeiro ano, a moça espantava, no entanto, as amigas, com esta coisa inominável: vivia para o seu marido, para o seu lar, no qual choramingava, já, o primeiro pimpolho. A este seguiu outro, e outro, e mais outro, e de tal modo que, com vinte e seis anos de idade e oito de casamento, possuía Germaninha Feitosa, em casa, um batalhão com sete soldadinhos, o último dos quais estava ainda armado de chupeta.

Esse desdobramento da família fez, naturalmente, com que o Otaviano Feitosa pensasse na sua vida, e pedisse, um dia, a Lobão de Morais:

— Eu tenho necessidade de uma comissão, que me aumente os vencimentos. O senhor não me poderia arranjar com o ministro?

— Eu? Pois não!

E dias depois, seguia o escriturário para o Norte, como delegado fiscal do Tesouro, separando-se pela primeira vez da família, a qual ficou sob os cuidados de Lobão de Morais, que tinha para as crianças atenções verdadeiramente paternais.

Ao fim de ano e meio, chegava ao Rio, de novo, o honrado funcionário público. A família achava-se bem, e feliz. Os meninos estavam crescidos, fortes, alegres, e a esposa mais gorda, mais formosa e, parecia, mais jovem. Uma coisa, apenas, o incomodava: encontrar oito filhos, em vez de sete, com a circunstância de haver o último vindo ao mundo um ano, exatamente, depois da sua partida. Intrigado com o caso, chamou o rapaz, à parte, o deputado, arrastando-o para um passeio pela chácara, no correr do qual indagou, de repente, do amigo:

— Diga-me uma coisa, doutor: o senhor não acha estranho o nascimento do Aluísio, um ano depois da minha saída do Rio?

— Estranho? — fez o deputado, parando subitamente.

E franzindo a testa:

— Estranho, por quê?...

Perturbado, mastigando as palavras, Otaviano contou-lhe as suas suspeitas. Se ele não deixara nenhum menino para nascer, como é que encontrava aquele, com a circunstância de só ter vindo ao mundo ao cabo de um ano de ausência?

— Ora, você... — fez o deputado, rindo. — Você não conhece, então, a lei da continuidade?

E como o rapaz não respondesse:

— Já viu cata-vento?

— Já.

— Pois bem. Quando a ventania dá no cata-vento, ele não se põe a girar?

— Põe-se.

— E, depois que a ventania passa, ele não continua a mover-se, da mesma forma, em virtude do impulso recebido?

— Continua.

— E então? Você levou produzindo filhos durante sete anos, seguidamente, imprimindo à Germana o movimento da maternidade. De repente você se afastou, o impulso, porém, ficou, mesmo quando a brisa deixou de soprar... Compreendeu?

Otaviano baixou a cabeça, meditativo. Ao levantá-la, fixou os olhos em Lobão.

— Doutor? — pediu.

E, súplice, apertando-lhe a mão:

— O senhor jura, mesmo, que ninguém soprou o cata-vento na minha ausência... Não é?

LIX

O TERMÔMETRO

Antigamente, o único termômetro de que o homem casado dispunha para verificar as leviandades da esposa, era o modo por que ela o tratava. O desinteresse, a frieza, a irritação da mulher, constituíam sintomas evidentes de traição ao companheiro. O coração feminino, então, não sabia mentir, patenteando inadvertidamente as suas mais recônditas intimidades.

Hoje, com o progresso da hipocrisia, o termômetro é outro: está no livro de despesas da dona de casa, pelo qual o marido pode ver com segurança tudo que a companheira não lhe diz. Era assim, pelo menos, que pensavam, como se tivessem cursado a mesma aula de psicologia, o engenheiro Batista Mendes, e o ilustre magistrado carioca dr. Epaminondas do Sacramento.

Casado há sete anos, Batista Mendes não havia conseguido, jamais, fazer a menor economia. Os dois contos de réis que dava à esposa, mensalmente, para as despesas da casa, nunca haviam chegado. As discórdias do casal, durante seis anos, foram motivadas sempre pela insuficiência dessa quantia, no orçamento doméstico. E foi exatamente quando a vida se tornou mais difícil, pelo encarecimento dos gêneros, que dona Sílvia começou a contentar-se com os dois contos do marido, a achar que eles davam para tudo, e a fazer, mesmo, algumas economias.

Intrigado com esse milagre inoportuno, Batista Mendes não entrou em particularidades: redigiu uma petição ao dr. Epaminondas do Sacramento, juiz da Vara, requerendo divórcio, alegando infidelidade da mulher.

— Mas é indispensável a prova, — observou-lhe, paternal, o magistrado.

— A prova? Mas, eu a tenho, senhor juiz!

Franziu a testa, e declarou:

— Antigamente, com o açúcar a 400 réis, o café a 1$200 e a carne a nove tostões, eu dava à minha mulher dois contos de réis por mês, e esse dinheiro não chegava para as despesas comuns. Agora, com o preço dos gêneros quadruplicado, essa quantia não só chega para tudo, como ainda sobra, no fim do mês! O doutor não acha esquisito?

— Não é preciso mais, doutor! — confirmou, severo, o juiz. — A prova é das mais concludentes. O senhor está sendo traído!

E despachou, firme, a petição.

LX

NITERÓI

A capital fluminense é considerada, sem injustiça, há muitos anos, a cidade menos higiênica do Brasil. Sem esgotos, sem calçamento, sem um serviço regular de limpeza, tem as ruas cobertas de lama, de detritos, de imundície.

— O próprio governo federal reconheceu a situação de Niterói, dando-lhe como interventor o Aurelino... — dizia, há pouco, um político da Praia Grande.

E como os ouvintes arregalassem os olhos:

— Para suportar Niterói, só, mesmo, um político nascido na Baía!...

A fama da velha cidade de Martim Afonso já ultrapassou, entretanto, as raias geográficas do planeta. E a observação fê-la, em pessoa, o dr. Viçoso Jardim, atual secretário geral do governo fluminense.

Na véspera de São Pedro, a chuva, teimosa, insistente, peneirada, impedia que o chaveiro tivesse, como João e Antônio, as ardentes homenagens do povo. Os balões, as pistolas, as rodinhas, não subiam, não espocavam, não rodopiavam ligeiras na ponta agressiva das bengalas. De raro em raro um foguete atrevido cortava a noite, rasgando-lhe com a tesoura de fogo o pesado manto sem estrelas.

A mão no queixo, cabeceando de sono, o dr. Viçoso aguardava, mergulhado numa poltrona, no Ingá, uma comunicação telefônica do Rio, quando, de repente, fechou os olhos, e adormeceu. Adormeceu e sonhou.

Sonhou que estava na ponte das Barcas, quando São Pedro chegou, o maço de chaves na mão direita, arrepanhando a túnica de lã com a esquerda, e o saudou, camarada:

— Aonde vai, doutor?

Uma resposta vaga, e o santo insistiu:

— Quer ir a uma festa no céu? A barca está aí...

Como foi a travessia, a viagem através da noite e da chuva, o dr. Viçoso não saberia, talvez, explicar. O que sabe é que se viu, de repente, no Paraíso, onde o tango ressoava nas harpas celestes, enquanto se misturavam, dançando pela planície enorme, os próceres da política estadual: o senador Nilo, o dr. Backer, o major Sodré, o dr. Castrioto. Amortalhado de branco, à semelhança dos bem-aventurados e das virgens, uma coroa de jasmins à cabeça, uma violeta em cada ponta do bigode à Kaiser, o deputado Lourival de Freitas enlaçava o coronel Teixeira Leomil, cuja barba grisalha se agitava, nervosa, entremeada de fitas, como os pombos de leilão. Aqui e ali, mesas com ameixas, tâmaras, figos, jaboticabas, galinha assada, peixe frito, presunto, champanhe, e doces de toda ordem.

Lembrando-se que não havia jantado ainda, o secretário geral começou a comer. Comeu à vontade. E comia ainda, fartando-se na variedade, quando sentiu, de súbito, uma dor fina, aguda, lacerante, um pouco abaixo do estômago. Um ronco de tempestade longínqua acentuou a iminência da catástrofe.

Pálido, preocupado, a respiração suspensa, o dr. Viçoso partiu, rápido, à procura de São Pedro, dono da festa. Encontrou-o em palestra com o deputado Julião de Castro, e, puxando-lhe pela manga da túnica, explicou-lhe a situação.

— Vamos aqui... — convidou o santo, discreto.

Atrás de uma nuvem, o apóstolo curvou-se, enfiou o dedo na argola de uma estrela que jazia no solo, e, puxando-a, deixou, aos pés do visitante ilustre, um pequeno buraco redondo, do tamanho, mais ou menos, de uma copa de chapéu.

— Faça aqui mesmo... — ordenou o apóstolo, com simplicidade.

O dr. Viçoso mergulhou o olhar, curioso, pelo buraco escancarado. Lá embaixo, a milhares de metros, ficava a crosta da Terra, a superfície do planeta, o degredo miserável do mundo. E embaixo, exatamente, do orifício aberto, um casario confuso, que ele mal podia distinguir.

— Sirva-se; — tornou o chaveiro, gentil; — pode servir-se...

— Mas, meu santo, — objetou o secretário geral, escrupuloso, aquilo não é uma cidade?

— E que é que tem isso?

— Pode cair em alguma rua, em alguma praça, e darem pela coisa...

O apóstolo sorriu, com ironia:

— Qual! filho! não dão, não!

E ao ouvido do dr. Viçoso:

— Aquilo é Niterói...

LXI

A BELA RITINHA

Quando a Ritinha Portuguesa surgiu, pela primeira vez, no portão da Pension Bordeaux, no Catete, foi uma admiração na vizinhança. Mme. Andrée, dona daquele antro chic, era medularmente parisiense, de modo a ser objeto de espanto o aparecimento, ali, daquela carinha tão conhecida na “zona”. A explicação não era, porém, difícil: a Ritinha era bonita, era, mesmo, um mimo de carne e osso, e essa circunstância, que não outra, levara mme. Andrée a abrir, para ela, na sua colmeia de abelhas de Montmartre, uma honrosa excepção.

Ritinha Álvares ou, melhor, a Ritinha Portuguesa era, realmente, uma criaturinha deliciosa. Nascida em Braga, foi seduzida, aí, aos quatorze anos, por um comprador de vinhos, que a levou para o Porto, montando-lhe casa. De uma beleza impressionante, abandonou o sedutor, entrou para uma companhia teatral como corista, e, quando deu por si, e os outros por ela, estava no Rio de Janeiro, ganhando muito e gastando ainda mais, rolando de mão em mão, como carta de baralho.

Sem tempo, sequer, para meditar na vida, a linda rapariga reduzia tudo a dinheiro e o dinheiro a luxo. Em matéria de letras, conhecia apenas as que lhe haviam ensinado em Braga, no método de João de Deus. Era de uma ignorância lamentável, impressionando apenas pela figura, que Deus lhe dera.

A presença da Ritinha chez mme. Andrée, aumentou, como era natural, a popularidade da pensão. E de tal modo, que a dona do estabelecimento lavrou, com ela, contrato, pelo qual se comprometia a ter em casa uma professora permanente, rapariga brasileira, que lhe ministrasse conhecimentos de francês e de literatura, tornando-a, em tudo, à altura do ambiente que frequentava.

Estabelecido esse ponto, foi morar na Pension Bordeaux, como preceptora da portuguesinha, a Júlia Loti, paulista de origem francesa, cujo menor defeito consistia em falar com preciosismo, conquistando entretanto, por isso mesmo, enorme prestígio nas rodas galantes do bairro.

Certa madrugada de chuva, com a casa quase vazia dos amigos habituais, as mulheres fumavam, nos canapés, ouvindo a música pecaminosa que um boêmio, o Tavares, arrancava do piano. A cabeça na mão, o cotovelo fincado na borda do divã, Ritinha deixava-se afundar no rio de sons, como as outras. E começava a cochilar, quando, a um movimento fatigado de cabeça, a Júlia Loti, que se achava ao lado, indagou, com a sua solicitude de preceptora e a sua mitologia de literata:

— Queres cair nos braços de Morfeu?

— De quem?

— De Morfeu! — repetiu a Júlia.

E a Ritinha, com displicência, como quem não mete prego sem estopa:

— Quanto ele dá?

LXII

FRASE FEITA

Passinho ligeiro e miúdo, voilette negra descendo, como uma sombra à face do sol, sobre o rostinho claro que dois olhos escuros iluminam, a linda senhora passa, sozinha, pela Avenida, rumo dos bondes de Botafogo. De dois em dois minutos, para diante de uma vitrina, em que as joias faíscam, tentadoras. E como os seus olhos sejam, também, pedraria de preço, ficam a admirar as companheiras aprisionadas no mostruário, namorando os rubis, as turquesas, os brilhantes, as esmeraldas, os pingos d’água límpida, ou colorida, que tremeluzem nas algemas de ouro dos anéis, dos brincos, dos colares.

De quando em quando, um sorriso lhe ilumina todo o rosto, ajudando o trabalho dos olhos. Um movimento de cabeça acompanha o sorriso, e a pequenina visão fugitiva prossegue, ligeira, o seu caminho. É que passou por ela um conhecido, um cavalheiro a quem já fora apresentada, e que lhe faz, de passagem, a sua reverência. Após uma pequena estação em Caldas, é natural que toda gente se considere feliz ao vê-la regressar à cidade. Ela é bem a andorinha emigrada, e que volta, anunciando o bom tempo, ao risonho campanário da aldeia natal.

Subitamente, sob o toldo de “A Capital”, a graciosa criaturinha para toda iluminada pelo seu próprio sorriso. É que lhe surgiu à frente, caminhando ao seu encontro, a tonelada de banha do comendador Antunes Maia, o poderoso capitalista do Banco Fluminense, cuja bolsa é o terror dos pais, o pavor dos maridos, a esperança das damas vaidosas e o pesadelo permanente dos homens de bem.

— Bons olhos a vejam! — foi exclamando, logo, a montanha de toucinho, o chapéu na cabeça, estendendo-lhe a mão enorme, e suada.

— Oh! comendador!... — foi o gorjeio alegre do rouxinolzinlio humano.

— Sim, senhora! Há quanto tempo!... — ronca o bruto, na sua galanteria por atacado.

E, num gesto de censura:

— Está se “vendendo” caro; não?

A essas palavras, que constituíam uma frase banal, a encantadora criaturinha lembra-se de um anel que vira, pouco antes, num mostruário do caminho. E é com o pensamento nele que faz, brejeira:

— Nem tanto!

E estendendo-lhe a mãozinha miúda, enluvada em seda, numa despedida sem-vergonhíssima:

— Aliás, você sabe o preço... Não é?

LXIII

O CAFÉ

A mesa baixa e larga, parte sobrevivente da grande mobília da casa fidalga, éramos quatro, após o jantar: o velho visconde de Santa Rita, com a sua nívea barba de apóstolo, o Dr. Aloísio de Brito, o conhecido milionário e mundano, eu, e o almirante Sobreira Gomes, cuja vida de trabalho, de esforço e de estudo, lhe havia valido aquele posto, em anos tão breves.

Retirados os pratos, e antes dos doces, a conversação animou-se, girando em torno de assuntos íntimos, relativos ao coração de cada um. E aquele que mais se queixava do mundo era, exatamente, Aloísio de Brito, isto é, aquele que havia recebido, nele, as melhores dádivas do Destino.

— Vocês — dizia o milionário, — podem ter sofrido muito; os maiores sofrimentos são, porém, os meus. Poucas pessoas terão, como eu, sofrido tamanhos golpes no coração!

Sorriso iluminando a barba, e a barba iluminando o busto, o visconde estendeu a mão, pedindo-lhe paciência.

— Eu já lhe digo a razão disso, — afirmou.

E com bondade:

— É ilusão sua; pura ilusão!

Nesse momento, o criado, metido na sua casaca de confeitaria, surgiu, servindo a sobremesa.

— Sirva doce, aqui, ao Sr. doutor... — ordenou o dono da casa, indicando o milionário.

E para nós:

— Aqui, aos senhores, sirva frutas.

Voltou-se, de novo, para o criado:

— Traga, imediatamente, o café....

Ao fim de alguns minutos, quando fumegava diante de cada um de nós, uma porcelana do Japão, o visconde indagou do criado:

— Pôs açúcar?

— Duas tablettes em cada xícara, meu senhor.

Ao saborearmos, porém, o primeiro gole, Aloísio de Brito pediu ao rapaz:

— Traze mais açúcar; sim?

Está amargo? — interrompeu o dono da casa.

— Amaríssimo, — informou o milionário.

— Pois, não está, não, — tornou, risonho, o visconde.

E como quem acaba de ganhar uma partida:

— O senhor está vendo, doutor?

E sentencioso:

— Os sofrimentos são assim: tornam-se mais amargos, mais insuportáveis, na proporção do doce que se comeu antes...

LXIV

A VAIDOSA

O comendador Agostinho Gaudêncio estava no apogeu da fortuna, com automóvel particular, frisa no Municipal e mesa reservada em todos os chás de beneficência, quando, com a queda do câmbio e a falta de alguns pagamentos de grande monta, se viu na contingência de revelar a sua verdadeira situação: a casa de que era chefe estava, há muito, falida, e isso devido às despesas formidáveis reclamadas pela sua vida de luxo. Só o “pé de guerra” de Dona Zézé, a linda senhora a quem confiara o seu nome, subia, mensalmente, a vinte contos, fora as contas de joalheria, e as eventuais, da costureira.

A notícia daquele desastre financeiro abalara a praça, que sofreu, com ele, um prejuízo avaliado em quarenta mil contos. E como a falência fosse considerada fraudulenta, foi expedida ordem de prisão contra o comendador, que se viu metido, de repente, num xadrez da Polícia Central.

Era pelo verão, e a temperatura abafava. Em mangas de camisa, o colarinho desabotoado, suando gordura por todos os poros, o antigo banqueiro passeava de um lado para outro, abanando-se com a mão, quando, uma tarde, ouviu abrir-se, e fechar-se de novo, a prisão que ficava ao lado. Quem tinha entrado, ele não sabia, pois que não podia ver, da sua cela, a porta do xadrez contíguo. Sabia, apenas, que para lá chegara gente, detida naquele dia.

Ao anoitecer, quando lhe trouxeram o jantar, indagou do guarda:

— Diga-me uma coisa; já tem gente no xadrez vizinho?

— Tem, sim senhor. Entrou para lá uma senhora.

— Uma senhora?

— Sim, senhor. Foi apanhada em flagrante numa casa suspeita, arranjando dinheiro para o luxo.

A essas palavras o comendador empalideceu. Não disse, porém, nada: acabado o jantar, tomou um pedaço de papel, escreveu umas palavras a lápis, e, tirando do bolso uma nota de cinco mil réis, estendeu-a ao guarda.

— O amigo quer me fazer um favor? — propôs, passando-lhe a cédula.

E entregando-lhe a carta, com a certeza de quem sabe com quem se meteu:

— Entregue-me isto, aí junto, a Dona Zézé...

LXV

O SONHO

Desaparecida a esperança de um casamento, que justificasse perante a sociedade a tolice a que a induzira um namorado sem escrúpulos, a Zulmirinha resolveu, num gesto brusco:

— Ora! Perdido por um, perdido por dez!

E reunindo as joias, a roupa de luxo e sete camisinhas de seda que o ex-noivo lhe dera, abandonou a casa materna, indo pedir hospedagem em uma pensão chic da rua Riachuelo, aonde fora levada, uma vez, pelo bandido que a seduzira.

Atirada à vida de perdição, na qual tomou o nome parisiense de Margot, principiou a rapariga a pôr de parte os sentimentos nobres que lhe restavam, à semelhança do que fazem as naus em perigo, à medida que se agrava a tempestade. E de tal forma desceu em dignidade, nivelando-se a tantas outras infelizes arrastadas pelo mesmo destino, que acabou pertencendo a todos os homens, mas, principalmente, a dois, o Ricardo e o João Gonzaga, que eram mais exploradores que, mesmo, protetores. Fiados um no outro, os dois pelintras em nada ajudavam a desgraçada, que, afinal, tinha de recorrer a terceiros e, mesmo, a “quartos”, para suprir as próprias necessidades.

Certa manhã, estava Margot estirada no seu vasto leito de casal, polindo despreocupadamente as unhas, quando o Ricardo entrou no aposento, atirando o chapéu e a bengala para uma cadeira, e estirando-se, como dono daquilo tudo, sobre o divã semeado de almofadas.

— Em que pensas, filha? — foi indagando, ao notar a indiferença da rapariga.

— Eu? Num sonho, que tive...

— Como foi o sonho?

Sem voltar os olhos, Margot principiou:

— Eu sonhei, que tinha encontrado um rapaz muito simpático, muito bom, muito gentil, que me queria doidamente...

— Está visto que sou eu! — aparteou o boêmio.

— Era tão bom, tão generoso, — continuou a rapariga, — que meteu a mão no bolso e me deu quinhentos mil réis!

— Ah! Então não era eu, não! Era... o Gonzaga! — concluiu, sério, o bilontra.

E acendeu um cigarro, atirando, num sopro, a fumaça para o ar...

LXVI

O PRIMEIRO MENU

O oitavo dia da Criação, que foi, também, o primeiro domingo, amanhecera claro, sem uma nuvem no céu. O sol, novo ainda, fabricado quase na véspera, desmanchava-se em raios de ouro puro, envolvendo as maravilhas do mundo jovem. As árvores sacudiam-se com volúpia, ritmando o embalo pela música maviosa do vento, como se Jeová tivesse dado uma grande festa em honra dos vegetais enraizados no solo. Os leões fulvos olhavam o céu com doçura, e os lobos brincavam, saltando, ao lado dos cordeiros, confirmando a provisória fraternidade das coisas.

Grande, louro, robusto, ainda rosado pela mocidade de barro, Adão acordara, espreguiçando-se. Abriu a boca forte, orlada, no lábio superior, de um buço macio e dourado, e levou as mãos ao rosto, cobrindo os olhos. A beleza radiosa do mundo enchia-o da alegria de viver, e ia ele erguer-se, brutal e nu, do seu leito de folhas, quando sentiu, de súbito, uma pequena dor do lado esquerdo.

Concentrou-se com interesse, desceu os olhos mansos pela superfície cio corpo musculoso, e, ao dar com a vermelha cicatriz que a noite fechara, fez, com um sorriso:

— Ahn! Já sei...

E evocou o episódio da véspera. Lembrou-se da sua queixa ao Senhor, do sono em que este o prostrara, da ferida que lhe ficara de um lado, e, sobretudo, do seu espanto, da sua surpresa, da sua emoção, quando viu, a pequena distância, o corpo maravilhoso da primeira mulher.

Esfregando os grandes olhos inocentes na delícia daquela suave lembrança, estendeu a vista pela verde clareira em que dormira. Brando, num quase voo, aproximou-se um serafim, encarregado de ministrar-lhe as delícias do paladar.

— Que desejais, senhor, para o almoço? — perguntou.

E começou a enumerar:

— Fígado?... alcatra?... lombo?... filé?

Adão fechou os olhos, numa consulta interior.

E com o primeiro sorriso de pecado:

— Traze a “costela”... Sim?

LXVII

ORGULHO

O rosto amplo, severo, queimado do sol, de que a barba esponta, insolente, por todos os poros da pele, o coronel Belarmino da Câmara é, na figura e nos hábitos, o tipo legítimo do antigo fazendeiro do alto sertão. Acostumado a passar o dia, das quatro da madrugada às sete da noite, de esporas no pé e rebenque na mão, os seus modos são ásperos, rudes, autoritários, como o dos antigos senhores feudais. Dentro da sua fazenda, onde nasceu e se criou, é ele quem manda. Às leis, as autoridades, os direitos alheios, são convenções que perdem a significação e o prestígio nos limites das suas terras.

A sua vontade prevaleceu, sempre, onde a sua voz se levante. Não admitia, jamais, objeções ao seu desejo, e, quando ele passava na estrada, a cavalo, os vaqueiros saltavam dos ginetes, para saudá-lo, de pé.

Face bronzeada, bigodeira grisalha a cair-lhe, farta e mole, aos cantos da boca, o coronel Belarmino saltou, uma noite, na Central, com a sua maleta de mão. Em viagem, teve o desprazer de notar, logo, como estavam quebrados, nos trens, os laços da disciplina. Ricos e pobres, negros e brancos, fazendeiros e operários, embarcavam nos mesmos carros, conversavam com a mesma liberdade, como se tivessem sido rebentados, já, os diques que separavam as classes.

— É uma pouca vergonha! — rugiu, de si, consigo.

E mordendo a bigodeira:

— Eu é que não me rebaixarei, nunca, diante desta corja!

Na estação, pulou do carro, tomou a maleta na mão, e desembocou, fora, na rua. Deu alguns passos no rumo da praça e, descobrindo um automóvel desocupado, encaminhou-se para ele. Atento, o motorista abriu-lhe a portinhola, por onde o coronel atirou a maleta, entrando em seguida. E estava, já, derreado na almofada, soltando o seu suspiro de alívio, quando o chauffeur, que acabava de fechar a portinhola, se voltou na boleia.

— Aonde vamos? — indagou o motorista.

— Quê? — fez o coronel, cerrando a testa.

À cara do coronel Belarmino subiu uma onda de sangue. Era a primeira vez que, na vida, um homem tinha a audácia de tomar conta de seus passos. E foi vermelho, congestionado, mordendo o beiço, que retrucou, logo, decidido, a mão na bigodeira:

— Não é da sua conta!

E cruzou a perna, com raiva.

LXVIII

VINGANÇA DE MARIDO

Libório Batista Borges podia ser um homem sem caráter, sem brio, sem dignidade: o que, porém, ninguém diria, jamais, sem flagrante injustiça, é que ele não tinha inteligência. Esta era, mesmo, a arma de que se servia, toda a vez que as suas malandrices comprometiam, perante os conhecidos, a sua complicada reputação.

Sagaz como um gato, e com um faro de perdigueiro para os escândalos mais encobertos, ele tinha de, necessariamente, perceber aquela queda do Rocha Couto por Dona Candinha, a jovem e risonha senhora que era, socialmente, Mme. Batista Borges. A sua experiência sabia, porém, que quando as mulheres viram a cabeça não há força que as faça voltar ao lugar. E daí a sua resolução de tomar uma vingança original, fazendo convergir para o Rocha Couto, o amigo desleal, todo o ridículo que a sociedade lhe destinava.

— Impedir que os dois se amem e façam asneiras, é tolice da minha parte. Eu poderei supor que eles não se encontram; mas toda a gente saberá da verdade, rindo-se, zombeteiramente, à minha passagem. O melhor, pois, é tirar partido da situação, aparecendo aos olhos alheios não como esposo enganado, mas como sedutor das mulheres alheias. Esta é uma das raras comédias da vida em que a plateia aplaude o carrasco para tripudiar impiedosamente sobre a vítima.

E com um risinho satisfeito, fora de toda a filosofia.

— Vocês me pagam! Deixem estar...

Dias depois, convidava o Batista Borges o amigo, o Rocha Couto, para uma estação em Poços de Caldas:

— Iremos eu, tu, e a Candinha; mas, como eu tenho muito que fazer no Rio, vocês seguirão primeiro, e eu, alguns dias depois. Está combinado?

Essa proposta foi, para os dois apaixonados, a sopa no mel; e com tamanho entusiasmo se aprestaram, um e outro, para a partida, que uma semana depois estavam na conhecida estação de águas, como marido e mulher, e tão agarradinhos, tão unidos, que pareciam recém-casados. E lá estavam, identificados com a sua nova condição, quando o Libório chegou, interrompendo, mais ou menos, aquele idílio começado.

— Vai principiar a comédia! — disse, consigo, o Batista Borges, tomando o pulso à situação.

E principiou, mesmo. Pretextando necessidade de repouso, alugou um quarto em separado, de modo a dar aos namorados a mais completa liberdade. Posto à vontade, o Rocha Couto sentava-se à mesa ao lado de Dona Candinha, passeava com ela, entrava livremente nos seus aposentos, dando, a todos, a impressão de que era ele, de fato, o marido. Às senhoras tratavam-na por Mme. Rocha Couto, na certeza de que era este, na verdade, o seu esposo. E ela não protestava, não só para evitar a maledicência, como para não perder na consideração daquela gente de elite... Enquanto isso, o Batista Borges agia por fora: tratava a esposa com cerimônia, diante do rapaz, mas para beijá-la, acarinhá-la, na presença de todos, assim que este se ausentava. À noite, esperava que houvesse alguém por perto, para ir bater, de leve, à porta da mulher, com as precauções de quem vai trair o amigo. E, em breve, os comentários circulavam:

— Já viste como a Rocha Couto está traindo desbragadamente o marido?

— É verdade, filha; que escândalo! Ainda ontem eu vi quando o amante, o Batista Borges, entrou no quarto dela.

— Parece que o marido sabe...

— Quem? O Rocha Couto? Sabe e, até, protege. Eu o tenho visto afastar-se toda a vez que o Borges se aproxima, unicamente para deixar a mulher à vontade com o amante!

— É um cínico!

— É um miserável!

Dias depois começava o Rocha Couto a receber cartas anônimas. Eram papeluchos indignos, em que os hóspedes, revoltados, verberavam o seu cinismo, explorando a esposa, cujas relações com o Batista Borges eram patentes. E não havia passado um mês, quando o dono do hotel o chamou à parte:

— O senhor e a sua senhora têm de retirar-se daqui, em vinte e quatro horas. São indignos de frequentar um estabelecimento destes. Quanto ao sedutor, ficará. Ele está no seu papel, uma vez que encontra um marido sem dignidade, como é o senhor!

No dia seguinte, o Rocha Couto deixava o hotel, expulso como um esposo sem brio, que explorava, francamente, a própria mulher...

LXIX

A AVENIDA

O comportamento exemplar das onze mil virgens durante tantos séculos de recolhimento celeste merecia, positivamente, uma recompensa. A ventura, quanto mais perfeita, mais fatigante. E foi atendendo a essa verdade, verificada desde Ulisses, que o Senhor do Céu e da Terra mandou chamar à sua presença a gloriosa Fortúnia, a mais prudente das donzelas, dizendo-lhe, com bondade:

— As tuas companheiras de martírio são mulheres, e, além de mulheres, moças e lindas. A monotonia da vida, aqui, deve fatigá-las, tornando-se intolerável. Pergunta-lhes, pois, se lhes apraz um passeio fora do Paraíso e em que planeta e lugar desejam gozar o seu dia de recreio.

Consultadas as virgens, voltou Fortúnia à presença de Deus.

— Senhor — disse, — as minhas companheiras escolhem, dos planetas, a Terra; da Terra, o Rio de Janeiro; do Rio de Janeiro, a Avenida Rio Branco.

— Queres dizer, então, que as onze mil virgens desejam passar uma tarde na Avenida?

— Exatamente, meu Senhor!

Essa informação não agradou, positivamente, ao Soberano dos Soberanos. Uma tristeza vaga toldou-lhe, de leve, o semblante luminoso. E foi preocupado que chamou mais para perto a virgem que o ouvia, dizendo-lhe, confidencial:

— Filha minha, o lugar que as tuas companheiras vão atravessar está semeado de perigo. Milhares de homens, com o pecado no sangue, espreitam as raparigas incautas como a fera aguarda a presa na curva do caminho. Cada pupila é uma pedra, por trás da qual se enrosca, repugnante e pérfida, a serpe de um desejo. Os instintos armam, em cada coração, ciladas à inocência, tornando uma temeridade a travessia. Eu hei de, porém, velar por vós. Afim de que não sejais colhidas em surpresas inevitáveis, eu farei com que todos os instintos baixos, todos os desejos vis, todos os pensamentos pecadores, que se aninham na alma do homem, não fiquem em silêncio, mas uivem, berrem, gritem, esbravejem, anunciando a sua presença, e permitindo que possais fugir, a tempo, como a ovelha foge ao ouvir o uivo do lobo. Compreendeste?

— Compreendi, Senhor!

No dia seguinte, à noite, havia grande reboliço no Paraíso. Duas a duas, três a três, dez a dez, as virgens iam chegando, nervosas, aflitas, assustadas. Indignado, o Senhor chamou Fortúnia, que as fora guiando:

— Que foi isso? Por que custaram tanto. Não ouviste que eu vos chamava, a todas, para vos livrar dos perigos que estáveis correndo?

— Vós nos chamastes, Senhor? — fez a virgem, desconfiada. — Pois, nós não ouvimos.

E justificando:

— Também, era um barulho tão grande, de uivos, de gritos, de berros, de relinchos, que a gente não ouvia nada!...

LXX

O PASSAPORTE

Quando as forças revolucionárias iniciaram o cerco de Uruguaiana, o coronel Amaro Machado deu um pulo da mesa, onde jantava, declarando, com resolução:

— Aqui, é que eles não me apanham. Seria dar ao Honório o prazer de uma vingança, e eu não estou, absolutamente, por isso!

Inimigo pessoal do coronel Honório Lemos, um dos chefes militares que dominavam na coxilha, Amaro Machado achou mais prudente abandonar a cidade, e ir juntar-se às forças governistas, aquarteladas em Quaraí. Uma coisa, apenas, o preocupava: a situação da mulher, Dona Carmem, a quem se ligara em segundas núpcias, e que era, positivamente, uma das senhoras mais belas de Uruguaiana. Deixá-la em companhia do pai, seria temeridade. Os próceres revolucionários a conheciam, e, tomada a cidade, procurariam, com certeza, cevar na esposa inocente o ódio que lhes despertava o marido. Fugirem juntos, seria, igualmente, perigoso: poderiam ser presos em caminho, separados um do outro: e que sucederia à sua Carmem, sem defesa, sem proteção, nas mãos dos seus adversários?

— Entretanto, a melhor resolução é essa: partirmos juntos!

E, nessa mesma tarde, ficou tudo pronto, para fugirem, madrugada alta, ao encontro das forças governistas, que, segundo as informações, vinham marchando, já, pela coxilha de Santana. Como, porém, a cidade já estivesse em grande parte debaixo do cerco, foi resolvido que, para não serem detidos, se disfarçassem, os dois, num casal de vaqueanos, vestindo o coronel uma roupa grosseira e Dona Carmem um vestido barato, de lã, que lhe justificasse a condição. E foi assim que partiram, às duas da madrugada, com a alma, aqui em baixo, povoada de temores e o céu, lá em cima, salpicado de estrelas.

Por uma felicidade inaudita, puderam os fugitivos viajar cinco horas a fio, galope largo, sem descobrirem, sequer, a sombra de um inimigo. E ia o sol já, alto, quando, por volta das oito horas, numa encruzilhada, lhes saíram ao encontro, lança em riste, quatro cavaleiros de uma patrulha revolucionária, cujos rifles faiscavam, polidos, no arção das selas rangedoras.

— Alto lá! — gritaram, estacando.

Aproximando-se mais que os outros, um dos cavaleiros, que parecia comandante da força, e era um antigo promotor público no norte do Estado, indagou, esporeando o cavalo:

— De onde vêm?

— Nós? De Uruguaiana, sim, senhor, — informou Amaro Machado, disfarçando a voz, simulando timidez.

— São revolucionários ou borgistas?

— Nós? Com a graça de Deus somos do coronel Honório, sim, senhor.

— Então, devem trazer papéis, provando isso.

O coronel borgista estremeceu. Positivamente estava liquidado. Súbito, raiou--lhe uma ideia:

— Trazemos, sim, senhor. Mas, porém, para escapar às forças do governo, eu dei para minha mulher esconder. E ela escondeu dentro do vestido, para ninguém achar.

— Ah! — fez o antigo promotor desconfiando do ardil; — mas eu é que os não deixo passar, sem ver os papéis!

E tomando pela rédea o cavalo de Dona Carmem, puxando-o para um bosque próximo:

— Faça favor, dona; a senhora tem que me mostrar os documentos...

Ao fim de meia hora, saía Dona Carmem, montada, do bosque para onde a haviam levado. Vinha vermelha de vergonha. Atrás dela, fisionomia contrariada, surgiu o promotor, que foi, logo, gritando:

— Deixem passar... Deixem passar esses porcos!

Ao chegar junto à sua gente, um dos companheiros indagou:

— A mulher mostrou o passaporte?

— Mostrou, sim, — informou o rapaz.

E num engulho:

— Estava em regra...

LXXI

PEDIDO DE CASAMENTO

O Alberto Santos era, desde menino, a personificarão da timidez. Aos quatorze anos, quando alguém falava em mulheres, em noivado, em casamento, era tal a sua atrapalhação que ficava rubro, a língua presa, num constrangimento de meter pena.

— Eu só quero ver, meu filho, como há de ser para você se casar, quando ficar homem! — dizia-lhe a mãe, numa censura carinhosa.

Com vinte e dois anos, Alberto Santos havia mudado de físico, de índole, de desejos. O coração sentia tudo. O espírito compreendia o mundo e a vida. Os nervos não obedeciam, porém, ao freio da vontade, acobardando-o, atemorizando-o, anulando-lhe inteiramente a energia. E foi quando uma tarde, se deu o desastre.

Impressionado com a candura da Zuzú Barbosa, menina forte, risonha, encantadora, de dezessete anos, resolveu o Alberto confessar-lhe o seu afeto, e consultá-la sobre a possibilidade de um noivado. Como seria, porém, para começar? Com que cara, e com que palavras, aludiria a matéria tão melindrosa, cuja só lembrança lhe punha no rosto semelhante vermelhidão?

Oito dias e sete noites pensou o rapaz nos subterfúgios, nos recursos de que lançaria mão, para fazer-se entendido. E estava ainda indeciso, quando foi, com a mãe, visitar o comendador Barbosa, afim de insinuar-se, de modo mais ou menos positivo, no espírito da menina, filha única do velho capitalista.

Postos à vontade em um banco do jardim, conversavam os dois sobre os assuntos mais desinteressantes, quando o rapaz deliberou, num gesto de coragem, consultar a Zuzú.

Três vezes abriu a boca, para começar. Um caroço oprimia-lhe, porém, a garganta, detendo-lhe a voz. Da quarta vez, com o sangue todo no rosto, foi mais longe.

— Dona Zuzú, — gemeu, mastigando em seco.

Ia proferir a palavra “noivado”, ou “amor”, ou “casamento”, quando parou, envergonhado.

— Dona Zuzú, — tornou.

E supondo salvar-se com uma redundância:

— Dona Zuzú, e seu pai não desejaria...

E de um jato, para acabar com aquilo:

— O seu pai não desejaria ter um netinho?

LXXII

A IDEIA DO CÔNEGO PETERSEN

A atividade das instituições protestantes dos Estados Unidos, espalhando emissários por todos os países do mundo e distribuindo prêmios em dinheiro por aqueles que façam maior número de conversões, despertou, naturalmente, ali, a ideia de uma defesa por parte dos católicos, aos quais competia zelar, como pastores incontestáveis, pelas legítimas ovelhas do assustado rebanho de Cristo. Como, porém, o clero católico possuísse representantes por todo o mundo, e estivesse exatamente na América o seu ponto mais fraco, ficou resolvida, pelo cabido metropolitano de Nova-York, a organização de um movimento geral de propaganda no interior da República, instituindo-se recompensas, em dólares e honrarias, ao vigário cuja igreja fosse mais concorrida. Comissões de padres e cônegos foram espalhadas pelas dioceses, afim de verificarem os progressos de cada paróquia, aferindo-os pela concorrência desusada dos templos.

Ao fim de algumas semanas, foram observadas pequenas alterações, para mais, em algumas freguesias de Boston, de Cleveland, de Cincinnati, de Baltimore, de Mineápolis, e, mesmo, de Los Angeles. Em alguns bispados em que a eloquência dos sacerdotes era negativa, como em Richmond e Paterson, observou-se o contrário. Onde, porém, a alteração se tornou mais sensível, foi na matriz de São Joaquim, em Nova Orleans, na qual se observou um acréscimo de alguns milhares de fiéis, na frequência diária. À porta do templo, amontoavam-se, esperando passagem, homens e mulheres, velhos e moços, de todas as condições sociais. Era de notar, mesmo, a presteza, a solicitude, o espírito religioso, com que os protestantes mais aferrados ao seu culto, e os próprios pastores evangélicos, acorriam à matriz da rua Washington, afim de ouvir, compungidos, a palavra sem brilho, mas convincente, do cônego Jacques Petersen, vigário da paróquia. E ia o jovem sacerdote receber o prêmio de dez mil dólares, e, talvez, a mitra episcopal, pelo seu campeonato na conquista de almas para o rebanho de Deus, quando o sacristão, o velho Patrick, procurou a comissão fiscalizadora.

— Venham comigo, monsenhores; venham comigo... — convidou.

À porta da matriz, onde a multidão se apinhava, o sacristão abriu passagem para os representantes do Cabido, levando-os, a custo, empurrando um, afastando outro, até à pia de água-benta.

— Provai, — aconselhou Patrick.

Monsenhor Robertson molhou o dedo na água, e levou-o à boca. Em seguida, encheu a mão em concha, para certificar-se. Monsenhor James fez o mesmo, repetindo a experiência três vezes, com as duas mãos. Um estalar de língua denunciou ainda, por cinco minutos, a presença da comissão. E entreolharam-se, todos, concordes.

Em cada pia de água-benta, o cônego Petersen despejava, todos os dias, quatro garrafas de rum!

LXXIII

A REVELAÇÃO

A quase clausura em que a trazia o marido havia feito de Leontina Broxado um coração perfeito, um espírito puro, uma alma fechada a toda ideia de tentação. Sem amigas que lhe contassem as coisas ignóbeis do mundo, nem intimidades que lhe permitissem adivinhar, sequer, o que ia pelo pântano escuro da vida, guardava a moça, aos vinte e seis anos, a inocência, a pureza, a ignorância virtuosa com que saíra, oito anos antes, do colégio de freiras em que fora educada.

O pecado é, em geral, como as necessidades criadas pela Civilização: só conhecem o seu encanto, a sua atração, aqueles que dele têm ideia. E como dona Leontina não tivesse ouvido falar, sequer, nas imundícies do mundo, nas torpezas da terra e dos sentidos, não alimentava no seu íntimo a sede da curiosidade. Era, assim, uma esposa modelar.

A pureza ignorante é, porém, para o espírito, o que é a garoa, a bruma, a cerração, para os aviadores: tira-lhes a noção da altura em que se acham. Distantes do pecado, não têm as almas perfeitas um ponto de aferência, de modo a se suporem, às vezes, roçando a crista do planeta quando se acham, pelo contrário, perdidas no silêncio das nuvens. E foi nessa situação, incerta do seu próprio paradeiro entre o hem e o mal, que Leontina Broxado pensou, um dia, em consultar a bússola, que seria, no caso, a experiência do próprio marido, transformado em confessor.

Simples e linda, o cabelo castanho a descer-lhe, ondulado, como duas asas de rola, sobre as orelhas pequenas, a moça aproximou-se, humilde, do companheiro de tantos anos. Durante alguns momentos os seus lábios palpitaram, puros, agitados por um juramento sagrado, como duas pétalas da mesma rosa batida pelo sopro do vento.

— Conta, minha filha; dize tudo que haja no teu coração, — pediu, bondoso, o marido.

Leontina procurou na alma, no coração, nas lembranças, a ideia, sequer, de uma falta. Era, porém, como se procurasse uma pulga, um inseto vil, na imensidade de um saco de paina.

— Procura lembrar-te, — tornou o companheiro.

E como quem tenta ajudar a memória alheia:

— Nunca tiveste a ideia, assim, de trocar o amor do teu marido pelo de outro homem?

— Não; nunca! — gemeu, singela, a rapariga.

— Quando teu maridinho se ausenta da cidade, nunca te veio ao espírito a saudade dele, e o pensamento, só o pensamento, de ter alguém a teu lado, que o substituísse nas carícias, nos agrados que ele te faz?

— Nunca! — respondeu, firme, dona Leontina, sentindo pela primeira vez, com a consciência da coisa, uma onda de sangue subir-lhe ao rosto moreno.

Bernardo Broxado meditou um instante. Aquilo era, com certeza, astúcia de mulher. Conhecedor da fragilidade humana, parecia-lhe impossível tamanha pureza, em dias tão corrompidos pela materialidade das coisas. Cuidou, pois, de apertar a ovelha, insistindo no cerco.

— Nunca sentiste — tornou — numa festa, num baile, num passeio, o lábio de outro homem que não o teu esposo, pousar-te nos lábios, nos olhos, nas faces, pondo-te um doce arrepio pelo corpo, numa dessas delícias que é uma das armas do Diabo?

— Não; juro-te! — garantiu a moça, com o rosto como um lacre.

— Então, — concluiu o marido, oscilando, ainda, no balouço de uma dúvida; — então, podes levantar-te. Eu não tenho nada que te recomendar.

E ia afastar-se, quando a vozinha de dona Leontina, meiga, flébil, cariciosa, o deteve:

— Bernardo...

O esposo voltou-se.

— Dá-me a penitência dessas coisas... Sim?

— Mas tu nunca as fizeste, filha!

— Nunca! Mas eu quero é daqui para diante.

E baixando os olhos, vermelha:

— É que eu não sabia...

LXXIV

O SAL

Quando o escritor Fenelon da Rocha anunciou a sua primeira conferência sobre a evolução da moda entre os gregos, o desembargador Damião da Gama pedira-lhe, com interesse, apertando-lhe a mão entre as suas:

— Não se esqueça de mim; ouviu? Mande-me um bilhete, um convite, que irei aplaudir esse talento, e dar-lhe-ei, depois, a minha opinião!

A festa literária do moço romancista constituiu, na opinião dos jornais, o acontecimento social da semana. O salão nobre da Associação dos Empregados no Comércio estava cheio, repleto, transbordante de senhoras, como se se tratasse de um baile no Itamaraty. Tamanha foi, mesmo, a agitação nervosa entre elas, quando o escritor surgiu no estrado, que se tinha a impressão de que os leques eram centenas de pombas selvagens em voo e de que as palmas, os aplausos com que o receberam, não eram senão o tatalar forte, e seguido, de milhares de asas daquele bando.

Elegantíssimo, estatura regular, pincenez faiscante, cabelo ondulado, puxado para cima, Fenelon da Rocha era um belo tipo de homem. E foi com a consciência da sua elegância que começou a falar, os olhos semicerrados, a voz pausada, langorosa, de mestiço do Norte.

As primeiras palavras foram leves, brandas, despretensiosas. De repente, porém, o conferencista perdeu o fio do próprio pensamento, e começou a apoiar-se no dos outros, de um lado para outro. Daí em diante, foi, então, um nunca findar de citações, de erudição pesada, que encantando a princípio o auditório, acabou por fatigá-lo, transformando um prazer num suplício.

Terminada a conferência, correu o orador a indagar do desembargador, como autoridade no assunto, a sua opinião. A resposta do velho magistrado foi uma só:

— Vá amanhã jantar comigo; ouviu? Não falte!

Na noite seguinte, Fenelon da Rocha não faltou. E estavam os dois à mesa quando trouxeram a sopa. O escritor mergulhou, nela, a colher de prata, levou-a à boca, e não conteve uma careta.

— Que é isso, doutor? — indagou o magistrado, com interesse. — Não está boa a sopa?

O rapaz confessou:

— Boa está; mas... está intragável!

— Tem muito sal?

— Demais.

O desembargador sorriu, bondoso. E batendo no ombro do hóspede:

— Meu filho, isto é uma lição, que eu lhe dou. A erudição, nos trabalhos literários, é como o sal, na comida.

E enquanto o criado trocava a sopa:

— Em pequena quantidade, tempera; em demasia, estraga tudo!

LXXV

RESPEITO À TRADIÇÃO

Às mãos nos bolsos, o chapéu de palha atirado para o cocuruto, o Ataliba Viterbo media a sala a passos largos, andando nervosamente de um lado para outro. Na agitação que o dominava, ia, de repente, da vermelhidão mais intensa à palidez cadavérica. E rugia, indignado:

— Miserável!... Infame!... Dissoluta!...

Havia saído pela manhã, a bolsa de cobrador suspensa da mão forte, a caminho do Banco. Andara acima e abaixo recebendo saques, promissórias vencidas, e ia, já, recolher o dinheiro da cobrança, quando passou, casualmente, diante da própria casa. A porta achava-se aberta e entrou sem ser esperado. E estava já no corredor, em cima, quando cruzou com um indivíduo que trazia nas mãos o casaco e as botinas, e que, mesmo na carreira em que ia, reconheceu ser o Pacheco Velasco, que fora, antes do seu casamento, namorado oficial da Nanoca.

Fulminado por aquela revelação, segurara-se à parede, para não cair. Entrou, mesmo assim, no quarto, e, senhor da verdade terrível, mandou a criada à casa do sogro, chamando-o, com urgência.

Estava Ataliba, assim, em acessos intermitentes de indignação e de vergonha, a passear de um lado para outro da sala, quando o coronel Broxado entrou, com o seu carão vermelho, e escanhoado, de vivedor.

— Que temos por aqui? — foi indagando, jovial, a atirar para cima de uma cadeira o seu fino chapéu do Chile.

— Ora, o que há?!... — fez o genro, parando de andar. — O que há é que eu entro em casa, e encontro aqui a sua filha, criminosamente, nos braços do Pacheco Velasco!... Uma ignomínia!... uma infâmia!... uma vergonha!...

E olhando o sogro, que se conservara calado:

— Que é que o senhor me diz a isso? Vamos?

— Eu? — fez o velho, calmo. — Eu estava estranhando é que isso não tivesse acontecido ainda... Essas coisas estão no sangue, meu velho! estão no sangue, meu velho! estão no sangue! É da tradição lá em casa.

E num gesto severo, de quem não admite réplica:

— E nós não queremos que se abra um precedente na família; compreende?

LXXVI

O RELÓGIO

A claridade do abat-jour, colocado a pequena altura, punha uma grande mancha luminosa na toalha rendada da mesa. Mergulhada na sombra suave que inundava o resto da sala de jantar mobiliada com gosto, dona Teresita acompanhava com os olhos a agulha de marfim que ia e vinha, num meticuloso trabalho de crochet. Do outro lado da mesa, a cabeça nas mãos, o dr. Albino Fagundes lia, em silêncio, um folheto aberto sob os seus olhos. De minuto em minuto, virava a página, deixando o opúsculo, de novo, imóvel, como uma grande borboleta branca, salpicada de preto. O silêncio, na casa, era absoluto. Chegava-se a ouvir o ronronar contínuo do angorá da família, que fervia, preguiçoso, aos pés da dona da casa.

— Bela comparação, esta, do Neto! — exclamou, quebrando a monotonia do quadro, o dr. Fagundes.

— Neto de quem? — fez dona Teresita, sem levantar os olhos do crochet.

— Do Coelho Neto, filha. Do escritor Coelho Neto. Não conheces, então?

— Ahn! gemeu a moça.

— O Coelho Neto diz, neste drama, O Desastre, publicado agora, que os casamentos modernos são como um disco de relógio.

— Como um disco de relógio?

— Sim. O marido é o ponteiro grande, que anda depressa; a mulher é o ponteiro pequeno, que anda devagar. Estão ligados, os dois, por um eixo, que é, no caso, o contrato de casamento. Mais ligeiro do que o outro, o ponteiro grande põe-se a andar. Anda, anda, anda... e quando se encontra com o pequeno, é só por um instante, até que chega o momento de se encontrarem outra vez.

A mão no queixo, o trabalho paralisado, dona Teresita escutava, sorridente e encantada, a explicação do marido. Terminada esta, baixou a linda cabeça de cabelos de ouro, reatando a teia mimosa. E sorria, de si, consigo, quando o esposo, ao virar outra página, a interpelou:

— Estás rindo sozinha?

— Eu? — fez a moça.

E sem levantar a cabeça:

— Estou, sim... Estou me lembrando como deve ser bom, num relógio, a vida do ponteiro que marca as horas! O outro volta para junto dele de sessenta em sessenta minutos... Não é?

E olhou, muito vermelha, o relógio de pulseira, onde, marcando nove horas, menos um quarto, o ponteiro grande passava, nesse momento, por cima do pequeno...

LXXVII

A MULHER DO COMANDANTE

Singelo e bonacheirão, aquele velho oficial do Exército fora, desde os primeiros postos da carreira, de uma lamentável imprevidência em relação à família. Casado quando simples tenente, fora nomeado para uma comissão em Mato Grosso, e, em vez de levar a mulher, jovem e linda, deixou-a saudosamente no Rio, confiada aos seus amigos mais íntimos. O que sucedeu na sua ausência, ninguém sabe; o certo é, porém, que, mal havia desembarcado no Rio, já os guardiões de dona Neném lhe haviam arranjado outra comissão no Amazonas, para onde teve de seguir sem demora, para servir em um dos batalhões de Manaus.

Encantada com a sua vida mundana, dona Neném não dava, absolutamente, pela falta do marido. De tal modo, em suma, jogaram com o jovem soldado na complexidade do tabuleiro militar, que, quando ele se fixou no Rio de Janeiro ao lado da esposa querida, era, já, major de infantaria, com funções em um dos quartéis da cidade.

Os quinze anos de bailes e piqueniques e a amizade constante de alguns colegas do marido, não haviam passado, porém, impunemente, sobre a beleza de mme. Pereira Cabrito. A pele, outrora tão fresca, principiava a murchar, encolhendo, como a dos frutos apanhados verdes. As mãos encordoavam-se de veias e nervos, e começava a aparecer, sob o queixo gordo, a papada traidora, que denuncia nas mulheres a aproximação dos quarenta anos. A boca perdera o perfume de rosa para ter um cheiro de terra, um hálito de sepultura. A velhice chegava, em suma, a grandes passos, afugentando os admiradores antigos, que se tornavam, dia a dia, mais raros, mais fugitivos e mais retraídos.

Foi por esse tempo que dona Neném pediu ao marido, em cujo punho se enroscavam já os galões de coronel:

— Olha, filho: eu estou, agora, tomando gosto pela minha casa, e preciso trazê-la em ordem; manda-me uma praça para ajudar em algum serviço mais pesado. Mandas?

Considerando justo aquele pedido, o comandante atendeu. E nunca mais dona Neném passou sem um soldado do Exército, que lhe regava o jardim, lhe encerava o soalho, lhe lavava a gaiola dos pássaros, e, até, lhe endireitava a cama, no dia em que lhe faltava a arrumadeira.

Corria a vida, assim, na paz do Senhor e da senhora, quando o tenente Pinto Lopes, amigo íntimo de Pereira Cabrito, de quem fora ajudante de ordens, resolveu esclarecer o velho militar sobre o ridículo que rolava sobre o seu nome. A incumbência era, porém, grave, e o jovem oficial não viu, apesar da indignidade do processo, outro meio além da carta anônima, denunciando ao marido as leviandades públicas da mulher. Resolvido isso, escreveu as linhas denunciadoras, sobrescritou-as, deitou o envelope no correio e esperou, aflito, as consequências.

Espírito calmo, o comandante Cabrito não deu o pulo clássico, justificado pelas circunstâncias e pelo seu nome. Lidas as linhas infames, pensou em ocupar, como espião, o tenente Pinto Lopes; o melhor, entretanto, seria procurar patente mais alta, pessoa de maior responsabilidade, e surgiu-lhe à memória, logo, o nome do tenente-coronel Petencoste, seu substituto no comando da força. Mandou chamá-lo, fechou o gabinete e expôs-lhe, a testa franzida:

— Meu velho, eu recebi uma carta, dizendo que minha mulher se porta mal, a ponto de ter relações com uma praça do Batalhão Naval. Você ouvir falar nisso?

Cara fechada, perna trançada, Petencoste confirmou, torcendo nervosamente os bigodes:

— A falar verdade, eu já ouvi falar disso.

— E conhece você o sedutor?

— O que namora a sua mulher? Conheço sim.

— E então, você vai me fazer o seguinte: amanhã, às quatro da tarde, você passa com ele, no pátio, por baixo da janela, para que eu o conheça.

— Perfeitamente.

— Às quatro, em ponto; ouviu?

No dia seguinte, à tarde, estava o coronel, a mão no queixo, à janela do quartel, com os olhos pregados no pátio, quando ouviu, perto, o estalar das cornetas. Aguçou o ouvido, e espichou os olhos, inquieto.

Momentos depois, entravam no pátio, passando-lhe sob a janela, com a banda de tambores à frente, e sob o comando do tenente-coronel Petencoste, as 480 praças do batalhão.

LXXVIII

A FARMACÊUTICA

O caso passa-se em Nova-York. Na farmácia sortida de vidros e deserta de fregueses, estão, apenas, duas senhoras: uma de 30 anos presumíveis, ao balcão, e outra, de aparência mais distinta, e um pouco mais velha, tomando conta da caixa. De repente, entra um freguês, e estaca diante da grade, passeando os olhos pelo interior do estabelecimento.

A DAMA DO BALCÃO — Deseja alguma cosa?

O FREGUÊS — Sim, senhora; mas... (passeia os olhos, como quem procura alguém) não há aqui algum homem, algum empregado, com quem eu me possa entender?

A DAMA DO BALCÃO — Homem não há, não, senhor... Mas o cavalheiro pode falar, dizendo o que deseja.

O freguês (visivelmente atrapalhado) — Mas... é um caso um pouco escabroso, um pouco íntimo... Assunto para homens ...

A DAMA DO BALCÃO — Moléstia?

O freguês — Sim, senhora; moléstia.

A DAMA DO BALCÃO (com interesse) — O cavalheiro pode explicar-se à vontade...

Eu sou farmacêutica e minha irmã (indica a dama da caixa), é formada em medicina... Pode, portanto, falar com clareza, sem o menor constrangimento.

O FREGUÊS — Minha senhora, trata-se de um caso grave. (Baixa a voz) É um meu companheiro de casa, chegado há dias de Londres, que está passando mal... Vivia maritalmente com uma rapariga na Inglaterra, quando a moça adoeceu, e morreu, deixando-o numa exaltação amorosa que toca ao delírio.

A DAMA DO BALCÃO (com estranheza) — Exaltação amorosa?

O FREGUÊS — Sim, senhora. Exaltação amorosa. Desta manhã para cá, tem estado de tal maneira, que já se atirou a mim quatro vezes, abraçando-me como um verdadeiro louco!

A DAMA DO BALCÃO (com visível interesse) — E então?

O FREGUÊS — Então, eu queria saber o que a senhora dá...

A DAMA DO BALCÃO (a testa franzida) — O homem está assim? (Pensa um instante). Faça o favor de esperar um momento.

A dama do balcão dirige-se à caixa, trocando com ela algumas palavras. Estão visivelmente nervosas, as duas. A primeira morde o beiço, agitada, e a segunda remexe-se, aflita, na cadeira.

A DAMA DO BALCÃO (voltando ao freguês) — Eu falei com a minha irmã. Se o homem está assim, beijando... abraçando... mordendo...

O FREGUÊS — ?...

A DAMA DO BALCÃO (trêmula de emoção, ao ouvido do freguês) — Ela dá... quatro mil dólares e a farmácia!

LXXIX

O SERTANISTA

Quando o Ministério da Guerra declarou, oficialmente, que o tenente de cavalaria Abelardo Mendes Moreira ficava à disposição da Inspetoria de índios, houve nas rodas elegantes da Alvear e da Colombo, um movimento de espanto. Seria possível que aquele rapaz tão bonito, tão moço, tão mundano, abandonasse a cidade pelo sertão áspero, pelo risco de ser apanhado por uma flecha, pela vida de privações e perigos que aguarda, sempre, os nossos sertanistas? O certo é que, duas semanas depois, o brilhante oficial embarcava para Mato Grosso, onde o esperava, já, a vanguarda da missão Rondon.

Durante meses, não se ouviu falar no moço militar, cuja deliberação era, ainda, para os próprios amigos, um mistério. Alguns, dizendo-se bem informados, atribuíam essa partida a uma paixão não correspondida, e outros, à imposição de certo marido, que o teria ameaçado de morte se ele não abandonasse a cidade. O verdadeiro, porém, é que ele partira contente, e sem manifestar a menor saudade, mesmo na hora das despedidas.

Um dia, entretanto, chegara ao Rio um telegrama alarmante: o posto de Caviúna, na foz do rio Capivara, havia sido atacado por uma tribo de mulheres índias, espécie de amazonas da região, tendo desaparecido durante a luta o tenente Abelardo Mendes Moreira, que teria, talvez, morrido em combate. Era possível, também, que tivesse caído prisioneiro das assaltantes, tendo o coronel Rondon, para apurar essa hipótese, organizado uma expedição que ia partir, no dia seguinte, para o interior.

Dois meses passaram-se, pesados e monótonos, sem que viesse a menor notícia de Mato Grosso.

— Com certeza, a expedição não o encontrou! — diziam os íntimos, lamentando a sorte do brioso oficial.

— Quem sabe, também, se os expedicionários não foram mortos pelos índios?!... — suspiravam algumas senhoras compungidas.

E os suspiros cruzavam-se com os comentários, quando chegou ao Ministério da Guerra um telegrama auspicioso, que dizia assim:

“Posto Caviúna, 3 de Platão. — Expedição mandada perseguição tribo mulheres assaltou este posto conseguiu encontrar entre elas feito prisioneiro l.° tenente Abelardo Mendes Moreira, qual está excelente saúde. Expedicionários tiveram travar combate índias arrancar ilustre oficial para qual peço promoção primeira oportunidade. Saudações. — Rondon”.

Essa notícia, divulgada pela imprensa, causou indizível contentamento aos amigos do jovem sertanista.

Cuidou-se, mesmo, de fazer-lhe uma grande manifestação assim que ele chegasse ao Rio, e era disso que se tratava quando, oito dias depois, chegou outro despacho oficial, nestes termos:

“Posto Caviúna, 13 de Platão. — Tenente Abelardo que salvamos poder tribo índias Xerém, adoeceu moléstia desconhecida, estando magro, pálido, soturno, grande abatimento. Alarmado marcha moléstia peço autorização fazer regressar referido oficial. Saudações. — Rondon”.

E oito dias depois:

“Posto Caviúna, 20 de Platão. — Vossa ordem embarcar tenente Abelardo Mendes Moreira com destino Pio, chegou tarde. Referido oficial abandonou anteontem noite furtivamente nosso acampamento, fugindo para companhia tribo índias Xerém, entregando-se voluntariamente prisioneiro. Saudações. — Rondon”.

LXXX

O CÉTICO

Quando o Fabiano tomou conhecimento do mundo, encontrou em casa apenas o pai: a mãe havia fugido, inesperadamente, com um caixeiro viajante hospedado nas vizinhanças quando o marido a supunha, pelo nascimento do filho, mais apegada ao seu lar. Esse gesto da doidivanas deixando o pequenito sem leite, e o seu coração sem carinho, fez com que o velho dissesse, assim que o menino cresceu:

— Olha, meu filho: duvida sempre das mulheres. Elas nos mentem, mesmo nas coisas mais santas, e quando as supomos mais verdadeiras!

Crescendo nesse ambiente de prevenções, Fabiano tornou-se, quando homem, um incrédulo, um cético, um espírito envenenado pela dúvida. Tudo nas mulheres parecia-lhe falso, pérfido, mentiroso. Não obstante isso, casou-se, sem que esse gesto significasse entretanto confiança na criatura escolhida, ou à certeza, sequer, de encontrá-la sempre em casa, ao regressar do serviço. Dia mais dia, ela o abandonaria por outro. Quem sabia, mesmo, se a esposa já não o enganava com o capitão que residia em frente, com o vendeiro da esquina, ou, talvez, com o homem da carvoaria?

Minado por esse pessimismo irremediável, o Fabiano viveu casado sete anos, mas duvidando, sempre, da mulher, mesmo nas coisas mais insignificantes. Tudo, aos seus olhos, era mentira, falsidade, fingimento. E isso feria de tal modo a dignidade da companheira que esta, um dia, teve um ataque, tombando para trás, sem sentidos. Apalpado o coração e examinado o pulso, viu o rapaz que a mulher havia morrido, e chamou um médico, para atestar o óbito. Este confirmou o desenlace, deu o atestado e o Fabiano foi tratar do enterro, tomando as providências que as circunstâncias requeriam.

No dia seguinte, à tarde, era desembarcado do coche, no cemitério do Caju, o esquife de dona Helena. Metido na carreta, foi conduzido até à beira da sepultura, onde abriram o caixão, para o necessário reconhecimento.

De preto, rosto macilento, o chapéu nas mãos trêmulas, Fabiano quedava, de pé, diante da cova escancarada. Ao seu lado, o pai, velho e abatido, cofiava, pausadamente, a barba veneranda. Os olhos no rosto marfíneo da morta, o viúvo parecia procurar, ansioso, um sinal revelador. E como não o percebesse, voltou-se para o velho.

— Pai!

O ancião olhou-o.

E Fabiano, baixo, a voz trêmula, apertando nervosamente a mão do velho, como quem aguarda, de repente, um milagre:

— Ela não estará fingindo, pai?

LXXXI

A EXPERIÊNCIA DO CALIFA

Preocupado com o destino dos seus súditos havia Harum-Al-Rachid suplicado a Alá, na mesquita vermelha, que lhe revelasse, por um meio prodigioso, todos os infortúnios que pesavam sobre a população de Bagdá. Entre os milhares de homens que enchiam a cidade, havia os ambiciosos, os mentirosos, os assassinos, os desonestos, os maridos enganados, as vítimas, enfim, das vinte pragas da vida. Como, porém, conhecer os ladrões? Como distinguir um mentiroso, ou um assassino, de um esposo enganado? E foi o processo para essa verificação que o profeta Abu-el-Cherib revelou ao mais sábio dos monarcas, em nome de Alá, Todo Poderoso.

— Queres saber, ó Rei, quais são as pragas que perseguem o teu povo e, no meio do teu povo, quais os homens infortunados? Segue o conselho de Alá, que te fala pela minha boca: manda abrir no bazar vinte peças de tecido negro, vinte de tecido branco, vinte de tecido vermelho, vinte de tecido verde, vinte de tecido amarelo. Em seguida, manda publicar um édito, ordenando que cada homem da cidade vá escolher, sob pena de morte, uma vestimenta para usar no dia seguinte. Os desonestos, escolherão o tecido negro; os assassinos, o tecido vermelho; os mentirosos, o tecido branco; os ambiciosos, o tecido verde; e os maridos enganados, o tecido amarelo. No outro dia, poderás ver, externamente, nas cores das vestes, as misérias, os crimes, os infortúnios que há na alma de cada um.

Aceito o alvitre, mandou o Califa que o chefe dos seus escravos, Abu-Becker, fosse para o bazar com vinte peças de panos de cada cor, e desse uma vestimenta, à escolha, a cada homem que a procurasse.

Horas depois dessa ordem, chegava ao palácio do Califa um escravo, que vinha do bazar, e procurava o vizir.

— Senhor, — disse, — aqui estão estas peças que Abu-Becker vos manda.

E entregou ao vizir várias peças de tecido azul, branco, preto, verde e vermelho.

— Sobrou tudo isto? — indagou, curioso, o Califa, aproximando-se.

— Não, meu senhor, — informou o escravo.

E amontoando as peças:

— Abu-Becker manda pedir para ser trocado tudo isto por pano amarelo...

LXXXII

O VELHO GOMIDE

A família Barbosa Gomide provinha, remotamente, do ramo de Gargântua. Justificando as suas funções neste mundo, o velho Gomide costumava dizer, com orgulho:

— Há quem coma para viver; nós, os Gomides, vivemos para comer!

Várias anedotas que andam por aí sem autor, nasceram na vida prática da família. Certa vez, encontrou-se Policarpo Gomide com um antigo companheiro de escola, o Barreto Feio, quando este o convidou para jantar. Entrados na casa do amigo, e servida a refeição, Policarpo atirou-se aos pratos como se jejuasse há duas semanas. Correto, polido, Barreto Feio comia com discrição, quando começou a contar, suspendendo o talher, a morte do seu pai.

— Foi uma coisa dolorosa, esse golpe. O velho, há meses, não se sentia bem. Às vezes, acordava sem fôlego, ansiando, como se estivesse a morrer. Chamava-se médico, vinha gente, e cessava tudo. Essas crises foram se tornando, porém, mais frequentes, quase diárias, até que, em uma delas, principiou a debater-se, os olhos fora das órbitas.

E, a voz pausada, o talher na beira do prato, contou, minucioso, o que havia sido a agonia do ancião, até que o seu espírito se desprendeu deste mundo. Enquanto isso, Policarpo Gomide enfornava comida, atirando garfadas à garganta como quem atira terra a um buraco. E ia Barreto Feio retomar o talher, quando indagou:

— E o teu pai, como morreu?

Compreendendo a inconveniência das narrações detalhadas, Policarpo não levantou a cabeça do prato. E foi com a boca repleta, e o garfo cheio, que respondeu, sintético:

— De repente!

E continuou a comer.

De outra feita, conversava-se sobre gastrônomos, quando Gomide informou:

— Meu pai era um excelente homem de mesa; comia devagar, lentamente, mas passava três horas ao almoço. Minha mãe, era o contrário: comia depressa, mas levantava-se em cinco minutos.

— E você? — indaga alguém.

— Eu saí aos dois, — informou Gomide.

E com sinceridade:

— Como depressa, à semelhança de minha mãe, e levo três horas à mesa, como meu pai!

Educados nesse regime, os filhos de Policarpo Gomide e de dona Aurora constituíam o pavor, o espantalho, o pesadelo das famílias que davam festas. Onde eles chegavam, era uma devastação. Empadas, bolos, doces, pastéis, tudo desaparecia na boca dos rapazolas, um dos quais, o Altino, chegava a ter duas carreiras de dentes.

Certa noite, convidados para uma reunião festiva na residência dos Prado Pereira, dona Aurora e os três filhos ali chegaram por volta das nove da noite, e foram, logo, farejando a sala de jantar. Mais faminto do que os irmãos, o Altino enveredou pela casa, indo ter à copa, enquanto a mãe, e os dois irmãos, davam parabéns à aniversariante. No interior da casa, o pequeno Pantagruel estacou, desolado: os pratos, as compoteiras, as garrafas, as terrinas, estava tudo vazio, mostrando que eles haviam chegado, daquela vez, atrasados.

Boca cheia de saliva, olhos tristes, fisionomia de quem acaba de sofrer uma decepção, o Altino retornou, imediatamente, à sala, à procura de dona Aurora. E ao vê-la, foi, logo, exclamando:

— Sabe, mamãe? Papai já esteve aqui.

E num gesto largo, de quem varre diante de si:

— Não tem mais nada para gente comer!...

LXXXIII

AS SURPRESAS DO CINEMA

Entre as peças representadas em 1922 pela Comédia Brasileira, uma havia, de Heitor Modesto, em que duas personagens, marido e mulher, se encontravam numa situação imprevista, criminosos ambos, mas com a necessidade de se auxiliarem no próprio pecado. Assassino e ladrão, o esposo acaba de matar o seu amigo, alta noite, e vai fugir, quando se encontra frente a frente com a própria esposa, que passava essa noite no leito do assassinado. Reconhecem-se os dois, e recuam. Ele é ladrão e assassino. Ela é adúltera. Como são, porém, únicas testemunhas dos respectivos crimes, dão-se as mãos como companheiros, e continuam, cobertos de remorso e de vergonha, o seu triste caminho pela vida.

O caso ocorrido uma destas tardes em um dos cinemas da Avenida é um desses casos de solidariedade matrimonial, trazido do drama para a comédia. As lâmpadas acabavam de apagar-se quando o sr. Ferdinando Lopes, que se achava na primeira cadeira da fila, notou que à sua frente se sentava uma bonita senhora de lindas espáduas, cuja carnação, posta em evidência, se tornara, de repente, a irreprimível tentação dos seus sentidos. Ao lado da senhora, um rapagão forte, musculoso, parecia olhar o filme com atenção. Se essa atenção era verdadeira, não se sabia; o que era, porém, evidente, é que o rapaz não incomodava a sua vizinha, cujos cuidados estavam, todos, voltados para trás, para os joelhos, para os pés e para as mãos de Ferdinando Lopes, ocupado, todo ele, no contato da soberba criatura da frente.

Ao lado de Ferdinando, e por trás, exatamente, do rapaz musculoso e bonito, uma criaturinha ainda jovem parecia encantada com o flirt. E tão encantada que a sua mão avançava sobre a cadeira fronteira, onde o rapaz musculoso lhe agarrava na mão, numa carícia significativa. E estavam os dois, e as duas, nesse devaneio delicioso, mas incômodo, quando, ao desabrocharem as luzes no primeiro intervalo, o rapaz musculoso voltou-se para o Ferdinando, propondo:

— Cavalheiro, quer entrar num acordo?

Ferdinando arregalou os olhos, e o moço continuou:

— O senhor, aí onde está, não se acha a seu gosto; aqui, na minha cadeira, ficará mais à sua vontade. Eu, por minha parte, ficaria melhor aí, onde o senhor se acha. O senhor quer trocar de lugar?

— Obrigado, cavalheiro; mas é impossível! — fez Ferdinando, atrapalhado.

E indicando a dama, à sua direita:

— A senhora que está aqui, é minha mulher...

LXXXIV

ACTÉON

— É uma das lendas mais bonitas que eu conheço, minha senhora, essa de Actéon! — afirmou o dr. Borges, o erudito professor do Pedro II, enquanto mme. Feitosa Lopes, com os seus olhos negros e calmos, lhe acompanhava o movimento dos lábios vermelhos, que a língua de instante a instante umedecia.

E prosseguiu:

— Actéon, príncipe grego, andava à caça com os seus cães, quando, ao descobrir o vulto de Diana, que, nua e linda, tomava o seu banho num córrego, se encaminhou para lá, afim de espiá-la. Descoberto pela deusa, esta encheu de água a concha de ouro das mãos, e atirou-lhe ao rosto. E eis que Actéon se transforma em veado, que é perseguido e devorado pelos seus próprios cães!

Olhinhos espetados no narrador, o Julinho, de onze anos, ouvia com atenção a lenda que o simpático professor contava à sua mamãe. A história parecia-lhe bonita, mas confusa. E foi para compreendê-la bem que o pirralho resolveu esclarecer alguns pontos.

— Mas esse homem era casado com essa deusa que andava nua?

— Que homem?

— O príncipe.

— Actéon?

— Sim.

— Não era casado com ela, não. Por quê?

Julinho ficou pensativo por um instante, com o queixo na mão e o cotovelo na perna da sua mamãe. E foi nessa posição que espetou, de novo, os olhos no professor, indagando:

— Se ele não era casado, como é, então, que ele virou veado?

LXXXV

HOLOCAUSTO

— “Após a criação do homem e da mulher, quedava-se Jeová satisfeito com a sua obra, quando percebeu, da clareira em que costumava repousar no Paraíso terrestre, um ligeiro mover de folhas, à margem silenciosa do Eufrates. Confiantes, embora, na paz que reinava, os veados afilaram as orelhas, para apreender o rumor inopinado. O Criador voltou-se, e viu que eram Adão e Eva que o procuravam, e aos quais fez um sinal de cabeça, para que se aproximassem tranquilos.

O Primeiro Homem avançou alguns passos, e, de olhos baixos, pediu:

— Senhor, nós vivemos tão sós, tão abandonados, tão tristes! Os outros animais, são multidão: há dezenas de leões, centenas de alces, milhares de auroques. Por que seremos nós, o homem e a mulher, apenas dois?

— Quereis, então, o dom da procriação? — indagou Jeová.

— Queremos, Senhor; queremos! — fizeram, ao mesmo tempo.

— E quem se encarrega da gestação?

— Ela, Senhor! — fez Adão, apontando a companheira. E esta, o dedo estendido:

— Ele, Senhor!

— Bem! — fez Jeová, paternal. — Para que vos não queixeis, ficará, assim, distribuído: a mulher terá o primeiro filho; o homem terá o segundo; a mulher o terceiro; e assim por diante. Estais satisfeitos?

Os dois habitantes do Paraíso oscularam, agradecidos, as sandálias do Senhor, em que havia ainda o pó das estrelas pisadas pelos caminhos celestes, e retiraram-se beijando-se como as rolas, acariciando-se como os cordeiros, mordendo-se como as serpentes.

Meses depois, ouvia-se, fora do Éden, os primeiros gemidos de maternidade, partidos do peito humano. Aflito, procurando frutos silvestres, arrancando raízes profundas, conduzindo água das torrentes na concha insegura das mãos, Adão corria pela floresta e pelo Deserto, ensanguentando os pés sem defesa nas pedras agressivas do seu degredo. E ao fim de algumas horas, nascia Abel, que foi, ao contrário do que informa o Gênesis, o primeiro fruto das entranhas humanas.

Dois meses depois, começou Adão a vomitar. Distúrbios nervosos perturbavam--lhe o trabalho, tornando-o grosseiro, brutal, irascível. À semelhança do que sucedera a Eva, começou o ventre a crescer-lhe, de modo assustador. E ao fim de nove meses, punha ele no mundo a Caim, cujo vagido feroz amedrontou as ovelhas, fazendo rugir, ao longe, os grandes leões do Deserto.

À proporção que se desenvolvia no corpo, ia, porém, o menino apresentando novos aspectos da sua catadura e da sua maldade. Os tigres arrepiavam-se, quando o viam. O seu ressonar, à noite, era respondido ao longe pelos lobos selvagens, que o chamavam, como a um irmão. Ao seu olhar, as flores crestavam-se, e os frutos caíam dos galhos, como cortados por uma lâmina.

Aquela maldade do filho do Homem, tão diferente daquele que viera das suas entranhas, atormentava a primeira Mulher. E foi diante desse contraste, que ela, recordada, embora, dos sofrimentos que padecera, chamou, resignada, o companheiro:

— Adão?

O bárbaro acorreu.

E ela, num holocausto:

— Eu vou tomar à minha conta o suplício da maternidade. Todos os nossos filhos nascerão das minhas entranhas... Queres?

O companheiro sorriu, agradecido.

A mulher tomou, então, a seu cargo, a dor da procriação...

— É por isso, unicamente, — concluiu quem me contou esta história, — que o mundo não está povoado de monstros...

LXXXVI

MADEMOISELLE

Foi no largo de São Francisco de Paula que o Leôncio Queiroz viu, pela primeira vez, a Violeta Soutelo. Estava o rapaz à porta do Java, olhando a praça banhada de sol, quando notou, atravessando-a, um gracioso vulto feminino, trajando cambraia branca. Seguiu-a com os olhos e, quando a mocinha ficou de encontro à claridade, e a luz lhe passou através do vestido, o rapaz arreganhou as pálpebras, para ver melhor. E foi como um raio que varou a praça, em perseguição da ninfa que o sol desnudara em público, indo tomar, com ela, o bonde de Cascadura, que aguardava o seu minuto em frente à Luiz de Camões.

Sentados no mesmo banco, apertados um contra o outro, foi fácil ao moço estudante entrar em intimidade com a mocinha. Um solavanco maior havia-os atirado num choque recíproco. Leôncio pedira desculpas, juntando um embrulho que a menina deixara cair.

— Estes bondes obrigam a gente a ser indelicado!... — dissera o rapaz.

Violeta sorrira, vendo-o tão escrupuloso. E quando chegaram no Engenho de Dentro, já o estudante sabia que ela morava naquele subúrbio, trabalhava numa casa de modas da rua Sete e residia com o irmão casado, cuja mulher, sua cunhada, era a mais insuportável das criaturas. Sabia mais: sabia que ela, excepção dos sábados, quando se libertava mais cedo, saía do emprego às sete da noite. E como residiam ambos na mesma direção da cidade, ficou assentado que o Leôncio a iria esperar, todas as noites, no largo de São Francisco, para tomarem, juntos, o mesmo bonde.

Os primeiros dias de conhecimento foram cercados dessa pureza, dessa candura, desse recato dos idílios recentes. Palavras honestas, juramentos de fidelidade, protestos de respeito recíproco povoavam as horas de viagem, até que se separavam. Pouco a pouco, porém, foram demorando a partida para o subúrbio, andando, um ao lado do outro, pelas ruas vizinhas. Tanto progrediram, em suma, nessa familiaridade, que o Leôncio, acreditando-se o mais esperto dos homens, propôs, em certo momento, à companheirinha:

— Não seria melhor que nós conversássemos longe dos olhos desta gente toda?

— No cinema?

— Não; em uma sala, num hotel, na casa de uma família conhecida, num lugar, enfim, onde pudéssemos falar descansadamente, sem esta curiosidade em torno de nós.

— Na casa de sua família? — indagou, ingenuamente, a mocinha, com os olhos muito negros, muito inocentes, no rosto do rapaz.

— Sim; podia ser na casa de minha família. Eu pediria uma sala, e tu entrarias, indo conversar comigo longe de qualquer indiscrição.

— Se é assim, eu vou... — concordou, ruborizada, a menina.

No dia seguinte, andou o Leôncio acima e abaixo, atrás de um cômodo à hora, nos recantos mais suspeitos do Rio. Alugou-o para as sete e meia da noite, pagou adiantado, mesmo sem ver o ponto da casa onde ficava, e, à hora combinada, salta de um taxi no jardim da Glória, tendo ao braço, muito confiante, e perfeitamente serena, a candura da Violeta.

Em um recanto do largo, puxou-a para dentro de uma porta fracamente iluminada.

— É aqui, informou.

E começaram a subir a escada, degrau por degrau. Em cima, o rapaz empurrou uma porta de corredor, que fez gritar uma campainha.

Passos de pluma, apareceu, discreta, uma senhora risonha, dona da casa.

— É lá em cima, doutor. A primeira, à direita, — informou a matrona.

Voltou-se para a menina e saudou:

— Boa noite, Violeta! Sobe...

E, outra vez, para o Leôncio, indicando a escada:

— É o 8, doutor; a Violeta sabe onde é.

LXXXVII

O PAPAGAIO PLAGIÁRIO

Fugidos daqui e dali, das casas de família em que haviam sido criados, os papagaios faladores chegaram a ser em tal quantidade, que formaram, na mata, a Academia dos Trepadores. Para fazer parte da gloriosa instituição, o papagaio devia patentear as suas qualidades de orador infatigável, recitando discursos, poemas, romances, com a máxima celeridade. Uma vez eleito, o “trepador” entrava solenemente para o grêmio, o qual se reunia uma vez por semana para a exibição de trabalhos em prosa e verso.

Reunidos, naquela tarde, entre as folhas de um castanheiro secular, no verde das quais mergulhavam o verde das suas penas, subiu ao galho mais alto, transformado em tribuna, um “louro” de meia idade, que ali chegou, penosamente, com o auxílio do bico e dos pés. E começou a falar:

— Senhores papagaios: não é de hoje que eu me bato contra o analfabetismo, que desvaloriza, dia a dia, os indivíduos de nossa espécie. Eu proporia, por isso, que mandássemos os nossos filhos fazer um curso de ciências e literatura nas casas de família entre os homens, afim de podermos ter, no futuro, uma verdadeira nação de trepadores.

E com ênfase:

— Porque o analfabetismo, confrades, é a névoa que tolda o sol do entendimento!

A essas vozes, outro papagaio, muito verde, de encontros amarelos e encarnados, aparteou:

— Perdão! o nobre colega está emitindo opiniões minhas. Tudo isso é meu, e o meu honrado colega encontrou no meu último livro de crítica social.

— É seu? — estranhou o orador.

— Sim, senhor.

— E estava no seu livro?

— Exatamente. Palavra por palavra.

— Ah! — fez o papagaio que estava na tribuna. — Então é por isso que está saindo assim.

E com ironia:

— É natural. O cérebro no papagaio é como o estômago em certos animais: digere o que é bom e vomita, intacto, o que não presta!

E riçou as penas, satisfeito.

LXXXVIII

PAVOR DO RIDÍCULO

Pouco a pouco, foi se manifestando em dona Florisa aquela moléstia inexplicável. Primeiro, fora um pontinho vermelho, como de brotoeja, à altura do fígado, na base da derradeira costela. Em seguida, esse ponto se foi desenvolvendo, ampliando, estendendo, até que tomou o tamanho, justo, de uma prata de dois mil réis. E o pior de tudo, era o característico dessa moeda, no centro da qual se viam os traços caricaturais do coronel Bastos Arnoso, marido de dona Florisa, a quem ela não havia mostrado, entretanto, esse reflexo da sua figura.

— É interessante, isto! — matutava a moça, a mão no queixo, sacudindo a cabeça. — Como foi para sair, agora, o rosto do Bastos na minha pele?

E com ironia:

— E logo onde!...

Envergonhada de si própria, a jovem senhora procurou, por si mesma, combater aquela erupção inconveniente. À noite, fechado bem o banheiro, tirava toda a roupa exterior, ficando apenas com a camiseta de dia. Libertas da pressão do colete, as carnes fortes dilatavam-se, repelindo o linho claro, pregueado pelo contato do corpo. A lâmpada acendia-se no teto, como o olho da consciência, e dona Florisa começava a queimar, com um pincelzinlio miúdo, os pontos mais vivos, mais vermelhos, daquela mancha irreverente. E não sabia mais o que fizesse, quando resolveu, uma tarde, participar o caso ao marido.

O coronel mudava o pijama, quando dona Florisa, que acabava de sair do banho, o cabelo arrepanhado na nuca, o roupão achegado ao corpo claro, de linhas firmes, entrou na alcova, arrastando as chinelas de lã.

— Sabes, Antônio, que eu estou com uma coisa esquisita?

E abrindo o roupão, discreta, no lugar da erupção:

— Olha aqui.

Bastos Arnoso olhou, por um instante, a mancha irritada.

— É esquisito!... — fez, intrigado.

— É preciso tratar disso, compreendes? E logo com minha cara, os meus traços fisionômicos!... O melhor, é sairmos do Rio, só voltando aqui quando estiveres boa.

Passeou de um extremo a outro do quarto, aborrecido:

— É o que tens a fazer, sabes?

Olhou em torno:

— Sim; que eu não estou para, amanhã ou depois, os meus amigos se estarem rindo de mim!...

E pôs-se a andar de um lado para outro, passadas largas.

LXXXIX

OS GÊMEOS

Romualdo Botelho fora, desde menino, uma dessas criaturas ingênuas que, por mais que arregalem os olhos, não conhecem o mundo. Isso não impediu, entretanto, que ele encontrasse para esposa uma formosa rapariga, a Lilina Cotrin, a qual lhe aceitara a mão e o nome não só pela atração da sua imponente figura de cavalo de tílburi, como pelo ímã da fortuna que o pai lhe deixara, avaliada em vários milhares de contos.

Criado na abundância, e educado sob a vigilância materna, o moço capitalista ignorava alguns dos segredos da Natureza, e, mesmo, alguns dos fenômenos que o próprio instinto revela aos seres inferiores. Isso não impediu, entretanto, que ele, naquele dia, ali estivesse, agitado, aflito, nervoso, à espera do filho que a esposa há tempos lhe prometia.

O movimento, na casa, era enorme. Entre a alcova, onde a enferma estava com o médico, e a cozinha, onde se achavam diversas senhoras da vizinhança, era um ir e vir de jarros com água quente, de bacias com algodões e panos servidos, o tumulto, enfim, das grandes atrapalhações. E tudo isso entre os gemidos, ora agudos, ora cansados, da pobre moça, que chamava pelo marido, pela mãe, pelo pai, por todas as pessoas da família.

Fechado no seu gabinete, onde só havia almofadas, bibelots e outras futilidades elegantes, o Romualdo andava para um lado e para outro, sem compreender nada, absolutamente, do que ia lá por dentro. O tapete carmesim, muito fofo, absorvia-lhe o ruído dos passos, emprestando-lhe à figura nobre e pálida o aspecto dos fantasmas inofensivos.

Em certo momento, os gemidos de dona Lilina cessaram; e o que se lhe seguiu foi uma choradeira de crianças, que foi arrancar um sorriso doce, e uma lágrima de felicidade, ao rosto de granito daquele pai.

Ao fim de meia hora, a porta abriu-se.

A ventura do rapaz havia chegado em duplicata: a esposa tinha dado ao mundo duas crianças, dois meninos robustos e lindos, que o dr. Bulhões, com todo o carinho, tratou de lavar, vestir, e apresentar, um em cada braço, ao Romualdo.

Ao ruído da fechadura, o rapaz, que sentara por um instante, pôs-se de pé, o espanto nos olhos, o rosto iluminado pelo sorriso mais venturoso da sua vida.

— Meu filho!... — gemeu, o coração aos pulos.

E vendo o médico aparecer com duas crianças, uma de cada lado:

— É para escolher?... É?...

XC

O RETARDATÁRIO

Uma particularidade que Allan Kardec e William Crooks não esclareceram, é se o espírito ao desencarnar, leva para a outra vida as qualidades e os defeitos que apresentava neste mundo. Não seria, talvez, difícil de apurar, se o indivíduo indolente ou mentiroso nesta vida o era na eternidade, conservando, mesmo após o abandono da matéria, os vícios e as virtudes que praticava na terra.

Qualquer que seja a solução dada a essa consulta, ela resolverá, de modo seguro, o problema da imortalidade. Se o homem preguiçoso o é nesta vida e na outra, é, então, porque a preguiça não está na carne, mas na alma. E se acontecer o contrário, isso provará que o espírito não leva deste degredo senão a essência inalterável de que é feito, desprezando aqui mesmo, como quem limpa os pés antes de entrar em casa, os seus vícios, os seus erros, os seus defeitos humanos.

Um caso há, entretanto, muito recente, que talvez sirva de elemento valioso no esclarecimento definitivo do caso. Saudosíssima do seu marido, o famoso advogado e mundano dr. Petronilo Pedreira, dona Sinhazinha recorreu ao espiritismo, afim de entrar em comunicação com o esposo, no correr de uma sessão. Admitida em um dos grêmios espíritas do bairro, explicou a ilustre senhora o seu caso ao encarregado da sala, e sentou-se, à espera do fenômeno. Cinco vezes, o diretor da solenidade chamou o espírito de Petronilo; e seis vezes apresentaram-se outros espíritos diferentes, que tomavam posse do medium, sem que o do saudoso advogado aparecesse.

Em certo momento, porém, o medium estremeceu. Indagando o nome do irmão que se revelava, este respondeu:

— Petronilo Pedreira!

A esse nome, esperado quase há duas horas, e vindo em sexto lugar, a viúva fez um muxoxo, num sorriso.

— Qual! Sempre o mesmo, este meu marido!

E com bonhomia: OBS: (a palavra bonhomía existe em espanhol, e bonomia em portugês. Resta saber se a grafia realmente mudou ou se ele escreveu em espanhol)

— Nem no outro mundo perdeu este costume de chegar fora de horas!...

XCI

O VENTRÍLOQUO

A originalidade do Benevides, terceiro anista de medicina, era ser ventríloquo. E era uma gargalhada, na aula, quando, à chegada do professor Nascimento Botelho, a voz do lente se erguia, grossa, pesada, poderosa, do meio das cadeiras, chamando qualquer dos alunos da turma:

— Sr. Benedito Marques Viana!

— Presente! — respondiam, com voz absolutamente igual à que chamava,

Óculos no nariz, o catedrático passeava o olhar pelos bancos, procurando-se a si mesmo, espantado com a semelhança do vozeirão. O vendo o Benevides atento sobre um tratado de propedêutica, os olhos baixos, a boca fechada, jamais descobriria nele o imitador prodigioso, se um colega não o tivesse apontado, um dia, como autor da pilhéria.

Essa faculdade do estudante granjeou-lhe, naturalmente, a admiração e, particularmente, a amizade da turma. Não havia festa em casa dos companheiros para a qual não fosse convidado o Benevides. E era por isso mesmo que ele viajava, àquela hora, no rumo de Itaboraí, onde ia passar alguns dias de férias em companhia do Altino Fernandes, seu colega de ano, cujo pai possuía uma excelente propriedade a doze minutos da via-férrea.

Maleta na mão, capa de borracha no braço, chegou o rapaz ao portão da fazenda, no qual se achava, no momento, o Basílio, molecote de uns dez anos, de dentes muito alvos, carapinha agarrada ao casco da cabeça, e cujas canelas, coçadas a todo instante, já se achavam cinzentas.

— É aqui a “Bela Vista”, do coronel Fernandes? — indagou Benevides, descansando a maleta na cancela.

— É, sim, senhor, — confirmou o molecote, gentil. — O senhor vai por aqui, dobra acolá, naquele mulungú, passa um coqueiro que tem à direita, e é logo adiante, atrás do cercado. Não tem que errar.

— Isso é muito complicado, rapaz, — confessou o Benevides. — É melhor vires comigo. Tu não és da casa?

— Sou, sim, senhor. Eu sou filho da cozinheira dele.

— Então, vamos.

O Basílio ao lado, caminhava o estudante pela estrada poeirenta, batida de novo, quando, para quebrar a monotonia da viagem, resolveu fazer uma pilhéria com o moleque. Perto, à margem do caminho, ruminava, à sombra de uma grande mangueira, uma vaca da fazenda.

— Aquela vaca é mansa? — indagou o estudante.

— Demais! — informou o pretinho. — É a “Crioula”. É mansa como um carneiro.

— E fala?

O moleque olhou-o, achando graça.

— De que é que estás rindo? — fez Benevides, sério. — Nunca ouviste bicho falar? Queres ver, vem cá.

E aproximando-se da vaca, estacou, indagando:

— Então, “Crioula”, como vamos?

— Bem, obrigada! — respondeu, cava, uma voz bovina, interior, que espantou o moleque.

— O coronel Fernando é muito bom contigo?

— Às vezes, — tornou a voz, que o Basílio via, ouvia, percebia partir da garganta da vaca. — Mas, às vezes, me maltrata um bocado.

— Até logo, “Crioula”!

— Até logo, doutor!

Olhos arregalados, o moleque olhava com assombro aquele homem prodigioso, que fazia falar os animais, quando, adiante, encontraram, pastando, um cavalo de sela.

— Bom dia, amigo! — saudou o estudante.

E guturalmente, com a boca fechada, numa voz que era um relincho:

— Bom dia, doutor!

— Que é que fazem contigo por aqui?

E o cavalo:

— Eu sofro muito; levo espora, tomo chicote, e quase não me saem do lombo!

Cada vez mais espantado, o calunga olhava Benevides, quando enxergaram o telhado da fazenda.

— É ali! — informou Basílio, a mão estendida.

Antes de chegarem à casa havia, porém, um tamarineiro enorme, frondoso, colossal.

Aproximaram-se dele, e Basílio ficou frio: à sombra da grande árvore estava mastigando folhas, uma cabra muito mansa, que não se afastava das cercanias do alpendre. Ao percebê-la, o moleque passou à frente do hóspede, interpondo-se entre ele e o animal.

— Não pergunte nada p’ra essa cabra não, moço! — pediu, nervoso, atravessado entre os dois.

E com o susto nos olhos, no rosto, na fisionomia toda, como quem teme uma indiscrição:

— Essa cabra é mentirosa!...

XCII

O CORRETOR

(SOBRE UMA “CHARGE” DE ZIG BRUNNER)

Magro, o nariz recurvo, os ossos do rosto furando, quase, a pele macilenta, Isaac Ben-Ahon esperava a morte com tranquilidade. O crânio, pelado e amarelo, tinha a cor de marfim antigo, exposto às intempéries. Apenas a barba, enorme, comprida, abundante, denunciava, nele, fartura, derramando-se-lhe pelo peito esquelético, até à altura do estômago. As mãos, pelas quais tinham passado toneladas de ouro amoedado, repousavam-lhe agora sobre o ventre, ósseas, veiadas, como duas raízes que se entrelaçassem no fundo da terra. A boca, funda e sem dentes, desaparecia no emaranhado do bigode amarelado, que o tempo encardira como um punhado de palha atirada ao relento.

Deixado ali, na cama pobre, cujo colchão tinha mais libras esterlinas do que a caixa-forte de muito Banco da praça, o velho usurário judeu só abria os olhos miúdos quando alguém entrava, de leve, no quarto. E acabava de abri-los mais uma vez, quando Raquel, sua nora mais moça, que entrara na ocasião, lhe comunicou, a voz triste:

— Pai, está aí Abraão Raobed, que te vem visitar. Posso mandá-lo entrar?

Um gesto de mão, como o de quem chama quem se acha afastado, deu a entender à judia que o visitante podia penetrar no aposento. E um minuto depois, a porta se abria, para dar passagem a outro tipo da mesma raça, barba negra e cerrada, olhos escuros e vivos, rosto moreno, e todo de preto, menos por luto do que, talvez, por economia.

— Vais melhor, Isaac? — foi indagando o recém-chegado, como quem pretende animar um moribundo.

O ancião moveu, apenas, a cabeça, como quem nada mais espera da vida.

Abraão tomou-lhe a mão óssea e fria entre as suas, como para emprestar-lhe calor. E olhava o seu antigo sócio da casa de empréstimos, quando o velho abriu os olhos para gemer, numa queixa:

— Morro aos 95 anos, Abraão; eu, que sempre pedi ao nosso bom Deus que me tomasse aos 100!

A essas palavras, os olhos do visitante faiscaram.

— Era preciso que Jeová fosse tolo, Isaac, — fez, um sorriso enigmático ao canto dos lábios finos.

E com a experiência do corretor de títulos:

— Como querias que ele te tomasse mais tarde, a 100, se ele te pode tomar, agora, a 95?

XCIII

A ANTROPÓFAGA

O Antoninho andava pelos oito anos, e já lia correntemente, quando lhe puseram nas mãos, no Colégio Borborema, a História do Brasil, de Lacerda. Era um livrinho cartonado, de capa cinzenta, e dorso de fazenda preta. À primeira vista, o menino implicou com o volume; ao manuseá-lo, viu, porém, que tinha figuras, umas de paisagens, outras de combates; e outras, ainda, constantes de simples retratos, de pessoas de que ele ouvira falar vagamente.

De todas, as que mais o haviam impressionado, eram, entretanto, um retrato de mulher, com uma cabeleira muito bonita, e que se chamava Tomaz Antônio Gonzaga; e uma horrível cena sanguinária, em que os indígenas, famintos de carne, matavam um bispo, chamado Sardinha. Eram contrastes que intrigavam o menino, o qual, uma tarde, atrapalhado com tudo aquilo, perguntou, interessado, ao dr. Clodoaldo:

— Papai, há homens que comem gente?

— Há, meu filho, — informou o conhecido advogado. — Há tribos de índios que comem carne humana. Aqui mesmo no Brasil, houve, e ainda há, indígenas que comem os seus semelhantes, fazendo isso com grande prazer.

E para ilustrar o menino:

— Aos indivíduos que comem o seu semelhante, dão o nome de antropófagos.

Repetiu, acentuando sílabas:

— An-tro-pó-fa-gos!

Olhos muitos esbugalhados, como querendo aprender de uma vez todos os mistérios da vida, o Antoninho ouvia em silêncio a explicação paterna. E foi em silêncio que se retirou, ruminando uma infinidade cie conjecturas em relação a tamanha monstruosidade.

À noite, sonhou o menino com Dom Pedro Fernandes Sardinha e com os seus companheiros de martírio. Tangapema na mão, canitar à cabeça, os índios dançavam em torno dos prisioneiros, e dele Antoninho, exatamente como no quadro da História do Brasil, de Lacerda. E quando acordou, todo ele era suor frio, num tremor de meter pena.

Durante muito tempo, aquela cena não saiu da imaginação do menino. E estava a esbater-se nos horizontes da memória, quando, de regresso do colégio, enveredou, uma tarde, pelo jardim de uma casa, para onde havia caído a bola de borracha com que vinha brincando. A construção era baixa, antiga, e, como a janela estivesse semicerrada, o pirralho pôs-se nas pontas dos pés, e olhou para dentro. De repente, empalideceu, e, com o tremor que lhe deu nas pernas, quase cai. Fez, porém, um esforço, olhou de novo, e, branco, o terror nos olhos, desandou numa carreira desabrida.

Ao penetrar em casa, quase não podia falar.

— Ah!... papai!... Uma an... tropó... faga!... — exclamou, mais morto do que vivo, abraçado ao dr. Clodoaldo.

E cansado, quase sem fôlego:

— Ali... papai... na casa... do canto... Eu vi!

E horrorizado, fechando os olhos miúdos e negros, à simples lembrança do quadro:

— A mulher... estava... comendo um homem!...

XCIV

O ANTI-PAPELISTA

A rua Primeiro de Março dormia, afogada em silêncio, àquela hora da madrugada. Apenas de longe em longe, ressoava, quebrando a quietude da noite sem estrelas, o barulho rolante de um bonde, rumo da praça Quinze. Guardas noturnos trilavam, de esquina para esquina, despertando uns nos outros, com aquele apito, o instinto da solidariedade.

Sentados à muralha do cais Faroux, próximo a um combustor de claridade violenta, dois indivíduos olhavam, abrindo-a como as duas asas de um ganso, uma folha da tarde. E liam, os dois, ao mesmo tempo, a notícia do movimento cambial, em que se assinalava a cotação do dólar, que estava a 10$400, quando um deles se pôs de pé, convidando:

— Vamos! Está na hora!

Mãos mergulhadas no bolso, boné puxado para cima dos olhos, cigarro ao canto da boca, eram os dois, o tipo clássico do salteador. A uma esquina, pararam, espreitando. E como o guarda apitasse ainda mais longe, coseram-se com a parede, aproximando-se da porta lateral do grande estabelecimento bancário.

— Dá-me os ferros — pediu o mais forte dos dois.

O outro, um espanhol magro, franzino, tipo de tuberculoso, enfiou a mão pelo cós da calça, arrancando de lá um maço de chaves. E não se haviam passado cinco minutos, quando os dois estacaram, dentro, diante do cofre forte.

Meticulosos, puseram no chão o material que traziam, acenderam uma pequena lamparina de azeite, experimentaram o maçarico e iniciaram o trabalho, para destruir a fechadura. E trabalhavam, já, havia duas horas, quando o ferro estalou, anunciando a abertura da caixa forte.

De pé, o suor a escorrer-lhes do rosto cobreado, os dois celerados puxaram, com força, a porta de ferro. E entreolharam-se sorrindo, à claridade dúbia da lamparina.

O primeiro a entrar foi o sujeito corpulento, que manejava os instrumentos. Dentro do cofre, a lamparina na mão, inspecionou, em torno. Emaçadas, empacotadas, as cédulas de cem, duzentos e quinhentos mil réis alinhavam-se, tendo cada maço um papelito, com a importância assinalada.

Eram centenas, milhares de contos de réis, em papel.

Ante essa descoberta, o gatuno estremeceu. Mordeu o beiço, nervoso, e, de súbito, virando para o companheiro:

— Estamos roubados, Martinbo!

E olhando, indiferente, os maços de notas, ao mesmo tempo que procurava, apressado, um dólar ou uma libra, por trás da montanha de cédulas:

— Será possível que não haja dinheiro nesta casa?

XCV

A SABEDORIA DO CZAR

Não obstante a sua magnanimidade, o Czar Ferdinando Ostrogoff, que figura na história sob o nome de Ferdinando, o Grande, vira-se na contingência de ser severo com aqueles dois criminosos, encontrados aos beijos, em carícias fora de todo o propósito, na igreja de São Nicolau, por trás do altar onde oficiava, naquela manhã, o padre Miguel Zabonaleff.

— É o maior dos sacrilégios da terra, — bradava, indignado, o Czar, — e a maior das penas será pequena diante de Deus. Hão de ser, pois, enforcados, esta tarde mesmo, no pátio do templo, diante da população!

Calmo, olhos baixos, o moço Atanásio não teve no rosto, sequer, uma contração de medo, de susto, de pavor. Ao seu lado, quase sorridente, Sofia, a sua companheira de pecado, nem moveu, ao menos, os lábios, num pedido de perdão. Espantado com aquela indiferença diante da morte, o Czar insistiu, aumentando a pena:

— Não se arrependem do crime que praticaram? Pois bem. O castigo será agravado: em vez de enforcamento, serão atirados aos ursos e aos lobos, para serem espatifados. Que não lhes fique nem a alma!

Embebidos na felicidade de horas antes, Atanásio e Sofia sorriam, como se aquilo não fosse com eles. E foi ao vê-los tão impassíveis, tão serenos, tão indiferentes, que o último dos Ostrogoff, o grande Ferdinando, que era filósofo, conhecedor profundo do coração humano, teve uma ideia.

— Não se penitenciam do pecado cometido? — rugiu, agitando a barba negra, que lhe caía até o peito. — Pois bem: o castigo que lhes imponho é de uni-los, pelo resto da vida, pelos laços indestrutíveis do casamento! Ouviram?

A essas vozes, os dois acusados estremeceram, como se uma pilha elétrica os sacudisse, ao mesmo tempo. E foi trêmulos, os olhos em pranto, as mãos juntas, que se atiraram, humildes, aos pés do senhor de todas as Rússias, implorando, gemendo, clamando:

— Não! Senhor! Não! Piedade! Tem piedade de nós! Nós nos amamos demais, senhor! Não queiras acabar com este amor, que é a nossa glória, o nosso orgulho, a nossa vida!...

E agarraram-se às mãos do Czar, pedindo a morte.

XCVI

O CASTIGO DE FAUSTO

“A injeção das glândulas não pode ser tentada em muitos casos. Uma pessoa que sofra de arterioesclerose bem adiantada, por exemplo, não resistirá aos seus efeitos. A nova juventude ser-lhe-ia fatal. O ímpeto de vida ela o sentiria, sim, com o júbilo da mocidade, com a esperança, com o desejo. Como, porém, isso aumentaria, forçosamente, a pressão do sangue, fácil é compreender-se que a causa dessa vida nova agravaria o mal. Sua juventude seria como um relâmpago anunciador da morte”.

Palavras do prof. Bertarelli, no Correio da Manhã, de ontem.

I

— É a vez do senhor... — preveniu o contínuo, encaminhando-se para um sexagenário vermelho, mãos magras e longas, em que as veias apareciam à flor da pele, retesadas como tendões.

Passo tardo, fisionomia de fadiga, o ancião penetrou na sala de consultas, onde o dr. Voronoff, corretamente metido no seu avental branco, atendia aos clientes. Do fundo da casa, onde ficava o laboratório, vinham assobios de macacos, gritos roucos de orangos, um barulho sinistro, e apavorante, de floresta americana.

— Já sei o seu desejo, meu caro senhor! É a volta à mocidade.. Não é?.

— observou-lhe, estendendo-lhe a mão amável, o famoso especialista.

Ao fim de duas horas, carregado por dois enfermeiros, era o desembargador Fausto Brandão, da alta magistratura brasileira, conduzido, muito pálido, muito fraco, para o seu landaulet, que o esperava à porta do consultório. E um momento depois, o automóvel partia, conduzindo o enfermo.

II

Decorrido um mês sobre esse episódio, estava o dr. Brisson a vestir-se para sair, quando o desembargador lhe entrou, jovial, pela casa. Fisionomia risonha, olhos faiscantes, face vermelha, maneiras petulantes, parecia um rapaz de trinta. Vestia com a distinção, o gosto, o apuro de um príncipe, ostentando uma pérola na gravata, e, balouçando sobre os botões do colete a rodela faiscante do monóculo.

— Você por aqui? — estranhou o médico, vestindo o jaquetão. — Que é isso? Que novidade há?

— Venho comunicar-lhe uma coisa. Vou casar-me!

— Casar?... — fez o outro, recuando.

E franzindo o sobrolho:

— Casar?... Você?

— E por que não?

— Porque, se você casar, morrerá na noite, mesmo, do casamento. O primeiro beijo custar-lhe-á a vida... Você não sabe, então, que é um esclerótico, e que qualquer emoção forte, qualquer pressão maior das veias, lhe fará rebentar um vaso, e poderá causar-lhe a morte?

— Mas...

— Não diga nada. Eu sei o que você vai dizer. O dr. Voronoff, se lhe prometeu mocidade, não lhe prometeu, nesta segunda mocidade, todas as vantagens da primeira.

— Mas, eu tenho ímpetos, eu sinto desejos!

— A realização desse desejo é, porém, o canto do cisne!

— Doutor!...

— É o que lhe digo, meu velho. O dr. Voronoff deu-lhe a faculdade de desejar, e, mesmo, a de realizar. Mas, a realização é a morte infalível. O seu desejo é moço, tem vinte anos; o seu organismo, isto é, o seu sistema arterial, tem, porém, setenta. O motor é forte, é resistente; o carro não suportará, entretanto, a trepidação do motor! Compreendeu?

III

— O dr. Voronoff está?

— Está, sim, senhor.

— Faça favor de dizer-lhe que está aqui o desembargador Fausto.

Mandado entrar para a sala tão sua conhecida, o magistrado apertou a mão, nervosa, ao notável especialista.

— Doutor! — foi exclamando, a voz trêmula. — É verdade que eu estou rejuvenescido?

— O senhor sabe mais do que eu.

— E eu posso casar-me?

— Ah, isso, não! O senhor ficou moço, graças ao enxerto da glândula do macaco. Mas, como as suas artérias não suportariam a emoção, o senhor vai ficar como moço... solteiro; como celibatário... Entende?

— Ah, doutor, isso, não! Nesse caso, antes a velhice, a decadência, a decrepitude sem desejo. Mocidade sem prazer, sem gozo, não é mocidade: é martírio! é suplício! é tormento!

E olhos fuzilantes, dentes cerrados:

— Doutor, pelo amor de Deus!

E desatando em choro, sacudido pelos soluços:

— Tire a glândula... Sim?

XCVII

ATIVIDADE

Desde menina, fora assim, a Maria Helena. Matriculada na escola pública do bairro, fizera o curso em vinte e dois meses, e com facilidade tamanha que tivera de ficar inativa, cinco anos, à espera de idade para matricular-se na Escola Normal. E uma vez matriculada, passara pelos bancos como se estes tivessem sabão: escorregando.

Em casa, era a mesma coisa. Serviço que lhe fosse confiado, era terminado com uma rapidez assombrosa. Fazia vestidos num dia, camisas numa hora e bifes em quatro minutos.

— Maria Helena, olha a mesa, minha filha! — dizia-lhe, da cozinha, dona Perpétua.

E dentro de alguns segundos estava a mesa posta, com a toalha limpa, os copos lavados, os guardanapos nas argolas, a água no jarro, o paliteiro no lugar.

— É um tesouro, esta filha! — exclamava dona Perpétua, beijando-a nos cabelos.

De um moreno acentuado, cabelos negros e finos, boca vermelha, de mobilidade provocante, Maria Helena era um desses tipos femininos que denunciam, em cada movimento, em cada gesto, uma encantadora vivacidade. Os seus pés miúdos, nervosos, tocavam piano no calçamento. E quando ela passava na rua, os pardais pulavam para cima dos muros ou para o galho das árvores, a cabecita de um lado, os olhinhos curiosos, o biquinho estalando, procurando apreender, de súbito, o segredo daquela agilidade.

Não obstante a pressa com que Maria Helena passava rumo do bonde, o Otávio Gomide, que também andava depressa, conseguiu acompanhá-la e dizer-lhe algumas palavras convincentes. A moça respondeu num sorriso, a perseguição continuou nos dias seguintes, e de tal modo que, ao fim de um mês, estavam noivos oficialmente.

Daí em diante, o Gomide passou a andar menos depressa. Ia com a noiva ao cinema, passeava com ela pela cidade, conduzia-a ao médico, ao dentista, à casa das amigas. E com uma intimidade tão caracterizada que a menina, uma tarde, lhe comunicou:

— Sabes, Otávio? Isso assim não pode continuar. Nós temos que casar este mês. E tu sabes porquê!

O motivo, sabia-o ele. O casamento, porém, só se realizou em janeiro, isto é, três meses depois da observação da noiva. O mês de fevereiro, com o Carnaval, passou. Passou março, com a sua Quaresma. Passou abril com as suas mentiras. Passou maio com as suas flores. Em junho, com o frio, ouviu-se, na casa; choro de criança.

— Meu Deus do céu! que menina incorrigível! — exclamou dona Perpétua, atarantada.

E com os olhos úmidos de contentamento:

— Que criatura apressada! Pois não é que até aquilo que toda gente faz em nove meses, ela faz na metade?...

XCVIII

A PLANTA QUE ESPIRRA

O meu interesse pelo progresso da Humanidade e pelo aperfeiçoamento da vida, não se limita a esse apostolado a que me entrego, soprando a poeira do pecado que tenta conspurcar o límpido espelho da virtude. As artes, as ciências, a literatura, merecem, também, o apreço da minha velhice. Uma observação ou uma leitura que interesse à engenharia ou ao romance, registro-a, ou conto-a, para enviá-la, de pronto, a um engenheiro ou a um romancista da minha amizade. Eu sou, em suma, como esses dementes inofensivos, que percorrem os campos apanhando flores silvestres, com que as moças, na cidade, tecerão, amanhã, ramalhetes artísticos.

Levado por essa mania, cortei, há dias, de uma revista de curiosidades parisienses, uma que, particularmente, me interessou. Era a informação sobre uma planta nova, descoberta no Chile, a qual tosse e espirra, como gente. Para que não perca na tradução, transcrevo aqui, textualmente, a notícia desse fenômeno vegetal, e que é esta:

La plante qui éternue. — Nous savons que les végétaux sont des être vivants, qui respirent comme les animáux. II y a même certaines plantes, telle la dionée gobe-mouches, qui dévorent des- insects. Un botaniste du Chili vient de découvrir une plante bien plus extraordinaire; non seulement elle respire, mais encore, elle tousse et éternue.

Le moindre grain de poussière qui, d’oventure, se pose sur l’une de ses feuilles, le moindre vent qui passe, suffisent pour provoquer une quinte chez cette éternelle enrhumée. La feuille ainsi irritée devient toute rouge; un mouvement spasmodique la secoue à plusieurs reprises, et elle émet un bruit semblable à celui d’un éternuement”.

A notícia dessa planta que, atingida pela poeira, fica toda vermelha, e põe-se, de repente, a tossir e a espirrar, fez-me lembrar imediatamente, do meu ilustre amigo sr. dr. Plácido Barbosa, inspetor geral da Profilaxia contra a Tuberculose.

Com o retalho da revista na mão, corri a procurá-lo. Dei-lhe o papel, que ele leu, com atenção. Terminada a leitura, indagou:

— Que tem isso?

— Não é um caso extraordinário? Uma legítima novidade?

— Novidade?... Qual, nada! — objetou, sorrindo, o consagrado higienista. —

Nós mesmos, aqui, no Rio, já tivemos essa planta. Havia até um exemplar, no Museu.

— Da planta que fica vermelha quando lhe cai poeira nas folhas?

— Exatamente.

— Da planta que tosse?

— Precisamente.

— Da planta que espirra?

— Dessa mesma.

— E a gente pode vê-la? — inquiri, curioso.

— Ah, isso, não! — contestou o dr. Plácido. — É impossível porque o único pé que possuíamos, morreu.

E com tristeza:

— Morreu na gripe...

XCIX

O ETERNO FEMINISMO

O sol acabava de nascer, clareando a planície, quando o coronel João Felício, fazendeiro em Boa-Viagem, passou a perna no seu alazão, o “Ubirajara”, resolvido a vencer aquela distância de quarenta e seis léguas que o separava de Porto-Novo. Ao meio-dia, o animal começou a fraquejar.

— Vamos, “Ubirajara”! — animou o cavaleiro, esporeando o cavalo. — Se você não esmorecer, eu dou a você, no dia da chegada a Porto-Novo, oito litros de milho.

Com essa promessa, o animal venceu, nesse dia, nove léguas de caminho.

Na manhã seguinte, o coronel prometeu ao bicho, antes de partirem, madrugada alta:

— Se você andar bem, “Ubirajara”, eu lhe arranjo uma sela nova, acolchoada de paina, que é uma beleza!

À noite, feitas as contas, o animal tinha andado sete léguas.

Na terceira manhã, o fazendeiro prometeu:

— Se você adiantar bem a viagem, “Ubirajara”, eu deixo você na estrebaria, sossegado, durante uma semana!

Ao anoitecer, o cavalo, que se achava esgotado, tinha vencido, apenas, quatro léguas.

No quarto dia, pela manhã, vendo-se perdido, ameaçado de ficar pelo caminho, o coronel João Felício prometeu ao “Ubirajara”, que mal podia andar, de estropiado:

— Olha, “Ubirajara”: se você fizer uma boa viagem, eu mandarei soltar você na várzea, com aquelas poldras que estão lá.

Nesse dia, à noite, “Ubirajara” chegou a Porto-Novo. Correu vinte e seis léguas.

C

SEDECIAS

Cabelos castanhos e encaracolados, que lhe desciam até à cintura, olhos negros e grandes, rosto moreno e doce, em que o nariz era uma batatinha e a boca um cravo vermelho, a Palmirinha andava pelos oito anos quando a mãe a meteu, impiedosa, no colégio das freiras. Arrancada à companhia filial das suas bonecas e do seu gatinho, a pequenita sentiu bastante a mudança de vida, nas primeiras semanas. Pouco a pouco, porém, se foi acostumando com o novo ambiente, de modo que, dentro de algumas semanas, era com prazer que corria a vestir-se, para que a governante, a Suzana, a levasse para a aula.

Portuguesa de origem, a criada da Palmirinha era um legítimo tipo da raça. Alva, sadia, forte, olhos claros, trazia ainda na face a vermelhidão dos climas frios, e cabeleira abundante que, quando solta, lhe descia quase aos joelhos. A boca era grande, mas bem-feita, munida de dentes vigorosos, que se mostravam, todos, quando a rapariga soltava uma das suas gargalhadas joviais.

O Colégio da Imaculada, dirigido pelas irmãs carmelitas, ficava em Botafogo, perto da praia. Acreditado e honesto, reunia todas as crianças do bairro, estando, por isso, naquele dia, repleto de meninas de sete a doze anos, a quem a freira, a irmã Luiza, explicava, de livro aberto, aquele trecho da história sagrada, referente à sabedoria de Daniel. E lia às crianças, os óculos na ponta do nariz:

— “Entre os judeus cativos em Babilônia vivia um muito considerado, chamado Joaquim, casado com a bela e virtuosa Suzana. Reuniam-se os judeus em sua casa, e dois velhos, nomeados juízes, aí estabeleceram o seu tribunal. Tinha Joaquim um pomar contíguo à sua casa, e ali costumava Suzana ir passear todos os dias, nas horas de maior calma. Os dois velhos o sabiam, e um dia, escondendo-se ambos no pomar, quando Suzana tomava banho, apresentaram-se a ela e, com o maior atrevimento, exigiram que, por comprazer com eles, cometesse um grave pecado. E disseram mais: “Se não consentes, havemos de te acusar, dizendo que te apanhamos cometendo uma ação má”.

Não obstante ser grande o capítulo da História Bíblica em que a irmã Luiza contava às meninas a história em que Sedecias, escondido no pomar com outro juiz de Israel, espiava o banho da mulher de Joaquim, a Palmirinha só chegou à aula depois de acabada a leitura, e quando a freira abria um intervalo para fazer algumas perguntas sobre a matéria deletrada. Era o único meio de verificar se as meninas haviam prestado atenção, e, mais, se haviam compreendido.

Assumindo o seu posto à ponta de uma fila, Palmirinha não sabia, sequer, o que havia sido a lição. Sentou-se, porém, dignamente, e começou a conversar, baixinho, com uma das coleguinhas, quando a irmã Luiza perguntou, no princípio da turma:

— Quem era o velho que ia espiar Suzana, quando ela estava no banho?

Um silêncio assustado pairou por toda a aula. O pavor, mudo, brilhava no olhar das crianças.

— Adiante! — ordenou a freira, mudando o olhar para outra aluna.

E como esta não respondesse, foi mudando:

— Adiante... adiante... adiante...

Na penúltima fila, repetiu:

— Quem foi?

E sem se lembrar que a menina havia chegado depois da leitura:

— A senhora, dona Palmira; quem era o velho que ia espiar Suzana quando ela estava tomando banho?

Vermelhinha, engolindo em seco, os olhos arregalados, visivelmente nervosa, a menina mastigou:

— Era... era...

E numa resolução súbitas

— Era... o vovô!...

CI

A AFOGADA

Foi um alvoroço em Copacabana, quando circulou, na praia, aquela notícia lamentável. A pobre senhora, que sabia nadar muito bem, atravessara a linha de arrebentação, nadando com facilidade. Durante muito tempo foi vista a sua touca azul, flutuando nas ondas. E a moça já estava de regresso daquela aventura, quando levantou os braços, debatendo-se, até que desapareceu entre duas vagas que se aproximavam rolando.

— Ela até nadava bem, — informava um; — com certeza foi alguma cãibra.

— Ou uma síncope, — adiantava outro. — Quem sabe se ela não sofria do coração?

Das pessoas que se amontoavam na praia comentando o acontecimento, poucas eram, entretanto, as que conheciam a morta.

— É uma parecida com a Heloísa, que vinha da rua Ipanema? — indagava uma senhorita morena, os braços cruzados sobre o peitilho do fato de banho.

— É uma que se pintava muito, — informava outra, impiedosa. — Ela é capaz de ter afundado com o peso da tinta!

Enquanto isso, as lanchas cruzavam nas proximidades da praia, lançando redes, procurando o cadáver. Pessoas compadecidas, isoladas ou em grupos, andavam acima e abaixo, olhando a espuma, na esperança de encontrar o corpo, lançado pela força das vagas.

Ouvindo aqui um ajuntamento, ali outro, o Bentinho, filho único da viúva Taveira Mendes, partiu a examinar a praia, procurando a afogada. Passinho miúdo, mas ligeiro, chegou às proximidades da Igrejinha, pulando de pedra em pedra. E estava sobre uma destas, sondando as águas ferventes de um redemoinho, quando viu, fazendo visagens a três palmos da superfície, um corpo humano que ia e vinha, ao sabor das águas irrequietas. Atirado uma, duas, três vezes de encontro à rocha, a infeliz havia rebentado o crânio, do qual jorrava sangue, que tingia as águas em torno. E continuava a sua teimosia macabra, dando marradas no rochedo, quando o Bentinho desandou na carreira rumo do primeiro grupo que se via na praia.

— A moça que morreu está ali! — foi gritando, aflito, a mão estirada, os olhos fora das órbitas.

E ansiando:

— Ali... atrás da pedra grande... Eu vi... é ela mesmo!

— Tens certeza que é ela, menino? — interpelou uma senhora gorda, duvidando.

— É ela, sim, senhora! — garantiu o menino.

E, sério, os olhos escancarados:

— Está até subindo rouge do fundo d’água!...

CII

A CRIADA NOVA

Não obstante o ordenado excelente oferecido nos anúncios, não conseguiu dona Leontina Cordeiro, a jovem e linda senhora de quem o Rio tanto admira os vestidos, arranjar uma criada de confiança e de tato mundano, para o seu gracioso bangalô de Ipanema. Desiludida do esforço, escreveu madame à sua irmã, residente no interior de Minas, pedindo-lhe uma rapariga de bons costumes e de boa aparência, capaz de adaptar-se, em pouco tempo, aos hábitos da cidade. E foi assim que chegou ao Rio, importada pelo dr. Cordeiro, a Maria Alexandrina da Conceição, a quem dona Leontina deu logo o nome oficial de Jeanete, por mais compatível com a intimidade aristocrática de uma família apuradamente mundana.

Alva, olhos claros, dentes magníficos e cabelo abundante, Maria Alexandrina, ou, melhor, mlle. Jeanete, possuía um físico insinuante, capaz de agradar à mais elegante das patroas. Em compensação, era de uma estupidez comovedora; não conhecia os hábitos dos interiores chics, das gentes apuradas no gosto, e não havia dia, nem hora, que não fosse marcada por uma das suas gaffes encantadoras. Certa vez, estava madame Cordeiro na sala de visitas com uma das suas amigas cerimoniosas, quando tocou a campainha, chamando a criada. Maria Alexandrina, isto é, Jeanete, apareceu, a touca de rendas à cabeça, o avental muito alvo, destacando-se sobre o vestido cinzento.

— Traga dois copos d’água, — ordenou madame, interrompendo a conversa.

Momentos depois, voltava a rapariga trazendo, na sua simplicidade de roceira, um copo em cada mão.

— Que é isso, filha? — fez a boa senhora, alarmada.

E repreensiva:

— Eu já não disse a você que, quando eu lhe pedir qualquer coisa, você traga na bandeja?

Esquecido o incidente, passaram as duas senhoras a cuidar de futilidades, de potins, dos retalhos que formam, aos olhos dos que a conhecem, o manto da sociedade.

— É verdade, como vai a “Fifi”?

— A minha cachorrinha? Vai bem. Está tão gordinha! E o teu “Tom”?

— O meu loulou? — fez madame. — Está uma beleza, menina! Está enorme, de gordo! Queres vê-lo?

E para dentro:

— Jeanete?

A rapariga apareceu:

— Traze o cachorro, aqui.

Passaram-se os minutos. A conversa mudou de rumo. E ninguém se lembrava mais do “Tom”, nem do seu destino, quando Maria Alexandrina surgiu, esfogueada, à porta da sala:

— Madame, eu não pude trazer o cachorro, não, senhora.

— Não conseguiste pegá-lo?

— Pegar, eu peguei, sim, senhora — informou a rapariga.

E torcendo as mãos, nervosa:

— Mas ele não quis se acomodar, por nada, dentro da bandeja!

CIII

O PACIFISTA

O Joaquim Jorge da Cunha estava no escritório, somando as parcelas de uma conta-corrente, quando o chefe da casa, o sr. Anibal, o chamou em particular.

— Senhor Cunha, — começou o patrão, — o senhor conhece a minha filha mais velha... Não conhece?

— Dona Alzirinha?

— Sim, a Alzirinha. Pois bem... A Alzirinha, caprichosa como é, tomou uma deliberação que me constrange, mas a que eu me submeto porque, enfim, sou pai... A Alzirinha resolveu casar, e, como seja um espírito original, adiantado, escolheu o senhor para seu marido.

— A mim? — fez o guarda-livros, arregalando os olhos, e levando a mão ao peito, como quem reza o mea-culpa.

— Ao senhor mesmo. E eu fui designado para comunicar-lhe isso, e pedir o seu consentimento.

Aproveitando a estupefação do rapaz, o chefe da firma Anibal de Morais & Comp. continuou:

— É desnecessário dizer-lhe que o que é meu, é das minhas filhas, e que a Alzirinha possui aqui na casa, a juros de 5 por cento, os trezentos contos que o padrinho lhe deixou. E o senhor, casando com ela, será, naturalmente, o dono de tudo isso...

Olhos no rosto do patrão, Joaquim Jorge da Cunha perguntava a si mesmo se aquilo era um sonho ou uma pilhéria. E estava ainda nessa dúvida, quando o sr. Anibal o interpelou:

— Vamos; o senhor quer, ou não quer?

— Eu? Oh! como não? Quero, sim, senhor! — respondeu, num sorriso feliz.

E daí a um mês, uniam-se, efetivamente, na intimidade da família, a “formosa senhorita Alzira Pires de Morais”, filha do “capitalista Anibal Antônio de Morais”, com o sr. Joaquim Jorge da Cunha, “do alto comércio da nossa praça”. Uniram-se, e, cinco meses depois, acalentava o chefe da casa Anibal de Morais & Comp. o seu primeiro neto, rechonchudo pirralho em quem a mãe, e o marido desta, puseram, num ato de justiça, o honrado nome do avô.

Dois anos haviam decorrido sobre o nascimento do Anibalzinho, quando a guerra estalou no velho mundo. Agitados pelo conflito formidável, homens e mulheres não falavam em outra coisa, tomando partido por um dos beligerantes. Todos achavam justa aquela sangueira, aquela carnificina, aquela hecatombe que parecia marcar o derradeiro dia da Humanidade.

Espírito refletido e calmo para o qual o mundo se limitava às composições dos dez algarismos, Joaquim Jorge da Cunha não manifestava, jamais, a sua opinião. E foi estranhando isso, que o sogro o interpelou, um domingo, na presença de outros comensais, à mesa do ajantarado:

— E o senhor, sr. Jorge? Que me diz de tudo isso?

Cabeça baixa, cortando uma asa de galinha, o antigo guarda-livros não levantou o rosto.

— Eu? — respondeu, com os olhos no prato. — Eu não sou nem por um, nem por outro. Tenho horror ao sangue...

Meteu uma garfada na boca e tornou:

— Nunca, na minha vida, derramei uma gota de sangue alheio! Nunca!

E voltando-se para a esposa, que corava, até à ponta das unhas:

— Não é verdade, Alzira?

E virou, sereno, o seu copo de vinho.

CIV

UM, DE CADA...

Rosina Batalha Gomes era ainda uma criança quando o Souza Robledo, encantado pelas suas maneiras infantis, pela criancice de todos os seus modos, a pediu em casamento.

— Mulher — dizia ele — é como papagaio; deve-se comprar o mais novo, e o que não tenha aprendido nada para, então, ensinar-lhe o que convém.

Papagaio mais novo e mais ingênuo do que a Rosina, não podia haver. Saída do colégio ainda no segundo ano, não havia adquirido ali, com as amiguinhas inconvenientes, um único vício, ou qualquer dessas maneiras que são, às vezes, a semente da corrupção, no espírito feminino. Era bela e boa; e, além de boa, de uma ignorância encantadora.

Firme nas suas teorias, de que a mulher vale mais pelo coração do que pela inteligência, e de que a instrução é mais nociva do que a brutidão natural, tinha o Souza Robledo orgulho daquilo de que outro marido, nas suas condições, teria vergonha. Nesse orgulho, fazia, mesmo, questão de que se soubesse que a sua Rosina, em matéria de estudos, ignorava até que a Terra era redonda, não sabendo, sequer, o seu papel na criação.

Conservada dessa maneira, mme. Robledo não deixava, contudo, de frequentar a sociedade. Ia aos bailes, aos teatros, às recepções diplomáticas, espantando muitas vezes, pelo seu porte majestoso e pelo brilho das suas toilettes, a multidão inteligente que a cercava.

Foi em uma destas que sofreu aquele susto, que a fez sair às pressas do salão, pedindo ao esposo que a levasse, imediatamente, para casa.

Cintilante de joias, um sorriso de candura e de tentação ao canto da boca polpuda, sorria mme. Robledo aos anjos invisíveis, acompanhando com os olhos as damas que iam e vinham nos seus vestidos faiscantes, quando ouviu, a seu lado, uma conversa cochichada, e que, exatamente pelo segredo, pelo tom de mistério de que era cercada, chamou o seu interesse. Eram duas senhoras, mme. Gomide e mme. Santos Botelho, que aludiam à ausência, naquela festa, de uma amiga comum.

— Ela não podia vir, mesmo; ainda não tem quarenta dias, — informava uma.

— E depois, nas condições em que foi: eram duas crianças!

— Duas?

— Então? Um menino e uma menina. São uma belezinha, os dois!

A Santos Botelho riu, um risinho de canalha.

— Também, minha filha, — obtemperou; — só podia ser, mesmo, dois.

E perversa:

— Um do marido e outro do Castrinho!

Não obstante a risada que orquestrou essas maldades, Rosina Robledo quedou-se, pensativa, o coração assustado. Nervosa, aflita, visivelmente impressionada, pediu o braço ao esposo, enfiando apressadamente, com ele, no landaulet iluminado, cujas lâmpadas mandou apagar.

Ao chegar em casa, atirou para um lado a capa vistosa, e, mesmo vestida, o diadema de brilhantes faiscando no ouro dos cabelos, atirou-se, de joelhos, aos pés do marido.

— Justino, pelo amor de Deus, tem pena de mim! — gritou, desatando em soluços.

Atônito, o marido segurou-lhe as mãos, tentando levantá-la.

— Que desgraçada que eu sou, Justino! ó meu Deus, que punição!...

E rebentando em lágrimas, numa horrível crise de choro:

— Eu vou ter cinco filhos de uma vez, Justino!...

CV

EDUCAÇÃO AMERICANA

— Quando o Gabriel tiver doze anos, — dizia, com ênfase, o dr. Bonifácio Benevides, — eu o mandarei para um colégio, nos Estados Unidos. Quero-o educado à americana: livre, solto, longe da família!

Durante quatorze anos, dos doze aos vinte e seis, viveu, realmente, o Gabriel na grande República da outra parte do continente. Com os trezentos dólares da mesada, conseguiu alguns conhecimentos de mecânica, e saiu do colégio. E dos dezoito anos aos vinte e seis, não fez senão dançar, beber, e corromper-se, desbaratando liberalmente os recursos que o pai lhe mandava.

Entregue a si mesmo, sem a menor noção de família, Gabriel Benevides resumia o seu mundo, em Nova-York, aos cabarets que frequentava. A cidade, o país, o universo, não passavam, na sua opinião, de cabarets maiores ou menores, com mulheres que gastavam e homens que pagavam e em que dominava, sempre, aquele que tinha dinheiro no bolso.

Compreendendo a vida por esse modo, não podia admitir costumes diferentes. Acordando ao entardecer, tomava o seu banho, almoçava, e tocava-se para as casas de perdição, sentando-se à mesa do jogo. E quando já havia, com os seus “passes”, recheado a carteira, saía para as salas em que dançava, escolhendo, aí, a mulher do seu agrado.

Determinada a preferência, dançava duas ou três vezes, e, no fim, indagava, sem preâmbulos:

— Onde é o teu quarto?

— É o 28! — informava a cortesã, dando-lhe esse, ou outro número.

— Vamos lá! — convidava.

E aí ficava algumas horas, ou até de manhã, quando se retirava para o hotel, deixando à mesa da cabeceira alguns dólares, de acordo com os lucros transitórios do dia.

Foi nessa vida, e conhecendo o mundo unicamente sob esse aspecto, que o Gabriel Benevides recebeu, em Nova-York, uma carta do pai, convidando-o a regressar, quanto antes, ao Brasil, onde era indispensável a sua presença, para venda de alguns bens da herança materna. Ademais, era, já, tempo de encaminhá-lo em negócios vantajosos, convindo, portanto, fazer, em torno de seu nome, um certo barulho. Para isso, ia promover uma festa, um grande baile, a que compareceria a alta sociedade brasileira, e que seria realizado no dia, mesmo, da sua chegada.

Chamado assim, Gabriel embarcou. E saltou no Rio às sete da noite, no momento em que, o bairro todo, as famílias das relações do desembargador já se apresentavam para a grande festa mundana.

Enriquecido com as suas fazendas do Rio Grande o dr. Benevides, que se aposentara na magistratura, gozava das simpatias que a fortuna sempre acarreta. Viúvo, não quis dar o baile no seu palacete; fê-lo, porém, nos salões aristocráticos do Clube dos Cavalheiros, o famoso grêmio elegante, o qual fervilhava, horas depois, do que havia de chic, de distinto, de mundano, nas altas camadas sociais.

No meio de tudo aquilo, Gabriel ficou deslumbrado. Nunca vira um baile com tanta gente jovem, com tanta senhora bonita. Mais que todas, porém, o encantara, com os seus olhos muito negros, a sua boquita vermelha, e o seu colo moreno, uma das senhoritas, que o pai lhe apresentara. Dançou com ela o primeiro shimmy; dançou o segundo. No terceiro, não pôde mais: vascolejou o bolso, examinando a reserva de dólares, e chegou a boca ao ouvido da moça.

— Miss? — soluçou.

E com os olhos virados:

— Onde é o seu quarto?

CVI

O RATO

Hermógenes Boto, funcionário público em Belo-Horizonte, havia prometido a dona Pérola, num encontro na Avenida, aparecer em sua casa, em Botafogo, afim de receber umas encomendas para a família.

— Não vá sem se despedir de nós, ouviu? — ordenou, a cabecita de um lado, o sorriso jovial, o dedinho enluvado, em frente ao Artur Napoleão.

Em Minas, ouvira o Hermógenes, em uma roda de rapazes, que aquela criaturinha tão doce, tão risonha, não procedia honestamente. Vivia com o esposo, era certo, mas as despesas da casa eram custeadas por dois indivíduos de fortuna, que lhe davam conforto, luxo, dinheiro. E era mais para tirar a limpo essa notícia do que para receber as encomendas que ele ali estava, encadernado de novo, botina polida, perfumado e empoado, a apertar, com o dedo frio, o nariz sonoro daquela campainha da porta.

A sala em que o Hermógenes fora recebido era solene, grave, majestosa. Tomava-a toda, alcançando os quatro cantos, um grande tapete verde, sobre o qual as almofadas brancas, pretas, vermelhas, amarelas e azuis, eram como batráquios impassíveis à tona de um tanque maravilhoso. Aqui e ali, como ilhas de flores, as maples cobertas, também, de almofadas de seda. E mais longe, a um canto, como um promontório convidativo, o divã enorme e fofo, que era, talvez, o trono misterioso do Pecado.

O rapaz olhava, minucioso, aquele cenário de teatro, que a sua imaginação povoava dos personagens desconhecidos de que lhe haviam falado em Belo-Horizonte, quando o reposteiro azul e ouro se moveu para emoldurar, de súbito, a figura luminosa de dona Pérola.

— Ah! é o senhor?... — fez, num contentamento de boca e de olhos, encaminhando-se para o moço visitante, que se pusera, de repente, de pé.

A rapariga estava, na sua simplicidade, deslumbrante. Vestia um quimono de seda azul, avoejado de cegonhas de ouro, e era toda frescura, graça, alegria matinal, com aquelas meias cor de carne a emergirem, tentadoras, dos dois sapatinhos de prata. Repuxado por um alfinete de brilhantes à altura do colo, o roupão leve moldava, pecaminoso, dois seios pequeninos e livres, que eram como passaritos abandonados com fome, e cujos pais houvessem fugido.

Trêmulo, nervoso, perturbado, Hermógenes esperava dona Pérola, a mão estendida para a saudação cordial, quando a moça soltou um grito, e precipitou-se, na carreira, em direção ao divã.

— Um rato!... — gritou, saltando para cima do móvel, onde ficou a sapatear, gritando, os olhos fora das órbitas, a fisionomia de espanto, segurando com as duas mãos o quimono, que levantava, na sua aflição, até acima das ligas cor de rosa, enfeitadas de flores pequeninas.

Atarantada com o grito, a ratazana, que entrara por uma das portas, saíra logo pela outra, sem que o visitante, deslumbrado com a visão que lhe surgira, desse pela sua presença.

— O senhor viu o rato? — indagou a moça, descendo do divã, mais serena, o beiço ainda branco.

— Não, senhora, — confessou o rapaz.

E baixando os olhos, vergonhoso:

— A senhora não deixou...

CVII

DISTRAÇÃO

Até os doze anos, era a Carmen uma menina comum, sem exageros de estatura ou de peso. Com o sarampo que, nessa idade, a assaltou, começou, porém, a engordar. E de tal forma, com tal intensidade, que, aos quinze anos, pesava sessenta e quatro quilos, e era, com as suas banhas sem proporção, a tortura da costureira.

Atribuindo aquele desenvolvimento de carnes ao fenômeno do crescimento, dona Mônica não se preocupou em combater semelhante exagero. A menina já estava, porém, ficando moça, tomando jeito de mulher, e foi quando a boa senhora, incomodada com a desproporção, resolveu agir, tentando imprimir àquele corpo desabrochado, e ainda em formação, o cunho da boa elegância.

— Tenha paciência, minha filha; mas, agora, você vai comer pouco, fazer muito exercício e usar colete, mesmo em casa. É preciso emagrecer; senão, você, daqui a dois anos, estará monstruosa!

Daquele dia em diante, a vida da mocinha se tornou um suplício. De manhã, cedo, tomava uma xícara de água fervida, com açúcar; almoçava chá com torradas sem manteiga, jantava uma fatia de carne com uma folha de alface; e à noite, outra xícara de chá. O pior tormento era, entretanto, o que lhe infligia o espartilho, cujas barbatanas a oprimiam, vestindo-a, impiedosamente, de uma horrível armadura de ferro.

Não obstante isso, a menina não emitia a menor queixa. A vaidade que, com a idade, principiava a apossar-se dos seus sentidos, tornava-a, mesmo, de uma severidade inominável consigo própria. Começava a ter consciência da sua condição, do ridículo da sua gordura, da impossibilidade de ser, um dia, citada entre as mulheres elegantes, e tudo isso a impelia para a austeridade do regime, e para tornar-se, ela mesma, a primeira a fiscalizar-se.

— Carminha, queres uma xicarazinha de café? — oferecia, às vezes, dona Mônica.

— Ah, mamãe, não! — recusava a menina.

E com horror:

Ainda anteontem eu tomei uma!

A parte principal era, porém, a que se referia ao colete.

— É preciso comprimir essas carnes superabundantes, minha filha, — explicava a mãe. — Quando te vestires, aperta bem, debaixo do colete, essas gorduras excessivas, que escapam por um lado e por outro, formando bolões. Quando sentires que a carne escapuliu, avisa-me ou arranja-a, tu mesmo, para debaixo do colete.

A vigilância que a Carmen exercia sobre si própria era tão rigorosa, tão firme, tão severa, que dona Mônica não se preocupou mais em fazer-lhe observações. Estava, mesmo, já, tão esquecida do regime a que a filha se submetera que, naquela tarde, ao virem no bonde para a cidade, não compreendeu, de chofre, a comunicação que lhe era feita.

Estava a menina em trajes menores, em casa, quando dona Mônica penetrou no quarto, e, vendo a quantidade de gordura acumulada no soutien-gorge, preveniu:

— Quando te sentares, essa carne vai escapulir para cima, e incomodar-te. Assim que sentires isso, previne-me, que é para eu endireitar.

Ao subir no bonde, a menina não sentiu nada. Ao chegar, porém, o carro à rua Uruguaiana, canto da do Rosário, onde há um açougue, olhava a honrada senhora, como boa mãe de família, a alcatra, o lombo, a costela, as peças vermelhas e sangrentas penduradas nos ganchos, quando a filha lhe tocou, segredamente, no ombro:

— Mamãe!

— Hein?

— A carne subiu, mamãe! — informou a menina, aflita, sentindo a bola de gordura que escapulia do colete.

— Subiu, minha filha! — confessou a boa senhora. — Subiu desde ontem.

E distraída, os olhos no açougue:

— Está a mil e seiscentos!...

CVIII

O CAPINEIRO

Estirada na cama de casal, a cabeça no travesseiro de paina, dona Julita procurava adormecer as filhas pequenas, tendo-as, ali, uma de cada lado. Uma com quatro anos, e outra com três, a Zilda e a Celestinha encostavam o rostinho claro no seio materno, que arfava docemente, levemente, sob o roupão caseiro e cheiroso. E como as pequenitas haviam reclamado uma história, a linda senhora contava-lhes, a voz meiga, a entonação carinhosa, aquele formoso raconto das meninas enterradas pela madrasta.

O dormitório estava, àquela hora, às escuras. Pela janela aberta, via-se lá fora o céu estrelado, e uma fatia de lua muito fina, como se algum gigante houvesse cortado a unha naquele dia. Um grilo zunia num interstício do rodapé, estacando de vez em quando como para ouvir, curioso, algum pedaço da história. E dona Julita continuava maternal:

— Supondo que eram as meninas, e não os passarinhos, que haviam comido os figos da figueira, a madrasta, aproveitando a ausência do marido, mandou fazer um buraco bem fundo no quintal, e enterrou vivas, as duas pequenas... Quando o esposo chegou, e perguntou pelas meninas, ela informou: “Ora, marido, as tuas filhas assim que tu partiste para a viagem, adoeceram e morreram, coitadinhas!” O pai acreditou, chorou muito, mas, que havia de fazer?

— E ninguém contou para ele que elas tinham sido enterradas pela madrasta delas? — aventurou a Celestinha, abrindo a boca, os olhos pesados de sono.

Dona Julita fez-se surda, e continuou:

— Passaram-se os tempos. Um dia, tendo os capineiros de limpar o quintal todo da fazenda, viram que, entre o trigo que tinha nascido, havia umas touceiras muito bonitas, de um louro que era uma beleza. Era exatamente no lugar em que as duas meninas tinham sido enterradas; e, essas touceiras não eram senão os cabelos de ouro das pobrezinhas, que tinham crescido, disfarçados em trigo, aparecendo em cima da terra... Admirado daquela maravilha, um dos capineiros tomou da foice, e desferiu o primeiro golpe. E ia desferir o segundo, quando ouviu uma voz muito chorosa, que vinha do fundo do chão, e cantava:

Capineiro do meu pai,

Não me cortes meu cabelo...

Minha mãe me penteava,

Minha madrasta me enterrou.

Pelo figo da figueira,

Que o passarinho picou.

Chô, passarinho, chô!...

A voz de dona Julita perdia-se, doce, maviosa, sussurrante, na quietude do aposento, embalando o ouvido inocente das filhinhas. E ela própria se sentia embalar pela cantilena triste e evocativa quando a Zilda, sem se mexer de onde estava, interrompeu:

— Mamãe?...

E como a formosa senhora parasse, para ouvi-la:

— Nesse tempo ainda não se usava cabelo cortado?

CIX

PENSANDO EM TI...

— Isto assim, filha, é um tormento!... — exclamou Bernardo Bocha com impaciência, atirando para longe a colcha branca, e tentando levantar-se.

— Mas que eu hei de fazer, filho? E se ele vier por aí?

Essa troca de palavras tinha lugar naquele gracioso bangalô de Ipanema, que olha para o oceano largo e tem, à frente, um delicioso jardim de inverno em que as samambaias se despencam desordenadamente do teto.

Mundano dos mais admirados, Bernardo Rocha havia conseguido prender a atenção da Zuleica, deliciosa criaturinha doidivanas, que encontrara no casamento a mais dolorosa desilusão. Viúvo de um primeiro matrimônio, o coronel Leví Santiago não contara com a função devastadora do tempo, e, muito menos, com o temperamento ardente, quase doentio, da segunda mulher. Casara-se, de novo. Surpreendido pela idade, capitulou, imaginando, entretanto, que as festas, os bailes, os passeios, pudessem contentar a imaginação fervente da companheira. Enganara-se. E a prova do seu engano, era a presença, ali, do Bernardo, cujo paletó, ligas, e demais peças do vestuário, se amontoavam, atabalhoadamente, no espelho da cama e numa cadeira grande, de molas, ao lado do toilette.

Os primeiros encontros dos dois haviam sido numa casa duvidosa, refúgio casual dos amores clandestinos de toda a gente. Aquilo era, porém, aos olhos da moça, uma humilhação, que agravava o seu crime. E foi quando ela lembrara ao amante a conveniência de se verem na sua própria casa, no seu próprio leito, onde a familiaridade das coisas tornaria, talvez, a sua falta menos revoltante.

— E o teu marido? — indagara o Bernardo.

— O meu marido só volta à noite. Nós podemos ficar juntos toda a tarde.

Assentado isso, o rapaz havia ido, naquele dia. Saltara do automóvel em uma rua próxima, e caminhara a pé dois quarteirões afim de não levantar suspeitas na vizinhança. E ali estava, arrependido do que fizera, pois que a Zuleica não tinha um momento, sequer, de sossego, de paz, de tranquilidade.

Efetivamente, o coronel Leví não costumava regressar senão à noite. O criminoso é, porém, tão atormentado, em geral, pela consciência, que lhe parece, no momento ou depois do crime, que podem suceder, contra ele, até as coisas impossíveis. Era por isso que a moça não tinha calma, assustando-se a cada instante, detendo-se ao mínimo ruído, interrompendo de repente as carícias mais apaixonadas com uma exclamação de temor.

— Parece que parou um automóvel... Ouviste?

Ou, num susto:

— Espera!... Espera aí... Será o Leví?

A tarde toda fora consumida por estes pavores. Dez, quinze, vinte vezes, fora a moça à janela, para ver se o marido vinha por ali, arrastado por alguma suspeita. De tal forma se portara, mesmo, nervosa, perseguida por essa obsessão, que o Bernardo se vestiu, se calçou, e se foi embora, antes das quatro e meia.

Às sete, menos dez, chegou o coronel. Vinha alegre, risonho, carregado de embrulhos. Ao dar, no terraço, com a esposa, que se mostrava enervada, pálida, os cabelos escuros atirados para trás, presos apenas por um grampo, estranhou.

— Então, que é isso? Não saiu hoje? — indagou, carinhoso.

— Não, — respondeu a moça, secamente.

— E que fez a minha mulherzinha toda a tarde?

— Eu?

E displicente, um sorriso de ironia ao canto da boca:

— Pensei em ti; sabes? Passei a tarde toda com o pensamento em ti.

Queres que jure?

Jurou. E, como se viu, tinha sido verdade...

CX

A VANTAGEM DAS ASAS

“Sacadura Cabral e Gago Coutinho levaram oito meses de Lisboa ao Rio. Pinto Martins gastou, de Nova-York ao Brasil, quase um ano’’!

(Informação histórica).

Quando o nosso glorioso Santos Dumont atirou ao mundo o segredo da navegação aérea, passeando sobre Paris entusiasmada a sua figurinha de vidro de homeopatia, as companhias de caminho de ferro e de navegação sentiram, surgindo das neves do futuro, o fantasma da ruína irremediável. O aeroplano ia substituir o trem e o transatlântico, levando passageiros e cargas de país a país e de continente a continente, com a rapidez com que se vai, hoje, de bonde, de uma rua a outra rua.

O Progresso é, no entanto, uma entidade que prefere, às vezes, à celeridade do raio a indolência da tartaruga. Para desbancar os expressos a cem quilômetros a hora, foram construídos aeroplanos com a velocidade de cento e cinquenta. Ao fim de tudo, porém, o navio continuou a cortar a água, e o trem a cortar a terra, conduzindo peças novas para os aparelhos rebentados na viagem.

Hoje, as condições da aviação conseguiram, felizmente, tranquilizar os marítimos, os ferroviários, e, mesmo, os pedestres. E de maneira tão segura que chegaram a tornar-se uma garantia para as pessoas timoratas. O caso de mme. Valério da Gama é de nossos dias e pode servir, talvez, como documento comprobatório.

Enviado há três meses aos Estados Unidos, o dr. Valério da Gama, engenheiro da Estrada de Ferro que liga São Tomaz a Pedra Furada, deixou no Rio, no seu palacete das Laranjeiras, a risonha dona Judite, cujos olhos dourados eram a tortura do comandante Frota da Cunha, antigo imediato do Minas Gerais.

Desde a partida do engenheiro para Nova-York, o ilustre marinheiro começou a dar cerco à linda esposa do viajante. Lembrava-lhe que o dr. Valério da Gama havia ido numa comissão trabalhosa, em que consumiria meses, e que, portanto, poderiam, os dois, dar um passeio à Europa.

— E se o Valério volta, de repente? — objetava madame, assustada.

A observação era sensata e, embora contrariado, o comandante a aceitou, lamentando não realizar o seu desejo, que era, exatamente, fazer uma viagem longa, tranquila, demorada, sob a proteção cariciosa daqueles olhos felinos.

Há três dias, porém, estava o simpático oficial de marinha no seu aposento do Glória-Hotel, quando o telefone tilintou. Pela tonalidade da voz, notou que o seu diabinho estava contentíssimo.

— Sabes? — foi logo ela dizendo. — Tenho uma notícia a dar-te. Nós podemos dar o nosso passeio à Europa, sem susto!

— Deveras? — exclamou o rapaz, de um salto. — O Gama não embarca para cá?

— Embarcar, embarca! — exclamou a moça. — Até já embarcou; mas nós temos tempo de ir e voltar.

E como ele não entendesse:

— É o que te digo, filho. Temos tempo, e de sobra.

E tranquilizando o rapaz:

— Ele vem de hidroplano!

CXI

AS EDUCANDAS

(SOBRE UMA “CHARGE”)

Menino ainda, o Manuel Vicente já sonhava, no Canindé, com uma grande viagem por este mundo de Deus. À tarde, quando ia abrir a porteira para o gado, era com uma tristeza irreprimível que olhava o perfil cinzento da serra de Baturité, para além da qual ficavam as cidades e o mar tempestuoso, que já lhe reboava, confusamente, nas névoas da imaginação. E quando chegava a noite e se estirava, com a roupa que vestira durante o dia, na velha rede cheirando a esterco de bode, era para sonhar com palácios enormes, altos como a igreja de São Francisco das Chagas, e do alto das quais se debruçavam, sorrindo, louras princesas encantadas.

Já rapazola, com dezesseis anos, realizara o sertanejo uma parte do seu sonho: descera até Maranguape, até Arronches e, finalmente, até Fortaleza, cujo tamanho, com os seus sobrados de dois andares, fora, para ele, um deslumbramento. Quanto ao mar, ao oceano imenso, excedera, igualmente, a sua expectativa. E foi verdadeiramente admirado que o Manuel Vicente verificou, no Passeio Público, que, mesmo trepado num banco, e nas pontas dos pés, não se via, absolutamente, o outro lado daquele açude formidável.

A capital cearense não era, porém, o grande sonho do vaqueiro do Canindé. Ao fim de três anos de trabalho no porto, meteu-se ele na proa de um navio cargueiro, com destino ao Rio. Dez dias cambaleou entre a amurada e um monte de cordas. E era tonto, ainda, que acabava de desembarcar na doca do mercado, onde o comandante o havia mandado atirar como se atiravam, outrora, os condenados no degredo das ilhas desertas.

Bronzeado, calça e camisa de riscado grosseiro, o chapéu de carnaúba amarrado por baixo do queixo, o Manuel Vicente era o tipo clássico do flagelado nortista. À sua passagem, uns riam, inclementes; outros o olhavam, apenas, tomados de dó. Ele passava, porém, indiferente à piedade e à inclemência, como se se concentrassem, nele, três séculos da resignação de uma raça.

À rua da Assembleia, parou. É que vinha passando um colégio de meninas, as educandas de um internato do governo, sob as ordens da respectiva diretora. Duas a duas, as maiores à frente, as menores atrás, marchavam sem pressa, vestidas da mesma fazenda, e, por mera coincidência, todas de cor branca. Da calçada, o dedo estirado, o Manuel Vicente ia contando:

— Duas... quatro... seis... oito... dez... doze... quatorze... dezesseis... dezoito... vinte... vinte e duas...

Eram trinta e tantas. Quando passou a última, e, atrás desta, a professora, senhora gorda, de uns cinquenta anos, o caboclo desceu da calçada, encaminhando-se para a matrona, o chapéu na mão, a fala arrastada:

— Dona, inda que mal pregunte: voscemincê é do Ceará?

E como a educadora não lhe desse atenção:

— Vôute! Parece até a “famia” do capitão Gondim: só “muié”; nem um “fio” macho!

CXII

DISTRAÇÃO DE FILÓSOFO

No concurso aberto pelo Correio da Manhã, um dos concorrentes definiu, da noite do seu anonimato, o ilustre pensador e médico dr. Carlos da Veiga Lima, com o apelido “Filósofo de contramão”.

Na justificação que juntou ao seu voto, explicava o autor do apelido a significação do mesmo. Acha ele que o sucessor de Sílvio Romero e Farias Brito é a negação mesma da filosofia, discutindo os fenômenos e chegando, sempre, ao fim da explanação, a uma conclusão oposta, em tudo, àquela atingida pelos outros. É, mesmo, em filosofia, como aquela sogra da anedota, a qual era tão teimosa que, morrendo afogada em um rio de correnteza ligeira, foi o seu cadáver encontrado, dias depois, muito acima do lugar do sinistro, só pelo gosto de contrariar a maré.

O concorrente ao lápis do Correio não tem, entretanto, razão, ao recusar ao dr. Veiga Lima as altas qualidades de filósofo. Pelo menos, ninguém anda, mais do que ele, afundado nas nuvens, auscultando, com os ouvidos da alma, o misterioso coração da Eternidade. Dessa intimidade com o Infinito, onde o seu alto espírito se tonifica, mergulhado no oceano das cogitações mais profundas, existem provas encantadoras que a Posteridade não devia, jamais, esquecer.

Médico dos mais estudiosos e competentes, estava o dr. Veiga Lima, uma destas tardes, no seu consultório, quando entrou no gabinete, introduzida pela enfermeira, uma senhora elegantíssima, cheirando a Houbigant. Os cotovelos fincados na mesa, o rosto apoiado nas mãos, o jovem filósofo meditava sobre um volume de Bergson, aberto diante dos seus olhos, procurando, com o pensamento, os caminhos que levam, direito, à Suprema Verdade.

— Doutor! — chamou a cliente, senhora distintíssima, como tentando acordá-lo.

E como ele se não movesse:

— Ah! doutor, o senhor não imagina como eu tenho sofrido!

E aludindo à sua dispepsia:

— Há dois dias, que não como, doutor!

Atento na leitura, a testa enrugada, o dr. Veiga Lima não levantou os olhos do livro.

— Há dois dias não come? — indagou, despreocupadamente, sem olhar, sequer, o rosto da cliente.

E começou a remexer nos bolsos do colete, ora com a mão direita, ora com a esquerda. Encontrada a algibeira dos níqueis, tirou daí um, de cem réis, que estendeu à moça, sem afastar os olhos da obra.

— Tome! — disse.

E mergulhado na leitura, o espírito dissolvido no cosmos:

— Compre um pão...

CXIII

O PATRIOTA

Era no ano de 1824, pouco depois do grito da Independência. A atitude de Pedro I, oscilando entre os brasileiros de nascimento e os portugueses que pretendiam ficar no governo com ele, havia criado uma situação de alarme, de aflição, de inquietude, que teria de resolver-se mais tarde, com grave perigo para o Império nascente. Preparava-se, no forno de cada casa, o pão de sangue do Sete de Abril. Latente, o ódio ao antigo dominador fervia nos peitos nacionais, lançando a discórdia nas famílias, onde o filho, nascido em Minas, no Rio, ou em São Paulo, não estendia mais a mão ao pai, nascido no velho reino.

Entusiasmado pelo verbo de Antônio Carlos, que se batia pela formação de um governo puramente brasileiro, Luiz Boto da Silva, mancebo de vinte e dois anos, era um desses heróis obscuros que cimentaram com o seu sangue, pode-se dizer, os alicerces da nacionalidade. Partidário de Gonçalves Ledo, batera-se como um leão contra as guardas lusitanas, a serviço do Imperador.

Por duas vezes foi ferido com gravidade: uma à porta da Maçonaria, à rua do Conde, e outra na rua da Ajuda, quando guardava, como um cão, a casa de um dos chefes separatistas.

Bravo, leal, corajoso, o moço brasileiro tinha, entretanto, uma tristeza, que era, aos seus olhos, quase uma ignomínia: a de ser filho do capitão das antigas forças portuguesas Pedro Teixeira Boto da Silva, casado no Brasil com a parda Maria do Sacramento, para quem fora o mais fiel dos maridos. Homem de bom senso, Pedro Teixeira não impedira, jamais, o surto das ideias revolucionárias do filho. Isso não obstara, no entanto, que o rapaz, inflamado pelos discursos dos patriotas, lhe votasse um ódio mortal, a ponto de desejar, do íntimo d’alma, que a sua mãe lhe revelasse, um dia, qualquer falta de mocidade, que o livrasse, no mundo, daquele pesadelo inominável.

— Haverá vergonha maior para um patriota, — exclamava ele, — do que ser filho de um português, de um antigo dominador da sua pátria?

Ignorante e simples, Maria do Sacramento não compreendia nada, absolutamente, daquelas iras sagradas. Sabia apenas que o filho odiava o pai, e que este, generoso e prudente, fechava os olhos à ingratidão do rapaz.

— Isso há de passar! Isso há de passar! — dizia, confiante, o antigo capitão português.

Um dia, após um discurso de Antônio Carlos, na Assembleia Constituinte, Luiz Boto não pôde mais. Era impossível que corresse nas suas veias o sangue dos opressores de outrora. A sua mãe, brasileira de origem, não podia ter estremecido de amor nos braços de Pedro Teixeira, inimigo do seu país, a ponto de dar ao mundo aquele filho, que era ele. A ignorância de Maria do Sacramento era, positivamente, a lápide de um mistério. Ele, Luiz Boto, soldado de Ledo, eleitor de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, não podia ser filho de um português. Latejava em seu coração um sangue puro, de dois corpos brasileiros.

Resolvido a apurar essa verdade, penetrou em casa, antes do pai, e, chamando à parte a mãe, pediu-lhe, de joelhos, que lhe tranquilizasse, de uma vez, o espírito atribulado.

— Por aquela imagem que ali está, minha mãe, — pediu, apontando um Crucificado, que pendia da parede do quarto, — diga-me, confesse-me: eu não sou filho do seu marido! Não é verdade?

De pé, no meio do aposento, Maria do Sacramento mergulhou as mãos pardas e gordas na cabeleira revolta do filho. Duas lágrimas grandes, estalaram-lhe, como pipocas, no canto escuro dos olhos.

— Vamos! Diga! Confesse! — gemeu Luiz, segurando-lhe as mãos, o rosto iluminado por uma esperança.

— Eu confesso, meu “fio”, — explodiu a velha mulata, num soluço de desespero, que lhe subia à boca com todas as raízes do coração. — “Seu” Teixeira “num” é teu pai!

— Deveras, minha mãe? Deveras? — bradou o rapaz, de um pulo, com todo o contentamento na voz, no rosto, nos olhos.

E a mulata apagando tudo isso:

— Tu “é” “fio” de “seu” Mané português...

CXIV

CASA DE GRAÇA

— Afinal, sr. Teófilo, o senhor casa, ou não casa?

Foi esta a interpelação que lhe fez, um dia, dona Mariana, mãe da Melita, com quem o rapaz estava noivo há dois anos e meio.

Apaixonado pela rapariga, o Teófilo Bermudes pretendia casar-se, constituir o seu lar, criar os seus filhos, desdobrar a existência em uma geração nova. Para isso, arranjara tudo; como, porém, montar a máquina da família, a oficina da prole, se não encontrava uma casa onde se pudesse abrigar com a sua Melita?

Durante dois anos lera ele, todas as manhãs, todos os matutinos que publicam anúncios de casas para alugar. De lápis na mão, marcara centenas de “aluga-se”, cortara aqueles pedacinhos de jornal, pregara-os numa folha de papel, e correra as ruas e números indicados. E cada dia era uma desilusão: ou a casa não servia, por grande ou pequena demais, ou já estava alugada, ou era tão exagerada no preço que o rapaz não podia, sequer, enfileirar-se na cauda dos pretendentes.

Meses e meses, e centenas de mil réis em bonde e em automóvel, gastara ele, correndo da Gávea à Cascadura, de Paquetá à Aldeia Campista, atrás de um ninho que lhe servisse. E voltava sempre derreado, exausto, vencido, com uma nova desilusão.

Não tinha, pois, razão dona Mariana, quando lhe perguntava, de modo tão expressivo, se queria casar ou não. Onde iria ele meter-se depois de casado?

Em uma das suas pesquisas domiciliárias através da cidade, encontrou, felizmente, o Bermudes, uma casa que lhe servia. Era um prediozinho moderno, de sobrado, com três dormitórios em cima, sala de jantar e de visitas, quarto para criados, e as demais comodidades do estilo. Disseram-lhe que pertencia ao visconde de Morais, e o Teófilo correu a falar com o visconde, em pessoa.

— A casa, meu caro senhor, custa-lhe oitocentos mil réis por mês. E tenho quem me dê um conto de réis!

Inteligente e expedito, o rapaz resolveu empregar todos os argumentos para demover o riquíssimo titular. Alegou a sua pobreza, a sua condição de noivo, a impossibilidade em que estava de constituir família e, portanto, de colaborar no povoamento do Brasil.

— E se o senhor se casar, e não tiver filhos? — obtemperou o visconde.

— Nesse caso, os interesses de V. Ex. ficariam salvaguardados por um contrato — lembrou o Bermudes.

O antigo dono da Cantareira meditou um instante, acariciou vagarosamente a barba em ponta, e alvitrou:

— Pois, bem; façamos uma coisa: o senhor fica com a casa pelos oitocentos mil réis. Cada filho, porém, que o senhor tiver, eu lhe abaterei cem mil réis no aluguel. Está bem assim?

Não fosse o respeito reclamado pela situação do benemérito milionário, e o Teófilo Bermudes lhe teria pulado ao pescoço, cobrindo-o de beijos. Em vez disso, correu à casa de dona Mariana, abraçou a Melita, precipitou os papéis, e, um mês depois, estava casado, e instalado, com todas as comodidades, na casa que lhe alugara o visconde.

Ao fim de dez meses, achava-se o ilustre titular no seu escritório quando o Bermudes o procurou. Trazia à mão uma certidão do Registro Civil e foi, logo, reclamando:

— Aqui está, sr. visconde. O meu primeiro filho nasceu anteontem, sábado!

O suntuoso proprietário passou os olhos ligeiramente pelo papel, e decidiu:

— Muito bem; de agora em diante, o senhor pagará apenas setecentos mil réis.

E apertando-lhe a mão, risonho:

— Meus parabéns!

Dez meses depois, voltou o inquilino, com outra certidão do Registro Civil:

— Sr. visconde, mais cem mil réis de redução!

O mesmo exame de papéis, e a mesma deliberação:

— Muito bem; ficará pagando, apenas, seiscentos mil réis!

Mais quatro meses e, em vez do Bermudes, entra, uma tarde, pelo escritório do visconde, uma senhora de preto, que pretendia falar ao Rockefeller português.

— Eu sou a viúva do Teófilo Bermudes, sr. visconde, — informou a visitante, enxugando uma lágrima.

— Do sr. Bermudes?... Morreu?... — fez o titular, num espanto.

E interessado:

— Morreu, de que?

Melita enxugou unia lágrima por baixo do véu.

— De economia, sr. visconde.

E sacudida pelos soluços:

— Ele queria... morar... na casa... de graça...

CXV

QUEM SAI AOS SEUS...

Gabriel Antunes Damásio havia atingido o patamar da velhice, depois de haver subido, um a um, na escada da vida, os degraus dos prazeres. Estudante boêmio, advogado de talento, e, depois, notável jurisconsulto, chegara aos postos que ambicionara sem se aperceber, jamais, dos comentários da galeria.

— É um belo espírito, o Gabriel Damásio; mas, também, que caráter! — diziam uns.

E outros:

— Aquele talento, naquela vida, é uma pérola numa escarradeira!

A vida íntima do brilhante professor de Direito era, realmente, a negação da sua inteligência. Casado com uma senhora lindíssima, começara, dois meses após o casamento, a fugir aos deveres matrimoniais, passando as noites fora de casa, nos clubes de jogo e nas casas de má fama. Ingênua e boa, dona Marina perdoava-lhe tudo, suportando aquele desprezo com chorosa resignação. E, era, já, mãe do primeiro filho, o Ademar, quando, refletindo sobre o abandono em que a deixava o marido, e sobre a ternura de que a cercava o desembargador Fortunato Borges, amigo íntimo do casal, tombou, vencida, nos braços deste, caindo, enlameada, do seu pedestal.

Durante dois anos, contentou-se a moça com as relações criminosas desse velho amigo da casa, cuja idade reclamava da sua parte as carícias mais repugnantes. E foi no exercício destas, aperfeiçoando-se dia a dia nos prazeres requintados, que se considerou, em breve, mestra do ofício, capaz de ombrear, nelas, com as suas amigas menos escrupulosas.

A vida galante é, na mulher, como a cocaína, como o álcool, como a morfina. A primeira dose pede a segunda. A infidelidade matrimonial é uma escada de que não se deve experimentar o primeiro degrau. Experimentado este, põe-se o pé no outro. E de degrau em degrau, vem-se até o chão, onde se amontoa a lama do mundo. Está para surgir, ainda, a primeira mulher que se tenha contentado, na vida, com a taça do primeiro pecado.

Dona Marina, foi o que tem sido tantas outras, na sua situação. Afastado o comendador, teve, a seu lado, o capitalista Fernando Garcia, e, seis meses depois, o deputado Barbosa Braga. Outros vieram, e passaram. E dentro de dez anos, era uma das senhoras mais mundanas, e de reputação duvidosa, de toda a cidade. As seções elegantes dos jornais não esqueciam o seu nome, as suas toilettes, e, quando, passava pela Avenida, era arrastando os olhares dos homens, que esperavam, todos, a sua hora, como quem aguarda, à porta de uma casa de esmolas, o seu caldo e o seu pão.

Criado nesse ambiente de dor, de cinismo e de vício, o Ademar havia de se ressentir, necessariamente, dos defeitos que testemunhava. Metido num colégio interno, saiu de lá expulso, por uma indignidade que lhe mancharia o resto da vida. E foi com essa fama que se atirou ao mundo, o paletó na cintura, os olhos requebrados, a boca franzida em cravo, o rosto amaciado pelo pó de arroz, a andar acima e abaixo, na cidade, ao lado de cavalheiros mais ou menos suspeitos.

Penalizado com aquele destino, resolveu o senador Ananias, antigo professor da Faculdade, procurar Gabriel Damásio, chamando a sua atenção para a vergonhosa situação do rapaz. O catedrático tomava o seu chopp na Brama, quando Ananias se lhe sentou ao lado, a fisionomia severa. E foi logo observando com a autoridade dos seus anos, do seu posto, da sua condição:

— Sabes, Gabriel? É preciso que tomes cuidado com o teu filho. A vida do teu menino é irregularíssima.

— Já sei, já sei, — atalhou o professor — o rapaz é dado a mulheres; não? Se assim é não há que admirar: puxou o pai!

— Dado a mulheres, não, — corrigiu o senador.

E um pouco vermelho:

— Muito pelo contrário; sabes? Pelo contrário!

— Pelo contrário? — fez Gabriel, como quem compreende uma redundância. — Nesse caso, também não faz mal.

E erguendo o copo, à altura da boca:

— Puxou a mãe...

CXVI

O GÊNIO DOS POVOS

Há uma velha anedota política, de origem francesa, que, para fornecer uma ideia sobre a mentalidade de cada nação, imagina uma reunião, à mesa, de vários chefes de Estado: o presidente Falliéres, Eduardo VII, o imperador Guilherme, e o imperador da China. Diante desses quatro senhores de povos, espumam, como topázio e marfim diluídos, quatro chopps, quando chegam quatro moscas irrequietas e caem, zumbindo, uma em cada copo.

Esse incidente determina, então, os seguintes gestos:

— O francês — afasta o copo, com a mosca.

— O inglês — põe fora a mosca, e bebe o chopp.

— O alemão — engole o chopp, com mosca e tudo.

— O chinês — põe fora o chopp... e come a mosca.

Foi essa anedota que determinou, talvez, a criação de um apólogo, em que os polacos procuram demonstrar a sua preocupação patriótica, e o ardor, a febre, com que aliam, a tudo, o sentimento nacional.

— Havia, outrora, um rei da Polônia — dizem eles — cuja corte era frequentada por sábios de várias origens, com os quais discreteava nas suas horas de lazer. Certo dia, deu-lhes o soberano para tema — o Elefante, devendo cada um dos eruditos fazer, a respeito, uma dissertação. Ao fim do prazo marcado, os sábios voltaram a palácio, com os trabalhos concluídos.

O alemão havia redigido laboriosamente, em vários volumes, uma grande memória intitulada: “Os antepassados pré-históricos do elefante”.

O francês trazia uma plaquette sobre “Os amores do elefante”.

O trabalho do inglês denominava-se: “O comércio do marfim”.

O polaco trazia, com entusiasmo, um volume sobre: “O elefante e o problema polaco”!

*

* *

— Não havia algum sábio brasileiro na corte de Varsóvia? — indagou uma senhora, quando o almirante Justino, balançando a perna, acabou de contar a anedota e o apólogo.

— Havia, sim, minha senhora; havia dois. Mas o monarca não lhes aceitou os trabalhos. Um, tratava de verificar, entre descomposturas e elogios, a que partido pertencia o Elefante, na política brasileira.

— E o outro?

— Era uma coleção de anedotas sobre o Elefante!

CXVII

A MANCENILHA

Por mais volta que desse ao juízo, o Pacheco Matos não atinava com o motivo misterioso daquela aversão ou, antes, daquele pavor, que a Altair Monteiro, tão tentadora e tão linda, manifestava pela sua pessoa. Seria ele feio? Por isso, não; porque o Júlio Espíndola infinitamente mais antipático, não havia sido recusado, com a circunstância, ainda, de não ter os seus haveres, o seu nome, a sua posição. Intrigas? Despeito? Cálculo? Quem já pôde, porventura, na vida, sondar, até o fundo, um coração de mulher?

Os motivos que afastavam a jovem mundana e o opulento capitalista eram, entretanto, poderosos. Sabia-os a rapariga, apenas. E era com terror, as mãos frias, o rosto pálido, a voz titubeante, que ela o via aproximar-se nas festas, na rua, nas casas de chá.

A princípio ela nutria por Pacheco Matos uma simpatia acentuada. Achava-o distinto, polido, bonito mesmo. Por mais de uma vez, falando com ele, imaginara como seria delicioso um beijo longo, apaixonado, da sua boca sadia, de dentes bons, sem cheiro de álcool nem reminiscências de fumo. Chegara, mesmo, a sonhar com o rapaz, duas ou três vezes. E foi quando, uma noite, com o coração quase cativo, indagara da Leontina, que o conhecia de perto:

— Que me dizes do Pacheco Matos, filha?

— O do Banco?

— Sim, aquele que me apresentaste no Palace.

Leontina ficara muito séria, antes de responder. De repente, porém, recobrara a vivacidade habitual, mas para informar, agitada:

— Não é má criatura, não, menina. É generoso e, para cativar a gente, não há outro ... Queres, porém, um conselho

— Dize.

— Foge dele. Ele é como a mancenilha...

Mão no queixo, Altair ficou pensativa, o resto da festa. Ao certo, ela não sabia o que era mancenilha. Havia de ser, entretanto, alguma coisa má. E foi com essa convicção que, quando o rapaz a quis tirar para um fox-trot, recusou, pretestando uma dor de cabeça, que a devia levar, pouco depois, para casa.

De origem modesta, elevada àquelas culminâncias sociais unicamente pela sua beleza impressionante, Altair Monteiro disfarçava, a custo, a pobreza das suas letras. Tinha, porém, o pudor da própria ignorância, de modo que, no dia seguinte, em vez de perguntar a qualquer amiga, ou a qualquer conhecido, o que era “mancenilha”, preferiu vestir-se, tomar o auto, e ir, na cidade, comprar um dicionário que a esclarecesse.

Na livraria Leite Ribeiro, pediu-o.

— Que dicionário deseja V. Excia? — indagou, gentil, o queixo para frente, a cabeça para trás, um dos empregados da casa.

E com a erudição da classe:

— Valdez? Aulete? Cândido de Figueiredo? Roquete? João de Deus? Seguier?

— Qualquer um, — informou a moça, vermelha, já, com aquela complicação.

O rapaz escolheu um, e embrulhou-o. Altair pagou dezoito mil réis, correu a retomar o automóvel, e, já de viagem para casa, abriu o volume, procurou o vocábulo que a atormentava, e estremeceu, da cabeça aos pés.

É que acabava de ler, os olhos esbugalhados:

“MANCENILHA (s. f.) Árvore da família das euforbiáceas, que, segundo a lenda, tira a vida a tudo que lhe fica debaixo”.

CXVIII

O BOI E O CARAMUJO

Após dois dias de viagem penosa, arrastando-se cautelosamente pelo gramado cheiroso, chegou um caracol, com a sua casca, à sombra de um cajueiro de fazenda, em que um touro ruminava, pacatamente, o capim da manhã. Era um animal soberbo, as malhas vermelhas e brancas, de cuja testa saíam, agressivos, e já com algumas escamas significativas da idade, dois chifres cinzentos e pontudos, que lhe davam a primazia no pasto.

Diante do bovino meditativo, o caramujo estacou, respeitoso. E olhava-o em silêncio, como um verme diante de uma grande montanha, quando resolveu travar palestra com aquele gigante, cujo feitio lhe pareceu, de algum modo, curioso.

— Camarada! — chamou, a voz fraca.

O “malhado” volveu para ele os seus grandes olhos de cisma, como a indagar o que aquele importuno pretendia.

— Camarada, — tornou o molusco, — você também é caramujo?

E como o touro agitasse a cauda, com desprezo:

— Eu pergunto porque você tem a cabeça armada, como eu; com a diferença, apenas, que eu tenho uma casa para esconder a minha, e você anda a passear a sua por toda a parte.

Essa observação deu a perceber ao boi que ele se achava diante de um filósofo. E como os filósofos, por mais insignificantes, sempre têm alguma utilidade, o boi moveu a cabeça formidável num sinal de cordialidade complacente, como a dizer-lhe, generoso, que lhe agradava a palestra.

— Como foi que você ficou assim? — indagou, com interesse, o caramujo.

— Sei lá, camarada. Leviandades...

— Da sua mulher?

— Da minha mulher, não; minhas. O marido é sempre o culpado, quando lhe sucedem coisas desta ordem... Você nunca leu o Júlio Dantas?

— É bicho?

— Não: é gente; escreve nas folhas.

— Folhas de quê? De roseira? de amoreira? de cajueiro?

— Nas folhas de papel.

— Ahn!

— Esse Júlio Dantas diz que tudo que a mulher pratica de mau, é por culpa do marido. Quanto a mim, eu estou de acordo. As minhas vacas têm sido de uma deslealdade inominável comigo. Mas o culpado sou eu, mesmo. Porque você compreende: eu saio do curral, isto é, de casa, de manhã, passo dois, três dias, sem voltar, correndo capoeiras e várzeas. É natural, pois, que, no regresso, esteja com a cabeça neste estado.

— Ilusão sua, meu amigo; ilusão sua! — objetou o caramujo, com filosofia. — O que tem de ser, traz força; compreende você? Olhe, por exemplo, o que me acontece a mim!

Deu uma risadinha de molusco:

— Eu ando com a minha casa nas costas, vê? e, no entanto, tenho chifres como você!

E continuou o seu caminho, mole, visguento, arrastando a casa.

CXIX

O FLUTUANTE

O carioca é, por natureza, comodista. Todo filho do Rio de Janeiro sabe, e proclama, que a sua cidade é uma das maravilhas do mundo; raros são, entretanto, aqueles que já subiram ao Corcovado e ao Pão de Açúcar, e, muito mais, os que já visitaram os quatro cantos da capital. Geralmente, cada um conhece apenas o seu bairro e a Avenida, deixando ao estrangeiro, ou aos filhos dos Estados, a delícia dos panoramas inigualáveis.

Nascido no Méier, o Raimundo Honório era desse número. Com trinta e cinco anos de idade, não havia, jamais, passado para as bandas da Tijuca ou de Botafogo. A Avenida Central, esta sim: conhecia-a de ponta a ponta, graças ao Carnaval, que arrasta para esse oceano tumultuoso, durante três dias, todos os rios que lhe são tributários. O resto da vida, passava-a ele na sua metrópole suburbana, frequentando os cinemas e teatrinhos locais, como se aquele pequeno mundo bastasse, inteiro, à humildade da sua ambição.

Carioca até ao tutano, vivia ele, assim, docemente a sua vida, quando o pai o chamou, dizendo-lhe:

— Mundico, você vai amanhã a Niterói, à casa do coronel Fortunato.

— A Niterói, meu pai? Como é que se vai lá?

— Embarcado; ora, essa! Você toma o bonde, salta na praça Quinze, toma a barca, e, em vinte minutos, está em Niterói.

No dia seguinte, por volta das nove e meia, estava o Raimundo Honório na estação da Cantareira, pronto para atravessar a baía. Atracada ao flutuante, a Sétima estava quase repleta de passageiros, acentuadamente pensa para a direita.

Ligeiramente agitado, o mar sacudia a barca, e, com ela, a ponte flutuante, que subia e descia, num violento ranger de ferragens. E era para isso que o Raimundo olhava embasbacado, de pé, no flutuante, quando a campainha anunciou, no galpão, o momento da partida. Subindo e descendo com o pontão, o rapaz não atentava para outra coisa. A um apito ligeiro, foi atirada para a ponte a primeira corrente, que bateu nas tábuas, retinindo. E quando a outra corrente foi atirada, as rodas da embarcação puseram-se em movimento, afastando-a suavemente da terra.

Do flutuante, que supunha uma dependência da barca, o Raimundo Honório olha tudo isso, com atenção. Foi, por isso, com espanto, que viu a barca afastar-se entre duas linhas de espuma, deixando-o sozinho, as mãos na cintura.

— Ó moço?... Ó moço?!... — grita o rapaz para bordo, como quem acaba de acordar de um grande sono.

E, aflito, nervoso, de pé, no flutuante, que sobe e desce, ao sabor da vaga:

— Este reboque não vai?...

CXX

A PERNA DO CACHORRO

Na sala de operação da Casa de Saúde do Dr. Poggi era desusada, naquela tarde, a agitação. Gorro branco, de cozinheiro, à cabeça, aventais de linho amarrados na cintura e no pescoço, mangas arregaçadas, mãos no ar, os quatro médicos preparavam-se para a intervenção, que devia ser imediata. No fogão elétrico, ferviam os ferros numa grande caixa de metal reluzente. Pacotes de algodão desenrolavam-se sobre o mármore de uma pequena mesa ligada à parede, aguardando, apenas, o momento de se encharcarem de sangue.

A operação não tinha grande importância, por si mesma; emprestava-lhe, porém, a feição de um verdadeiro acontecimento científico a experiência que ia fazer o dr. Poggi, e que consistia no enxerto, em organismo humano, de uma peça anatômica tomada a animais inferiores. Tratava-se, em suma, de utilizar em uma criança de três anos, cuja tíbia havia sido esmagada por um bonde, o osso da perna de um cachorro, que ali estava, a um canto, os olhos súplices, aguardando a hora do seu martírio.

Já sob a ação do clorofórmio, nuzinho, muito pálido, a perna esmagada envolta, ainda, em gazes sangrentas, o menino roncava guturalmente, os olhos imóveis, a boca aberta, mostrando os dentinhos brancos, por entre os quais escorria a saliva abundante.

— Vamos!... Depressa! — ordenou o dr. Poggi, tirando da caixa de folha, onde já esfriavam, os ferros necessários enquanto os enfermeiros retiravam as gazes que envolviam, como postas de sangue, o amálgama de carne e osso triturado, a que estava reduzida a perna do pequenito.

Em menos de dez minutos aquilo tudo desapareceu. Aos golpes do bisturi, tudo rolou para o balde fúnebre, ficando sobre o mármore, apenas, a coxa, a partir do joelho, e o pezinho, do tornozelo para baixo.

— Agora!... Ligeiro! — ordenou o operador, que não perdia tempo.

A essa voz, um dos auxiliares decepou, de um golpe, enquanto outros seguravam o animal, a perna traseira do cachorro, despindo-a do couro e de uma parte da carne, e levando-a ao mestre, que a ajustou, logo à criança, ligando o joelho ao pé decepado

Estirados em torno do osso diversos pedaços de carne, e ligados através deles alguns vasos sanguíneos, destinados ao restabelecimento da circulação, foram feitas as ligaduras, sendo o pequenito transportado, ainda adormecido, para o quarto particular que ocupava.

O restabelecimento foi, como facilmente se imagina, moroso, lento, cercado de cautelas. Passadas algumas semanas, foi dada alta ao enfermozinho, que a família transferiu para casa, com a recomendação, embora, de ser conservado em repouso por mais algum tempo.

Ao fim de quatro meses, estava, um dia, o dr. Poggi no seu gabinete, quando lhe foram anunciar mme. Tavares Borba, mãe de Osvaldinho, o pequeno em que havia feito o enxerto do osso do cachorro. Mandada entrar, foi com efusão que o diretor da Casa de Saúde correu ao seu encontro, apertando-lhe ambas as mãos.

— Então, como vai o pequeno? Inteiramente bom?

— O Osvaldinho? Vai bem, doutor.

E com um ar triste, abotoando e desabotoando as luvas:

— Apenas uma coisa está me preocupando.

— Preocupando?

— Sim, senhor. Imagine o senhor que ele, que era tão direito, tão acomodado, não pode passar, agora, junto de um poste, ou de um muro, sem levantar a perninha!...