Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Poemas, de Luiz Delfino


Texto-fonte:

Luiz Delfino dos Santos, Poesia Completa, org. de Lauro Junkes,

Florianópolis: ACL, 2001, 2 v.

ÍNDICE

Grito de independência (1859)

A filha d’África (1862)

Aquidabã (1870)

Solemnia verba (1879)

A morte do legendário (1880)

À nação - na festa da Sociedade Abolicionista do Ceará (1884)

In excelsis (1884)

À arena! (1885)

Fiat libertas (1888)

A eterna revolta (1888)

O verso alexandrino (1862)

To be or not to be (1874)

Carlos Gomes (1880)

As três irmãs (1899)

Grito de independência  (1859)

À  Itália

Arme, arme, freme il forcenato; e insieme

La gioventú superba, arme, arme, freme.

Tasso — La Gerusalemme liberata

Levanta a fronte, Itália moribunda;

O teu leito de pedra o sol inunda,

Nos seus raios a glória te sorri;

Às armas! — Vem, levanta-te apressada:

Às armas! — Leva as mãos ambas à espada,

E vem aos campos combater por ti.

César ergueu-te sobre um régio trono,

Vestiu-te a púrpura, mergulhou-te em sono!

Foi César quem primeiro te vendeu...

Eras rainha!... À sombra de um loureiro

Tu dominavas o universo inteiro:

Mas tu já eras um escravo seu.

Pátria de Tasso, de Virgílio, e Dante,

Tu não podes ficar agonizante

Sobre a cinza da glória, que passou.

Águia romana, por que céus volteias?

Vem depressa poisar sobre as ameias

Da Itália, que briosa despertou.

Podes vir, Alemanha envilecida,

A fronte dos obuses teus cingida,

Teus braços eriçados de punhais...

Estes são homens de uma só vontade,

Combatem só por sua liberdade,

E são livres, valentes, e leais.

Oh! vem! — A Itália já te conhecia,

Quando inda sobre o Reno não caía

A sombra das soberbas catedrais!...

A tua história de nação folheia,

E deixa os olhos teus cair na areia,

Que tem de estranhos pés inda os sinais.

Vem envolta em teu manto de princesa!

Do teu berço de gótica grandeza

Ergue com majestade essa cerviz:

Em tuas galas bélicas assoma:

Mas olha: — há nela ainda a invicta Roma,

E vós... vós sois ainda os mesmos vis.

Que impaciência, ó fervidos cavalos!...

Depressa vão... vão rápido encontrá-los,

E as tredas hostes reduzir a pó.

Quem serve ao livre, é livre, e bravo, e forte!

Quer antes ver de face a face a morte

Que ser escravo por um dia só.

Lavarás essa mancha vergonhosa

Com uma ação tão alta e gloriosa

Que cause assombro às gerações por vir,

E arranque um grito de triunfo à historia,

E haja nesse despertar mais glória,

Que baixa infâmia no seu vil dormir.

Mansilha, que açoitava as esperanças,

Por entre vasto florestal de lanças,

Por entre espadas estendia o algoz...

Da guerra acende Roma agora o facho:

Antes ninguém se viu cair tão baixo;

Ninguém tão alto subirá depois.

Vão pôr à prova nesse encontro o braço,

Mostrar que o peito é ferro, é bronze, é aço,

Que a espada entende a vingadora voz,

Que pela boca há de correr-lhe o sangue,

E que o cadáver do inimigo exangue

Cairá gemendo do seu golpe atroz.

Deslembras tu, ó bárbara vassala,

Quando arrastavas tua pobre gala

Sob as asas das águias imperiais,

Que tua c'roa era de rochedos,

E que abrigavas os teus filhos tredos

Em bosques rotos pelos tremedais!?...

Embebes orgulhosa hoje nos ares

A c'roa de palácios seculares,

Que vastos, largos horizontes têm;

Queres ver respeitado o teu diadema;

Podes ser forte: e tua mão algema,

Quem dos seus montes te olha com desdém.

Mas dela a inércia só foi tua glória;

Sua mudez teu hino de vitória;

Foi seu sono o rigor de tuas leis...

Mas se inda, há pouco, ressonava o escravo,

Hoje acordado cada um é um bravo,

Sonhando glórias, que nem sonham reis...

O rio popular sai do seu leito!

Há de, Alemanha, te arrasar o peito,

Rugir, morder-te, revolver-te o chão!...

Quem zombar ousa do leão que dorme,

Nas mãos sangrentas a cabeça enorme,

Na boca aberta as sanhas do trovão?!...

Sentirão as nações ranger seus ossos,

E os povos servos vendo os teus destroços,

Um novo esforço contra os reis farão:

Agora... veem o fogo da fornalha!...

Mais uma hora... a hora da batalha,

Morder no ferro os malhos ouvirão.

De pedra em pedra tropeçando em terra,

Muitas cidades cairão na guerra,

Que o gênio das batalhas mo prediz!

Mas são honrosas estas cicatrizes:

Por estes golpes garfam-se as raízes

Da independência e glória de um país.

Ergue-se um povo à voz da liberdade,

E ele infunde terror, e majestade!...

Fermenta, humana lava de vulcão...

Vai despenhar-te além por estes vales!...

Ai! que ruínas! que miséria! e males!...

Mas de tais cinzas os bons frutos são.

Da olimpíada o carro eis na carreira:

Desaparece em turbilhões de poeira,

E voa... e surge além com o vencedor

De aplauso um grito imenso ergue a assembleia,

Grande... como uma estrofe da Odisseia,

Sofrendo Aquiles no combate a Heitor!...

Povo da Itália, que porvir te aguarda!

Tua raça, que criam ser bastarda,

É romana no sangue e no valor.

Desdobra pelo céu tuas bandeiras,

E sobre a terra as hostes altaneiras,

Já despertadas do seu vil torpor.

Eis raia o sol das grandes esperanças!...

Moços, velhos, mulheres e crianças

Às armas! — Rufa o bélico tambor!

Às armas! — Eia, às festas da vitória!

Às armas! — Ao combate, à paz, à glória!

O escravo de ontem vai surgir senhor!...

Vinde, feras nações, lançai metralhas:

Todas heis de gastar em mil batalhas,

Até a liberdade enfim raiar.

A negra flor da escravidão, que medra

Por entre as rugas de um lençol de pedra,

Não há de a bela Itália amortalhar...

A filha d’África (1862)

I

E volve os olhos da amplidão imensa,

E pávida recua,

Como se dela lhe estendesse os braços

A própria imagem sua!...

Porém não foge. — Vara o véu de trevas

Com olhar mais profundo...

— O que traz esse exército de bronze

Das brenhas de outro mundo?

Ouve-se o rebater de ferro em ferro

Da pesada armadura,

E o relinchar dos mádidos cavalos

Lá pela treva escura.

Ouve-se o baquear no chão rodando,

De uma imensa cidade,

Rasgada a bela túnica de pedra

Às mãos da tempestade.

Ouve-se... é noite. — Mas eis chega o dia...

A luz já bruxuleia:

Do mar a face em noites de tormenta

De visões está cheia.

É como a noite negra dessa fronte...

Que sol hoje viria

Pendurar dos seus raios sobre os mares

O pavilhão do dia?

Que sol nas tranças de ouro hoje enxugara

A fronte das colinas,

Por cujas rugas, como as cãs de um velho,

Debruçam-se as neblinas?

Dele só vê-se a luz, sem na carreira

O olhar poder segui-lo;

Como do dardo, que golpeia a noite,

Só se escuta o sibilo.

Mulher, raio de luz perdido em trevas,

Por que soluças tanto?

Espera! o sol virá... limpa os teus olhos

Nas fímbrias do seu manto

Mas o que quer? Àquela mole imensa,

Que aos pés lhe ferve e estua,

Por que distende os olhos? Pelas vagas

Que visão lhe flutua?

É a da pátria... — É a visão da terra

C’roada de palmares,

Que ela está vendo a se mexer nas águas

Lá na extrema dos mares!...

II

Às abas do Oceano estar cismando

Costumava a africana,

Enquanto a clina do leão eterno

Aos seus pés espadana!

Enquanto nas mil voltas das cadeias

Revolve-se ululante,

Como se estorce o ímpio, — as mãos atadas

A um só verso do Dante!...

Seu rosto, — um roubo ao ébano da noite,

Umbroso se explanava,

E a dor, rasgando-o, o ervaçal das ruínas,

Sem murmurar, plantava!

Nos olhos seus apenas lhe vacila

Quasi extinto fulgor,

Como o da escama de enroscada serpe

Ao faltar-lhe o calor.

Dores... sofre-as o corpo; mas sua alma

Parece nele estar

Tão alta, como estrela, ou tão profunda

Como a concha no mar.

Como a concha onde a pérola adormece

No fundo do oceano

Enquanto em cima há o batalhar eterno

Há o lutar insano!

Como a estrela que, após as tempestades,

Nem mais bela que dantes,

Tendo aos ombros a aljava carregada

De dardos mais brilhantes!

Nem tanto! — Entre as visões a alma lhe treme

No íntimo sacrário,

Como balança a alâmpada entre o fumo

No seu alampadário!

E, às vezes, rola o fio de uma lágrima

Pela face... tão manso

Como gota de azeite, que transborda

Da alâmpada ao balanço!...

Naquele coração — naquele abismo —

Despenhada a ventura,

Livre saltou, correu, rugiu, bem como

O leão na espessura

Naquele coração — leito de pedras —

Mal formado, é verdade

Na virginal beleza em que, selvagem,

Bramia a liberdade!

Nua, bem como um semideus de Homero,

A vida em segurança

Levava aos ombros dentro de uma aljava,

Ou pendurada à lança!

E o coração agora? — É leito a seco,

Em que as vagas passaram:

É como as rochas negras das montanhas,

Que os raios calcinaram!

Mas inda pode o olhar medir o rio,

De pasmo apoderado,

Pela grandeza do bordão de pedra

A que andou encostado!

Que ele deixou abandonado às selvas,

Que ao tempo ainda respeita,

Porque à noite, do rio a sombra ainda

Por sobre ele se deita.

Peregrinai atento no seu rosto;

Entre escabrosidades

Colhei, dentre o ervaçal, que o tolda, a ossada

De antigas felicidades!...

Por essas valas descambando os olhos,

Que a dor cravou na tez,

Talvez num riso, que tombou nos lábios,

Ainda tropeceis!...

Esqueleto de um riso!... — Os ossos soltos

De uma ave que morreu,

Que o verme, a fera, o tempo devoraram...

Eis o sorriso seu!...

Resta-lhe o lábio, como um ninho seco,

De um tronco pendurado,

Vazio do que tinha de mais lindo!

E eis tudo do passado!

Homem, no entanto, nesse porte altivo,

Nesse olhar quasi fero,

Não se parece ver um rei mendigo

Dos poemas de Homero?

O mesmo raio que devora os mares,

Que põe por terra o monte,

O raio só do Vingador do Horeb,

Esfumaçou-lhe a fronte!

E tu hás de aviltar a raça inerme,

Que merecera dó...

Que amanhã... que hoje mesmo Deus sacode

Contigo ao mesmo pó?

E entretanto ela vem como o assassino,

Que treme à voz do crime,

Sentar-se à planta do leão eterno,

Dar folgo à dor que a oprime!

Vem procurar — entre as visões da noite —

A terra dos palmares,

Que ela está vendo a se mexer ao longe,

Lá na extrema dos mares!

III

E um dia, imóvel na atitude eterna

De estátua abandonada,

Que sofre o pó, o vento, a chuva, o raio,

Ela ficou — num lânguido desmaio —

À pedra agrilhoada!

Imóvel!... Como a página de um livro,

Que o furacão abriu,

E o furacão passou, deixando-o aberto,

Que está, — em que de vozes mil coberto,

Mudo, como caiu!

Imóvel!... Como sombra resumida

No cabeço de um monte;

Sombra, que pouco e pouco se estendendo,

Solta do flanco negro um grito horrendo

Que povoa o horizonte.

Imóvel!... feramente os olhos fixos,

A fronte sobre a mão.

Como na jaula altivo e desdenhoso,

— Quasi leão de bronze no repouso,—

Animado leão!

Imóvel!... Como um deus de eras heroicas

Em base de granito!

Sua alma, como que enterrada tinha,

Como folha de espada na bainha

Nas cousas do infinito!

Nas pompas desse dia majestoso

Bebera um vigor novo!...

O céu, o sol, o mar, que aos seus pés tinha,

Bosques, aves... ali era rainha...

Tudo isso era seu povo!...

Mas eis que à fronte vem pousar-lhe um nome!

A mão na fronte passa,

E dela cai-lhe o mundo despenhado,

Como um quadro de vidro pendurado,

Que o vento despedaça!

E dando um grito como o da leoa,

Que o caçador feriu,

Que, com a bala a pungir-lhe inda as entranhas,

Bramindo busca o fundo das montanhas...

Ela ergueu-se e fugiu!

Fugiu!... e desse mundo, que caíra

Com um sopro aniquilado...

Vi pouco a pouco erguer-se da poeira

A mansilha ensopada da sangueira

Do corpo lacerado!...

IV

E noutro dia esquecida

De novo à pedra ficou:

Deus nova luz, nova vida

Dos seus olhos pendurou.

Soberbo, como soia,

Trazendo ao seu colo o dia,

O mesmo sol vinha então:

Nas mesmas ímpias cadeias

Mordia as mesmas areias

O mesmo altivo leão!

Mas não veio a fronte inerme

Dourar-lhe linda visão,

Que, — como um pequeno verme,

Esmagara a própria mão.

Ai! o mundo que ela vira,

Que aos pés sem rumor caíra,

Nem pó deixara por fim!...

Ao céu os olhos levava;

Ao mar os olhos baixava:

O que pensava era assim:

— Quem sabe se como eu vivo

O sol não vive também,

E como o leão cativo,

Jaula eterna no céu tem?

Um — preso, no céu suspenso,

Outro — atado ao mar imenso...

Ambos por uma só mão;

Ambos tendo a imensidade,

Ambos tendo a majestade,

Águia — o sol, — o mar — leão?

No universo é tudo escravo!...

Se um dia quebra os grilhões,

O rio soberbo e bravo

Vem rugindo dos sertões;

Sobe morros, galga outeiros,

Nivela despenhadeiros;

Da granítica raiz

Vastas cidades sacode...

Ninguém opor-se-lhe pode:

A voz de Deus assim quis.

Mas se Deus diz: Volta à selva:

O rio, como um cordeiro,

Vai morder a verde relva

À sombra de pobre outeiro:

Rasga os seus velos apenas

Das pedrinhas nas centenas,

Que por suas margens há:

Mesmo no meio — a um seixinho —

Vai pousar um passarinho,

Vai cantar um sabiá.

Quem sabe, pois, se à torrente,

Que Deus na África arrojou,

Que nossos campos— potente, —

Que nossos povos talou!

Deus há de dizer um dia:

— Basta: — e a torrente bravia

Há de ao seu leito voltar:

E há de sair das entranhas

De nossas broncas montanhas

Um rio maior que o mar?

De nossas selvas no seio,

Que fazem nossos leões?

Dormem? — O dormir é feio,

Quando é por sobre grilhões!

Quem sabe se agora mesmo

Não stão vomitando a esmo

Pelas gargantas e vãos

Hordas, que irão a milhares

Pedir às praias, aos mares

Os ossos de seus irmãos?!!...

Quem sabe? — Deus pode tudo:

Esta palavra aprendi

De um povo bárbaro e rudo,

No meio do qual nasci:

Aqui não... aqui não creio

No nome de Deus, que veio,

Dos que me rojam baldões;

Caiu-me dentro do ouvido

Como o ferro derretido

De muitos... muitos grilhões!...

E nesse dia voltava,

Se não feliz e sem dor,

Mais calma a mísera escrava

À casa do seu senhor!

Lançava um olhar mais terno

Ao sol — no cárcere eterno —

Lágrimas de ouro a chorar,

Deixando às mesmas cadeiras

Mordendo as mesmas areias

O eterno leão do mar.

V

Hoje inunda-lhe a fronte pensativa

De uma linda manhã a luz mais viva,

Que a veio inda encontrar!

E os reflexos de uma alma que vacila

Tremem ali na fúlgida pupila,

No irrequieto olhar!

Enquanto a brisa da manhã rasgava

O véu da noite, em que se envolve a escrava,

Enquanto o mar bramia,

Enquanto o sol se erguia do oriente,

A pobre escrava, nesse olhar ardente,

Gemendo assim dizia:

— Que é isto, meu Deus? Que é isto?

Ai! ontem fui mais feliz!

De tudo que tenho visto,

Vem uma voz, que me diz:

— Escrava! — voz, que murmura,

Que foge, que o olhar procura,

Que voz humana não é! —

— À escravidão condenada! —

O sol, que está longe brada,

E o mar que me está ao pé!...

Escrava! diz o arvoredo:

Escrava! diz o tufão!

Escrava! mete-me medo

Esta voz de maldição!

Dali poisado a um raminho —

Diz escrava! — o passarinho!

De cima dos alcantis

Vozeia a torrente brava:

Escrava! — Mísera escrava!

Tudo o que é livre me diz!

Como os meus olhos os viam

O sol — águia, o mar — leão!

Na mesma jaula fremiam,

Na mesma eterna prisão!

A mão, que aos grilhões os dera,

Nos vãos da terra e da esfera

Lhes cavara o seu lugar!

Entre a curva dos seus braços,

Ó águia, deu-te os espaços,

A ti, leão, deu-te o mar!

Mal Deus repousado tinha

Dos dias da criação,

Leva o sol águia-rainha,

Junto c'o mar rei-leão,

Como dádiva inocente,

Raio de luz mais fulgente,

Vaga de mais escarcéu...

— Rivais — diz Deus: Temo a guerra. —

Prendeu o leão na terra:

Prendeu a águia no céu!

Mas ambos na jaula imensa

Podem correr: — livres são!

Quem me dera tal sentença

Com tão augusta prisão!

E a natureza me insulta:

Com altivez me sepulta

Debaixo dos risos seus!

E o sol me cobre de poeira...

Dessa, que talvez não queira

Pelo seu caminho — Deus.

A esmaltada mariposa,

Que abre ao sol asas de azul,

E o verme, que só repousa

Pelos lodos do paul

O passarinho na selva,

A juriti pela relva,

Pelas nuvens o condor,

Pelos espaços o vento,

Bradam-me a todo momento...

— Oh! nós não temos senhor!...

Não tendes!... além do braço,

Que suspendeu sobranceiro

O sol no fundo do espaço,

E no mesmo espaço o argueiro!

Que fez com o mesmo trabalho

Grande o mar, pequeno o orvalho,

E que tanto lhe custou

Fazer a águia altaneira,

Como deitar na poeira

O verme, que ao chão rojou!

Oh! livres sois — Como é belo

Respirar a liberdade,

Mesmo atada por um elo

À mais alta majestade!

Deus não vos quer ver a esmo:

Deus vos conduz por si mesmo...

Deus vos leva pela mão.

Oh! suprema felicidade!

Oh! querida liberdade!

Oh! maldita escravidão! —

Assim à pedra sentada

Somente a escrava pensava,

E na língua mal formada

A ideia virgem moldava.

Lá via o voo atrevido

De uma ave: dava um gemido!

Aos bosques, ao sol, ao mar,

Ao verme, às próprias correntes

Só com lágrimas ardentes,

A escrava sabe falar!...

VI

Veio o senhor: — e viu a pobre escrava

Cismando à beira-mar:

Desenroscando, as serpes dos seus olhos

Vão nela se cravar.

"Que fazes, vi!? Que vens buscar aos mares?

Que mais pretendes tu?

Fome não sofres: tens melhor choupana,

Que de colmo e bambu

Não te açouta em nudez o sol ardente,

E a rija tempestade!

Que mais te falta?'' E respondeu a escrava:

— Senhor, a liberdade!

E as lágrimas dos olhos lhe saltavam!...

Assim de morto galho

A asa do vento, que arrastando passa,

Sacode o branco orvalho.

A clocolar a lágrima de um monte

Na relva se desata:

Aqui se enrosca, ali se desenrosca,

Como serpe de prata.

Assim lhe serpenteia pela face

Branquíssima corrente,

Que vem das solidões da alma, e tão fundas

Como as da África ardente!...

E sorriu-se o senhor!... mas como o nauta

Na procela ao cismar,

Se nunca viu cavado pelos ventos

Um sepulcro no mar!...

E sorriu-se o senhor!... mas qual soldado,

Quando de guerras fala,

E que nunca sentiu a dor que punge,

O golpe de uma bala.

E a africana lá foi!... viu tudo livre,

A aurora, que raiava,

E o mar, e o sol, e o bosque, e o vento e o verme...

E ela somente escrava!...

E a africana lá foi!... E noutro dia

Tornava à beira-mar,

Para ver ave, e onda, e tudo livre,

P'ra de novo chorar!

E enquanto lhe restasse na epiderme

Um só lugar vazio,

Com sangue iriam lhe escrevendo a história

Do meditar sombrio!...

VII

Africana escravizada,

Sátira viva arrojada

A um povo infame e traidor!

Esta nação é tirana!

Maldiz, mulher africana;

Tu não és da raça humana,

Ou é vil o teu senhor!

Deus te guarda na lembrança!

Como a sombra da vingança,

Sobre ela pousas fatal!

Deus por vezes do infinito

O seu olhar tem já fito

No seu trono de granito,

Na sua c'roa imperial!

Não vês aí ao comprido

Languidamente estendido

Na imensa praia do mar,

Quem do Amazonas ao Prata

O corpo imenso desata,

Do verde berço da mata

Querendo se levantar?

Ei-lo! lá ergue-se agora!

Raia p'ra ti nova aurora,

Tens tua c’roa de Rei,

Lança bem longe as tuas vistas:

— Conquistas sobre conquistas! —

Dos teus troféus não desistas:

És grande afora: bem sei.

Muito o teu olhar descobre!...

Pois vê se és grande, se és nobre;

Profunda-o em teu coração!

Dê-te Deus uma centelha

De luz, e vê que semelha

Ter nas garras uma ovelha

Com direitos de leão?!!...

Vai, pois, nação altaneira,

Aos olhos baixa a viseira,

O azorrague na mão!

Da história os livros manchados,

Dos ferros enferrujados,

Enfeiam já dois reinados

Com as nódoas da escravidão!

Vai, ridículo gigante,

Grande e belo como Atlante,

Cheio de brilho e altivez:

Enverga a nobre armadura,

Louros em tudo procura,

Enquanto aos teus pés sussurra

A raça vil que não vês...

Mas que te cospe na cara!...

Mas... que essa glória manchara

Qualquer que pudesses ter,

Que salpicara teu manto

Com seus gritos, com seu pranto,

E depois — se podes tanto —

Ri aos louros, sem tremer.

Vexame!! triste memória!!

E essa página da história,

Que se não possa arrancar!!

Não há de novo escrevê-la:

Não há torná-la mais bela,

Embora por cima dela

Cem vezes rolasse o mar!

Ai! se na alva, que desponta,

Vingassem eles a afronta!!?

Que diríamos depois?

Quando, com o mesmo direito,

— Os joelhos sobre o peito —

Então tivessem sujeito

O povo — rei, seu algoz?

Quando lançando à fornalha

Para as armas da batalha

O ferro dos seus grilhões...

O povo bárbaro e rudo

Se erguesse... tu, povo mudo,

Que dirias a isso tudo,

Respondendo aos seus canhões?...

Então, morno e sucumbido,

Ai! só terias sabido

O que eras tu, servidão;

Olhando com triste ansiedade

O passar da tempestade,

Que rojava a liberdade

Para as garras do leão! —

VIII

O Brasil, nobre atleta do futuro,

Sobre a armadura ressonando dorme:

Suas cidades são apenas ecos

Das pulsações de um coração enorme!

Ouviu... quem sabe? o rebater pesado

Do camartelo rudo em ferro horrendo,

Com que o sec’lo apunhala o seio às brenhas

E abre rasgões por onde vai correndo.

Aos sons — talvez — desse estrondar acorda!

Rei, soberbo e indolente, a espreguiçar-se

Na verde cama de vergéis floridos,

Boceja e sonha e ri, sem levantar-se!

O almafre de florestas gigantescas

Balança-lhe no elmo das montanhas!

Enquanto dorme, povos e tributos

Roja-lhe o mar das túmidas entranhas!

Sobe o gênio do século os seus rios,

Toca-os nas margens com as mãos de pedra:

Logo pulula um povo torrentoso,

Uma cidade de repente medra!

Belo o porvir. do trono seu de trevas

C’roa-lhe a fronte de esperança e flores!

O sol e seu padrinho: a primavera

É sua noiva: é ela os seus amores!

Por que és tão mau, ó filho do Oceano,

Deitado à sombra da floresta antiga?

Quando tudo p’ra ti só tem sorrisos,

A tua mão sem pundonor castiga!

Podes ser grande... hás de ser grande, ó terra!

Mas teus braços — um dia — envergonhados,

Hão de levar do tempo à fronte augusta

Uma c’roa de séculos manchados!

Homem livre e feliz, eu não te canto,

Em que dê pouca luz meu canto inerme:

Não sou um astro que vomita chamas,

Mas não vomito lodo — tal um verme.

Tu, Africana, és infeliz; eu te amo.

Lavar-te os pés com versos meus consente,

Não perde o incenso o odor em tosco jarro,

Nem tem mais cheiro em vasos do Oriente.

IX

Oh! como sobre as asas das estrofes

Sinto minha alma desdobrar-se agora!

Como na areia de uma praia virgem

A vaga bate, e se desdobra e chora!

Os olhos alonguei na funda chaga,

Que a fronte da nação livre ulcerava:

E quando interroguei a boca hedionda,

Ouvi dela sair a voz da escrava.

Roubei meu canto à voz das agonias,

Quis num só feixe atar todas as dores,

E rojá-las à face desse povo,

Em tal banquete as só possíveis flores!...

Tomei nos braços dos grilhões o peso,

E disse: — É necessário um camartelo

Grande... batido à forja por Ciclopes,

Para os poder quebrar elo por elo!—

Mas da cova ao sopé despem-se os ferros,

Deixa-se o cetro, e se abandona a c’roa!

Do pobre ninho ali cavado em terra

Ave brilhante as asas bate e voa.

Como a pomba sacode o pó das penas,

Qual deixa a borboleta a larva impura,

A alma sacode o corpo sobre a terra,

E aos céus adeja em toda a formosura.

Aquidabã (1870)

Maxima res effecta, viri...

Virgílio - Eneida

Aquidabã! teu nome não soava

Além da pobre margem, que apertava

O teu berço gentil.

Tu ias dentro em teu leito macio,

Sem nunca ver das águas do teu rio

Quebrado o brando anil.

Os pássaros do céu nos seus adejos

Vinham mirar-te, e os pobres sertanejos,

E a morena aldeã...

Enquanto o sol, águia de fogo, abrindo

As asas dos seus raios, te sorrindo

Passava, Aquidabã.

Escravo ignoto de um senhor tremendo,

As várias curvas ias descrevendo

Do teu curso imortal;

Tu eras, como lâmina de espada

Nos florestais do teu país lançada

Sob um sol festival!

A Providência te encravara ao seio

De aspérrimas montanhas, e no meio

De abruptos alcantis,

Lançara-te, água resplendente e bela,

Como silente e armada sentinela,

No centro de covis!

Via-te o sertanejo ao sol cambiante

A tua móvel lâmina brilhante,

Tremula reluzir...

Viam pesar em ti as serranias...

Mas não viam luzir os faustos dias,

Que guardava o porvir.

Ninguém vendo o teu colo cristalino

Calcar a planta do pastor menino,

Teu leito a vadear...

Ninguém, nas trevas de um futuro ignoto,

Soubera o grande teu porvir remoto

Ao menos soletrar!

Débil dedo de prata derretido,

Como um fio nas matas escondido,

Deus lançara-te aí

Para que fosses marco milenário,

Que aos séculos dissesse: — o sanguinário

A alma escarrou ali...

Oh! quando o monstro procurar-te veio,

Crespas as águas, revoltado o seio,

Teu dorso se eriçou...

Vomitaste na praia o espólio horrendo

Onde em vascas de morte se estorcendo,

Tombou... enfim tombou!!...

Inda depois de morto o rosto fero

Desse que foi mais Nero do que Nero,

Num hórrido palor,

Parecia cismar um novo crime:

Mas Deus na causa da razão sublime

Pôs termo a tanto horror!...

Serás p'ra sempre, ó rio, celebrado;

Da história o livro belo está dourado

Dos feitos marciais

Com que nessa epopeia grande e santa,

Às margens tuas, o Brasil levanta

As estrofes finais.

As gerações futuras procurando

A pátria história, que lhes vai soando

Tais feitos, amanhã...

Irão da Uruguaiana às fundas matas,

Parar nas águas, que imortais desatas

No ermo, Aquidabã...

Irão enchendo o espaço solitário,

Com esse nome imenso e legendário

De Osório, o general,

Que escrevia o poema cintilante,

— Ruidoso Homero, portentoso Dante —

Da glória nacional.

Foi sua pena a espada vencedora!

O Sul repete ao Norte, o poente à aurora

O seu nome sem fim.

Deu nas armas um novo exemplo ao mundo,

De saber ser primeiro e ser segundo...

Sendo maior assim!

E redirão as gerações futuras

As batalhas aspérrimas e duras,

Que o Brasil batalhou,

E os mil nomes de heróis, que celebraram,

A terra que com sangue seu regaram,

E o chão, que os sepultou.

Nome de heróis juntando ao das batalhas

Vendo os banhados, naturais muralhas,

Rios, que o temporal

Torna mares, caudais pequenas fontes...

Perguntarão ao sol, e aos horizontes,

Se o drama foi real!?

Relendo uma e mais vezes, duvidosos,

A história, esses gigantes, majestosos

Revivos se erguerão,

Ferindo ali as lutas já passadas...

Grandes!!... dirão as gerações prostradas...

Grandes!! grandes!!... dirão!

Ouviu-se um dia um rábido bramido:

Era o Brasil; leão adormecido,

No fundo dos sertões,

Erguendo-se tremendo e furioso...

Erguendo-se tremendo do repouso,

Deixando as solidões...

Não foi ao impulso de uma vã grandeza!

Da honra ultrajada ergueu-se na defesa,

E por ela partiu...

Por ela batalhou, sofreu por ela...

Mas a nação ergueu-se inda mais bela

Na glória que a cobriu.

O Brasil todo suportou calado,

A mãe o filho, a esposa o esposo amado

Morto em prol da nação;

E o ouro arrancado ao campo, à indústria, às artes.

Por toda a parte havia baluartes

Em cada coração!

Todos tinham um bramido de vingança,

Um só desejo, uma única esperança...

A honra enfim salvar!...

Ergueu-se o povo ao mesmo sentimento,

Como em vagas se eleva ao mesmo vento,

Ferido o mesmo mar!...

Toda a nação velou os seus direitos!

Havia em todos os brasileiros peitos

O mesmo pátrio amor!

Foi ele o só farol na luta crua,

E o povo todo foi da honra sua

O estrênuo defensor!

Tu refletes o esforço brasileiro,

Famoso Aquidabã: o mundo inteiro

Teu nome vai saber!

Sim! tu resumes toda a nossa glória,

Epílogo sublime dessa história,

Que o mundo pasma ao ler!

Sombras de heróis, deixando as sepulturas,

Cantam também às tuas margens puras

O hino triunfal:

Mesclam os sons de suas melodias

Aos sons dos seus que vêm das serranias,

Do combate ao arraial

Outro fantasma triste e descorado,

Não já qual tinha o monstro preparado

P'ra o mundo amedrontar;

Roto o manto oscilante de muralhas,

A fronte sem o lume das batalhas...

Vem até ‘li parar!

É Humaitá! a enorme fortaleza,

Da América terror, agora presa

Das armas imperiais:

Um vão fantasma do que foi outrora,

Que em roto manto de rochedos chora,

E diz: — Que querem mais?

Há quantos anos nesta terra lavra

A guerra... mas a última palavra

O Brasil a escreveu ...

Eu vim ver meu senhor também caído!

Ai! Deus tem a justiça a seu partido!...

Só a razão venceu!! —

Calou-se o monstro, e confundiu passando

O arcabouço de pedras vacilando,

Aos muitos alcantis

Que se engrupam nas próximas montanhas!

E ergueram-se inda mil vozes estranhas

Nessas águas gentis!

E aí o velho Paraguai escravo

Morre abraçado ao seu tirano ignavo,

E nessas margens jaz...

Enquanto o novo ao sol da liberdade,

Irradiando de força e mocidade,

Levanta-se vivaz!

Corre, Aquidabã, corre, e murmura!

C'roam-te as verdes palmas da espessura

O teu curso triunfal:

E do teu leito eleva-se gigante

Teu grande nome, que ressoa ovante,

Já na história imortal!

Às margens tuas morta a tirania,

Um povo morto ressurgindo ao dia,

Fazendo-se nação!...

De um grande povo a honra enfim vingada,

A paz metendo na bainha a espada,

E abraçando um irmão...

Aquidabã! Aquidabã! a glória,

A nossa honra, a nossa bela história,

Nossa paz de amanhã,

Nosso loureiro em flor por céu dourado...

Tudo em ti para nós Deus há guardado,

Aquidabã! Aquidabã!

Solemnia verba (1879)

À Espanha

Esta é a verdade

E vós todos deveis reconhecê-la.

Homero - Ilíada, canto XIV

Revolta a entranha, gotejando sangue,

Poluta a carne, rota e palpitante,

Olhos sem lume, o corpo inerte e exangue,

Lacerada, qual tronco de gigante,

Que o raio lasca, e que do vento a sanha,

De alto a baixo derroca da montanha...

Nas vascas da agonia a Espanha estava!...

Embalde a liberdade austera e honesta

Máscula força e um novo ardor lhe dava...

Quer erguê-la... bradaram-lhe: — Não presta. —

Mas... vem um rei; abate-a; e (cousa estranha!)

Bastou: stá viva: ressurgiu a Espanha!...

E ela!. vede-a... é ela!... Embraça o manto,

Que pela espalda lhe cai longamente;

No olhar... prazer, enleio, orgulho, espanto:

A régia coroa lhe ilumina a frente:

E por meio do povo, que é-lhe espólio!

Rasga a estrada do Ápio ao Capitólio.

Para saudar o império, que surgia,

Dentre as brumas da aspérrima tormenta,

Que inda montes e vales envolvia,

A primavera festival rebenta,

E, espedaçando o manto das neblinas,

Ergue a fronte enrolada de boninas.

Íris de paz atou o céu à terra,

Chiou no campo o hino da charrua,

E o clangoroso som da voz da guerra

Por vales, montes, serras não estua:

Riem-se as esperanças e os desejos,

Músicas brincam pelo ar e arpejos.

Há como o esvoaçar do anjo da glória

Desde os seus Pirineus ao Guadarrama!...

Que folha se voltou à sua história?

E esse herói, que a voltou, como se chama?

Que Ilíada essa mão recém-chegada

Vai escrever na página voltada?

Das velhas catedrais nos campanários

Uns gigantes molossos bronzeados,

Negros espectros, feios, legendários,

Ladraram de alegria ou de assustados,

Interrompendo o seu profundo sono,

Porque subia Afonso XII ao trono.

Longos répteis de bronze ajoelhados,

Como leões a um domador de feras,

Nos seus moitões de ferro acorrentados,

Com carcereiros de feições severas,

Saúdam roucos, como a populaça,

Ao último que os doma e os vence e passa.

Em Madri os altíssimos senhores

Pompeavam librés de várias cores:

Como um riso de Deus o sol brilhava,

Forrava o céu um céu de galhardetes,

E entre gritos, repiques e foguetes,

Ria-se austeramente a Calatrava!!...

Os cantores de todas as vitórias,

Os servos vis de todos os traidores,

Turiferários de fictícias glórias,

Beijando o pó dos pés aos seus senhores,

Só estes veem a vida, a paz e flores

Onde os mais veem grilhões, miséria, horrores.

Mas onde andavas tu, ó linda escrava?

Por onde e em que dourados devaneios

Por um momento rugidora e brava

Ensanguentavas teus formosos seios?

Qual era a tua ideia e o teu caminho,

Nua, descalça, rota, em desalinho?

Descabelada, em lúbrica loucura,

Grande, como uma estranha divindade,

Palpando as trevas de uma noite escura,

O que buscavas tu na liberdade?

Por onde, escrava de cem reis, tu voas,

Cetros partindo e espedaçando c'roas?...

E tropeçou nas c’roas dos senhores!...

Tropeçou nas espadas dos bandidos:

Tropeçou nas bandeiras multicores;

Nos punhais dos seus príncipes vencidos!...

Em cada passo o abismo escancarado,

E em cada abismo um grito do passado!

Como em hartos rochedos seculares,

Tropeçavam seus pés nas catedrais...

E amoedando os vasos dos altares,

Moldando em arma os bronzes colossais,

E os buréis, como lábaros brandindo,

Ante ela os monges foram-se reunindo...

Foi-lhe barreira a igreja, o padre, o monge,

Os escribas da lei degenerada;

E a pobre liberdade ia de longe

Vendo a cruz do calvário alevantada...

E à louca multidão, que além se espraia,

Ela ouvia bradar: — Crucificai-a!

Um povo repassado da ferrugem

Das cadeias e tendo a alma vincada

Dos velhos elos, como as vagas mugem

Quando se alteiam na procela irada,

Ergueu-se; e as roucas vozes ecoaram:

— Que é dos nossos grilhões, que nos roubaram?

Surgiu embalde a voz onipotente

Sobre o murmúrio desse ingente mar:

Como o rugido do leão fremente,

Passou a voz de Emílio Castelar.

— Vai com teus sonhos, lhe gritava o povo,

Nossos grilhões... nossos grilhões de novo —

Armada sentinela do futuro,

Imóvel, como estátua num rochedo,

Via sem ódio, sem paixão, sem medo,

Em convulsões do povo o mar impuro,

E na tremenda agitação que lavra

Da boca sai-lhe um sol: — era a palavra.

Àquele mar que cresce, ferve, estua,

Como leão nas jaulas indomado,

Ele arremessa a voz candente sua,

Como um ciclope um monte derrancado:

E monte a monte — Encélado moderno —

Cai dentro desse mar seu verbo eterno.

— Vós, que vendeis a vossa liberdade,

O que sereis na história? O que ser há de

Quem sem pejo a alma vende, um monstro enorme,

Cabeças a milhões, e um só molosso,

Que embriagado sobre o sangue dorme,

Inda a rugir famélico de um osso.

Erguei-vos, povos, ergue-te, nação;

Crava os olhos no espaço luminoso;

Tu és a força, o indômito leão,

Porém na jaula,e em sono vergonhoso:

Falta-te a ideia falta-te a vontade...

Tens a força e não tens a liberdade!

Só darás uma prole corrompida,

Terra da Espanha? terra grande outrora,

Quando pugnava independência e vida,

E enchia a história de clarões de aurora,

E enchia o mundo de fulgentes brilhos!...

Ó Espanha, onde estão teus grandes filhos?...

Evoca. . . Rasga as pedras tumulares,

Quebra o ossário dos teus velhos soldados,

Ergue o lençol dos anos seculares,

Enche as criptas poentas dos teus brados,

Chama, invoca outra vez, ó povo ingrato...

Responde o Cid?... Acode o Viriato??...

Os grandes capitães não vêm. Passaram...

Não tens direito mais ao teu reclamo;

Dormem. Podem dormir, que trabalharam;

Pátria, que, ainda assim mesmo, eu tanto amo,

Porque enfim mesmo assim envilecida

És minha pátria, oh! eu te devo a vida.

Por que não fundaremos na justiça

Um grande império,— Castelar bradava! —

Temos sido o repasto da cobiça;

Espanha. deixa enfim de ser escrava,

Ó pátria de minha alma, Espanha minha,

De ti mesmo levanta-te rainha.

Acabemos de vez a vil tutela,

Dos que se creem legítimos senhores

De vós, soberbos filhos de Castela;

Fujam de vez os velhos opressores,

A lei por vós formada e vós aceite,

Seja o único rei que se respeite.

Bela esperança que o porvir nos doura,

Berço, ninho de amor, que nos embala,

Mimosa e doce como a moça loura,

Que aos tenros filhos com carinho fala,

Ama-te o velho, adora-te a criança,

Belo sol de alegria e de esperança.

Não temais, reis do mundo, o gládio dela:

Não é a liberdade algoz tremendo;

Como o sol passa em horas de procela

A face de ouro em nuvens escondendo,

Mas sempre sol e rei da imensidade...

Assim é ele... o sol da liberdade...

Vejo-te, Espanha, soberana e bela,

Ao banquete da paz chamando os povos,

Firmando enfim galhardamente nela

A conquista dos teus direitos novos...

Viva a paz, que engrandece e que consola...

É a paz a — República espanhola.

E o que é a paz? Sabei, ó espanhóis:

É o vosso salário ao lar fruído,

O campo roteado, o filho instruído...

São estes os pacíficos heróis,

Que hão de renhir batalhas à miséria,

E a luz plantar nos coruchéus da Ibéria.

E a luz? Sabeis que luz vem dar-vos dia,

Que sol, mais sol que o sol vem dar-vos lume?

É a ciência, amor, amparo, nume,

Beijo de irmão a irmão, forca, alegria.

Eia, espanhóis, à liberdade, à glória,

E aos pés da Espanha o espólio da vitória!

Vamos dar este escândalo ao passado:

Levantar a mulher, dar luz à infância,

Mais do que o cetro enobrecer o arado,

Lançar à noite imensa da ignorância

A afronta das auroras às mãos cheias,

Fazer ao fato o insulto das ideias.

A calúnia da luz à treva é bela!

A cada passo a estrela de uma escola,

E a alma do povo a iluminar-se nela!

Morta a miséria, um sonho a mão que esmola;

O cadafalso e o cárcere, utopias.

Temos na mão o sol que tem tais dias!

Nada desse consórcio infame e impuro

Do rei com o povo — do leão com a ovelha —

O cobarde traidor, que to aconselha,

Sacrifica à ambição, vende o futuro,

Douram-te os ferros, e com riso ameno,

Lançam-te o pomo de letal veneno.

Foge à ameaça eterna aos teus direitos,

Ao símbolo da força e da vergonha:

Ao rei leão, que faz que dorme e sonha

Lançar-te as garras aos hercúleos peitos,

E a águia popular quando agrilhoa,

Diz-lhe: — Estás livre e o espaço é grande, voa. —

Essa voz, como pedra preciosa,

Que cai na vasa da maré enchente,

Erra na confusão tumultuosa

Daquela pobre, envilecida gente;

E, como o mar, que bate nas areias;

Ela sacode o ferro das cadeias.

Grito de indignação, como a torrente

De chama e lava irrompe da cratera,

Procelosa, medonha, incandescente,

E os tremendos reflexos reverbera,

Por largo espaço derramando o espanto,

Grito de indignação enche o meu canto.

Oh! como ela, que devora os montes,

Convulsa a terra, os barrocais nivela,

Forra de cinza rubra os horizontes,

E diz enfim — eu chamo-me a procela —

Eu sou a boca que vomita a chama...

Grito de indignação irrompe, brama.

Dê-me a justiça cóleras divinas,

Com que amarre ao meu canto e açoite um crime

E, arrancando das lúgubres sentinas,

Aos olhos das nações arroje e exponha

Aquela que sem pejo e sem vergonha

De ser livre e ser grande enfim se exime!...

Que sangue golfa dentro dessas veias?...

Sangue já não: infâmia é só, cobardes:

Chama do heroísmo antigo já não ardes!

Sol da glória, em que estranhos céus vagueias?

Que infortúnio, ó traidores!!... E vós todos

Netos sois de celtiberos e godos!!!...

Pesa-vos menos o punhal que a lança!...

Nunca a vossos avós pesou a espada.

Tinham na argêntea lâmina guardada

Honra, fé, lealdade, ardor, pujança.

Dormi, para não ver tanta miséria,

Ó Viriatos da gloriosa Ibéria.

Tu mendigaste o opróbrio, ajoelhada,

Velha ulcerosa, às portas do Ocidente!

E a Europa, e a terra viu-te consternada,

Como uma estrela morta de repente!

E de um mau sonho na convulsa insânia

Lançaste o pensamento à Lusitânia.

Entre as colunas de Hércules atado

Deixa esse povo à sua própria algema,

Depois de mundos ter ao mundo dado,

Depois de muitos séculos de glória,

E um colosso dentro de um poema,

Resta-lhe ainda a universal memória!

Para a torrente que espumosa desce

Da nascente dos séculos, que fuma,

Rola, esbraveja, encurva-se, recresce,

Retrocede, e com ímpeto uma a uma

Suas ondas rojando por desvios,

Por sendas várias? se lacera em rios...

Para lançar a popular torrente

Num mesmo leito largo e grandioso,

Tu só podias (mas só tu), eu ouso

Dizer, ó alma da razão potente:

Tinhas um gesto e um som de voz severo,

Para dizer à humanidade:— Eu quero.

De velhos bronzes restos mutilados,

Pelo universo esparsos largamente,

Era lançá-los todos enfeixados,

Ó liberdade, em tua forja ardente,

E ao fogo teu no teu modelo novo

Fundir os povos num só grande povo.

Para o homem as nações não são barreiras.

Há hoje um só lutar, uma campanha;

E deve ser o lábaro da Espanha,

É a divisa das nações inteiras,

É a lei que dirige a humanidade.

— Deus — o ideal,— o meio — a liberdade.

É esta a nossa fé, a nossa crença,

Esta é do sec’lo a religião sublime:

Quem fugir desta lei comete um crime,

Nega a Deus, nega a luz, não crê, não pensa

Bonzos, fogueira, e inferno e gemônias

Passaram... como sombras fugidias.

Da vil hipocrisia a voz estulta

Inda se ouve grunhir da velha história,

Inda no pó dos séculos sepulta

Não stá de todo a tétrica memória?...

Sai dos impérios a marmórea ossada

Com o bac’lo inda, e a tiara ensanguentada.

Condenais a razão, sublime vento,

Que a alma arrebata a regiões ignotas,

Dando um Deus ideal ao sentimento,

E fazeis, vosso Deus, crentes sombrios,

Abrindo o céu às trevas idiotas,

Rasgando o abismo aos astros luzidios!...

Deus não é feito de paixões pequenas,

Nem de lodo dos vossos artifícios;

Não tem vosso rancor, nem vossos vícios,

Bando errante de míseras falenas

Sobre as ondas do tempo, inerme bando,

Vão, como pó, as gerações passando.

Em que jazigo, em que profunda cova,

Meterão a razão decapitada?...

Loucos!! não vedes? Surgirá mais novas,

Iluminando do porvir a estrada.

Feri-la, é ver sair do seio brando

Fio de luz em pérolas rolando...

Feri-la, é como quem audaz golpeia

Bronze fundido: —o molde espedaçado

Ruge, e crepita sobre a rubra areia,

E em mil fagulhas salta mutilado,

Parecendo de forja de gigantes,

Voar pedaços de astros palpitantes.

Pode oxidar-se o bronze, e azinhavrado

Pode a infâmia cuspir nele a ironia;

Mas quando chega de repente o dia

Em que o seio metálico é vibrado,

Não há ultrajes, azinhavre, lodo...

Para cantar seu hino é bronze todo.

Musa, serás o bronze. — Do horizonte

Lancem-te o insulto e o ultraje — amarga espuma —

C’roe-te o escárnio — espinho agudo — a fronte...

Mas tua voz solene enfim resuma

Contra este crime o grito de agonia,

Que a nova geração ao mundo envia.

Tem Juan Valdés — pincel dos mais ferozes —

Um Prometeu a um Cáucaso amarrado;

Da boca saem-lhe as moribundas vozes,

Do ventre largamente espedaçado

Jorra-lhe o sangue, e a revolvida entranha,

Onde inda ceva o abutre a raiva estranha.

Não faltam contorções naquele rosto,

E a dor e a indignação nos olhos gritam;

Equimoses do sangue decomposto,

Verde-negras nos membros, que se agitam,

Tornam aquele Prometeu sublime,

Pagando em dores seu divino crime.

Vejo-te assim, ensanguentada imagem

De Espanha sobre o teu Cáucaso augusto!

A entranha rói-te o abutre da carnagem;

Há em teu rosto indignação e susto,

E encadeada, e o céu inda fitando,

Entre dois mares torces-te, ululando.

Inda não tens um Hércules nascido,

Contra leões as armas ensaiando,

Que, escutando o teu lúgubre gemido,

Do velho Olimpo os deuses afrontando,

Das mãos rojando o sol da nova ideia,

Te esmague o abutre e quebre-te a cadeia?

Não — Oh! não!! Detestável cobardia!

E o sol não viu ainda a sepultura

Da última virtude: inda alumia

Honra, fé, esperança, amor, ternura,

E inda a musa estrangeira envergonhada

Levanta a voz, e ao céu vingança brada.

Sou teu filho também, ó Pátria espúria,

E tenho o orgulho homérico de um Cid;

Quando a razão crucia-se em Madrid,

E à humanidade fazem tal injúria...

Eu sinto o sangue galopar-me à face,

Como se eu só a injúria carregasse.

Reluto. — Sinto ser mais que teu filho;

Homem sou — e senti golpeada a entranha,

Quando, fugindo do esplendente trilho,

Em que ias triunfante, atrás voltaste.

Por que mentiste à liberdade, Espanha?

Por que na marcha triunfal paraste?

Eram talvez escravidões alheias

Mais nobres de sofrer em tempos idos,

Quando vinham tirar de vossas veias

Formidáveis tesouros escondidos,

Quando Cartago e Roma arrebatavam

Ouro somente... e a honra vos deixavam.

Hoje queimou vossa alma um ferro em brasa

Com o infame sinal do cativeiro...

Nem um loureiro sobre campa rasa...

Nem um prantear no alento derradeiro...

Nem um consolo à última agonia...

Morreu, coitada!... e enfim como devia!...

O proceloso vento das revoltas

Passa por cima de um cadáver mudo,

E no teu leito, Espanha, nem te voltas...

Prim, Amadeu, República, enfim tudo,

Até Afonso XII — o inocente —

Não te despertam, secular dormente!...

Mas o fragor da guerra? A artilharia,

Que ígneos dados de ferro está rojando

De monte ao plaino em hórrida porfia,

Os destinos de um povo assim jogando?

A coma ardente estrelam-te as batalhas!...

Pugnas nelas, Espanha, ou te amortalhas?...

Íxion sobre uma roda arremessado,

Todas as dores juntas num gemido,

Todas as contorções a um tempo dado,

Em um minuto um século fundido,

Num ponto só o abismo do infinito,

E o infinito dos gritos num só grito...

É o teu Íxion, Ribera: — és tu, Espanha,

Lançada à roda pela turba esquálida,

Que escarnece de ti com ódio e sanha,

Vendo-te nua, delirante e pálida,

No torvelim de um furacão silente

Condenada a rolar eternamente.

Que fauce hirsuta, que escamosa boca

Alonga aquela massa desvairada,

Como a maré que sobe ondeante e rouca,

E, como o tigre que tem fome, irada!...

Massa de vermes sobre quem já dorme!

Não é mais nada aquela cousa enorme!...

Há o ranger de cães a roer ossos

Há o grasnar dos corvos que esvoaçam

Sobre estes enormíssimos destroços;

Há o estertor de sombras que perpassam...

Há sangue nos brenhais e na montanha...

Não há mais nada nesta bela Espanha...

Morreu a Espanha. — A Espanha hoje está morta!

Mexem-na todos, sem que ela se mexa:

Na sua fronte a multidão suporta;

Da sua glória eclipsou-se o raio!...

Ai!... quem no impuro tremedal te deixa,

Bela Espanha do Cid e de Pelaio?...

Pátria de Riego e Castelar, suspensa

Tens em tua fronte o estigma profundo

De tua feia ingratidão imensa...

Com dó, mísera Espanha, olha-te o mundo,

E nesse teu fatal último arquejo,

Eu, estrangeiro, olho-te com pejo.

Quem pudera lançar sobre os teus ombros

Um manto, que te as chagas encobrisse,

Que te escondesse o feio dos escombros,

Que de sudário à podridão servisse,

Que te arrancasse à maldição tamanha,

Ó miseranda, ó miseranda Espanha!...

Podem gritar os servos e opressores,

Que de repente transformou-te a sorte,

Que um rei, e o seu cortejo de senhores,

Chamou-te à vida dos umbrais da morte. . .

Ninguém crê, pobre Espanha, que um menino

Transformasse numa hora o teu destino

E assim caíste, infame Messalina,

Emparedada no teu próprio crime!

Astro solto da órbita sublime,

Em que todo a esmaiada fronte inclina!...

Esqueleto de um sol inda na aurora,

Que esterquilínio pelo céu de outrora!!

Dorme, morta da luz, da fé, da glória,

E no desdém, — mortalha merecida, —

Sobre o oceano do tempo corrompida

Boia de praia em praia à luz da história,

E de manhã o mar, o vento à tarde,

Rujam bramindo: — ó maldição, cobarde!...

Águia esplêndida e bela do Ocidente,

Tinhas diante a eternidade, e o espaço!

Quem te acordara, mísera dormente;

Quem, com esforço de alentado braço,

Te arrancando do sono e das cadeias,

Com um grande povo te engrossasse as veias!...

Águia morta, estendida e corvejada

Pelos que bebem água ao Manzanares,

Despedaçam-te os restos seculares,

Águia Ocidental amanietada!

Que Cristo um dia te dirá, mesquinha:

—Ressurge, sai, levanta-te, caminha?!!...

A morte do legendário (1880)

(O Marquês do Herval)

Montado em seu ginete de batalha,

Ele impunha terror mesmo à metralha.

Vendo-o tão grande, a morte estremeceu:

Com o dedo frio seu tinha-o tocado...

Raio no prélio súbito arrojado,

Nada o fez recuar, nada o venceu...

Beijou-lhe a morte o manto, a boca, a face,

Sem que jamais o rosto seu voltasse;

Ela lhe riu na sombra de um revés;

Fulminou-lhe esquadrões, e o achava calmo:

Na terra instante a instante e palmo a palmo,

Viu só loureiros rebentar-lhe aos pés.

Recompunha a sua alma a alma de um povo:

A nova ideia, um sentimento novo

À nação, — nossa irmã, — ia levar.

Valia um mundo a sua nobre espada:

Mandamos nela os raios da alvorada

Da Liberdade o sol anunciar...

Nela levava um sol. — A tirania

Em vão ergueu-se, e ia fugir... Fugia,

Na boca aberta o último estertor;

Na consciência, como um ferro em brasa,

O último remorso, que se casa

Ao último grito, e ao último pavor...

Caiu! — Bem como espedaçada algema...

Caiu! — Morreu... Mas nessa queda extrema

Nem o silêncio achou em si um ai!...

Irada a própria maldição calou-se:

Muda, sem voz, bastando-lhe que fosse

O sudário ao tirano, quando cai.

Levava um sol na espada. — A tirania,

Monstro que traga a luz e engole o dia,

E vive à sombra, entre os escravos vis,

Vendo a Águia de fogo as asas largas

Estender no seu céu, — horas amargas

Roeu do tempo, cismadora e ultriz...

Tentou erguer-se. — A última agonia

Do abutre espedaçado, que caía,

Encheu o céu de convulsado horror:

Esmagado entre aspérrimas montanhas,

Saíam-lhe, com o sangue, das entranhas

As ambições, — num áspero estertor...

Foi uma luta colossal aquela!...

Todo um povo a bramir, como a procela,

Que ergue o mar todo em rijos vagalhões,

Os mistérios do abismo, escusos rios,

Barrancas, vales, matagais sombrios

A febre, o inseto, esteiros, e rincões...

E mais a cega fé de visionários

Centuplicava os fortes legionários,

Os bárbaros centauros seminus;

Um muro eram de ferro movediço!...

E o sol rubro eriçava em torno disso,

Como punhais, a coruscante luz.

Tudo venceu: — fora esquecê-lo um crime:

Burilou essa Ilíada sublime

Com sua espada e formidável mão:

E quando viu o régulo abatido,

Ao miserando povo, — comovido —

Disse, logo a embainhando: — Ergue-te, irmão!

Tinha da espada a lâmina brunida,

Como o espelho sem mácula da vida,

Onde o forte revia o seu valor;

Como uma gusla rústica do Epiro,

Era sua alma... assim como um suspiro;

Mas era de leão seu márcio ardor.

Um Germânico novo nele assoma,

Quando levava as legiões de Roma

Onde Varo os seus loiros sepultou;

Assim levou por lúgubres esteiros

Nossos soldados, bravos brasileiros,

Com cuja glória a sua fecundou...

E a da pátria, que é nossa, injuriada,

Quando à sombra da paz, erguia a enxada,

E estrelavam-se os vales, e os vergéis

E sobre o campo lourejava a messe,

Aonde a mãe da Liberdade — cresce,

E o céu lhe azula esplêndidos docéis...

Vulto de bronze em seu corcel montado,

Em base de granito alevantado,

Que era o seu gênio belicoso e audaz,

Quando as nossas falanges conduzia,

Não era a guerra, não, que ele fazia,

Oh! ele apenas conquistava a paz.

Na tremenda atitude, e olhar severo

Tinha a grandeza dos heróis de Homero,

Fogo e paixões de Aquiles e de Heitor.

Ele apoiando as mãos à dura lança,

Por sobre rios e pauis avança,

Que antes parece o voo de um condor.

Quando um dia voltou da guerra à tenda,

Tinha a estatura dos heróis de lenda,

E o áureo nimbo dos deuses imortais;

Brônzeo leão em plinto de granito

Postado na penumbra do infinito,

Viam só nele os nossos generais

O seu sangue era o nosso sangue inteiro;

Entre os reis seus iguais era o primeiro;

Era bandeira aos nossos batalhões;

Era a estrela dos Magos na peleja;

Onde há perigo, em que ele já não steja?

E, onde está, os soldados são leões.

Quando tirava o ponche esburacado,

Como num céu de estrelas apinhado,

Que parecem furar seu manto azul...

Uma nesga do céu era o seu manto!

Quem, como ele, levantou-se tanto,

Quando a guerra empapou de sangue o sul?

Tinha-lhe medo a morte.— Ele arrancava

Os dentes, que ela no chapéu deixava

Nas balas, que engrossavam seus lauréis,

Outras lambendo a espedaçada farda,

Ficavam-lhe no chão montando guarda,

Ou brincavam, matando-lhe os corcéis.

Tinha a simplicidade do espartano

Em grande molde, em alma de romano,

Tinha a crença, que só levanta heróis;

Tinha a grande paixão da grande ideia:

Sua alma estava de nossa alma cheia:

Ele estava no Sul por todos nós.

Seu nome tinha a força da armadura

Martelada na lava, que fulgura

Em jorros das crateras dos vulcões;

Sendo para os soldados Senha e Santo,

Vomitava ao inimigo a morte e o espanto,

Como o rubro lampejo dos canhões.

Quando chegava a hora da matança,

Punham, numa das conchas da balança,

Nossas colunas móveis, como o mar,

Noutra, esse nome... peso, horror, cansaço...

Crera o reg'lo cair o sol do espaço,

Se vira então o Encélado tombar.

Oh! quando lhe irrompia a voz nos ares,

Vinham dos pampas tigres e jaguares,

Que ele arregimentava aos temporais:

Amarrava na cauda dos pampeiros,

Misturava-os aos passos dos guerreiros

E aos brônzeos sons dos hinos marciais...

Era um prodígio! — Na passagem tinha

O bater da floresta, que caminha,

Com rios de fraguedos a saltar,

Com furacões movendo a verde coma,

Com leões, que ora um, ora outro assoma...

Levava o céu por cima a trovejar...

Infundia terror, e susto, e pasmo!

Montes... mudava-os seu entusiasmo;

Pauis... secava-os seu intenso ardor;

O chacal do inimigo em vão fugia:

Consigo aquele temporal lá ia...

Buscava a fera à cova o domador.

Foi fantástico, grande, temerário!...

Colheu-o a tradição já legendário,

Como Tell, como Antar, como os Sansões:

Encheu com o nome, como um Deus, a terra;

E na enorme epopeia dessa guerra

Hão de vê-lo com pasmo as gerações!...

Caiu!... Stá morto nosso herói: olhai-o!!...

Que outro raio feriu aquele raio?...

Que espada a clava de Hércules quebrou?...

Que vendaval fendeu aquele monte?...

Ai!! que invisível mão tocou-lhe a fronte,

Que em cem batalhas nunca vacilou?...

Caiu!... Devia à terra esse tributo

Vestiu a pátria o dó pesado, e o luto,

Que hão de arrastar as gerações por vir.

Caiu! bem como a águia fulminada!

E a bandeira auriverde ao chão voltada

Não pôde vê-lo, sem também cair...

Caiu! o grande vulto do guerreiro!

Viver não pode à sombra do loureiro,

Que com seu gáudio esplêndido colheu.

Caiu, como um gigante sobre um fosso!

E o ruído da queda do colosso

De espanto e dor o mundo todo encheu!...

Caiu! pendido e desarmado o braço,

Depois de ter lançado à terra e ao espaço

O eco das glórias, com que a pátria ergueu!

Entre a lança, e a espingarda, e a espada, e a clava,

Como um vulcão em sua própria lava

Cai, extingue-se e morre... assim morreu!...

Caiu! chegado da grandeza ao cúmulo!

Como o sol, que ilumina o próprio túmulo,

O seu iluminou, como um altar.

Parece ouvir-se as patas do cavalo,

Que vai à eternidade enfim levá-lo,

Sobre o bronze da história galopar.

Caiu! mas se o pudessem ter montado

Ao ginete de guerra acostumado

A arrebatá-lo, assim como um tufão...

Pô-lo em cima, ajeitá-lo, inda que a custo...

A morte morreria ali de susto,

Não fora ele, que morrera, não!...

É a Musa da Pátria, em mim, quem fala,

Que estes trenos de dor ardente exala!!...

Eu sou a Dor de um Povo em viuvez!...

É o meu canto a lágrima apanhada

De cima dessa gloriosa espada,

Que tão grande e tão forte a Pátria fez!...

O herói já stá no Panteão da história...

Mas quer nosso dever, e nossa glória,

Que eternizemos nossa gratidão

Num monumento, num faustoso ossário,

Onde se inscreva: — A Osório, o Legendário.—

E em pé, c’roando-o, a estátua da Nação.

O escultor doma o bronze resistente,

Que ruge, e brame, e morde a areia ardente,

E arranca ao molde o vulto colossal:

Assim a mão na espada, armado em guerra

Velará, como um deus, a nossa terra,

Postado sobre um monte de metal.

Amarremos o tempo, que não dorme,

Carregado de sóis à Estátua enorme,

Do Herói-Guerreiro, que lutou por nós.

Culto à Glória: Respeito a honrados ossos!

Se não. . . O que direis aos netos vossos,

Perguntando por Ele aos seus avós??...

À naçãona festa da Sociedade Abolicionista do Ceará (1884)

Nihil profici patientia, nisi ut graviora, tandem

ex facili tolerantibus, imperentur.

Tácito

Formosa, e grande, aspérrima, e selvagem,

Como retalho colossal de um mundo,

Tufões aos pés — na célere passagem —

Constelações à fronte, o olhar profundo,

Cheia de mágoa, e cheia de ironia...

Ei-la a que rola, como a catadupa:

O raio, o chão que pisa, lhe alumia,

E a tempestade of’rece-lhe a garupa...

Das tranças caem-lhe pedras preciosas,

Anda-lhe o oiro em mó nos seios ricos;

E após lhe ululam sombras pavorosas

De esgrouvinhados netos de Alaricos,

Sombras de netos de Átilas, querendo

Meter-lhe as patas dos corcéis do Norte:

O barulho da treva os segue horrendo!

E ela se arranca às legiões da morte!

Busca por monte e vale os seus caminhos,

De voo em voo já, de tombo em tombo,

O último arrojo dos vulcões marinhos,

Filha gentil do Oceano e de Colombo.

Ei-la que chega, e bate à vossa porta,

E corre, e freme cheia de ansiedade!

Não conheceis esta nação já morta,

Que redivive à voz da liberdade?

Ei-la que chega a público certame,

Turbando tudo em torno aos seus clamores:

Quem pode tê-la escravizada, infame?

Não se acabaram servos e senhores?

Não há duas justiças sobre a terra,

Uma em código antigo, outra em mais novo;

Se contra a escravidão bradaram: guerra!

Por que tempo se guarda escravo um povo?

Sereis os egoístas da ventura?

Não ouvis a Nação com voz sombria,

Que, enquanto o ardor de vossa festa dura,

Vem pedir-vos a carta de alforria?

Quando voltardes logo aos vossos lares,

Dizei ao filho, ao pai, à mãe, à esposa

Que a cova dos tiranos seculares

Não se abriu inda sob a eterna lousa;

Que a velha farsa hipócrita da raça

Faz renovar a fábula de Atlante,

E que ela arrosta a máxima desgraça

De ter ao dorso as garras do gigante...

Como Alexandre, o indômito cavalo

Deixa correr no páramo infinito...

Deixa-o correr, para melhor domá-lo

Entre os seus pés de bronze e de granito.

Baltazares da festa que fascina,

Vede as letras fatais com fogo escritas:

— Ou a sorte da pátria vos domina

Ou sois o nó de gerações malditas!

Aqui mesmo, onde queima o vosso peito

Fogo, que a santa liberdade atiça,

Ela vem recordar-vos seu direitos

Vem reclamar seu dia de justiça...

In excelsis (1884)

(Recitado por uma menina)

Era aspérrimo tudo!... A floresta sombria

O crânio hirsuto, enorme e pavoroso enchia

Da sublevada terra:

O céu de éreos dragões rugia retalhado...

Mastodonte... era um cimo amplíssimo animado...

Leviatã... uma serra!

As montanhas descendo aos ombros das geleiras,

Dos flancos a golfar ossos de cordilheiras!...

Por tudo um sopro ingrato...

A terra a estremecer, como o embrião na entranha...

Procurava-se o vale, achava-se a montanha!...

Que enorme pugilato!

O sol com o olhar com que Dante andaria o Inferno,

Tinha na fronte loura as grossas lãs do inverno,

E por um céu sombrio

Cuspido de trovões, ladrado das procelas,

Vendo alados leões rugir no meio delas...

Passava austero, e frio...

Enquanto a natureza indômita bramia,

E de monstros a terra, e o céu, e o mar enchia...

Foi solene essa hora!

Viu-se por vez primeira, em meio dessa luta,

O homem star junto ao urso e ao tigre à mesma gruta

À luz da mesma aurora.

Onde hauria essa força aquela raça imbele,

De fina trança de oiro e de macia pele,

Nu, isolado, inerme,

Que tronco ele brandia, assim como uma clava,

Que o elefante o temia, o urso o acalentava

Rojado, como um verme?

Era um mundo de luz, que ele trazia à fronte!

Que quando tudo tinha a estatura de um monte

E as forças da torrente:

À floresta animada, à serra, à catadupa

Fez dobrar aos seus pés a trêmula garupa

Com um gesto onipotente.

Era um mundo de luz!... luz, que o tornava o eleito,

Que lhe mostrava a estrada, e o arremessava ao pleito,

E aos vendavais sem medo;

E que para vencer os tigres, e as fanfarras

Dos temporais, lhe punha às mãos, em vez de garras,

Um raio em cada dedo!

Luz ou razão: foi essa a sua força imensa.

E o sol vendo essa força, e sentindo essa ofensa,

Soltou um grande grito...

E desde então rolou mudo, hirto, espavorido,

Como uma águia na jaula azul, ou deus vencido

Na amplidão do infinito.

Deus se escondera atrás da esplêndida muralha,

Atrás da natureza: ele deu-lhe batalha,

E o trouxe à claridade:

Por escada de sóis subiu... subiu... lançando

O espanto, o horror no abismo!... — e o abismo recuando

Mostrou-lhe a eternidade

Depois... do Genovês, que vale o arrojo insano,

Que enterrando o seu punho ao fundo do oceano,

Arranca um continente,

Como rompendo o azul das brandas águas quérulas,

Traz nas trêmulas mãos constelações de pérolas

O pescador do Oriente.

Mas este vencedor, que o próprio Deus invade,

Que aos planetas dá leis, que pesa a imensidade,

Às vezes cai vencido:

Quer andar; tem os pés agrilhoados; — lança

As asas pelo espaço, e cansa... cansa... cansa...

E em vão as tem batido!

Vencido é com Pompeu nos campos da Farsália:

Em Útica é vencido, aonde a bela Itália

Caía com Catão...

Vencido, quando a ideia à força escravizada,

Esta a destrona e abate, e em sangue a mão lavada,

Decapita a razão.

Nas Termópilas é com Leônidas vencido...

Há de sombras um povo irado ali reunido,

Com gesto ameaçador!

O tirano não fecha a história sem primeiro

Olhar em torno, e ver se inda o despenhadeiro

Despeja um vingador!...

Mas a razão traída, a cada vilipêndio,

Como a fênix da cinza a cada novo incêndio,

Levanta-se mais bela,

Mais vasta, mais azul que a abóbada estrelada,

Que teve por momento a roupa lacerada

Às garras da procela.

Ela enfim, como um sol, mas como um sol mais belo,

Há séculos, que morde, e rói elo por elo,

O grilhão que a prendeu:

A escalada do céu, do infinito a conquista

É seu fim. — Águia quer trocar com Deus a vista,

E dizer: — Tu e Eu. —

Atando dia e dia um prodígio a prodígio,

Das garras do seu gênio ela deixa o vestígio

Nas conquistas que faz;

Quer o vento prender, quer domar o oceano?

Põe ao mar uma tábua, e põe ao vento um pano:

Só. — Não lhe fogem mais.

Quando Sócrates bebe a taça de cicuta,

Olhos cheios de mar, de céus, de azuis, sem luta

Voa às plagas serenas:

Asas criando a taça, e enchendo-se de chama,

Voa também, e deixa o incêndio, que derrama

Nos mármores de Atenas.

O Grilhão de Colombo... a Cruz do Cristo, a Espada,

Que mergulha Catão no flanco, é condenada

À luta secular;

Passa das mãos do herói caído na batalha,

Como herança sublime, à razão que trabalha

No crânio popular.

Traz dois astros Homero, a Ilíada e a Odisseia.

Gutenberg ata, amarra ao próprio tempo a ideia:

Galileu giro novo

Dá com seu dedo à terra, o cínico, o perverso,

Que pela natureza — a Bíblia do universo —

Troca a Bíblia de um povo!...

Estes vencem. — Na terra os divinos obreiros

São eles! grandes são!... Não os cobrem loureiros

De glórias marciais;

Pois tem uma só voz, um só plano, um só fito,

— Batalhar pela paz, conquistar o infinito,

Ser mais que César... mais...

 ...........................

Eu sou a musa nova, a musa da esperança,

Ó multidão suspensa à voz de uma criança,

Que a eterna lira anima,

À dança do meu ritmo, em corimbo estrelado,

Levanta a fronte... escuta: o céu stá desse lado...

Ali... além... por cima...

Vem de lá uma voz, que clama: ó mocidade,

Semear a ciência é ter a liberdade,

E a paz — bendito orvalho —

No vale, e campo, e bosque, e monte, e terra inteira,

Levantai a divisa, hasteai a bandeira

Do amor e do trabalho.

Lema com que o atleta, em busca do infinito,

Lança o ígneo corcel, — num pavoroso grito —

À enormidade, e pelas

Abóbadas azuis galopa, e dos espaços

Volta, trazendo os sóis debaixo dos seus braços,

E as mãos sangrando estrelas...

À arena! (1885)

(Excerto de poema sobre a abolição)

Há sobre nós um braço onipotente,

Que ninguém vê, que todo o mundo sente,

Que tem a força indômita e fatal;

Que leva os mundos siderais, que leva

As nações pela história em luz ou treva,

Que às vezes mostra um dedo colossal...

Deus, Justiça, Razão, ignota força,

O sol treme sob ele, como a corça

Ante o jaguar; os mundos, como pó,

Voam pelo segredo dos espaços,

E o argueiro e o céu, entrecruzando os laços,

Ata num grande, luminoso nó.

Ninguém foge a essa lei: chegada a hora

Nasce no sangue, e em lágrimas a aurora;

Abre o túmulo de oiro ao sol, e o sol

Desce tremendo a fulva escadaria,

Que é de escorralhos últimos do dia,

E de púrpuras novas de arrebol.

Bateu a hora. — À ponta desse dedo

A estrela treme dessa ideia: cedo

Vai alagar de luz o espaço, vai

Encher os vales, empapar o solo,

Derreter os grilhões de cada colo,

Dar à família sem família um pai.

Não vos lanceis no meio do caminho...

A terra vai-se abrir; o torvelinho

Vai passar; ruge, enraiva-se o tufão:

Sacode a chama como a crina a fera,

E escancarando a boca da cratera,

Abre um olho de ciclope o vulcão...

Fiat libertas (1888)

(13 de maio)

A Quintino Bocaiuva

Ao ver que não há mais na pátria um só escravo...

Ouço um grande rumor, ouço o rumor de um bravo,

Que é a sombra da voz enorme, que produz

A selva pela sombra, a água pela barranca...

E o verme, e a estrela, e a flor, e o tronco tudo canta.

Canta tudo conosco a Ilíada da Luz...

O povo tumultua, enchem vivas a praça:

Um grito triunfal cresce, rui, gira, passa...

Passa, como Mazepa, e como um turbilhão;

Como num carro um deus vencedor passaria;

Sobre este mundo inerte ergueu-se um novo dia;

Fez-se nova de novo a nova geração.

Será teu pavilhão azul a imensidade,

Sangue novo dar-te-á seu bronze, ó liberdade,

Para fundir-te o vulto, e o eterno pedestal;

Oh! nenhuma grandeza e altura à tua iguale!

Em paz passai: morrei à sombra em vosso vale,

Velhos filhos da selva antiga e virginal.

É vulcânica lava em redemoinho a turba!

Mas a forte emoção, que a leva, não perturba

Sua alma, a irradiar de júbilo, e de amor;

O sentimento bom deste direito novo

Sabe-o bem compreender, sabe senti-lo o povo,

Onde escravos não há, onde não há senhor.

A esta altura, este viso, estes tremendos cimos,

Que pareciam ser um Olimpo, subimos;

Uma ideia somente era o nosso farol:

Foi uma ideia só a luminosa escada;

Titânica batalha, e menos arriscada

Fora arrancar ao céu um pedaço de sol.

Foi a palavra o gládio, a armadura impoluta,

Que os gigantes de raça empenharam na luta,

Arrojados após deste píncaro astral:

Era apanhar uma águia entre alcantis, no ninho!

Glória! aos que sucumbindo em meio do caminho,

Deram tudo a esta obra atlética e leal.

Este triunfo, que foi toda a claridade,

Que acendeu o planeta, ateia a mocidade,

Faz de um povo humilhado, um povo altivo e audaz,

Que, tendo às mãos a fouce, o alvião, a enxada, o malho,

— As armas de combate, as armas de trabalho —

Tem o ferro da guerra entre o ferro da paz.

Depois de reparado o crime, o esquecimento;

Mas às tendas ninguém se recolha um momento:

A arena percorrida é vasta: há fumo, há pó;

Tombe o pó, passe o fumo, esperemos com calma;

A cada triunfador uma auréola, uma palma;

Não deixe a ingratidão de lado e à sombra um só.

Mas... somos nós de todo um povo americano,

Livre como o condor, grande, como o oceano?

Agarraram infante o indômito leão,

E abriram-lhe com fogo a marca real ao flanco:

O escravo negro extinto, ergueu-se o escravo branco;

À ilharga a cicatriz da ignóbil condição.

Ó liberdade, ó luz, ó força peregrina,

Da alma humana e pequena, alma grande e divina,

Tu pareces, como águia, o ninho em nuvens ter:

Abras embora tu largas asas enormes;

Tu vives pelo céu, é pelo céu que dormes;

Andas longe de nós, e custa-te a descer...

Viático sagrado a um povo moribundo,

Resta acima de si, resta acima do mundo

O deus, que inda o universo ignora, se o contêm!...

Dão-nos como pompa vã, como vã solenidade,

Teu símbolo também, ó santa liberdade...

E como deus não desce, ela mesmo não vem!...

Vós mentis... Nunca vós iludireis a história...

Vós falais em porvir, em liberdade, em glória,

E ao povo, que vos ouve, infames, iludis.

Mentis, vós, que dizeis, que nossa pátria augusta

Nunca mais livre foi, nunca foi mais robusta;

Que outro dia maior jamais terá!... Mentis!...

Sois a estátua do crime: afirmais o modelo;

O escravo se vingou de vós, sem percebê-lo:

Deu-vos na alma um mau traço algum cinzel brutal;

Vós bebestes o leite ao vil seio africano,

Fetichistas, mau grado o vosso orgulho insano,

Tínheis no escravo bom vosso grande ideal.

É cedo! é cedo pois: deixa a cama de rosas:

Do teu sumo direito, ó pátria, inda não gozas...

Do minotauro a pele o teu leito há de ser:

Enquanto atar-te o pulso a mais leve cadeia,

Vela no mar, em terra, em toda a parte, cheia

De um divino terror: é velar teu dever...

Vela inquieta, vestida, armada, ultriz, sim! pronta

Para vingar de um jato, a tua última afronta,

Vingar, triunfar, ser livre... Então podes dormir,

Como o sol, quando paira abaixo do horizonte,

Que sobe, encontra o mar, que sobe, encontra o monte,

Que sobe, encontra o céu... esse instante há de vir.

Fora belo entoar um hino inda nesta hora,

À vermelha explosão da música sonora,

A ouvir dançar no azul ébrios deuses, e sóis,

Sem uma nota má, sem um som discordante:

Pôr uma estrela de oiro à fronte do gigante,

Pôr-lhe às mãos colossais as palmas dos heróis

Ir sem estorvo, livre, ao clangor de atabales,

Como vai a torrente engasgada nos vales,

Solta, rouca, mugindo, espumante, em caixões;

Gritando alto ao condor, como se cai sem risco;

Dando lições de marcha e bravura ao corisco,

E a Odisseia da queda explicando aos tufões...

Nesta santa revolta, em nome de uma aurora,

Atravessara assim a nossa pátria em fora,

Num idílio a dançar sobre os arcos sutis

De uma ponte de lhama, oiro, prásio, ametista,

Se entre o verso esculpido, e o meu buril de artista,

Não visse um dedo, a furto, a esmagar-lhe a cerviz.

Pátria! é justo o receio. — A águia que se alimenta

De haustos largos de luz, numa agonia lenta,

Na jaula, expira, cai: mas seu humano olhar,

Humano e pensativo, um único momento

Não desviou jamais da direção do vento,

Nem viu na esfera o sol... sem o acompanhar!

Somos um povo imbele e sem virilidade!

Tens-nos pisado bem, velha fatalidade!

Nenhum magno direito alcançamos por nós!

Dado por mão, que afaga, e ao mesmo tempo oprime,

É um crime o beijá-la, o não beijá-la um crime!...

Entre a dádiva e o orgulho um dilema feroz!...

Quando a história escrever esta iconologia,

Como aos festins rojava a própria carne, e ria,

Dando o melhor retalho em sangue, — o coração,

Ó povo, há de tremer por ti a história austera,

Vendo como se pode assim domar a fera,

Mesmo que sejas tu, tu, ó povo, ó leão!...

Tripudiou o delírio em cima da montanha,

Cuja base oscilava em convulsão estranha,

Ante ciclones, que vêm de longe a rugir,

De pontos cardeais opostos, frente a frente,

Que hão de parar, fremir, lutar, e de repente

Ruir, despedaçando em torno tudo ao ruir.

Não vistes? — Toda tropa em armas, as baionetas

Vibrando ao sol, e ao vento as bandeiras desfeitas...

Dava à festa do povo um tom quente demais,

Como uma voz que abafa o eco de outras vozes,

Como uma apoteose entre as apoteoses,

Como um canto a surdina entre as canções triunfais.

Quando Roma estendia a religião do Cristo,

Houve destes ardis, também fizeram disto:

Tomava-se o lugar sagrado ao deus pagão;

Sobre o altar de Diana erguia-se outra imagem;

E o povo, que voltava outra vez à romagem,

Encontrava outro deus, e outra religião.

É a ideia do trono, o que hoje se venera:

Não é a redenção, não é a nova era,

Não é a nova luz do Lázaro, que sai

Do túmulo, em que foi três séculos deixado:

Contra o erro fatal, — haja ao menos um brado:

Contra o crime, que passa, — haja ao menos um ai!

Nenhum ódio inebria a musa vingadora,

Contra a fronte senil, ou contra a fronte loura,

Onde repouse a cruz da c’roa medieval:

A musa, irmã dos sóis, pelas estrelas pisa,

E quando ela oficia, ela — a sacerdotisa —

Sagra a hóstia do belo ao céu — a catedral. —

Ser justo é o belo e o grande... Este caminho tento...

Pode ser que me empolgue e roje um grande vento

Num abismo, e ache sóis nesse abismo, — um azul, —

Pode ser que naufrague, e naufragado caia

De lutulento mar em luminosa praia:

Não dá pérola a concha, e diamante o paul?!...

Ide, vós, que existis sem paixões nobres... ide —

É a justiça como enorme cariátide

De largos ombros nus de deusa ao tempo, ao ar:

Capaz de suspender zodíacos vermelhos,

Sem um gesto no rosto, um tremor nos joelhos...

Luta, e vela a justiça: ama e sabe esperar.

Um relâmpago torso incendeia o meu canto,

Como ilumina o mundo: — um prazer, um espanto:

O ósculo de um astro, o beijo de um dragão:

Como se a estrofe à espádua, assim como num cofre,

Enquanto o beijo dum horrorizado sofre,

Do outro guarde sorrindo o ósculo de irmão.

Ó mulher, o fulgor de tuas mãos pequenas,

— Ave que passa errante e fugidia apenas, —

Eu não quero em teu corpo ebúrneo e lirial;

Dirias, ó liberdade, ó ídolo, que adoro,

Que era ao teu belo manto azul um meteoro,

Num barulho de luz hiperbórea e fatal!

Guerra à sombra de um jugo, inda o jugo de um Éden:

A prisão molda o preso; e os detidos a pedem,

Golpeados embora a ferro vingador...

Varra o grande país escravo um grande sopro:

Como um mármore acorde, e gema ao malho, e ao escopro;

Demos nova atitude ao gigante em torpor.

Nova... Não dormir mais! É tempo... Rompa um grito

De nossa rude voz, dura como o granito,

Escaldada dos sóis, vasta, como os sertões,

Máscula, e ao ulular hirto das cataratas,

Parecendo trazer ao ombro sonoro as matas...

Que arranque o servo à gleba, ao sono as multidões.

Então, como hoje, em nova e louca efervescência

Far-se-á de uma vez só a nossa independência,

Teremos liberdade inteira de uma vez...

E em todo o continente americano um bravo,

Como o que hoje soou — libertado do escravo,

Amanhã soará — libertado dos reis...

A eterna revolta (1888)

A Lopes Trovão

A rebelião sonha!... e um dia a rebelião explose:

Rola um penhasco assim do cabeço de um monte;

Um rumor grande corre, enche e turva o horizonte!...

No Tempo a hora soou dessa metamorfose.

Como a Ilíada invade um cérebro, e transborda?

Como tendo o areal, o leão procura a gruta?

Como elabora a ideia, e como irrompe a luta?

Quem sabe quando dorme, e sabe quando acorda?

Não é pelo tamanho inútil da estatura,

Que se mede o gigante humano, que domina:

É pelo coração, é pela alma divina,

Onde nem a ambição, que o eleva, e que o tortura.

É isto o que nos torna o Encélado esmagado

Entre as voltas do ferro em elos das cadeias,

Que mete bronze fluido ardendo em nossas veias

E dá o eterno horror ao nosso eterno brado.

Mas essa raça que vive em perpétua guerra,

Quando sob os vulcões revolve o corpo preso,

Vê-se a chama bramir e iluminar um teso,

Vê-se a lava cair, e incendiar a terra.

Olha: se a alma da Pátria inopinada e em luto,

Entrar neste meu corpo imbele e vacilante,

Pode dar-me a atitude heroica de um gigante,

Pode de mim fazer naquele instante um Bruto,

Acender o meu braço, assim, como uma tocha,

Levantar, como um facho aceso, ao céu meu braço,

Pôr-me perto de ti, que és de rocha e de aço,

Grande, assim como tu, também de aço e de rocha.

Passa num furacão revolucionada aurora,

Um furacão fremente e eriçado de crenças,

Que me brada, cantando, embora tu não venças,

Chama o Povo a combate e à Liberdade. É hora!

É preciso gritar: Escravos, à peleja!

Como a sacerdotisa espumante e iracunda

Da trípode bramir: — o sangue que goteja,

Só conquista o direito, e a Liberdade funda.

O mundo tem sofrido até à saciedade

A loucura dos reis, a raiva dos tiranos:

Sofra o mundo também no fim de tantos anos,

Os instantes da raiva astral da Liberdade.

Monte o livre corcel dos Átilas; percorra

O campo, esmague tudo às patas do cavalo,

Tudo que não quiser ser livre, e acompanhá-lo;

Vença, e se não vencer, mate primeiro, e morra.

É preciso a epopeia, o heroísmo, a morte, o drama

Para fixar em bronze o momento que passa:

É com sangue que um povo a Liberdade traça,

Com sangue, que esperdiça, e não poupa, e derrama...

Sangue que o amor da Pátria e dos filhos resume:

Cada conquista um sangue impertérrito custa:

Como a relva esmagada à ação de mó robusta,

Enche o ambiente, ao cair, com seu melhor perfume.

Maldita a raça vil, seja qual for, que oprime.

Maldito o que podendo erguer, num justo assomo,

Um povo, para, e treme ante um delito, como

Se o crime do opressor não valesse outro crime.

Pensais que uma alma grande esse heroísmo tisne?

A implacável história observa, e não se ilude:

O crime de Judit não é crime, é virtude:

E há crimes de leão obras de alma de cisne.

Para fundar de vez a liberdade inteira,

Como César passou o Rubicão um dia.

Para fundar no Mundo e em Roma a tirania...

Seja o estorvo qual for, e qual for a barreira,

Qualquer que seja o crime e seja a crueldade,

Como um mar haja sangue, e este sangue encha a praia,

Sim! tombe, o que tombar, o que cair, que caia...

Mas funde-se entre nós de vez a Liberdade

Funde-se a Liberdade enfim sobre os destroços

Do passado que rui; vingue o direito novo;

E se, para triunfar, pede o sangue de um povo,

Demos à Liberdade o sangue, a carne, os ossos.

O verso alexandrino (1862)

(O verso alexandrino é réplica à sátira de Faustino Xavier Novaes sobre este metro poético. A primeira estância refere-se à poesia Aspiração de Machado de Assis.)

I

Tressua luz e ferve a tua nobre fronte,

Como o rubor da aurora em mais amplo horizonte,

Ó verso alexandrino; e inda em cheio esplendor,

Sustendo aos ombros suas esferas de harmonia,

Asas de oiro batendo aos céus, há pouco, o via

Nos muros de Sião, face a face ao Senhor.

Sobre a forma não fulge e não domina a ideia?

É bela? Tem de luz a fronte augusta cheia?

Arrasta em seu caminho a túnica real?

Que importa o pedregoso e rude da moldura?

Que importa em que cadinho a mão rija e segura

Lançou e derreteu o fúlgido metal?

Vem sussurrante a estrofe, e na asa branca arrasta

Da funda solidão, da solidão tão vasta.

Que, alma se chama, à terra o que ela nos mandou?

De Lágrimas molhado, ou de oiro derretido?

De plácido sorriso o verso vem vestido?

Cantou? gemeu? sorriu? — Que importa o mais? — Bastou.

A querida mulher, a quem amor nos prende,

O que ele geme, e chora, e espera, e crê... entende?

Não basta? É pouco ainda? Ainda quereis mais?

O sol não se reflete, e a vida, e a mocidade

Com todo o fogo e luz, e toda intensidade,

Que há neles, nas prisões, aonde os manietais?

Por floridos vergéis não cantam passarinhos?

O rio não saltita, e geme entre seixinhos?

O vento não baloiça os crespos matagais?

O mar, o dia, a noite, o céu, o campo, as flores

Não podem dar ruído, amor, perfume, e cores

A ti, verso zurzido em versos imortais?

Não pode despenhar-se em rápida carreira,

Das paixões impelida, ali, vossa alma inteira,

E, como águia nos céus, as asas expandir?

Correr, subir, descer em largos horizontes,

Com quatro voos só medir todos os montes,

Deixar o abismo aos pés de pasmo e boca abrir?

Para um povo de anões, talvez, és tu gigante!

Para que vens radioso, ó novo e belo Atlante,

Se os largos ombros teus não têm que carregar?!...

O Luís de Camões não te ensaiou ao menos!

Dante pode meter em versos mais pequenos

O inferno, o purgatório, o céu, a terra, e o mar!

Mas ei-lo corre aqui, e tímido cintila;

Ali vos fita à luz de mórbida pupila;

Cicia, rumoreja, exala-se a gemer,

Medroso, como um bosque à noite todo cheio

De aroma a trescalar das sombras do seu seio,

De vermes a luzir, de folhas a tremer!

Um dia heis vê-lo erguer-se ululante e horroroso

Como irrompe o leão da furna, e do repouso,

Ao sibilar da bala, e ao golpe seu letal,

Sacudir-se, eriçar a juba flamejante,

E açoitar o tirano, e o prender, como Dante,

Na cauda aos pés do tempo, — o ancião imortal!

Outro dia o vereis armado, como Apolo,

Vendo erguer-se a cantar das entranhas do solo,

Das túnicas de pedra erguendo os braços seus,

Cidades juvenis, c'roadas de florestas,

Lavando os pés no mar, batendo as mãos em festas,

Que as fundas crenças dão de liberdade e Deus.

Outras vezes é silfo, e esvoaçando ligeiro

Da virgem vai dormir no mesmo travesseiro,

E segreda-lhe: — Eu sei sorrir ao teu sorrir:

Como uma rosa solta à corrente de um rio,

Em meu seio odorento a tua vida eu guio,

Como um sonho a dar flor, e enastrando o porvir.

Das alvas me ruboro; e enchem-me ruídos

Do berço, inda a vagir, da cova inda em gemidos.

E que da voz do amor, ou da saudade vêm:

De tudo que tem vida, e mexe, e que suspira,

Soletra as letras de oiro a minha eterna lira

De tudo que tem vida, e que um suspiro tem.—

II

Outras vezes é anjo. — A auréola da beleza

Na fronte lhe sorri sob um véu de tristeza,

No lábio grave a voz os sons cerúleos tem:

A mão cândida alaga a luz de um raio imenso!

Um pé pousa num globo, outro pé stá suspenso!

Com frêmito incessante as asas vão e vêm.

Então parece estar-lhe o mundo confiado,

E empanar-lhe o esplendor, e velá-lo um cuidado!

A espada da justiça é raio, e não é luz!

A caridade, — irmã, entrega-lhe uma lira,

Da mão lhe cai o raio; o anjo então suspira,

E o vago pensamento em músicas traduz!

— Eu levo, estrofe branca, atada às minhas penas

A primavera, a luz, as níveas açucenas,

Que pelo chão da vida o homem desfolhou:

As agonias levo, e as noites ensopadas

De lágrimas sem fim, e sem razão choradas,

Que a loira mocidade atrás de si deixou.

E o coração, que crê, ama, perdoa, implora,

E o coração, que odeia, a treva junta à aurora,

Eu levo, e o desespero, e a viuvez, e a cruz!

Levo a vítima, e o cepo, e a machadinha, e o algoz,

A Deus, que, cardo e rosa — à terra assim nos pôs,

A Deus, que é chama, e tudo à chama em si reduz.

Bendito seja o gesto, a voz, o grito, o hino,

Que move, e fala, e geme, e canta, e seu destino

É da eterna esperança as almas arroubar!

Feliz eu se entornar em versos tais pudera

Os sonhos juvenis da minha primavera,

E a dor, e as ilusões, e a vida enfim cantar!

Ó natureza, ó luz, amor, e campo, e flores,

Bosques cheios de sombra, e cheios de rumores,

Olhos de oiro da noite em céus azuis, dizei,

Que verso pode andar sem vossa companhia,

Como esplêndido véu de música e harmonia,

Dando ao vento que passa o seu manto de rei?

A sátira num dia altiva a fronte erguendo,

Qual na trípode a deusa os olhos revolvendo,

Em verso alexandrino ousou sentar-se audaz!

Palpitava-lhe a carne e as roupas roçagantes

Laceradas eu vi por seus dedos brilhantes...

As roupas de frouxel, em que ela própria jaz!...

Nega o perfume a flor? e nega a flor o galho?

E o galho nega a planta? a planta nega o orvalho?

O orvalho nega a aurora? a aurora nega os céus?

Aonde a mente humana a dar consigo iria?

Negando a aurora o sol? o sol negando o dia?

Negando o dia a luz, e a luz negando a Deus?!

Quem o crê? — Salve, pois, ó belo alexandrino,

Que até podes conter em teu furor divino

A sátira soberba e irrequieta a rugir:

A sátira em teu colo altiva e reclinada,

Franzindo e desfranzindo a fronte anuviada...

E tu vitorioso, e sofrendo-a a sorrir.

Tendo na fronte a ruga, onde ululam furores,

Nas convulsadas mãos os raios vingadores,

Na boca o teu rugido, ó sátira letal,

Eu te desejo atada ao verso alexandrino...

Bramar... rugir... morder... que seja o teu destino;

Que em paga aos teus desdéns te faça ele imortal!...

To be or not to be (1874)

To die, — to sleep;

To sleep! perchance to dream: ay, there’s the rub...

Shakespeare - Hamleto

Morri. — Vivi? — Dois extremos,

Em que apenas flutuei!...

Que soube? Que fiz? — É certo,

Morri, sim! — Vivi? — Não sei.

Se do outro lado do túmulo,

Como aqui é, tudo for,

Troca-se o horror passageiro

Por um sempiterno horror.

Sonhos somente, e palavras:

— Palavras vãs, sonhos vãos,

Eis a riqueza que levo

Nas palmas das minhas mãos.

É bem ligeiro este fardo!...

Mas p'ra onde o levarei?

Quando chegar além túmulo,

Tu sabes, Deus: — eu não sei.

Berço!... túmulo!... mistério!...

Nascer!... acordar!... dormir!...

Dois sonhos entre os dois berços!..

E o imenso horror do porvir!?...

O berço chora, não fala:

Nada o túmulo nos diz!

Pois em que fonte se mata

A sede de ser feliz?

Aqui não. — Além?... Quem sabe!?

Que mundos nos vão surgir?!

Problemas!... questões... — Ó morte,

És acordar, ou dormir?

Fala tu, pois, já que a vida

Falar não sabe, ou não quis:

— O que há lá na Eternidade?

Não falas? e inda te ris?!

Mostras os dentes sem brilho

De uma caveira: isso só?

Quero saber do infinito...

Cá isto já sei que é pó.

Do que esta incerteza horrível,

Não era melhor saber,

Que tudo acaba na morte...

Que enfim morrer é morrer?...

Mas não se sabe!... E obra grande

Stá nesta incerteza, está!...

E um sec'lo interroga a outro:

— Além da morte, o que há? —

E um pavoroso silêncio,

Que tudo envolve em seu véu,

É a resposta da terra,

É a resposta do céu!

E sempre que à beira-túmulo

Vou meditar no porvir,

Pergunto em vão a essa porta:

P'ra onde vai ela abrir?

Mas no fim das minhas dúvidas,

Mas no fim dos sonhos meus,

Vejo estender-se uma sombra...

Essa sombra será Deus?...

Carlos Gomes (1880)

A noble boy! who would not do thee right?

Shakespeare — King John

Harmonia! — Harmonia!... A aurora no oriente

Tem o corpo de neve a gotejar de luz.

Que Deus lhe enterra à carne o esplendoroso dente,

Que essas nódoas de sangue em seu rosto produz?

Saem incêndios dos dois seios nus, palpitantes;

Os róseos bicos têm áscuas de intenso ardor,

E uma mancha sutil de cabelos radiantes

Põe tremuras de estrela em cada bico em flor.

O céu se veste de oiro, o azul se emparaísa;

Traz plumas de Levante um gênio Oriental,

Que em leques de coral agita enorme brisa,

Hausto talvez da Aurora — a deusa matinal—

E em curvas se arredonda, estende, espraia, azula,

E sobre os montes pesa — austeros botaréus,

Onde a vegetação se enrola, e sobes e pula,

Serpente de esmeralda a se aninhar nos céus...

A estrela da manhã tardia e sonolenta,

Que mostra um pé de prata ainda a cintilar;

O jorro de canções que das matas rebenta,

E sempre a eterna voz do inconsolável mar...

A virgem que desperta ao pipitar dos ninhos,

Turvos inda de sombra os cílios a tremer,

Mas donde os olhos já, como dois passarinhos,

Voam pela amplidão raios de oiro a beber...

Cheios de espuma e sangue, em cima das colinas,

Correndo sem parar fantásticos corcéis,

Que montaram de noite estrelas peregrinas...

Harmonia! Harmonia, isto tudo não és?!...

II

Um leão que esvoaça em luminosa esfera,

Quimeras arrancando às fundas solidões;

E os astros, que mutila, e os globos, que lacera,

Dando em sangue que ebria as loucas multidões...

O raivoso ulular que tomba das cascatas,

Subitânea irrupção das onças no matal,

Que de sobre alcantis rojando as grandes patas,

Ruem babando espumas e morrem no areal...

E a vítima, que cai, do algoz apavorado

Gritos, que rasgam fundo o azul como punhais

O condor, que devora o espaço ilimitado,

Rompendo nuvens de oiro às garras colossais...

Pelas sombras da tarde, e às virações marinhas,

Quando o sol já não queima, e tem sono no olhar,

As manchas que no céu um bando de andorinhas

Fazem buscando a mata e atravessando o mar...

O sonho dos Romeus, o amor das Julietas

Das Ofélias de neve a loucura febril,

Que entre c'roas gentis de rosas e violetas

Deitam sobre a lagoa o cadáver de Abril!...

O estertor do naufrágio, a angústia do oceano,

Quebrado o seio enorme azul entre os parcéis,

A vaga, que levanta e abaixa o peito humano...

Harmonia! Harmonia, isto tudo não és?

III

Sobre um berço de vime a canção calma e lenta,

Com que a mãe adormece à luz dos olhos seus,

Ela mesma a embalar-se, e meio sonolenta,

O rosto na criança, e o coração em Deus...

A música de um beijo em diálogo doce

Com outro, em descuidado e alegre conversar

De uma boca, que doutra um dia aproximou-se...

Ou antes numa noite à sombra do palmar...

O silêncio que canta em noites estreladas,

Em que o ar é tão puro e o céu com tanta luz

Que parece escutar-se as lúcidas passadas

Das Ofélias dos céus em palácios azuis...

O primeiro rumor das matutinas brisas,

Poisando as asas de oiro, e os luminosos pés,

Nas brancuras da luz, nas névoas cristalinas...

Harmonia! Harmonia, isto tudo tu és.

IV

Tu andas pelo espaço, e pela terra, em tudo;

És o mármore branco, a pedra escultural,

Que guarda p'ra o escultor, no virgem seio rudo,

Carícias de mulher ao seu beijo ideal.

És a página branca, a tela sonorosa,

O elemento divino esparso em torno a nós,

Que espera a mão de um Deus potente e luminosa,

Para se erguer num mundo ao som de sua voz.

És o musgo do ninho, a branca flor da lua,

O rumor dos pulmões da mata secular,

A carne radiante, esplendorosa, e nua

Sob as lanugens de oiro estrelas a nevar...

Quando o gênio lançando as garras trucidantes

Mistura tudo, luz, terra, estrelas, vergéis,

Erguem-se logo após os mundos palpitantes:

Harmonia, Harmonia, és escrava aos seus pés.

V

O ilimitado longe, a profundeza imensa,

O olho do cismador turvado de visões;

O irradiar de sóis furando a treva densa

Duma alma, retalhada às garras dos clarões...

A dor que descarrega a sua não severa

Na fronte loura da criança inda a sorrir,

A dor — escada de oiro à luminosa esfera,

A dor que Deus mandou de lágrimas cobrir...

Dessas loucuras tem — talvez desses mistérios —

O Deus, que evoco, o Deus das grandes criações,

Que dá músicas de astro aos pássaros aéreos,

E enche de aurora rubra a fauce dos leões...

A c'roa flamejante a tremer sobre a fronte

Dos sinistros vulcões, seculares titãs,

Que têm o velho corpo escondido no monte,

E bebem loucamente os beijos das manhãs...

As brisas derramando as ânfora sonoras,

As veigas desatando os seios sensuais,

O céu eternamente a despejar auroras,

E o mar lambendo o céu... e a soluçar por mais...

Esmeraldas do ar, vibrantes beija-flores,

Que antes parecem ser os sobejos dos sóis,

Que têm nas asas de oiro a música das cores,

E os idílios da luz em coros de arrebóis...

Os túmulos, nos quais as brancas margaridas

Quebram do goivo austero a majestosa dor;

Onfálias a dormir, esperanças perdidas,

Beijos da mocidade, asas verdes do amor...

Pranto, riso, gemido estalar de sementes

Alegrias dos céus, aromas dos vergéis,

O tropel infantil de corolas ardentes,

Harmonia! Harmonia, isto tudo tu és.

VI

Quem pode levantar na voz os universos,

Que rolam pelo abismo, e a borda dos pauis,

E enrolar, para unir estes mundos diversos

Fios de sonhos de oiro, e de cismas azuis?

Vós, poetas gentis, que encheis a alma do povo

Dos mundos ideais, que vossa alma contém,

Que do velho universo um universo novo,

O fazeis, como um Deus, com menos que Deus tem;

Obeliscos de sons, pirâmides do Egito,

Fantástico país de enormes catedrais,

Palácios de Aladin, rotundas de granito,

No vago canto aéreo, ó mestres, levantais;

É um arco o céu azul dessa grande arcaria,

Que Deus leva por onde a quer enfileirar:

E vós tendes, só vós, a suprema alegria

De sabê-los medir, e podê-los contar;

Outras vezes também em movimentos bruscos,

Mostram no seu relevo as vossas construções,

Como se têm achado em túmulos etruscos,

Figuras colossais de grifenhos leões.

Da epopeia à canção, de Ésquilo a Hesíodo e Homero,

De Virgílio a Tibulo, mudais de par em par:

O belo é o vosso sonho, e andais como Aasvero

O caminho dos céus sem parar... sem parar.

Cristalizais o idílio em lirismo, que exala

De si, como um milhão de vivos rouxinóis,

Oue entre chuva de luz de fogos de Bengala,

Mandais da terra aos céus orquestrizar aos sóis.

Fazeis passar no ar Palmiras em ruínas;

Vê-se cruzar o raio, e escuta-se o trovão:

E o céu a fervilhar de estrelas peregrinas

Desce a um gesto, que faz apenas vossa mão.

Ouve-se o som do tiro, e Carlota espantada

Soltar um grito — um raio ao dorso de um tufão,

Que alma inteira lhe arranca, e roja espedaçada

Sobre Werther em sangue, e estendido no chão...

Desdêmona cantando em roupas branquejantes,

O colo nu e a trança espalmada a cair;

O sono a se prender em pálpebras errantes...

E sem elas saber que sono vão dormir...

Mefistófeles lança em Margarida as garras:

Chora a branca inocência as flores virginais;

E as rosas, que cultiva em suas pobres jarras,

Em seus cantos de aroma a acariciam mais.

E é tudo isto a harmonia, a loura irmã do belo;

Sai da mulher, bem como a luz sai da manhã;

É Cicília Pallini — a alma de Paisiello —

É a alma de Rossini — a Elizabeth Colbrand —

É Teresa ensinando o que é a Eternidade,

Explicando-a a sonhar, talvez, como Platão,

Ela cheia de luz, como uma divindade,

Que para soltar sóis apenas abre a mão.

É a eterna mulher, a eterna Fornarina,

A eterna Beatriz, a eterna Leonor:

É do Éden a Eva, a criação divina,

Que liga a terra ao céu num só beijo de amor.

VII

Ó vós, que vos chamais Palestrina, e Beethoven,

Glück, Haendel, Rossini, Haydn, e Berlioz,

Sobre cuja cabeça os astros da arte chovem,

Para que chovam dela os astros sobre nós...

Vós, que sabeis ouvir o que murmura o lírio,

O que chora a violeta em seu modesto odor,

E as gargalhadas que as rosas em delírio

Soltam pelos rosais e vergéis em rumor...

Vós, para quem não têm segredos as estrelas,

Vós, que ouvis o silêncio — alta noite — cantar,

E que mesmo sem ir lá nos abismos vê-las,

Sabeis ouvir a voz das pérolas do mar...

Vós, poetas dos sons, dos deuses exilados,

Velha raça que sonha Olimpos imortais,

Ergueis, para os tocar, os muros estrelados

De sonoras Babéis em árias ideais.

Bellini vale o Tasso, e Palestrina o Dante,

Cimarosa — Ariosto, e Verdi — Rafael —

Assim como Canova é o poeta gigante,

Que faz cantar a pedra aos golpes do cinzel.

Tem a estátua o fulgor das estrofes aladas,

É um livro em relevo aberto inteiro ao olhar,

E em torno do rumor das curvas delicadas

Grupa-se a luz do sol, enrola-se o luar.

Os cantos briareus, as grandes epopeias

São Partenões de glória, e arcos triunfais,

Por onde vão passando eternamente ideias,

Eras, povos, nações, que já não vivem mais.

VIII

Vaga deusa do azul, alígera e invisível,

Cujas asas bater escutam-se no ar,

Cujos nevados pés, às vezes, é possível,

Ver-se por um instante a nossa alma tocar,

Donizetti contém-te às cifras misteriosas,

Qnde ele enfia tudo, a terra, o céu, o mar;

E os astros misturando ao barulho das rosas,

Faz de mundo de sóis flamívoro colar;

Leva-te Verdi ao longe, à sombra dos palmares,

Onde corre a girafa, onde ruge o leão;

Faz montar-te os corcéis espumosos dos mares,

E enrola-te à cabeça as joias de Ceilão;

Wagner frecha dum cimo as águias das montanhas,

Simbólicos zênits, etéreos apogeus,

E vê-se então cair as tépidas entranhas

Agarradas ao grito atroz dos Prometeus.

Tu és de hoje em diante um desses grandes nomes

Do sonoro país, que Glück construiu;

De Allegri e Palestrina és filho, ó Carlos Gomes;

A virgem da harmonia ao berço te sorriu.

IX

Vens da Itália, onde o céu é puro e cristalino,

Onde os próprios vulcões sabem rir e cantar,

Onde tudo é sublime, onde tudo é divino,

A tradição, a história a terra, o céu, o mar.

Tu vens do Olimpo da arte, e não de um longo exílio

País que é lira enorme e eterno tema o amor,

Onde Tasso gemeu, onde cantou Virgílio,

E onde o sol se perfuma aos laranjais em flor.

Nosso país também é belo e deslumbrante:

Foi pérola que achou boiando ao sol — Cabral;

A tua... a nossa Pátria, ó poeta triunfante,

Abre-te à fronte augusta o seu seio imortal

As três irmãs (1899)

C'erano tre zitelle,

E tutti tre d’amore.

(Canto popular da Itália)

I

A mais moça das três, a mais ardente e viva,

Aquela que mais brilha,

Quando, sorrindo, aos seus encantos nos cativa,

Eu amo como filha.

A segunda, que tem da pálida açucena

Aberta, de manhã,

A cor, o cheiro, a forma, a languidez serena,

Eu amo como irmã.

A outra é a mulher, que me enleia e fascina,

É a mulher que eu chamo

Entre todas gentil: é a mulher divina,

É a mulher que eu amo.

  

II

A mais moça das três é linda borboleta;

Entra, abre as asas, sai:

Não compreende bem, não nega, nem rejeita

O meu amor de pai.

A segunda é a flor de essência melindrosa,

De rara perfeição;

Não sei se ela desdenha ou se ela entende, e goza

O meu amor de irmão.

A terceira é a mulher: anjo, monstro, hidra, esfinge,

Encanto, sedução;

Amo-a; não a conheço: é verdadeira, ou finge?

Não a conheço, não.

III

Se a primeira casasse, oh! que alegria a minha!

Eu lhe diria: Vai!

Veria nela um anjo, um astro, uma rainha

O meu amor de pai.

Se a segunda casasse, eu mesmo iria à igreja,

Levá-la pela mão:

Dir-lhe-ia: o céu azul virar-te aos pés deseja

O meu amor de irmão.

Se a terceira casasse, oh! minha inf’licidade!

A mais velha das três,

No horror da escuridão, fora uma eternidade

A minha viuvez.

  

IV

Se a primeira morresse, oh! como eu choraria

A minha desventura!

Com lágrimas de dor lavara, noite e dia,

A sua sepultura.

Se a segunda morresse, oh! transe amargurado!

Eu choraria tanto

Que ela iria boiando, em seu caixão doirado,

Nas águas do meu pranto.

Se a terceira morresse, em seu caixão deitada,

Sem que eu chorasse, iria,

Porque noutro caixão, ó minha morta amada,

Alguém te seguiria...