Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Últimos sonetos, de Cruz e Sousa


Texto-fonte:

João da Cruz e Sousa, Obra Completa, org. de Lauro Junkes,

Jaraguá do Sul: Avenida, 2008, 2 v.

ÍNDICE 

Piedade

Caminho da glória

Presa do ódio

Alucinação

Vida obscura

Conciliação

Glória

A Perfeição

Madona da Tristeza

De alma em alma

Ironia de lágrimas

O grande Momento

Prodígio!

Cogitação

Grandeza oculta

Voz fugitiva

Quando será?!

Imortal atitude

Livre!

Cárcere das almas

Supremo verbo

Vão arrebatamento

Benditas cadeias!

Único remédio

Floresce!

Deus do Mal

A harpa

Almas indecisas...

Abrigo celeste

Mudez perversa

Coração confiante

Espírito imortal

Crê!

Alma fatigada

Flor nirvanizadas

Feliz!

Cruzada nova

O Soneto

Fogos-fátuos

Mundo inacessível

Consolo amargo

Vinho negro

Eternos atalaias

Perante a morte

O Assinalado

Acima de tudo

Imortal falerno

Luz da Natureza

Asas abertas

Velho

Eternidade retrospectiva

Alma mater

O coração

Invulnerável

Lírio lutuoso

A grande sede

Domus aurea

Um ser

O grande Sonho

Condenação fatal

[Alma ferida]

Alma solitária

Visionários

Demônios

Ódio sagrado

Exortação

Bondade

Na Luz

Cavador do Infinito

Santos óleos

Sorriso interior

Mealheiro de almas

Espasmos...

Evocação

No seio da terra

Anima mea

Sempre o sonho

Aspiração suprema

Inefável!

Ser dos seres

Sexta-Feira Santa

Sentimento esquisito

Clamor supremo

Ansiedade

Grande amor

Silêncios

A Morte

Só!

Fruto envelhecido

Êxtase búdico

Triunfo supremo

Assim seja!

Renascimento

Pacto das almas: Para sempre!

Pacto das almas: Longe de tudo

Pacto das almas: Alma das almas

 

Piedade

O coração de todo o ser humano

Foi concebido para ter piedade,

Para olhar e sentir com caridade

Ficar mais doce o eterno desengano.

Para da vida em cada rude oceano

Arrojar, através da imensidade,

Tábuas de salvação, de suavidade,

De consolo e de afeto soberano.

Sim! Que não ter um coração profundo

É os olhos fechar à dor do mundo,

ficar inútil nos amargos trilhos.

É como se o meu ser compadecido

Não tivesse um soluço comovido

Para sentir e para amar meus filhos!

 

 

Caminho da glória

Este caminho é cor-de-rosa e é de ouro,

Estranhos roseirais nele florescem,

Folhas augustas, nobres reverdecem

De acanto, mirto e sempiterno louro.

Neste caminho encontra-se o tesouro

Pelo qual tantas almas estremecem;

É por aqui que tantas almas descem

Ao divino e fremente sorvedouro.

É por aqui que passam meditando,

Que cruzam, descem, trêmulos, sonhando,

Neste celeste, límpido caminho,

Os seres virginais que vêm da Terra,

Ensanguentados da tremenda guerra,

Embebedados do sinistro vinho.

 

 

Presa do ódio

Da tu'alma na funda galeria

Descendo às vezes, eu às vezes sinto

Que como o mais feroz lobo faminto

Teu ódio baixo de alcateia espia.

Do Desespero a noite cava e fria,

De boêmias vis o pérfido absinto

Pôs no teu ser um negro labirinto,

Desencadeou sinistra ventania.

Desencadeou a ventania rouca,

surda, tremenda, desvairada, louca,

Que a tu'alma abalou de lado a lado.

Que te inflamou de cóleras supremas

e deixou-te nas trágicas algemas

Do teu ódio sangrento acorrentado!

 

 

Alucinação

Ó solidão do Mar, ó amargor das vagas,

Ondas em convulsões, ondas em rebeldia,

Desespero do Mar, furiosa ventania,

Boca em fel dos tritões engasgada de pragas.

Velhas chagas do sol, ensanguentadas chagas

De ocasos purpurais de atroz melancolia,

Luas tristes, fatais, da atra mudez sombria

Da trágica ruína em vastidões pressagas.

Para onde tudo vai, para onde tudo voa,

Sumido, confundido, esboroado, à toa,

No caos tremendo e nu dos tempos a rolar?

Que Nirvana genial há de engolir tudo isto

— Mundos de Inferno e Céu, de Judas e de Cristo,

Luas, chagas do sol e turbilhões do Mar?!

 

 

Vida obscura

Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,

Ó ser humilde entre os humildes seres.

Embriagado, tonto dos prazeres,

O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste num silêncio escuro

A vida presa a trágicos deveres

E chegaste ao saber de altos saberes

Tornando-te mais simples e mais puro.

Ninguém te viu o sentimento inquieto,

Magoado, oculto e aterrador, secreto,

Que o coração te apunhalou no mundo.

Mas eu que sempre te segui os passos

Sei que cruz infernal prendeu-te os braços

E o teu suspiro como foi profundo!

 

 

Conciliação

Se essa angústia de amar te crucifica,

Não és da dor um simples fugitivo:

Ela marcou-te com o sinete vivo

Da sua estranha majestade rica.

És sempre o Assinalado ideal que fica

Sorrindo e contemplando o céu altivo;

Dos Compassivos és o compassivo,

Na Transfiguração que glorifica.

Nunca mais de tremer terás direito...

Da Natureza todo o Amor perfeito

Adorarás, venerarás contrito.

Ah! Basta encher, eternamente basta

Encher, encher toda esta Esfera vasta

Da convulsão do teu soluço aflito!

 

 

Glória

Florescimentos e florescimentos!

Glória às estrelas, glória às aves, glória

À natureza! Que a minh'alma flórea

Em mais flores flori de sentimentos.

Glória ao Deus invisível dos nevoentos

Espaços! glória à lua merencória,

Glória à esfera dos sonhos, à ilusória

Esfera dos profundos pensamentos.

Glória ao céu, glória à terra, glória ao mundo!

Todo o meu ser é roseiral fecundo

De grandes rosas de divino brilho.

Almas que floresceis no Amor eterno!

Vinde gozar comigo este falerno,

Esta emoção de ver nascer um filho!

 

 

A Perfeição

A Perfeição é a celeste ciência

Da cristalização de almos encantos,

De abandonar os mórbidos quebrantos

E viver de uma oculta florescência.

Noss'alma fica da clarividência

Dos astros e dos anjos e dos santos,

Fica lavada na lustral dos prantos,

É dos prantos divina e pura essência.

Noss'alma fica como o ser que às lutas

As mãos conserva limpas, impolutas,

Sem as manchas do sangue mau da guerra.

A Perfeição é a alma estar sonhando

Em soluços, soluços, soluçando

As agonias que encontrou na Terra!

 

 

Madona da Tristeza

Quando te escuto e te olho reverente

E sinto a tua graça triste e bela

De ave medrosa, tímida, singela,

Fico a cismar enternecidamente.

Tua voz, teu olhar, teu ar dolente

Toda a delicadeza ideal revela

E de sonhos e lágrimas estrela

O meu ser comovido e penitente.

Com que mágoa te adoro e te contemplo,

Ó da Piedade soberano exemplo,

Flor divina e secreta da Beleza.

Os meus soluços enchem os espaços

Quando te aperto nos estreitos braços,

solitária madona da Tristeza!

 

 

De alma em alma

Tu andas de alma em alma errando, errando,

como de santuário em santuário.

És o secreto e místico templário

As almas, em silêncio, contemplando.

Não sei que de harpas há em ti vibrando,

que sons de peregrino Estradivarius

Que lembras reverências de sacrário

E de vozes celestes murmurando.

Mas sei que de alma em alma andas perdido

Atrás de um belo mundo indefinido

De silêncio, de Amor, de Maravilha.

Vai! Sonhador das nobres reverências!

A alma da Fé tem dessas florescências,

Mesmo da Morte ressuscita e brilha!

 

 

Ironia de lágrimas

Junto da Morte é que floresce a Vida!

Andamos rindo junto à sepultura.

A boca aberta, escancarada, escura

Da cova é como flor apodrecida.

A Morte lembra a estranha Margarida

Do nosso corpo, Fausto sem ventura...

Ela anda em torno a toda a criatura

Numa dança macabra indefinida.

Vem revestida em suas negras sedas

E a marteladas lúgubres e tredas

Das ilusões o eterno esquife prega.

E adeus caminhos vãos, mundos risonhos,

Lá vem a loba que devora os sonhos,

Faminta, absconsa, imponderada, cega!

 

 

O grande Momento

Inicia-te, enfim, Alma imprevista,

Entra no seio dos Iniciados.

Esperam-te de luz maravilhados

Os Dons que vão te consagrar Artista.

Toda uma Esfera te deslumbra a vista,

Os ativos sentidos requintados.

Céus e mais céus e céus transfigurados

Abrem-te as portas da imortal Conquista.

Eis o grande Momento prodigioso

Para entrares sereno e majestoso

Num mundo estranho d'esplendor sidéreo.

Borboleta de sol, surge da lesma...

Oh! vai, entra na posse de ti mesma,

Quebra os selos augustos do Mistério!

 

 

Prodígio!

Como o Rei Lear não sentes a tormenta

Que te desaba na fatal cabeça!

(Que o céu d'estrelas todo resplandeça.)

A tua alma, na Dor, mais nobre aumenta.

A Desventura mais sanguinolenta

Sobre os teus ombros impiedosa desça,

Seja a treva mais funda e mais espessa,

Todo o teu ser em músicas rebenta.

Em músicas e em flores infinitas

De aromas e de formas esquisitas

E de um mistério singular, nevoento...

Ah! só da Dor o alto farol supremo

Consegue iluminar, de extremo a extremo,

o estranho mar genial do Sentimento!

 

 

Cogitação

Ah! mas então tudo será baldado?!

Tudo desfeito e tudo consumido?!

No Ergástulo d'ergástulos perdido

Tanto desejo e sonho soluçado?!

Tudo se abismará desesperado,

Do desespero do Viver batido,

Na convulsão de um único Gemido

Nas entranhas da Terra concentrado?!

nas espirais tremendas dos suspiros

A alma congelará nos grandes giros,

Rastejará e rugirá rolando?!

Ou entre estranhas sensações sombrias,

Melancolias e melancolias,

No eixo da alma de Hamlet irá girando?!

 

 

Grandeza oculta

Estes vão para as guerras inclementes,

Os absurdos heróis sanguinolentos,

Alvoroçados, tontos e sedentos

Do clamor e dos ecos estridentes.

Aqueles para os frívolos e ardentes

Prazeres de acres inebriamentos:

Vinhos, mulheres, arrebatamentos

De luxúrias carnais, impenitentes.

Mas Tu, que na alma a imensidade fechas,

Que abriste com teu Gênio fundas brechas

no mundo vil onde a maldade exulta,

Ó delicado espírito de Lendas!

Fica nas tuas Graças estupendas,

No sentimento da grandeza oculta!

 

 

Voz fugitiva

Às vezes na tu'alma que adormece

Tanto e tão fundo, alguma voz escuto

De timbre emocional, claro, impoluto

Que uma voz bem amiga me parece.

E fico mudo a ouvi-la como a prece

De um meigo coração que está de luto

E livre, já, de todo o mal corrupto,

Mesmo as afrontas mais cruéis esquece.

Mas outras vezes, sempre em vão, procuro

Dessa voz singular o timbre puro,

As essências do céu maravilhosas.

Procuro ansioso, inquieto, alvoroçado,

Mas tudo na tu'alma está calado,

No silêncio fatal das nebulosas.

 

 

Quando será?!

Quando será que tantas almas duras

Em tudo, já libertas, já lavadas

nas águas imortais, iluminadas

Do sol do Amor, hão de ficar bem puras?

Quando será que as límpidas frescuras

Dos claros rios de ondas estreladas

Dos céus do Bem, hão de deixar clareadas

Almas vis, almas vãs, almas escuras?

Quando será que toda a vasta Esfera,

Toda esta constelada e azul Quimera,

Todo este firmamento estranho e mudo,

Tudo que nos abraça e nos esmaga,

quando será que uma resposta vaga,

Mas tremenda, hão de dar de tudo, tudo?!

 

 

Imortal atitude

Abre os olhos à Vida e fica mudo!

Oh! Basta crer indefinidamente

Para ficar iluminado tudo

De uma luz imortal e transcendente.

Crer é sentir, como secreto escudo,

A alma risonha, lúcida, vidente...

E abandonar o sujo deus cornudo,

O sátiro da Carne impenitente.

Abandonar os lânguidos rugidos,

O infinito gemido dos gemidos

Que vai no lodo a carne chafurdando.

Erguer os olhos, levantar os braços

Para o eterno Silêncio dos Espaços

E no Silêncio emudecer olhando...

 

 

Livre!

Livre! Ser livre da matéria escrava,

Arrancar os grilhões que nos flagelam

E livre, penetrar nos Dons que selam

A alma e lhe emprestam toda a etérea lava.

Livre da humana, da terrestre bava

Dos corações daninhos que regelam

Quando os nossos sentidos se rebelam

Contra a Infâmia bifronte que deprava.

Livre! bem livre para andar mais puro,

Mais junto à Natureza e mais seguro

Do seu amor, de todas as justiças.

Livre! para sentir a Natureza,

Para gozar, na universal Grandeza,

Fecundas e arcangélicas preguiças.

 

 

Cárcere das almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,

Soluçando nas trevas, entre as grades

Do calabouço olhando imensidades,

Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza

Quando a alma entre grilhões as liberdades

Sonha e, sonhando, as imortalidades

Rasga no etéreo o Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas

Nas prisões colossais e abandonadas,

Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,

que chaveiro do Céu possui as chaves

para abrir-vos as portas do Mistério?!

 

Supremo verbo

— Vai, Peregrino do caminho santo,

Faz da tu'alma lâmpada do cego,

Iluminando, pego sobre pego,

As invisíveis amplidões do Pranto.

Ei-lo, do Amor o cálix sacrossanto!

Bebe-o, feliz, nas tuas mãos o entrego...

És o filho leal, que eu não renego,

Que defendo nas dobras do meu manto.

Assim ao Poeta a Natureza fala!

Enquanto ele estremece ao escutá-la,

Transfigurado de emoção, sorrindo...

Sorrindo a céus que vão se desvendando,

A mundos que vão se multiplicando,

A portas de ouro que vão se abrindo!

 

 

Vão arrebatamento

Partes um dia das Curiosidades

Do teu ser singular, partes em busca

De almas irmãs, cujo esplendor ofusca

As celestes, divinas claridades.

Rasgas terras e céus, imensidades,

Dos perigos da Vida a vaga brusca,

Queima-te o sol que na Amplidão corusca

E consola-te a lua das saudades.

Andas por toda a parte, em toda a parte

A sedução das almas a falar-te,

Como da Terra luminosos marcos.

E a sorrir e a gemer e soluçando

Ah! Sempre em busca de almas vais andando

Mas em vez delas encontrando charcos!

 

 

Benditas cadeias!

Quando vou pela Luz arrebatado,

Escravo dos mais puros sentimentos

Levo secretos estremecimentos

Como quem entra em mágico Noivado.

Cerca-me o mundo mais transfigurado

Nesses sutis e cândidos momentos...

Meus olhos, minha boca vão sedentos

De luz, todo o meu ser iluminado.

Fico feliz por me sentir escravo

De um Encanto maior entre os Encantos,

Livre, na culpa, do mais leve travo.

De ver minh'alma com tais sonhos, tantos,

E que por fim me purifico e lavo

Na água do mais consolador dos prantos

 

 

Único remédio

Como a chama que sobe e que se apaga

Sobem as vidas a espiral de Inferno.

O desespero é como o fogo eterno

Que o campo quieto em convulsões alaga...

Tudo é veneno, tudo cardo e praga!

E as almas que têm sede de falerno

Bebem apenas o licor moderno

Do tédio pessimista que as esmaga.

Mas a Caveira vem se aproximando,

Vem exótica e nua, vem dançando,

No estrambotismo lúgubre vem vindo.

E tudo acaba então no horror insano

— Desespero do Inferno e tédio humano —

Quando, d'esguelha, a Morte surge, rindo...

 

 

Floresce!

Floresce, vive para a Natureza,

Para o Amor imortal, largo e profundo.

O Bem supremo de esquecer o mundo

Reside nessa límpida grandeza.

Floresce para a Fé, para a Beleza

Da Luz que é como um vasto mar sem fundo,

Amplo, inflamado, mágico, fecundo,

De ondas de resplendor e de pureza.

Andas em vão na Terra, apodrecendo

À toa pelas trevas, esquecendo

A Natureza e os seus aspectos calmos.

Diante da luz que a Natureza encerra

Andas a apodrecer por sobre a Terra,

Antes de apodrecer nos sete palmos!

 

 

Deus do Mal

Espírito do Mal, ó deus perverso

Que tantas almas dúbias acalentas,

Veneno tentador na luz disperso

Que a própria luz e a própria sombra tentas.

Símbolo atroz das culpas do Universo,

Espelho fiel das convulsões violentas

Do gasto coração no lodo imerso

Das tormentas vulcânicas, sangrentas.

Toda a tua sinistra trajetória

Tem um brilho de lágrima ilusória,

As melodias mórbidas do Inferno...

És Mal, mas sendo Mal és soluçante,

Sem a graça divina e consolante,

Réprobo estranho do Perdão eterno!

 

 

A harpa

Prende, arrebata, enleva, atrai, consola

A harpa tangida por convulsos dedos,

Vivem nela mistérios e segredos,

É berceuse, é balada, é barcarola.

Harmonia nervosa que desola,

Vento noturno dentre os arvoredos

A erguer fantasmas e secretos medos,

Nas suas cordas um soluço rola...

Tu'alma é como esta harpa peregrina

Que tem sabor de música divina

E só pelos eleitos é tangida.

Harpa dos céus que pelos céus murmura

E que enche os céus da música mais pura,

como de uma saudade indefinida.

 

 

Almas indecisas...

Almas ansiosas, trêmulas, inquietas,

Fugitivas abelhas delicadas

Das colmeias de luz das alvoradas,

Almas de melancólicos poetas.

Que dor fatal e que emoções secretas

vos tornam sempre assim desconsoladas,

Na pungência de todas as espadas,

Na dolência de todos os ascetas?!

Nessa esfera em que andais, sempre indecisa,

Que tormento cruel vos nirvaniza,

Que agonias titânicas são estas?!

Por que não vindes, Almas imprevistas,

Para a missão das límpidas Conquistas

E das augustas, imortais Promessas?!

 

 

Abrigo celeste

Estrela triste a refletir na lama,

Raio de luz a cintilar na poeira,

Tens a graça sutil e feiticeira,

A doçura das curvas e da chama.

Do teu olhar um fluido se derrama

De tão suave, cândida maneira

Que és a sagrada pomba alvissareira

Que para o Amor toda a minh'alma chama.

Meu ser anseia por teu doce apoio,

Nos outros seres só encontra joio

Mas só no teu todo o divino trigo.

Sou como um cego sem bordão de arrimo

Que do teu ser, tateando, me aproximo

Como de um céu de carinhoso abrigo.

 

 

Mudez perversa

Que mudez infernal teus lábios cerra

Que ficas vago, para mim olhando,

Na atitude de pedra, concentrando

No entanto, n'alma, convulsões de guerra!

A mim tal fel essa mudez encerra,

Tais demônios revéis a estão forjando

Que antes te visse morto, desabando

Sobre o teu corpo grossas pás de terra.

Não te quisera nesse atroz e sumo

Mutismo horrível que não gera nada,

Que não diz nada, não tem fundo e rumo.

Mutismo de tal dor desesperada,

Que quando o vou medir com o estranho prumo

Da alma fico com a alma alucinada!

 

 

Coração confiante

O coração que sente vai sozinho,

Arrebatado, sem pavor, sem medo...

Leva dentro de si raro segredo

Que lhe serve de guia no Caminho.

Vai no alvoroço, no celeste vinho

Da luz os bosques acordando cedo,

Quando de cada trêmulo arvoredo

Parte o sonoro e matinal carinho.

E o Coração vai nobre e vai confiante,

Festivo como a flâmula radiante

Agitada bizarra pelos ventos...

Vai palpitando, ardente, emocionado

O velho Coração arrebatado,

Preso por loucos arrebatamentos!

 

 

Espírito imortal

Espírito imortal que me fecundas

Com a chama dos viris entusiasmos,

Que transformas em gládios os sarcasmos

Para punir as multidões profundas!

Ó alma que transbordas, que me inundas

De brilhos, de ecos, de emoções, de pasmos

E fazes acordar de atros marasmos

Minh'alma, em tédios por charnecas fundas.

Força genial e sacrossanta e augusta,

Divino Alerta para o Esquecimento,

Voz companheira, carinhosa e justa.

Tens minha Mão, num doce movimento,

Sobre essa Mão angélica e robusta,

Espírito imortal do Sentimento!

 

 

Crê!

Vê como a Dor te transcendentaliza!

Mas no fundo da Dor crê nobremente.

Transfigura o teu ser na força crente

Que tudo torna belo e diviniza.

Que seja a Crença uma celeste brisa

Inflando as velas dos batéis do Oriente

Do teu Sonho supremo, onipotente,

Que nos astros do céu se cristaliza.

Tua alma e coração fiquem mais graves,

Iluminados por carinhos suaves,

Na doçura imortal sorrindo e crendo...

Oh! Crê! Toda a alma humana necessita

De uma Esfera de cânticos, bendita,

Para andar crendo e para andar gemendo!

 

 

Alma fatigada

Nem dormir nem morrer na fria Eternidade!

Mas repousar um pouco e repousar um tanto,

Os olhos enxugar das convulsões do pranto,

Enxugar e sentir a ideal serenidade.

A graça do consolo e da tranquilidade

De um céu de carinhoso e perfumado encanto,

Mas sem nenhum carnal e mórbido quebranto,

Sem o tédio senil da vã perpetuidade.

Um sonho lirial d'estrelas desoladas

Onde as almas febris, exaustas, fatigadas

Possam se recordar e repousar tranquilas!

Um descanso de Amor, de celestes miragens,

Onde eu goze outra luz de místicas paisagens

E nunca mais pressinta o remexer de argilas!

 

 

Flor nirvanizada

Ó cegos corações, surdos ouvidos,

Bocas inúteis, sem clamor, fechadas,

Almas para os mistérios apagadas,

Sem segredos, sem eco e sem gemidos.

Consciências hirsutas de bandidos,

Vesgas, nefandas e desmanteladas,

Portas de ferro, com furor trancadas,

Dos ócios maus histéricos Vencidos.

Desenterrai-vos das sangrentas furnas

Sinistras, cabalísticas, noturnas

Onde ruge o Pecado caudaloso...

Fazei da Dor, do triste Gozo humano,

A Flor do Sentimento soberano,

A Flor nirvanizada de outro Gozo!

 

 

Feliz!

Ser de beleza, de melancolia,

Espírito de graça e de quebranto,

Deus te bendiga o doloroso pranto,

Enxugue as tuas lágrimas um dia.

Se a tu'alma é d'estrela e d'harmonia,

Se o que vem dela tem divino encanto,

Deus a proteja no sagrado manto,

No céu, que é o vale azul da Nostalgia.

Deus a proteja na felicidade

Do sonho, do mistério, da saudade,

De cânticos, de aroma e luz ardente.

E sê feliz e sê feliz subindo,

Subindo, a Perfeição na alma sentindo

Florir e alvorecer libertamente!

 

 

Cruzada nova

Vamos saber das almas os segredos,

Os círculos patéticos da Vida,

Dar-lhes a luz do Amor compadecida

E defendê-las dos secretos medos.

Vamos fazer dos áridos rochedos

Manar a água lustral e apetecida,

Pelos ansiosos corações bebida

No silêncio e na sombra d'arvoredos.

Essas irmãs furtivas das estrelas,

Se não formos depressa defendê-las,

Morrerão sem encanto e sem carinho.

Paladinos da límpida Cruzada!

Conquistemos, sem lança e sem espada,

As almas que encontrarmos no Caminho.

 

 

O Soneto

Nas formas voluptuosas o soneto

Tem fascinante, cálida fragrância

E as leves, langues curvas de elegância

De extravagante e mórbido esqueleto.

A graça nobre e grave do quarteto

Recebe a original intolerância,

Toda a sutil, secreta extravagância

Que transborda terceto por terceto.

E como um singular polichinelo

Ondula, ondeia, curioso e belo,

O Soneto, nas formas caprichosas.

As rimas dão-lhe a púrpura vetusta

E nas mais rara procissão augusta

Surge o Sonho das almas dolorosas...

 

 

Fogos-fátuos

Há certas almas vãs, galvanizadas

De emoção, de pureza, de bondade,

Que como toda a azul imensidade

Chegam a ser de súbito estreladas.

E ficam como que transfiguradas

Por momentos, na vaga suavidade

De quem se eleva com serenidade

Às risonhas, celestes madrugadas.

Mas nada às vezes nelas corresponde

Ao sonho e ninguém sabe mais por onde

Anda essa falsa e fugitiva chama...

É que no fundo, na secreta essência,

Essas almas de triste decadência

São lama sempre e sempre serão lama.

 

 

Mundo inacessível

Tu'alma lembra um mundo inaccessível

Onde só astros e águias vão pairando,

Onde só se escuta, trágica, cantando,

A sinfonia da Amplidão terrível!

Alma nenhuma, que não for sensível,

Que asas não tenha para as ir vibrando,

Essa região secreta desvendando,

Falece, morre, num pavor incrível!

É preciso ter asas e ter garras

Para atingir aos ruídos de fanfarras

Do mundo da tu'alma augusta e forte.

É preciso subir ígneas montanhas

E emudecer, entre visões estranhas,

Num sentimento mais sutil que a Morte!

 

 

Consolo amargo

Mortos e mortos, tudo vai passando,

Tudo pelos abismos se sumindo...

Enquanto sobre a Terra ficam rindo

Uns, e já outros, pálidos, chorando...

Todos vão trêmulos finalizando,

Para os gelados túmulos partindo,

Descendo ao tremedal eterno, infindo,

Mortos e mortos, num sinistro bando.

Tudo passa espectral e doloroso,

Pulverulentamente nebuloso

Como num sonho, num fatal letargo...

Mas, de quem chora os mortos, entretanto,

O Esquecimento vem e enxuga o pranto,

E é esse apenas o consolo amargo!

 

 

Vinho negro

O vinho negro do imortal pecado

Envenenou nossas humanas veias

Como fascinações de atrás sereias

E um inferno sinistro e perfumado.

O sangue canta, o sol maravilhado

Do nosso corpo, em ondas fartas, cheias.

como que quer rasgar essas cadeias

Em que a carne o retém acorrentado.

E o sangue chama o vinho negro e quente

Do pecado letal, impenitente,

O vinho negro do pecado inquieto.

E tudo nesse vinho mais se apura,

Ganha outra graça, forma e formosura,

Grave beleza d'esplendor secreto.

 

 

Eternos atalaias

Os sentimentos servem de atalaias

Para guiar as multidões errantes

Que caminham tremendo, vacilantes

Pelas desertas, infinitas praias...

Abrangendo da Terra as fundas raias,

Atingindo as esferas mais distantes,

São como incensos, mirras odorantes,

Miraculosas, fúlgidas alfaias.

Tudo em que logo transfiguram,

Encantam tudo, tudo em torno apuram,

Penetram, sem cessar, por toda parte.

Alma por alma em toda a parte inflamam.

E grandes, largos, imortais, derramam

As melancólicas estrelas d'Arte!

 

 

Perante a Morte

Perante a Morte empalidece e treme,

Treme perante a Morte, empalidece.

Coroa-te de lágrimas, esquece

O Mal cruel que nos abismos geme.

Ah! longe o Inferno que flameja e freme,

Longe a Paixão que só no horror floresce...

A alma precisa de silêncio e prece,

Pois na prece e silêncio nada teme.

Silêncio e prece no fatal segredo,

Perante o pasmo do sombrio medo

Da morte e os seus aspectos reverentes...

Silêncio para o desespero insano,

O furor gigantesco e sobre-humano,

A dor sinistra de ranger os dentes!

 

 

O Assinalado

Tu és o louco da imortal loucura,

O louco da loucura mais suprema.

A Terra é sempre a tua negra algema,

Prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,

Mas essa mesma Desventura extrema

Faz que tu'alma suplicando gema

E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado

Que povoas o mundo despovoado,

De belezas eternas, pouco a pouco...

Na Natureza prodigiosa e rica

Toda a audácia dos nervos justifica

Os teus espasmos imortais de louco!

 

 

Acima de tudo

Da gota d'água de um carinho agreste

Geram-se os oceanos da Bondade.

O coração que é livre e bom reveste

Tudo d'encanto e simples majestade.

Ascender para a Luz é ser celeste,

Novos astros sentir na imensidade

Da alma e ficar nessa inconsútil veste

Da divina e serena claridade.

O que é consolador e o que é supremo

Cada alma encontra no caminho extremo,

Quando atinge as estrelas da pureza.

É apenas trazer o Ser liberto

De tudo e transformar cada deserto

Num sonho virginal da Natureza!

 

 

Imortal falerno

Quando as Esferas da Ilusão transponho

Vejo sempre tu'alma — essa galera

Feita das rosas brancas da Quimera,

Sempre a vagar no estranho mar do Sonho.

Nem aspecto nublado nem tristonho!

Sempre uma doce e constelada Esfera,

Sempre uma voz clamando: — espera, espera,

Lá do fundo de um céu sempre risonho.

Sempre uma voz dos Ermos, das Distâncias!

Sempre as longínquas, mágicas fragrâncias

De uma voz imortal, divina, pura...

E tua boca, Sonhador eterno,

Sempre sequiosa desse azul falerno

Da Esperança do céu que te procura!

 

 

Luz da Natureza

Luz que eu adoro, grande Luz que eu amo,

Movimento vital da Natureza,

Ensina-me os segredos da Beleza

E de todas as vozes por quem chamo.

Mostra-me a Raça, o peregrino Ramo

Dos Fortes e dos Justos da Grandeza,

Ilumina e suaviza esta rudeza

Da vida humana, onde combato e clamo.

Desta minh'alma a solidão de prantos

Cerca com os teus leões de brava crença,

Defende com os teus gládios sacrossantos.

Dá-me enlevos, deslumbra-me, da imensa

Porta esferal, dos constelados mantos

Onde a Fé do meu Sonho se condensa!

 

 

Asas abertas

As asas da minh'alma estão abertas!

Podes te agasalhar no meu Carinho,

Abrigar-te de frios no meu Ninho

Com as tuas asas trêmulas, incertas.

Tu'alma lembra vastidões desertas

Onde tudo é gelado e é só espinho.

Mas na minh'alma encontrarás o Vinho

e as graças todas do Conforto certas.

Vem! Há em mim o eterno Amor imenso

Que vai tudo florindo e fecundando

E sobe aos céus como sagrado incenso.

Eis a minh'alma, as asas palpitando

Com a saudade de agitado lenço

o segredo dos longes procurando...

 

 

Velho

Estás morto, estás velho, estás cansado!

Como um sulco de lágrimas pungidas,

Ei-las, as rugas, as indefinidas

Noites do ser vencido e fatigado.

Envolve-te o crepúsculo gelado

Onde vai soturno amortalhando as vidas

Ante o responso em músicas gemidas

No fundo coração dilacerado.

A cabeça pendida de fadiga,

Sentes a morte taciturna e amiga

Que os teus nervos círculos governa.

Estás velho, estás morto! Ó dor, delírio,

Alma despedaçada de martírio,

Ó desespero da Desgraça eterna!

 

 

Eternidade retrospectiva

Eu me recordo de já ter vivido,

Mudo e só, por olímpicas Esferas,

onde era tudo velhas primaveras

E tudo um vago aroma indefinido.

Fundas regiões do Pranto e do Gemido

Onde as almas mais graves, mais austeras

Erravam como trêmulas quimeras

Num sentimento estranho e comovido.

As estrelas, longínquas e veladas,

Recordavam violáceas madrugadas,

Um clarão muito leve de saudade.

Eu me recordo d'imaginativos

Luares liriais, contemplativos

Por onde eu já vivi na Eternidade!

 

Alma mater

Alma da Dor, do Amor e da Bondade,

Alma purificada no Infinito,

Perdão santo de tudo o que é maldito,

Harpa consoladora da Saudade!

Das estrelas serena virgindade,

Caminho do rosais do Azul bendito

Alma sem um soluço e sem um grito,

Da alta Resignação, da alta Piedade!

Tu, que as profundas lágrimas estancas
E sabes levantar Imagens brancas

No silêncio e na sombra mais velada...

Derrama os lírios, os teus lírios castos,

Em Jordões imortais, vastos e vastos,

No fundo da minh'alma lacerada!

 

 

O coração

O coração é a sagrada pira

Onde o mistério do sentir flameja.

A vida da emoção ele a deseja

Como a harmonia as cordas de uma lira.

Um anjo meigo e cândido suspira

No coração e o purifica e beija...

E o que ele, o coração, aspira, almeja

É o sonho que de lágrimas delira.

É sempre sonho e também é piedade,

Doçura, compaixão e suavidade

E graça e bem, misericórdia pura.

Uma harmonia que dos anjos desce,

Que como estrela e flor e som floresce

Maravilhando toda criatura!

 

 

Invulnerável

Quando dos carnavais da raça humana

Forem caindo as máscaras grotescas

E as atitudes mais funambulescas

Se desfizerem no feroz Nirvana;

Quando tudo ruir na febre insana,

Nas vertigens bizarras, pitorescas

De um mundo de emoções carnavalescas

Que ri da Fé profunda e soberana,

Vendo passar a lúgubre, funérea

Galeria sinistra da Miséria,

Com as máscaras do rosto descoladas,

Tu que és o deus, o deus invulnerável,

Resiste a tudo e fica formidável,

No Silêncio das noites estreladas!

 

 

Lírio lutuoso

Essência das essências delicadas,

Meu perfumoso e tenebroso lírio,

Oh! dá-me a glória de celeste Empíreo

Da tu'alma nas sombras encantadas.

Subindo lento escadas por escadas,

Nas espirais nervosas do Martírio,

Das Ânsias, da Vertigem, do Delírio,

Vou em busca de mágicas estradas.

Acompanha-me sempre o teu perfume,

Lírio da Dor que o Mal e o Bem resumem,

Estrela negra, tenebroso fruto.

Oh! dá-me a glória do teu ser nevoento

para que eu possa haurir o sentimento

Das lágrimas acerbas do teu luto!

 

 

A grande sede

Se tens sede de Paz e d'Esperança,

Se estás cego de Dor e de Pecado,

Valha-te o Amor, ó grande abandonado,

Sacia a sede com amor, descansa.

Ah! volta-te a esta zona fresca e mansa

Do Amor e ficarás desafogado,

Hás de ver tudo claro, iluminado

Da luz que uma alma que tem fé alcança.

O coração que é puro e que é contrito,

Se sabe ter doçura e ter dolência

Revive nas estrelas do Infinito.

Revive, sim, fica imortal, na essência

Dos Anjos paira, não desprende um grito

E fica, como os Anjos, na Existência.

 

 

Domus aurea

De bom amor e de bom fogo claro

Uma casa feliz se acaricia...

Basta-lhe luz e basta-lhe harmonia

Para ela não ficar ao desamparo.

O Sentimento, quando é nobre e raro,

Veste tudo de cândida poesia...

Um bem celestial dele irradia,

Um doce bem, que não é parco e avaro.

Um doce bem que se derrama em tudo,

Um segredo imortal, risonho e mudo,

Que nos leva debaixo da sua asa.

E os nossos olhos ficam rasos d'água

Quando, rebentos de uma oculta mágoa,

São nossos filhos todo o céu da casa.

 

 

Um ser

Um ser na placidez da Luz habita,

Entre os mistérios inefáveis mora.

Sente florir nas lágrimas que chora

A alma serena, celestial, bendita.

Um ser pertence à música infinita

Das Esferas, pertence à luz sonora

Das estrelas do Azul e hora por hora

Na Natureza virginal palpita.

Um ser desdenha das fatais poeiras,

Dos miseráveis ouropéis mundanos

E de todas as frívolas cegueiras...

Ele passa, atravessa entre os humanos,

Como a vida das vidas forasteiras

Fecundada nos próprios desenganos.

 

 

O grande Sonho

Sonho profundo, ó Sonho doloroso,

Doloroso e profundo Sentimento!

Vai, vai nas harpas trêmulas do vento

Chorar o teu mistério tenebroso.

Sobe dos astros ao clarão radioso,

Aos leves fluidos do luar nevoento,

Às urnas de cristal do firmamento,

Ó velho Sonho amargo e majestoso!

Sobe às estrelas rútilas e frias,

Brancas e virginais eucaristias

De onde uma luz de eterna paz escorre.

Nessa Amplidão das Amplidões austeras

Chora o Sonho profundo das Esferas

Que nas azuis Melancolias morre...

 

 

Condenação fatal

Ó mundo, que és o exílio dos exílios,

Um monturo de fezes putrefato,

Onde o ser mais gentil, mais timorato

dos seres vis circula nos concílios.

Onde de almas em pálidos idílios
O lânguido perfume mais ingrato

Magoa tudo e é triste como o tato

De um cego embalde levantando os cílios.

Mundo de peste, de sangrenta fúria

E de flores leprosas da luxúria,

De flores negras, infernais, medonhas.

Oh! como são sinistramente feios

Teus aspectos de fera, os teus meneios

Pantéricos, ó Mundo, que não sonhas!

 

 

Alma ferida

Alma ferida pelas negras lanças

Da Desgraça, ferida do Destino,

Alma, de que as amarguras tecem o hino

Sombrio das cruéis desesperanças,

Não desças, Alma feita de heranças

Da Dor, não desças do teu céu divino.

Cintila como o espelho cristalino

Das sagradas, serenas esperanças.

Mesmo na Dor espera com clemência

E sobe à sideral resplandecência,

Longe de um mundo que só tem peçonha.

Das ruínas de tudo ergue-te pura

E eternamente, na suprema Altura,

Suspira, sofre, cisma, sente, sonha!

 

 

Alma solitária

Ó alma doce e triste e palpitante!

Que cítaras soluçam solitárias

Pelas Regiões longínquas, visionárias

Do teu Sonho secreto e fascinante!

Quantas zonas de luz purificante,

Quantos silêncios, quantas sombras várias

De esferas imortais imaginárias

Falam contigo, ó Alma cativante!

Que chama acende os teus faróis noturnos

E veste os teus mistérios taciturnos

Dos esplendores do arco de aliança?

Por que és assim, melancolicamente,

Como um arcanjo infante, adolescente,

Esquecido nos vales da Esperança?!

 

 

Visionários

Armam batalhas pelo mundo adiante

Os que vagam no mundo visionários,

Abrindo as áureas portas de sacrários

Do Mistério soturno e palpitante.

O coração flameja a cada instante

Com brilho estranho, com fervores vários,

Sente a febre dos bons missionários

Da ardente catequese fecundante.

Os visionários vão buscar frescura

De água celeste na cisterna pura

Da Esperança, por horas nebulosas...

Buscam frescura, um outro novo encanto...

E livres, belos através do pranto,

Falam baixo com as almas misteriosas!

 

Demônios

A língua vil, ignívoma, purpúrea

Dos pecados mortais bava e braveja,

Com os seres impoluídos mercadeja,

Mordendo-os fundo injúria por injúria.

É um grito infernal de atroz luxúria,

Dor de danados, dor do Caos que almeja

A toda alma serena que viceja,

Só fúria, fúria, fúria, fúria, fúria!

São pecados mortais feitos hirsutos

Demônios maus que os venenosos frutos

Morderam com volúpia de quem ama...

Vermes da Inveja, a lesma verde e oleosa,

Anões da Dor torcida e cancerosa,

Abortos de almas a sangrar na lama!

 

 

Ódio sagrado

Ó meu ódio, meu ódio majestoso,

Meu ódio santo e puro e benfazejo,

Unge-me a fronte com teu grande beijo,

Torna-me humilde e torna-me orgulhoso.

Humilde, com os humildes generoso,

Orgulhoso com os seres sem Desejo,

Sem Bondade, sem Fé e sem lampejo

De sol fecundador e carinhoso.

Ó meu ódio, meu lábaro bendito,

Da minh'alma agitado no infinito,

Através de outros lábaros sagrados.

Ódio são, ódio bom! sê meu escudo

Contra os vilões do Amor, que infamam tudo,

Das sete torres dos mortais Pecados!

 

 

Exortação

Corpo crivado de sangrentas chagas,

Que atravessas o mundo soluçando,

Que as carnes vais ferindo e vais rasgando

Do fundo d'Ilusões velhas e vagas.

Grande isolado das terrestres plagas,

Que vives as Esferas contemplando,

Braços erguidos, olhos no ar, olhando

A etérea chama das Conquistas magas.

Se é de silêncio e sombra passageira,

De cinza, desengano e de poeira

Este mundo feroz que te condena,

Embora ansiosamente, amargamente

Revela tudo o que tu'alma sente

Para ela então poder ficar serena!

 

 

Bondade

É a bondade que te faz formosa,

Que a alma te diviniza e transfigura;

É a bondade, a rosa da ternura,

Que te perfuma com perfume à rosa.

Teu ser angelical de luz bondosa

Verte em meu ser a mais sutil doçura,

Uma celeste, límpida frescura,

Um encanto, uma paz maravilhosa.

Eu afronto contigo os vampirismos,

Os corruptos e mórbidos abismos

Que em vão busquem tentar-me no Caminho.

Na suave, na doce claridade,

No consolo, de amor dessa bondade

Bebo a tu'alma como etéreo vinho.

 

 

Na Luz

De soluço em soluço a alma gravita,

De soluço em soluço a alma estremece,

Anseia, sonha, se recorda, esquece

E no centro da Luz dorme contrita.

Dorme na paz sacramental, bendita,

Onde tudo mais puro resplandece,

Onde a Imortalidade refloresce

Em tudo, e tudo em cânticos palpita.

Sereia celestial entre as sereias,

Ela só quer despedaçar cadeias,

De soluço em soluço, a alma nervosa.

Ela só quer despedaçar algemas

E respirar nas amplidões supremas,

Respirar, respirar na Luz radiosa.

 

 

Cavador do Infinito

Com a lâmpada do Sonho desce aflito

E sobe aos mundos mais imponderáveis,

Vai abafando as queixas implacáveis,

Da alma o profundo e soluçado grito.

Ânsias, Desejos, tudo a fogo, escrito

Sente, em redor, nos astros inefáveis.

Cava nas fundas eras insondáveis

O cavador do trágico Infinito.

E quanto mais pelo Infinito cava

mais o Infinito se transforma em lava

E o cavador se perde nas distâncias...

Alto levanta a lâmpada do Sonho.

E como seu vulto pálido e tristonho

Cava os abismos das eternas ânsias!

 

 

Santos óleos

Com os santos óleos de que vens ungido

Podes andar no mundo sem receio.

Quem veio para a Luz, por certo veio

Para ser valoroso e ser temido.

Que tudo é embalde, tudo em vão, perdido

Quando se traz esse divino anseio,

Esse doce transporte ou doce enleio

Que deixa tudo e tudo confundido.

A Alma que como a vela chega ao porto

Sente o melhor, consolador conforto

E a asa nas asas dos Arcanjos toca...

Os santos óleos são a luz guiadora

Que vigia por ti na pecadora

Terra e o teu mundo celestial evoca!

 

 

Sorriso interior

O ser que é ser e que jamais vacila

Nas guerras imortais entra sem susto,

Leva consigo esse brasão augusto

Do grande amor, da nobre fé tranquila.

Os abismos carnais da triste argila

Ele os vence sem ânsias e sem custo...

Fica sereno, num sorriso justo,

Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza

Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,

Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores...

E para ironizar as próprias dores

Canta por entre as águas do Dilúvio!

 

Mealheiro de almas

Lá, das colheitas do celeste trigo,

Deus ainda escolhe a mais louçã colheita:

É a alma mais serena e mais perfeita

Que ele destina conservar consigo.

Fica lá, livre, isenta de perigo,

Tranquila, pura, límpida, direita

A alma sagrada que resume a seita

Dos que fazem do Amor eterno Abrigo.

Ele quer essas almas, os pães alvos

Das aras celestiais, claros e salvos

Da Terra, em busca das Esferas calmas.

Ele quer delas todo o amor primeiro

Para formar o cândido mealheiro

Que há de estrelar todo o Infinito de almas.

 

Espasmos...

Alma das gerações, alma lendária

Que tens tanto de Hamlet, tanto de Ofélia,

A candidez da rórida camélia

E as lágrimas da Sede hereditária.

Alma dormente, tumultuosa, vária,

Acorde de harpa misteriosa e célia,

Virgindade selvagem de bromélia,

Alma do Eleito, do Plebeu, do Pária.

És a chama do Amor, negro-vermelha,

De onde rompeu a fúlgida centelha

Que a Flor de fogo fez gerar no Dante.

Com teus espasmos e delicadezas,

Nervosas e secretas sutilezas

Enches todo este Abismo soluçante!

 

Evocação

Oh Lua voluptuosa e tentadora,

Ao mesmo tempo trágica e funesta,

Lua em fundo revolto de floresta

E de sonho de vaga embaladora;

Langue visão mortal e sedutora,

Dos Vergéis siderais pálida giesta,

Divindade sutil da morna sesta

Da lasciva paixão fascinadora;

Flor fria, flor algente, flor gelada

Do desconsolo e dos esquecimentos

E do anseio, da febre atormentada,

Tu que soluças pelos céus nevoentos

Longo soluço mágico de fada,

Dá-me os teus doces acalentamentos!

 

 

No seio da Terra

Do pélago dos pélagos sombrios,

Cá do seio da Terra, olhando as vidas,

Escuto o murmurar de almas perdidas,

Como o secreto murmurar dos rios.

Trazem-me os ventos negros calafrios

E os soluços das almas doloridas

Que têm sede das terras prometidas

E morrem como abutres erradios.

As ânsias sobem, as tremendas ânsias!

Velhices, mocidades e as infâncias

Humanas entre a Dor se despedaçam...

Mas, sobre tantos convulsivos gritos,

Passam horas, espaços, infinitos,

Esferas, gerações, sonhando, passam!

 

 

Anima mea

Ó minh'alma, ó minh'alma, ó meu Abrigo,

Meu sol e minha sombra peregrina,

Luz imortal que os mundos ilumina

Do velho Sonho, meu fiel Amigo!

Estrada ideal de São Tiago, antigo

Templo da minha fé casta e divina,

De onde é que vem toda esta mágoa fina

Que é, no entanto, consolo e que eu bendigo?

De onde é que vem tanta esperança vaga,

De onde vem tanto anseio que me alaga,

Tanta diluída e sempiterna mágoa?

Ah! de onde vem toda essa estranha essência

De tanta misteriosa Transcendência

Que estes olhos me deixa rasos de água?!

 

 

Sempre o sonho

Para encantar os círculos da Vida

É ser tranquilo, sonhador, confiante,

Sempre trazer o coração radiante

Como um rio e rosais junto de ermida.

Beber na vinha celestial, garrida

Das estrelas o vinho flamejante

E caminhar vitorioso e ovante

Como um deus, com a cabeça enflorescida.

Sorrir, amar para alargar os mundos

Do Sentimento e para ter profundos

Momentos de momentos soberanos.

Para sentir em torno à terra ondeando

Um sonho, sempre um sonho além rolando

Vagas e vagas de imortais oceanos.

 

 

Aspiração suprema

Como os cegos e os nus pede um abrigo

A alma que vive a tiritar de frio.

Lembra um arbusto frágil e sombrio

Que necessita do bom sol amigo.

Tem ais de dor de trêmulo mendigo

Oscilante, sonâmbulo, erradio.

É como um tênue, cristalino fio

D'estrelas, como etéreo e louro trigo.

E a alma aspira o celestial orvalho,

Aspira o céu, o límpido agasalho,

sonha, deseja e anseia a luz do Oriente...

Tudo ela inflama de um estranho beijo.

E este Anseio, este Sonho, este Desejo

Enche as Esferas soluçantemente.

 

 

Inefável!

Nada há que me domine e que me vença

Quando a minh'alma mudamente acorda...

Ela rebenta em flor, ela transborda

Nos alvoroços da emoção imensa.

Sou como um Réu de celestial Sentença,

Condenado do Amor, que se recorda

Do Amor e sempre no Silêncio borda

D'estrelas todo o céu em que erra e pensa.

Claros, meus olhos tornam-se mais claros

E tudo vejo dos encantos raros

E de outra mais serenas madrugadas!

Todas as vozes que procuro e chamo

Ouço-as dentro de mim, porque eu as amo

Na minh'alma volteando arrebatadas!

 

 

Ser dos seres

No teu ser de silêncio e d'esperança

A doce luz das Amplidões flameja.

Ele sente, ele aspira, ele deseja

A grande zona da imortal Bonança.

Pelos largos espaços se balança

Como a estrela infinita que dardeja,

Sempre isento da Treva que troveja

O clamor inflamado da Vingança.

Por entre enlevos e deslumbramentos

Entra na Força astral dos Sentimentos

E do Poder nos mágicos poderes.

E traz, embora os íntimos cansaços,

Ânsias secretas para abrir os braços

Na generosa comunhão dos Seres!

 

 

Sexta-Feira Santa

Lua absíntica, verde, feiticeira,

Pasmada como um vício monstruoso...

Um cão estranho fuça na esterqueira,

Uivando para o espaço fabuloso.

É esta a negra e santa Sexta-Feira!

Cristo está morto, como um vil leproso,

Chagado e frio, na feroz cegueira

Da morte, o sangue roxo e tenebroso.

A serpente do mal e do pecado

Um sinistro veneno esverdeado

Verte do Morto na mudez serena.

Mas da sagrada Redenção do Cristo,

Em vez do grande Amor, puro, imprevisto,

Brotam fosforescências de gangrena!

 

 

Sentimento esquisito

Ó céu estéril dos desesperados,

Forma impassível de cristas sidéreo,

Dos cemitérios velho cemitério

Onde dormem os astros delicados.

Pátria d'estrelas dos abandonados,

Casulo azul do anseio vago, aéreo,

Formidável muralha de mistério

Que deixa os corações desconsolados.

Céu imóvel milênios e milênios,

Tu que iluminas a visão dos Gênios

E ergues das almas o sagrado acorde.

Céu estéril, absurdo, céu imoto,

Faz dormir no teu seio o Sonho ignoto,

Esta serpente que alucina e morde...

 

 

Clamor supremo

Vem comigo por estas cordilheiras!

Põe teu manto e bordão e vem comigo,

Atravessa as montanhas sobranceiras

E nada temas do mortal Perigo!

Sigamos para as guerras condoreiras!

Vem, resoluto, que eu irei contigo

Dentre as Águias e as chamas feiticeiras,

Só tendo a Natureza por abrigo.

Rasga florestas, bebe o sangue todo

Da Terra e transfigura em astros lodo,

O próprio lodo torna mais fecundo.

Basta trazer um coração perfeito,

Alma de eleito, Sentimento eleito

Para abalar de lado a lado o mundo!

 

 

Ansiedade

Esta ansiedade que nos enche o peito

Enche o céu, enche o mar, fecunda a terra.

Ela os germens puríssimos encerra

Do Sentimento límpido, perfeito.

Em jorros cristalinos o direito,

A paz vencendo as convulsões da guerra,

A liberdade que abre as asas e erra

Pelos caminhos do Infinito eleito.

Tudo na mesma ansiedade gira,

Rola no Espaço, dentre a luz suspira

E chora, chora, amargamente chora...

Tudo nos turbilhões da Imensidade

Se confunde na trágica ansiedade

Que almas, estrelas, amplidões devora.

 

 

Grande amor

Grande amor, grande amor, grande mistério

Que as nossas almas trêmulas enlaça...

Céu que nos beija, céu que nos abraça

Num abismo de luz profundo e sério.

Eterno espasmo de um desejo etéreo

E bálsamo dos bálsamos da graça,

Chama secreta que nas almas passa

E deixa nelas um clarão sidéreo.

Cântico de anjos e de arcanjos vagos

Junto às águas sonâmbulas de lagos,

Sob as claras estrelas desprendido...

Selo perpétuo, puro e peregrino

Que prende as almas num igual destino,

Num beijo fecundado num gemido.

 

 

Silêncios

Largos Silêncios interpretativos,

Adoçados por funda nostalgia,

Balada de consolo e simpatia

Que os sentimentos meus torna cativos.


Harmonia de doces lenitivos,

Sombra, segredo, lágrima, harmonia

Da alma serena, da alma fugidia

Nos seus vagos espasmos sugestivos.

Ó Silêncios! ó cândidos desmaios,

Vácuos fecundos de celestes raios

De sonhos, no mais límpido cortejo...

Eu vos sinto os mistérios insondáveis,

Como de estranhos anjos inefáveis

O glorioso esplendor de um grande beijo!

 

 

A Morte

Oh! que doce tristeza e que ternura

No olhar ansioso, aflito dos que morrem...

De que âncoras profundas se socorrem

Os que penetram nessa noite escura!

Da vida aos frios véus da sepultura

Vagos momentos trêmulos decorrem...

E dos olhos as lágrimas escorrem

Como faróis da humana Desventura.

Descem então aos golfos congelados

Os que na terra vagam suspirando,

Com os velhos corações tantalizados.

Tudo negro e sinistro vai rolando

Báratro abaixo, aos ecos soluçados

Do vendaval da Morte ondeando, uivando...

 

 

Só!

Muito embora as estrelas do Infinito

Lá de cima me acenem carinhosas

E desça das esferas luminosas

A doce graça de um clarão bendito;

Embora o mar, como um revel proscrito,

Chame por mim nas vagas ondulosas

E o vento venha em cóleras medrosas

O meu destino proclamar num grito,

Neste mundo tão trágico, tamanho,

Como eu me sinto fundamente estranho

E o amor e tudo para mim avaro...

Ah! como eu sinto compungidamente,

Por entre tanto horror indiferente,

Um frio sepulcral de desamparo!

 

 

Fruto envelhecido

Do coração no envelhecido fruto

É só desolação e é só tortura.

O frio soluçante da amargura

Envolve o coração num fundo luto.

O fantasma da Dor pérfido e astuto

Caminha junto a toda a criatura.

A alma por mais feliz e por mais pura

Tem de sofrer o esmagamento bruto.

É preciso humildade, é necessário

Fazer do coração branco sacrário

E a hóstia elevar do Sentimento eterno.

Em tudo derramar o amor profundo,

Derramar o perdão no caos do mundo,

Sorrir ao céu e bendizer o Inferno!

 

 

Êxtase búdico

Abre-me os braços, Solidão profunda,

Reverência do céu, solenidade

Dos astros, tenebrosa majestade,

Ó planetária comunhão fecunda!

Óleo da noite, sacrossanto, inunda

Todo o meu ser, dá-me essa castidade,

As azuis florescências da saudade,

Graça das graças imortais oriunda!

As estrelas cativas no teu seio

Dão-me um tocante e fugitivo enleio,

Embalam-me na luz consoladora!

Abre-me os braços, Solidão radiante,

Funda, fenomenal e soluçante,

Larga e búdica Noite Redentora!

 

 

Triunfo supremo

Quem anda pelas lágrimas perdido,

Sonâmbulo dos trágicos flagelos,

É quem deixou para sempre esquecido

O mundo e os fúteis ouropéis mais belos!

É quem ficou no mundo redimido,

Expurgado dos vícios mais singelos

E disse a tudo o adeus indefinido

E desprendeu-se dos carnais anelos!

É quem entrou por todas as batalhas

As mãos e os pés e o flanco ensanguentado,

Amortalhado em todas as mortalhas.

Quem florestas e mares foi rasgando

E entre raios, pedradas e metralhas,

Ficou gemendo mas ficou sonhando!

 

 

Assim seja!

Fecha os olhos e morre calmamente!

Morre sereno do Dever cumprido!

Nem o mais leve, nem um só gemido

Traia, sequer, o teu Sentir latente.

Morre com alma leal, clarividente,

Da crença errando no Vergel florido

E o Pensamento pelos céus, brandido

Como um gládio soberbo e refulgente.

Vai abrindo sacrário por sacrário

Do teu sonho no Templo imaginário,

Na hora glacial da negra Morte imensa...

Morre com o teu Dever! Na alta confiança

De quem triunfou e sabe que descansa

Desdenhando de toda a Recompensa!

 

 

Renascimento

A Alma não fica inteiramente morta!

Vagas Ressurreições do Sentimento

Abrem já, devagar, porta por porta,

Os palácios reais do Encantamento!

Morrer! Findar! Desfalecer! que importa

Para o secreto e fundo movimento

Que a alma transporta, sublimiza e exorta,

Ao grande Bem do grande Pensamento!

Chamas novas e belas vão raiando,

Vão se acendendo os límpidos altares

E as almas vão sorrindo e vão orando...

E pela curva dos longínquos ares

Ei-las que vêm, como o imprevisto bando

Dos albatrozes dos estranhos mares...

 

Pacto das almas

A Nestor Vítor

Por Devotamento e admiração.

12 de outubro de 1897.

 

I

Para sempre!

Ah! para sempre! para sempre! Agora

Não nos separaremos nem um dia...

Nunca mais, nunca mais, nesta harmonia

Das nossas almas de divina aurora.

A voz do céu pode vibrar sonora

Ou do Inferno a sinistra sinfonia,

Que num fundo de astral melancolia

Minh'alma com a tu'alma goza e chora.

Para sempre está feito o augusto pacto!

Cegos serenos do celeste tacto,

Do Sonho envoltas na estrelada rede.

E perdidas, perdidas no Infinito

As nossas almas, no Clarão bendito,

Hão de enfim saciar toda esta sede...

 

 

II

Longe de tudo

É livre, livre desta vã matéria,

Longe, nos claros astros peregrinos

Que havemos de encontrar os dons divinos

E a grande paz, a grande paz sidérea.

Cá nesta humana e trágica miséria,

Nestes surdos abismos assassinos

Termos de colher de atros destinos

A flor apodrecida e deletéria.

O baixo mundo que troveja e brama

Só nos mostra a caveira e só a lama,

Ah! só a lama e movimentos lassos...

Mas as almas irmãs, almas perfeitas,

Hão de trocar, nas Regiões eleitas,

Largos, profundos, imortais abraços!

 

 

III

Alma das almas

Alma das almas, minha irmã gloriosa,

Divina irradiação do Sentimento,

Quando estarás no azul Deslumbramento,

Perto de mim, na grande Paz radiosa?!

Tu que és a lua da Mansão de rosa

Da Graça e do supremo Encantamento,

O círio astral do augusto Pensamento

Velando eternamente a Fé chorosa,

Alma das almas, meu consolo amigo,

Seio celeste, sacrossanto abrigo,

Serena e constelada imensidade,

Entre os teus beijos de etereal carícia,

Sorrindo e soluçando de delícia,

Quando te abraçarei na Eternidade?!