Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

País de Rosamor, de Maura de Senna


Edição de base:

Maura de Senna Pereira, Poesia reunida e outros textos,

Org. de Lauro Junkes, Florianópolis: ACL, 2004.

ÍNDICE

Dia primeiro

Os meninos

A boda

As estações

As comemorações

Passeio

Canto da amante amada

A festa

Grão-sacerdote

Bailenda

Colheita

Louvação de Jupira

Vozes no pomar

A nau

Os arcanjos

Não saio deste caminho:

este caminho me leva

ao País de Rosamor

 

Dia primeiro

No momento em que cheguei

era aurora em Rosamor.

Primeiro passo que dei:

ir ao rio me lavar

das nódoas vis das moedas.

Rio encarnado da aurora

logo tão negro ficou.

(Rio, carrega essas manchas

bem para o fundo ao mar.)

Depois de purificada

vieram todas as gentes

veio pastor veio rei

vieram mães e meninos

os mineiros os astrônomos

saudar a recém-chegada.

Em honra da nova irmã

beberam rubra groselha

e dançaram na manhã.

Deram-me casa com flores

trepadeiras de jasmim

vestidos claros de linho

leves túnicas de tule

alpercatas de cetim.

Também esmeralda e pérola

também pães asmos e vinho

as frutas da primavera

e favos sabendo a rosas

e vozes sabendo a mel.

Mostraram os cem meninos

que amanhã vou ensinar.

Mostraram ruas e rosas

que só em sonhos eu vi.

E à noite vi a lua

— grande e perto como o mar.

 

Os meninos

Delícia de ver agora

meus meninos — quanta cor:

pretos brancos amarelos

cor de pitanga e de amora

cor de luar e trigueiros

uns com os olhos dourados

outros de verdes cabelos.

Delícia de ver agora

meus meninos — quanto amor:

diferentes mas tão belos

e sonhando tão unidos

tão alegres companheiros

como se fossem rebentos

da mesma planta saídos.

Delícia de ver agora

cem meninos e pensar

em ascender às estrelas

e no recreio — tão puros

diferentes mas tão belos —

vê-los todos cirandar

com os pombos e as serpentes.

 

A boda

Nos casamentos

a boda é simples:

em torno — rosas

em nós — amor.

 

As estações

Primavera tem cem anos

no País de Rosamor.

E só depois de — mui lautos —

verão e outono passarem

é que vem o lento inverno

marcar o fim docemente.

 

As comemorações

I

Eis que passam os nascidos entre cânticos

eles que jamais viram

nenhuma das faces do dragão

eles que montam em leopardos

e têm um halo sobre a franja.

seu sono é como o dos pássaros

nos ares altos da montanha

despojado de qualquer sono

que ponha sombras no dia branco.

Eis que passam os nascidos entre cânticos.

II

Roseiras todas, despetalemo-nos

para celebrar o evento.

Despetalemo-nos, despetalai

corolas de todas as cores

sobre o cortejo. Arcoirisai

o caminho dos nascidos

e quando passarem aos pares

epitalâmios de pétalas derramai

sobre seus nimbos. Seus nimbos.

E glorificai-os a todos com aromas

que ungidos são

eles que nasceram sob

o signo da Rosa, nossa mãe.

 

Passeio

Pelas aleias de jacintos

passearei

que a tarde começa

e o labor é findo.

Ou irei à encosta das grandes luzes

ouvir os sábios?

ou ao palácio dos poetas

buscar a última canção?

Pelas aleias de jacintos

passearei.

Ou subirei à montanha

à hora de rosazul descer as pétalas

devagar?

ou irei ao portossol

ver a nave das estrelas

regressar?

Pelas aleias de jacintos

passearei.

Ou irei encher as mãos

Com os lilases líricos

Do crepúsculo

Que logo mais terei?

Pelas aleias de jacintos

passearei.

 

Canto da amante amada

Ainda trazendo sol e sal

além do ímpeto e da esperança

chegou o Amado.

É alvo o leito e o instante é alvo

porque desatado

de tudo o que antes

turvava o amor.

Nada conspurca

incompleta ou ensombra

meu festim de entrega

e o total carinho pela noite alta

me faz tão sagrada

que me julgo a terra.

Ah, eu sei que — um dia — estarei derramada

em cinzas pelas companheiras rosas

mas — antes — rosas brotarão de mim.

 

A festa

Vou botar flor no cabelo

para ver posse do rei.

Levo cinto de camélias?

Levo xale de papoulas?

Tragam flores tragam flores

para a festa de irmão rei

Reinar aqui é rodízio

e agora chegou a vez

daquele que traça e planta

os nossos jardins ovais.

Tragam flores tragam flores.

Nós e flores para a festa

no jardim das cariátides

e da fonte verdemar.

Veremos os autos novos

dos maduros dramaturgos

e sobre um tapete vivo

de violetas vermelhas

a salamandra dançar.

Chegarão depois em bando

as juvenis isadoras

com seus fluidos véus azuis

véus ou asas pelo ar

pés de pétala no chão.

Entre flores, sobre flores

— banquetes de rosamel.

Entre flores — cantos, rondas,

até uma ponta da lua

já descer sobre o jardim

e as garças brancas chegarem

para o sono sobre a fonte.

 

Grão-sacerdote

Grão-sacerdote, de barbas brancas,

trazia Bíblia preta na mão.

(Veio de longe por nossa fama:

termos forjado reino do amor.)

Em nossos braços o acolhemos.

Demos-lhe igreja pesada de anjos

— anjos azuis, pretos e róseos,

brancos e roxos, cor de marfim —

e altar para

a toda bela — mais do que Vênus —

Nossa Senhora de Rosamor.

Também lhe demos tratos de terra

e com seus doze bispos amáveis

planta as espigas, uvas e rosas:

dá-nos o pão, o vinho e o mel.

Chega domingo: grão-sacerdote

fala do púlpito ao templo cheio.

Todos amamos esse homem santo

que — tantas vezes — com santa

ira nos apostrofa:

— Cristãos sem fé!

Penso que lembra naquele instante

horrores todos que viu outrora

e ao mesmo tempo nossas mãos dadas

e anelo nosso de cada dia:

paz sobre a Terra

que ela é Azul.

Pois olhos claros se umedecem

pousa no púlpito a Bíblia preta

as longas mãos se põem em prece

e num momento — tão nosso pai —

grão-sacerdote nos galardoa:

— Continuai! Continuai!

 

Bailenda

É certo, mineiros,

que mora uma fada

no fundo da mina?

E os mineiros riem.

É certo que a fada

que mora na mina

— hetera encantada

de verdes cabelos —

vos leva, mineiros,

a magos castelos?

E os mineiros riem.

É certo que os beijos

nos magos castelos

vos põem a sonhar

e os filhos que tendes

— por isso, mineiros —

têm verdes cabelos?

E os mineiros riem.

A bela acordada

no fundo da mina

protege os tesouros

que temos na terra?

Mineiro, é certo?

E os mineiros riem.

De modo que um dia

se alguém atacar

— ou fica fraterno

(só lírios abertos

teremos na mão)

ou volta marcado

de flores e paz?

Mineiros, é certo?

E os mineiros riem.

 

Colheita

Fui ontem colher na lua

antúrios que lá plantei.

Tomei o meu barco alado

e logo à lua cheguei.

O canteiro preparado

por minhas mãos encontrei.

Mas nas hastes dos antúrios

somente estrelas achei.

Fui ontem colher na lua

antúrios que lá plantei.

Fui ontem colher antúrios

e com estrelas voltei.

 

Louvação de Jupira

Senhora, Nossa Senhora,

Senhora de Rosamor,

fui prostituta e mendiga:

sou agora tecelã.

Com meus filhos macilentos

a este país cheguei.

São hoje dois curumins

que têm faces de romã.

Já tive lençóis de trapo

em leito de duro chão.

Agora tenho-os de linho

tecido por minha mão.

Teço teço para as outras

teço para mim também.

Tenho roupas (e adereços)

com que não sonhou cunhã.

No meu, no nosso tear,

teço com as companheiras

o linho, brocado e lã

para todas as mulheres.

Venho, pois, à tua igreja

neobarroca, heptagonal,

com seus sinos de ouro e prata

e Rosamor no vitral

com seus anjos multicores

e toalha branca no altar

(mas eis — repleta — em cada mesa

branca toalha também).

Senhora, Nossa Senhora,

Senhora de Rosamor,

que assim seja todo dia

para todo o sempre. Amém.

 

Vozes no pomar

Por que vos planto

meus belos frutos

por que vos planto?

Para colheres

tantos e tantos

para colheres.

Para que tantos

meus belos frutos

para que tantos?

Para nos dares

a teu irmão

para nos dares.

Por que vos dar

meus belos frutos

por que vos dar?

Para nos teres

e ao pomar

para nos teres.

 

A nau

Selvagens filhos do mar

descem de uma nau preta.

São mercadores? corsários?

Trazem dádivas amigas

nas rudes mãos tatuadas?

Ai, trazem trinta moedas

para comprar esmeraldas.

Mas nosso rei jardineiro

assim lhes veio falar:

"Guardai o vosso dinheiro

que não podemos tocar.

Esmeraldas são beleza

em nossa comunidade.

Brilham nos dedos, no colo,

nos cabelos das amadas.

Olhai as nossas varandas

abertas de par em par:

já estão elas guardadas.

Temos ainda os sobejos

em volta desta roseira

— a das rosas irisadas.

Se para o bem — poderíeis

as que quisésseis levar.

Mas iriam gerar lutas

nossas pedras não ocupadas.

Por isso não tirareis

nem uma só do lugar".

Foi quando, de rosto mau,

desembainhando as adagas

cercaram a grã-roseira

para colher esmeraldas.

Colhê-las? Mesmo as menores

eram todas pedras magas

eram rochas eram bruxas

— intactas sob as adagas.

Então eles se renderam

E — após lavarem no rio

as suas mãos maculadas —

apertaram a mão do rei.

Nosso reino caminharam

até as grutas azuis.

Pavanarrosa dançamos

sal e vinho lhes servimos.

(Lua desmisteriosa

roçando mesa enfeitada

de narcisos e maçãs).

Selvagens filhos do mar

voltaram para a nau preta

vazia das esmeraldas

mas de sonhos carregada.

De tantos sonhos que um dia

vai chegar uma nau branca

trazendo gestos amigos

nas mesmas mãos tatuadas.

 

Os arcanjos

Com o leite das ovelhas

por leão apascentadas

doze filhos vou criar.

Não subirão às estrelas

não descerão às jazidas

que já lhes tenho missão.

Em doze corcéis alados

(para eles vão nascer

com rubros sóis sobre as asas

em doces pastos de flor)

nosso reino deixarão.

E com rosas simplesmente

— nem espadas nem punhais —

com doze rosas sagradas

farão por terra tombar

a cabeça do Dragão.

Amor então se erguerá

e rosas rebentarão

na terra no céu no mar.

Em doze corcéis alados

com rubros sóis sobre as asas

os doze cavalgarão.

(O lábaro com a rosa

suspensa sobre o Dragão).

Em doze corcéis alados

nosso reino deixarão.

E só depois de plantarem

Rosamor em toda a terra

os doze regressarão.