Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Outras evocações, de Cruz e Sousa


 Textos-fonte:

João da Cruz e Sousa, Obra Completa, org. de Lauro Junkes,

Jaraguá do Sul: Avenida, 2008, 2 v.

João da Cruz e Sousa, Obra Completa,

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995

ÍNDICE

Elizirna

Consciência tranquila

O estilo

Je dis non

Écloga

Impressões

Croqui dum excêntrico

A casa

O senhor presidente

O senhor secretário

Nicho de virgem

Aroma

A milionária

De volta aos prados

Investigação

Psicose

Luz e treva

Volúpia...

A carne

Os felizes

Natal

Em julho

Símbolo

O batizado

Doença psíquica

Policromia

Flor sentimental

Velho

Decaído

Fugitivo sonho

Formas e coloridos

A abelha

Obsessão da noite

Hora certa

Rosicler

Beijos mortos

 

Elizirna

ELIZIRNA! ELIZIRNA!

Como faz a gente pensar nos mundos de além, emigrar, boemizar, para a gare azul dos sonhos estrelados de auroras, o teu perfil correto, linha direita de imperatriz da Rússia.

Como essa cintura, mais delicada e galante do que a pétala branca, de leite, da deliciosa magnólia, quando a gente te vê elegantemente espartilhada, jubilosa, parecendo uma alegria do céu, tantaliza e arrebata os bravios leões do desejo.

Elizirna! Elizirna!

E a tua epiderme, macia, jambosa, com a penugem veludínea do pêssego, molar com a suavidade doce do creme, e o frescor perfumoso da malva-maçã; de um róseo queimado, a tua epiderme, flor azul dos luares brancos, impressiona o nervosismo, dá irritabilidades espasmódicas.

E a música do teu laringe, o gargantear cantarolante do cristal, semelhante ao tinido miúdo, claro, sonoro de uma campainha elétrica, vibrada num palácio de vidro, como prostra a alma num êxtase, num êxtase...

Elizirna! Elizirna!

E a curva do teu colo, a abençoada curva do teu colo!

Quantos ideais meus, quantas cismas encharcadas no licor saborosíssimo da ventura que palpita, que ferve, que escalda e esbraseia, não foram flutuar, boiar no maciosíssimo topázio rico do teu colo moreno, como um batalhão triunfal de pássaros vermelhos, nos fluidos da enorme concha de alabastro do firmamento.

Elizirna! Elizirna!...

Pomba doce dos países de ouro. .

E a tua boca, cor de pitanga madura, levemente roxa, esse escrínio rútilo dos meus beijos, esse fruto ruborizado, polposo, sempre aromático, infiltrado do sândalo agradável da mocidade, do gosto saudável da beleza pura, castíssima, frescurizada, vegetabilizante, como é consoladora e boa.

Elizirna! Elizirna!

E a tempestade negra dos teus cabelos, cortada pelos fuzis dos meus olhares, por onde o vento absurdo, desabrido, das minhas desgraças, faz ziguezagues e esfuziotes continuados; o mar profundo e vão dessas tranças, por onde o meu destino naufraga desoladoramente, como eu acho terrivelmente deslumbrante, esmagadoramente belo...

Elizirna! Elizirna!...

E os teus olhos, filha, abundantes de cousas celestiais, fartos das bênçãos do gozo, inundados dos equatorianos rosicleres primaverinos, cheios dos pizzicatos, dos acceleratos das paixões, como iluminam e cantam...

Elizirna! Elizirna!...

Parecem dois sóis esplendorosíssimos, os teus olhos, cada qual com um sabiá dentro, abrindo, cristalinizadoramente, em trilhos gorjeadores, a bravuresca garganta lírica...

                                                                                                                                                           

Consciência tranquila

O ILUSTRE, o douto homem rico, o poderoso senhor de escravos está já, segundo a previsão do seu médico, quase às portas da morte.

Sobre o luxuoso leito largo, na alvura fria dos linhos, entre os gélidos silêncios das paredes altas, ele está mudo, semimorto, dormindo, como que se predispondo para o sono eterno.

No confortável aposento onde ele aguarda afinal o último suspiro, vai e vem, abafando os passos, toda uma sociedade de honrados bajuladores, de calculistas espertos e frios, de interessados argutos, de herdeiros capciosos, de tipos bisonhos e suspeitos, almas simplesmente consagradas ao instinto de conservação da vida no que ela tem de mais caviloso e oblíquo.

Graves e grandes, como bocejos lassos, como tédios esquecidos, os momentos do moribundo se prolongam e os comentários esfuziam e ferem, à surdina, o ar doentio, pesado...

— Não há dúvida que vamos perder um homem útil, prestimoso, eminente, carregado de saber e virtudes, bom e piedoso, ah! sobretudo bom e piedoso. Que coração de anjo para os humildes, para os tristes, para os fracos, para os desamparados. A sua bolsa, sempre inesgotável, dividia-se com todos. Verdadeiro apóstolo da caridade, da religião e da ciência, era um justo na acepção da palavra, de uma moral elevada até à santidade. Nunca me há de esquecer de como ele foi sempre generoso para essas raparigas miseráveis, gente baixa, que nem ao menos tem a vala comum para cair morta e que ele afinal protegia com a sua bolsa e arranjava-lhes noivos entre pobres-diabos da plebe, quando por acaso elas deixavam de ser virgens com ele... De muitas, de muitas sei que ele tornou felizes com o seu prestígio, dando-lhes casamento e dinheiro. Sim! porque outro fosse ele, como esses bandidos que por aí andam, que deixariam as pobrezinhas ao desamparo e com filhos. Ele, não; casava-as logo e assim trazia felicidade aos casais que constituía. Muito, muito justo, sempre foi muito justo em tudo! Homem distinto! Homem distinto! Este é dos poucos que podem morrer com a sua consciência tranquila, perfeitamente tranquila!

Quem assim falava com esta ingênua malignidade, com esta nova, inédita inocência, com esta terrível e eloquente ironia, por si próprio, no entanto, desconhecida, era um homem de olhos ladinos e gestos sacudidos, próspero, rubicundo, expressão loquaz de ave rapace, nariz altivo, espécie de sagaz furão de negócios, parecendo estar sempre ocupado em absorver e conhecer pela atilada pituitária o ar das cousas e dos interesses imediatos.

Num dos dedos da sua mão ágil, pronta, precisa para o assalto à vida, com a medida exata dos grandes golpes ocultos, reluzia a clara gota d'água iriada de um rijo brilhante.

Mas, o troféu de glórias deste curioso exemplar humano, era o famoso e filaucioso cavaignac, meio diabólico, meio cínico que ele afagava com gravidade e volúpia, abrindo em leque, num gozo particular, como se o cavaignac fosse o seu inspirador e o seu oráculo naquela eloquência.

Como todo o bandido bem acabado, perfeito, como todo o Tartufo casuístico, tinha o seu séquito, os seus satélites, que instintiva ou calculadamente ouviam e aprovavam sempre em silêncio servil tudo quanto ele dizia e lhe forneciam a manhosa e morna atmosfera feita de rastejantes e vermiculares sentimentos na qual ele vivia à farta, num transbordamento de tecidos adiposos, cevando-se nas lesmentas vaidades e caprichos mesquinhos dos outros, lisonjeando-lhes as pretensões, alimentando-lhes os vícios, devorando-lhes o ar, numa verdadeira existência parasitária.

Mas, agora, todas as atenções se voltavam, alvoroçadas, ansiosas, para o velho moribundo, que acordara afinal em sobressaltos, o olhar desvairadamente pairado num ponto, como se por um esquisito fenômeno tivesse ressurgido do terror do sono eterno e viesse ainda perseguido por glaciais fantasmas que o arrastavam pelos cabelos e pelas vestes, através de uma treva duramente muda e aflitiva...

E, ou fosse remorso ou fosse álgido medo da hora extrema ou fosse mesmo agudo e histérico delírio imaginativo de senil e tábido celerado que vai morrer, o certo é que todos, no auge do espanto, no mais esmagador dos assombros, sem poder conter a súbita e estupenda torrente que lhe foi espumando e jorrando da boca bamba, ouviram este cruel e amorfo monólogo, feito de lama e podridão, de estanho inflamado, de ferro e fogo, de acres e apunhalantes sarcasmos, de ódio e visco, de mordentes perversidades, de chagas nuas, de lacerações de carnes gangrenadas, de soluços e estupros, de ais e risadas, de suspiros e concupiscências baixas, de beijos e venenos, de estertores e lágrimas, tudo rodando, rodando através do pesadelo da Morte.

Como que a seu pesar, um fenômeno desconhecido o transfigurava, punha-lhe na boca a eloquência viva de chamas devoradoras. Ele era, naquele momento, a presa formidanda das correntes da matéria, que os mais curiosos e estupendos sentimentos abalavam: como que uma outra natureza, sem ser propriamente, legitimamente a sua, a natureza dos mistérios, que paira acima de tudo o que nos é terrenamente acessível, a natureza do Incognoscível das Esferas, dos maravilhosos ritmos, o inspirava, falava pela voz dele, enchia-o de fluidos prodigiosos, arrebatava-o para um meio sonho e para um meio delírio, onde, contudo, transpareciam faces verdadeiras das cousas, já galvanizadas pelo passado.

Aquilo era como que o exemplo vivo, iniludível e supremo, dessa vaga névoa, dessa bruma de Abstrato, que há em todo o Tangível, do Sobrenatural que há em todo o Verdadeiro.

— Ah! lá se vão elas, vejam, lá se vão elas! Quantas! Quantas! Eram todas minhas! Vinham entregar-se ao meu ouro que tinia, tilintava, tinia com a sua luz sonora. Olhem, lá vão elas! Todos aqueles corpos eu beijei, eu gozei, eu depravei, eu saciei! Todos aqueles belos corpos brancos se adelgaçaram, se quebraram, vergaram, em curvas voluptuosas de abóbada estrelada, às minhas furiosas luxúrias. Parecia que corcéis de fogo disparavam no meu sangue, corriam a toda brida nos meus nervos, tanto a sensualidade me agitava, me vertiginava, aguilhoava-me com os seus aguilhões acerados. E eram todas virgens, que eu desviei, estrábico de gozo, nas formidáveis alucinações da carne. Pois se eu tinha o meu ouro, o meu ouro que agisse sem demora e mas trouxesse vencidas; pois se eu tinha o meu ouro, o meu ouro que as escravizasse à minha lascívia, o meu ouro que as fascinasse, o meu ouro que as atraísse, o meu ouro que as magnetizasse, o meu ouro que as cegasse, o meu ouro que as perdesse, o meu ouro que as aviltasse! Pois se eu tinha o meu ouro, que mal então que eu comprasse formas de argila, com o meu ouro de forma de sol! Pois se eu tinha o meu ouro! Pois se eu tinha o meu ouro!

Por entre os linhos alvos do leito, naquelas brancuras preciosas, como que um rio de ouro, um cascatear de ouro, uma música de ouro vinham então finamente e fluidamente rolando, distendendo pelo leito os seus harmoniosos e claros veios de ouro, numa feeria de som, de alvura e de ouro.

E o senil e tábido milionário estava ali como um célebre mago dominado pelo ritmo alucinante, pela vara magnética desse êxtase de visionário moribundo, pela doentia e sonâmbula superexcitação nervosa, por toda essa vertigem, por todo esse deslumbramento hipnótico, fatal, enlouquecedor, do ouro. E ele ria alvarmente uma risada entre amarela e negra, que fazia lembrar o fúnebre caixão que o esperava...

Todos, estupefatos, suspensos, diante daquele delirante e sensacional espetáculo que não podiam encobrir nem conter, tinham a respiração sufocada, os semblantes transtornados, lívidos, tão lívidos que pareciam outros tantos moribundos que ouviam, imóveis, num espasmo de angustioso terror, esse outro sinistro moribundo falando.

Agora, porta mais negra e mais ensanguentada se abrira escancaradamente, num pálido rasgão de raio que fende as nuvens, ao delírio do cérebro demente do quase morto: era como se nenhum escrúpulo delicado, sutil, o prendesse à terra e aos homens; se todos os fios e laços das suscetibilidades da alma se houvessem partido, despedaçado e ele ficasse só nos instintos, à vontade, besta desenfreada, livre de todas as correntes do Sensível, sob o impulso primitivo, selvagem, desorientado, animal, deserto, da simples matéria e da simples carnalidade:

— Ah! Ah! pois não era o meu ouro, só o meu ouro, sempre o meu ouro que comprava tanta carne humana, desprezível, que eu via entrar nas senzalas, de volta do eito?! Negros trêmulos, velhos e tristes, com o dorso curvado por uma remota subserviência ancestral, atávica, fantasmas de pedra, mudos e cegos na sua dor absurda...

Às vezes era pelos amargos desfalecimentos da tarde; e, no fundo denso da noite algumas estrelas espiavam como sentinelas, de olhos acesos e vigilantes, aquela torva massa trôpega e tarda que caminhava como do fundo de um tempestuoso e formidável sonho: os crânios desconformemente alongados, os perfis com deformações hediondas, talhados à bruta por mãos de gênios rebeldes, infernais, e os olhos envenenados pela mais atroz, bárbara e mórbida melancolia das melancolias. Como que vinham, num turvo e amorfo desfilar do centro misterioso da terra, com a cor das trevas primitivas, esqueléticos, cadavéricos, héticos, na assombrosa condensação de todas as criações shakespeareanas, arrastando os miseráveis e ensanguentados farrapos das almas.

Parecia-me que se cavava de repente, por toda a extensão do eito, imensa, profunda cova; que essa cova era como velha chaga secular formidavelmente grande, sinistramente sangrenta, a devorar, a devorar, a devorar carne humana, legiões e legiões de míseros, um fabuloso mar negro e selvagem de corpos e almas amaldiçoadas... E essa chaga tremenda, avassaladora, fatal, ia então alastrando, não já sangrenta, mas verde, podre, gangrenada, aberta a monstruosa e purulenta boca verde.

Não sei para que sobre-humano horror eu recuava, para que noite caótica de horror animal eu mergulhava a tremer, a tremer, a tremer...

Ficava então de repente com a imaginação dominada por cruéis sobressaltos, com ansiedades, delírios a se vulcanizarem no cérebro... Subiam-me ao cérebro obsessões de loucura, como que os meus pensamentos se agachavam, se encolhiam aterrorizados a um canto do cérebro... Um medo agudo, invencível, me amarrava os nervos... Todo eu gelava, suava medo... E aquela bamba, trôpega e tarda massa torva, fenomenal, numerosa, estranha, tão estranha aos meus sentidos apavorados, dava-me a impressão fantástica de abismos que caminhavam, de tenebrosas florestas de corpos cheias de rugidos de feras, de garras, de dentes devoradores, que eu via de repente atirarem-se, arrojarem-se sobre mim, bramindo vingança, e despedaçarem-me, estrangularem-me...

Ao meu espírito aterrado, ao mundo virgem e nunca visto de visões que se me desenvolviam no deslumbrado raio visual, era como se todos aqueles esqueletos se reproduzissem, surgissem por toda a parte turbilhões e turbilhões, tumultos e tumultos, matas sagradas, compactas, selvas bravias de esqueletos negros, toda a África colossal ululando e soluçando num ululo e num soluço milenário... E, por sobre todos esses milhões de cabeças tenebrosas, pairava no ar, solenemente, sugestionadoramente, como o satânico e sinistro Anjo da Guarda da negra raça dos desertos, lassa e descomunal, lânguida e letárgica serpente, talvez dormindo e sonhando novos e mais maravilhosos venenos, com as grandes asas abertas... Ah! eram sobrenaturais esses sofrimentos que assim me remordiam tanto, com tamanhos dentes e com tamanhas garras!

Deus, a essas horas tão tremendas para a minha consciência, ali tão humilhada, batida, cobarde de terror diante daqueles negros espectros, onde estava Deus, para trazer-me um alívio, consolo para ter piedade de mim, para dar-me de beber da fonte clara, fresca e suave da tranquilidade, para saciar a sede de humildade, de pobreza, de simplicidade, a sede devoradora que me incendiava, a mim, a gula viva do ouro, a mim, a gula viva da sensualidade, a mim, a gula viva do crime!

No entanto, ah!, que visadas satânicas, diabólicas, que satisfação perversa me assaltava quando o feitor, bizarro, mefistofélico, de chicote em punho lanhava, lanhava, lanhava os miseráveis e lindos corpos de certas escravas que não queriam vir comigo! Oh! lembra-me bem de uma que mandei lanhar sem piedade. A cada grito que ela soltava eu gritava também ao feitor: — Lanha mais, lanha mais! E o bizarro feitor lanhava! O sangue grosso e lento, como uma baba espessa, ia formando no chão um pântano onde os porcos vinham fuçar regaladamente! Com que febre, com que alucinação inquisitorial eu gozava essas torturas! Até mesmo, às vezes, via-me possuído de um extravagante desejo animal, de um desejo monstro de beber, como os porcos, todo aquele sangue. Lembro-me também de outra, bestialmente grávida, prestes a ser mãe, a quem eu, para saciar a minha sede feroz de ciúme, a minha sede de raiva, a minha sede de concupiscência suína, mandei aplicar quinhentas chicotadas, enquanto os meus dentes rangiam na volúpia do ódio saciado. Desta foi tamanha e tão atroz a dor, tão horríveis as contorções, enroscando-se como serpente dentro de chamas crepitantes, que esvaiu-se toda em sangue, abortou de repente e ali mesmo morreu logo, felizmente, lembro-me bem, com a boca retorcida numa tromba mole, espumando roxo e duas grossas lágrimas profundas a escorrerem-lhe dos olhos vidrados...

E de outra ainda lembro-me também, porque eu a mandei afogar no rio das Sete Chagas, junto à figueira-do-inferno, com o filho, que era, execravelmente, meu, dentro das entranhas... Mandei afogar tarde, a horas mortas, depois que certo sino cavo soluçou as doze badaladas lentas e sonolentas no amortalhado luar... E devo ter algum remorso disso? Remorso? Por quem? Por quê? Por quem? Meu filho? Como? Feito por um civilizado num bárbaro, num selvagem? Remorso por tão pouco? Por lama vil que se joga fora, por bárbaro ignóbil que para nada presta?! Remorso por fezes, resíduos exíguos de elementos inservíveis, bílis negra, composto de produtos podres, gases deletérios e inúteis, pus fétido — pois por essa asquerosa e horrenda cousa que se formou e ondulou misteriosamente sonâmbula nas entranhas pantéricas de uma negra hei de ter, então, remorso, hei de ter, então, remorso?!

E os quatro enforcados da encruzilhada do engenho, com as hirtas línguas de fora, por uma noite de trovões e relâmpagos, oscilando dos galhos das árvores como pêndulos da morte! E os que morreram no tronco, com a espinha dorsal quase vergada ao meio! E aqueles que de desespero e de aflição sem remédio se rasgaram os ventres enterrando-lhes fundo facas agudas! Os que estalaram tostados, queimados nos fornos em brasa! Os que foram arrastados pelos campos a fora, a galope, atados a caudas de cavalo! Os que tiveram os ventres atravessados pelas aspas dos bois bravios! Os que se envenenaram com venenos mais mortais que o das serpentes! Os que se degolaram na mais desesperada das agonias!

E aquela negra terrível que morreu louca, abraçada ao filho pequeno, dando-lhe alucinadamente de mamar, nua, toda nua, com o seio a escorrer leite e ao mesmo tempo a escorrer sangue pelas feridas de trezentas e setenta e tantas chicotadas, com os olhos esbugalhados, a olhar-me muito, a olhar-me sempre, parece que ainda horrivelmente a olhar-me agora, a perseguir-me, a cortar-me de pavor como uma lâmina gelada e penetrante.

Ah! aquele negro de cem anos, morfético, inchado como um sapo enorme, manipanso senil, a quem eu arranquei os dois olhos com a ponta de uma verruma, enquanto ele urrava e escabujava de dor como um tigre apunhalado! E isto em pleno eito, num meio-dia de ferro e fogo, que cortava e queimava, por um sol dilacerante, devorador como feras esfaimadas, sanguinolentas! E eu arranquei-lhe os olhos, enterrando-lhe fundo a verruma sem piedade, depois de já lhe haver aplicado por todo o corpo apodrecido e chagado pela morfeia, seiscentas vergalhadas, de pulso musculoso e rijo e de relho forte aberto em trinta pernas, terminando em agudos pregos nas pontas. Ah! como o velho manipanso se retorcia, espumava, gania, mordia a língua, soltava pinchos por entre os torvelinhos, os círculos vertiginosos, desvairados, das trinta pontas aguçadas das pernas rígidas do relho!

E ainda aquele outro negro decrépito, de uma boçalidade caduca, cego, mudo e idiota, completamente cego e mudo, que foi encontrado morto no curral dos porcos, a cabeça fora do tronco, inteiramente decepada a machado, os órgãos genitais dilacerados!

Remorsos, eu, então, de toda essa treva trágica, de toda essa lama de crimes apodrecida?! Como, remorso? Pois não era do trono do meu ouro que eu estava rei soberano, assim, com o cetro do chicote em punho, coroado de ouro, arrastando um manto de púrpura feito de muito sangue derramado?! Remorso? De quê? Se o meu ouro tudo lavava, vencia, subjugava a todos e a tudo, emudecia a justiça, tornava completamente servis e de pedra os homens, fazendo de cada sentimento um eunuco?!

A estas palavras como que pareceu haver um certo movimento de protesto, de altivez revoltada, na pasmada assembleia que o ouvia: quase que um vago vento de indignação passou... Mas, como entre os males da vida "o mal de muitos consolo é", e quase todos que ali estavam eram parentes do moribundo, aguardavam uma parte do seu grande ouro; e como também nos seus cerebrozinhos empíricos lhes passasse de repente a ideia de que talvez por um milagre da riqueza, por um extraordinário valor e soberania do potentado, ele muito bem podia levantar-se do leito ainda e expulsá-los a chicote daquele recinto, todos se entreolharam manhosamente e fizeram depressa espinha mais flexível, fingiram-se surdos o melhor que puderam — vivos, mais mortos que o semimorto.

Toda essa delirante epopeia de lama, treva e sangue, era por ele murmurada lentamente, com voz cava, soturna, como através das paredes de um lôbrego subterrâneo ou nas sombrias solitárias arcadas de um convento os crepusculamentos de um Requiem...

Impelido por uma força nervosa erguera-se um pouco no leito, talvez ainda mais envelhecido agora, trêmulo, transfigurado, o olhar sempre fixo num ponto, olhar de cego que olha em vão, que como que só vê para dentro de si mesmo...

Mas de repente o moribundo teve uma risada alvar, lugubremente idiota, entre amarelada e negra, que fazia fatalmente lembrar o fúnebre caixão que o esperava... E, arremessando convulsamente as frases como lançadas no ar, na violência do esforço derradeiro, tremendo, como quem chama a si as últimas energias da matéria que desfalece, a língua já presa, já acorrentada pelos pesados grilhões da morte que vinha vindo, pendeu a encanecida cabeça de celerado senil, exausto de forças, os braços molemente caídos ao longo do leito, os olhos e a boca desmesuradamente abertos, a respiração siflante, num espasmo sinistro...

No ambiente ansioso, inquietante, do aposento, pairou uma comoção mortal...

Dos lençóis alvos e frios do leito, bruscamente revoltos na alucinadora aflição daquele velho corpo martirizado, como que transpareciam, se levantavam brancas visões de sepulcro...

Nos circunstantes, à maneira de velhos instrumentos de cordas usadas, que vibram insolitamente, percorreu logo um pavoroso estremecimento. Todos se acercaram do leito, os rostos transfigurados, na agitação convulsa do grande final, — míseras, tristes sombras que num movimento arrastado, impelidas por sensações secretas, se acercavam de uma sombra mais mísera, mais triste...

E, ó ironia da Culpa original!, numa leve contração da boca, ainda com um voluptuoso e luminoso alento de vida a esvoarçar-lhe nos olhos, sem longos e torturantes estertores, deixando apenas escapar um fugitivo, breve gemido de lá bem do fundo vago, quase apagado, longínquo, do seu Crime, na atitude de um justo, o ilustre homem rico, o abastado e poderoso senhor de escravos expirou — dir-se-ia mesmo com a sua consciência tranquila, completamente tranquila...

O estilo

O ESTILO É O SOL DA ESCRITA. Dá-lhe eterna palpitação, eterna vida. Cada palavra é como que um tecido do organismo do período. No estilo há todas as gradações da luz, toda a escala dos sons.

O escritor é psicólogo, é miniaturista, é pintor — gradua a luz, tonaliza, esbate e esfuminha os longes da paisagem.

O princípio fundamental da Arte vem da Natureza, porque um artista faz-se da Natureza.

Toda a força e toda a profundidade do estilo está em saber apertar a frase no pulso, domá-la, não a deixar disparar pelos meandros da escrita.

O vocábulo pode ser música ou pode ser trovão, conforme o caso. A palavra tem a sua anatomia; e é preciso uma rara percepção estética, uma nitidez visual, olfativa, palatal e acústica, apuradíssima, para a exatidão da cor, da forma e para a sensação do som e do sabor da palavra.

Um, porém, pode desvirtuar toda a ação e vitalidade do estilo, como pode também segurá-lo e afiná-lo. Os utensílios da escrita são extraordinários, o jogo da frase é poderoso.

Os livros de Zola, para dar aqui o exemplo de uma das organizações chefes do nosso tempo, aí estão — candentes, gerados numa atmosfera de fornalha, transbordando de surpresas de observação e análise.

Nos livros de Zola, porém, sente-se o efeito de uma monstruosa trombeta de bronze soprada por um Hércules gigantesco, formidável — tal é o largo tufão que dá rumor e faz pulsar todas as páginas.

São naturais, humanos, plenos de natureza esses livros. Apresentam as faces mais lógicas da existência. Tais livros palpitam em cada um de nós, saíram de nós, dos nossos pensamentos, dos nossos usos, das nossas paixões; falam da direção do nosso espírito, da nossa idiossincrasia — segundo o nosso temperamento, o nosso meio, os elementos climatológicos e etnográficos, a perspectiva das paisagens, tristes ou doentes, alegres ou saudáveis, e todos os princípios gerais estabelecidos e acentuados pela ciência e que influenciam direta e racionalmente em toda educação física e intelectual.

O escritor nada se tem que importar que os fatos ou os assuntos lhe sejam simpáticos ou não.

Não há mais, nas evoluções das ideias, exterioridades, púrpuras de palavra vestindo um assunto de pau tosco. Pelo contrário! as vestes, as púrpuras da palavra, são de conformidade com os assuntos. E é isso que faz a inteireza do caráter da escrita...

É preciso que haja um forte tom interior para haver unidade de ação, de verdade no que se analisa, no que se observa.

E é por isso, por uma infinidade de qualidades de análises variadas e radicais, que constituem uma ordem de fenômenos, que o Estilo há de acentuar-se, condensar-se, intensificar-se mais entre nós à medida que se for fazendo a evolução da nossa literatura, quando a corrente da Arte estiver em íntimas relações simpáticas com a nossa produtividade mental, estabelecendo nela a complexidade de um todo uniforme, depois que nos houvermos libertado dos hibridismos étnicos que tiram a linha de segurança, de firmeza intelectual das raças que estão em via de constituir-se.

Entretanto, quando leio um livro, uma frase, cheios de todas as audácias do talento, vibrantes de energia espiritual e examino os documentos inteligentes que estão atestando uma orientação mais completa, um golpe mais fundo e amplo na luz, mais certeza de "visão", mais força e vigor celular, mais profusão de glóbulos rubros, alvoroço-me, deslumbro-me e eletrizo-me, porque estou vendo diante de mim, em toda a largueza da minha rotina, com toda a sinceridade emotiva da minha convicção e do meu elevado Amor pela arte, espíritos mais livres e lúcidos que abrem e batem asas, como pássaros vermelhos na glória do sol, para além, para longe da retórica e da metafísica, afastando-se dos princípios de todos os dias, rubricados pelo fastio da chapa, amarrados pelos barbantes de uma gramática oficial e convencionada que obriga a ideia a fazer cabriolas e os esfuziotes do raio, sem regimentá-lo no alto dever da luta, sem defini-la, sem engrandecê-la, sem dar-lhe um intenso valor, uma pobre tranquilidade consciente, uma fisionomia particular e superior.

Je dis non

A Virgílio Várzea

SUBINDO UMA VEZ com um amigo, sob a luz esfuziante e alegre de rubro sol de verão, uma rua ruidosa e fremente de vasta cidade da América do Sul, paramos a olhar detidamente a larga vitrina de vistosa livraria no plano direito de quem sobe a rua, vindo da direção do mar.

Por muito tempo estivemos ali parados, viajando o olhar que pousava, como borboleta inquieta neste e naquele livro, sobre este e aquele título de obras, como se o nosso espírito quisesse, à maneira dos insetos nas flores, absorver, compenetrar-se pelos títulos, numa síntese radical de observação, dos princípios e ideias contidos em cada livro.

Súbito a nossa atenção parou, descansou sobre a capa de um volume, vermelha, e onde se lia em grandes letras negras: — Je dis non.

Parou a nossa atenção nesse volume de capa vermelha, como se descobríssemos nele mais do que em todos, alguma Coisa de original, de singular, de excêntrico — algum sangrento episódio de psicologia que lá estava a despertar a nossa análise, dentro da vitrina, longe de o podermos observar, sentir de perto, e por isso mesmo tentava mais.

Fidalgo de pensamento, experimentalista, o meu companheiro era um analista rude, d'ar petit marquis, duma contensão filosófica muito possante, iluminada figura transfigurada e mística às vezes, espécie de Fausto de Goethe, numa perene jovialidade e jovialismo amoroso, imprevisto e radiante pela verve e sugestões críticas — um desses cérebros poderosos que definitivamente marcam época, um desses claros soberanos entendimentos, penetrantes como o ar na vida animal orgânica, muito inauditos na Abstração e no Gênio, e para os quais Taine, o supremo chefe da Crítica, teria de estabelecer uma nova e derivativa linha determinante de sua estesia.

Conceituoso, com o pensamento direto ferindo, atacando muito certo, em flecha, os assuntos, como quem derruba águias do elevado pendor duma montanha, ele, sabendo armar e dirigir o aparelho receptor do seu cérebro à adaptação e generalização das ideias, ainda as mais delicadas, sutis, fluidas quase — começou, primeiramente, a tomar a obra em bloco, a uniformizá-la, a compô-la, como um organismo, tecido por tecido, célula por célula, molécula por molécula, dando-lhe corpo, consubstanciando-a, alargando-a — até que ela pareceu crescer, crescer, subir ganhar um vulto estranho através da vitrina, como se a enchesse toda: — uma grande tela vermelha com letras negras ao centro — Je dis non; e como se, por um inconcebível, misterioso processo, ali estivesse ardendo uma chama, mas que não alastrasse em línguas de fogo, unida, compacta, igual, à maneira duma prodigiosa matéria inflamável que não excedesse ou sobrepujasse aquela transparente circunferência de vidro.

Depois, então, o luminoso originalista, o evolucionista spenceriano continuou humoradamente a bordar folhetins sobre a obra, como ele próprio dizia, a desmanchá-la, a tirar-lhe a consistente verdade, a preparar-lhe os planos, a determinar-lhe os detalhes, a sua latente psicologia, a sua tangibilidade de ser, a tecelagem de ouro da sua forma, a discernir-lhe a linguagem, a penetrar na nevrose do temperamento que a confeccionara, que fabricara em estilo a sua contextura, apanhando-a, dissecando-a, já em mil voltas, já em mil giros, já em mil efeitos de espírito, sob os mais novos aspectos, dando do assunto inteiramente tudo que o assunto poderia dar e penetrando segura e esmerilhadamente nos entranhados filões recônditos que lhe constituíam toda a potente força criadora de obra afirmativa da Natureza.

E, nesse profundo trabalho de composição e decomposição mental, ia-se uma incomparável, infinita porção de glóbulos rubros, à qual a mais requintada estesia d'Arte se integrava completamente.

Eu, absorto, perplexo, calado pela atenção aguda, acompanhava sorrindo, numa alegria que me sacudia os membros eletrizados, os condoreiros voos do mestre, que subiam regiões para o alto, além, até aos astros, na rija envergadura das fiavas asas à luz em jorro, que depois abundantemente fulgurava, resplandecia na obra, a iluminava por dentro dum clarão, numa transcendente visão espiritual arrebatadora.

E o filósofo, o Schopenhauer moderno, nessas sortidas intelectuais que me enlevavam, projetando as ideias mais admiráveis e fecundas, dizia-me então, na serenidade correta dos seus gestos de disciplinado, de frio saxônio:

— Pois, é isso, vê? Je dis non! Imagine uma dessas paixões que tudo consigo arrastam para sempre, que desmoronam a vida de um artista contemplativo, vivendo das impressões da Natureza, sob o grito, os vibrantes clarins da carne e a alucinante, inquietadora vertigem dos ideais insonhados! Imagine um instante quinta-essenciado no absoluto das coisas, amando dum amor imaculado, virginal, sidéreo, já pouco da Terra, desde longo tempo, uma dessas vigorosas mulheres de Tom de luxo, de idade outonal de fruta, que tanto entontecem, perturbam como uma ampla absorção de ar, de luz e de aroma no altanado cume das serras, quando se tem saído da densa e lôbrega treva dum calabouço. Louras Ceres maduras, um tipo, enfim, forte de primitiva beleza, opulenta e formosa deusa da Hélade, uma dessas maravilhosas criaturas, assim humanas e assim etéreas, que eternamente conservam na carne a centelha da mocidade, na epiderme o doce aroma das violetas, a frescura das magnólias, o diáfano cor-de-rosa das auroras de sangue e que através dos seus nervos, do ímpeto da sua seiva ainda palpitante e viçosa, sabem, como animal que esconde as garras, pôr apenas em evidência, diante de uns olhos apaixonados que as desejam, não o afeto que igualmente as emociona e torna convulsas, mas toda a febricitante graça borboleteadora, alada, dos seus encantos, todo o atraente enlevo das suas sedições, — radiantes asas satânicas com que a Natureza as dotou e com as quais elas voam desassombradas para o coração do homem, como para uma chama, vencendo-o, subjugando-o, empolgando-o, sem, contudo, porém, muitas vezes, nem de leve crestarem as rutilantes plumagens.

Imagine isso, uma dessas paixões, trágicas, apunhalantes, que queimam, incendeiam, devoram tudo — bárbara paixão selvagem de Otelo por uma Desdêmona fria, de luar gelado, mas formosa; indiferente mas altivamente olímpica, onipotente no esplendor cinzelado, como os mármores coríntios ou os bronzes celinescos, do alabastro do corpo.

Uma dessas paixões tumultuosas em onda, em que os amantes estão por vezes separados só pela distância de um beijo e de um abraço, e que quando ele, sonhando a hora feliz e ao mesmo tempo fatal entre todas, que lhe parecesse a mais serena às exigências dela, o doce momento aflitivo no qual ele com veemência pensasse que ela nada lhe negaria, depois de tanto esperar, depois de tanto ansiar — nem a flor dos seus beijos nem a flor dos seus carinhos nem a flor da sua carne, — nesse supremo instante enfim em que ele supusesse que do encontro, do atrito amoroso das suas almas tão longamente afastadas, entre si irradiasse e nascesse o sol do mais imperecível amor — ela, com os olhos fagulhantes cheios de expressão e sagacidade feminina, fria por cálculo, indiferente por sistema, acostumados já aos lancinantes envenenamentos dolorosos que trazem as desesperadas e fundas loucuras, lhe dissesse, pondo nas suas palavras todo o torturante fel do desprezo:

Je dis non.

Suponha, pense tudo isso e veja a brusca e abrupta alucinação dele, o seu desvairamento ao ouvi-la condenar o seu amor.

No entanto esse errante das ilusões teria quase toda a certeza que ela o atenderia, lá o esperava com beijos ardentes esvoaçando já nos lábios como abelhas.

Observando, sabendo todas as modalidades da alma, conhecendo todas as manifestações da Natureza, o artista não havia, entretanto, compreendido essa, não pôde abrangê-la nunca no que ela tem de mais imperceptível, de mais vago, surpreendente, aéreo.

Não pôde abrangê-la e ei-lo agora aí desmoronado, esmagado, como se todo o império romano do seu afeto de repente perdesse a pompa gloriosa e se fizesse em ruínas.

Palácios mouriscos, torreões e minaretes árabes, mesquitas persas, coruscantes pagodes incrustados de madrepérola e pedrarias preciosas, suntuosas e góticas catedrais, um luxo de damascos esmirnos, todo o famoso deslumbramento dos seus sonhos de um místico templário do amor, feito subitamente em cinzas com aquelas pungitivas palavras dilacerantes.

Aí tem, pois, o que é Je dis non.

Assustador, angustioso, estranho na sua gênese, mas é Jes dis non. Di-lo a epígrafe, em letras negras, di-lo a capa vermelha, que é o pronunciamento psicológico de uma tormenta de sensibilidade, de nevropatia que agitou a existência de alguém.

Mas, não o leiamos nunca: deixemo-lo estar assim, o excêntrico volume, lá ao fundo, através da vitrina, saciando a nossa sede de Ideal, absorvendo os nossos sentidos na emoção íntima de um gozo intelectual muito mais intenso e raro que a realidade.

A realidade pode não ser isso que sugeri, pode ser banal, qualquer caso de deformação da vida, qualquer fenômeno teratológico da moral, que abata e deprima as iluminuras e ilusionismos da frase, os caprichosos floreios estéticos que agora faço.

Deixemo-lo estar nessa impressionante mudez de Esfinge. De tal forma valerá mais para a nossa análise, para o consolo do rebuscamento de singularidade que perscrutamos em redor do mundo, que se lhe penetrarmos na verdade fundamental da concepção e do estilo.

Assim, essa Esfinge vale astros e flores.

Rasgando o mistério que para nós ambos, num momento dado da investigação, a celebrizou, talvez apenas valesse areia ou lama.

Vivamos, pois, na excepcionalidade virginal, etereal do espírito. Não desçamos à bruta crueza flagrante da matéria...

Écloga

À HORA DO SOL, por estes tranquilos sítios afastados, goza-se os montes vestidos de um polvilhamento de ouro; as perspectivas deliciosas na matinal e ruidosa expansão da luz; estes luxos bizarros e tons quentes de estio, onde parece que Sátiros lascivos vão trepando e saltando pelas escarpas calcárias e pelos socalcos pedregosos, entre o verde lustroso e denso da folhagem da mata e os encachoeirados, tormentosos rios.

Galharda natureza esta, de manhã, cheirosa e sadia, em que o jorro da vida vertiginosamente entra e circula pelos pulmões em ar e aroma, dando uma fremente e forte sonoridade aos órgãos humanos, como vibrante clarim de batalha que nos soprasse metalicamente ao peito, enchendo-o de ecos, de alvoroço, de música e rumores.

Por aqui estende-se, amplia-se, alarga-se por aqui o céu verde das copadas ramagens das árvores — e nada mais idílico e bucólico, nada mais virgiliano e pastoril do que estes aspectos sagrados, quase bíblicos, onde a écloga rebenta de cada tufo perfumoso de rosas, de cada serpente elétrica de hera, de cada pâmpano báquico de vinha, de cada ramo salitroso de murta e de cada concha rosada e branca nas finas e claras praias, além, onde o mar espumeja doce, parecendo trazer no fluxo e refluxo das suas ondas cantantes, a olímpica e serena recordação da mocidade e da formosura da Grécia, ritmada em flóreas canções de Afroditas engrinaldadas de algas...

Montes e vales, vales e montes, faz bem percorrer aqui estes religiosos recantos, estes saudosos retiros onde parece que o passado, que tudo o que está longe, que tudo o que está remoto, ilusões e eras, tudo aí se veio refugiar e vive um momento agora da nossa presença, da nossa alacridade, do nosso humor, que nós nababescamente derramamos por todas as paisagens, entre estes pássaros que cantam e voam, purificando-se no Azul, como os palpitantes pássaros alados do inquieto, do vertiginoso Espírito.

Encantaria ser pastor, para galgar esses penhascos solenes, para subir essas alcantiladas serras e ver borbotar delas a água fresca em finos e prateados fofos vaporosos de espuma, abundante, em turbilhões impulsivos porejando virgem das origens recônditas, como grande força represa, insubmissa e elementar da Natureza, rebentando e surgindo das profundas entranhas rijas da terra e dominando, enchendo, avassalando a amplidão do ar.

Encantaria ser pastor para ir, cedo, na luz, campo em fora, peludo e florestal como Pã, no vigoroso esplendor de sangue da força de um touro novo, por entre a exuberante luxúria vegetal, apascentar os mansos rebanhos alvos de arminho das nostálgicas ovelhas, que balassem desoladamente, numa compunção evangélica; e conduzi-las, após, ao redil, já tarde, na roxa melancolia das tintas da noite — enquanto a lua, fluida e fria, nevasse as tenras culturas e subisse então infinitamente ao céu — e enquanto, à distância, longe, no ermo, uma leve e flutuante fita de voz se desenrolasse, esvoaçasse e perdesse ao longo e ao largo pelas quebradas, na mais harmoniosa e apaixonada cantiga!

Ah! Roma antiga! Ah! Grécia! Ah! Paganismo! Quanto melhor não fora pecar na primitividade dos instintos e dos impulsos, alma espiritualizada no ideal abstrato, existência votada aos cultos soberanos da matéria e tendo para equilíbrio no requinte da calcinação do entendimento, o requinte da elaboração do sentir e do gozar — aberto em chamas no sangue, aberto em chamas nos nervos, aberto em chamas na carne — até ao supremo aniquilamento final, no qual a morte era como uma nova espécie transcendental de concupiscência e lascívia mais requintada ainda, por isso que era original, desconhecida inteiramente para esses que a experimentavam.

Antes nascer e morrer num leito de rosas, amando e gozando rosas, coroado de rosas, como um romano ou como um grego, no mais virtual e mítico paganismo, do que ter-te a ti, vida consciente e disciplinar, como a tremenda esfinge de pedra, colossal e terrível, sufocando, esmagando a seiva, o ímpeto, uma corrente de desregramento animal que há no fundo de todo o organismo, no fundo de todo o temperamento.

E é por isso que dá um instintivo desejo de pastorear e que se sente uma emoção do mesmo modo instintiva quando essas imaculadas existências campestres, rudes mas angélicas e sãs na sua casta nudez de sentimentos, nos sulcam a alma como um clarão, a iluminam e a cobrem de esplendor, desdobrando-nos ante os olhos estupefatos, como opulentas, riquíssimas lhamas rutilosas de diamantes, as magnificências reais do mais profundo e germinal Amor!

Impressões

ATRAVÉS DAS VERDEJANTES COLINAS DO SUL, a noite de São João tem a graça pitoresca de uma animada pintura, tornando vivo o clarão de amor das cousas adormecidas ou mortas nas recordações passadas.

Ora é numa beira de praia, ora é num trecho de rua que se passam essas cenas de costumes, esses episódios característicos, cheios de um encanto virgem, que afagam a nossa memória.

Desceu a noite já!

É num luar de junho.

As verduras, pulverizadas de luz, escorrendo prata líquida, numa crua irradiação branca, reluzem com a nitidez e brilho dos alvos flocos de neve.

Para lá da terra firme, além de uma curta divisa de mar manso, navegável em canoas, num ponto em que os olhos distinguem claramente bem, uma aragem fresca, leve, como um sopro musical de flauta campestre, afia nos canaviais viçosos que se agitam suavemente.

Porém, na rua, umas vozes cantantes, cheias de mocidade e frescura, gritam alto, sonoras:

— Olá João, anda cá! Hoje é teu dia. Viva S. João! Viva S. João!

                    

E o João, um rapaz que passara assobiando, jovial, franco, na alegria da sua alma chã, entra numa venda, paga vinho — um vinho cor de topázio bebido entre a algazarra dos companheiros e os bruscos entusiasmos do taverneiro, que faz tinir as moedas, todo risonho, na gaveta do balcão.

— E as canas, João, e as canas! — repetem as vozes.

                       

E o João paga de novo e de novo a algazarra cresce, os vivas, as aclamações, os prazeres acesos nas almas desses bons rapazes, como as bichas e os buscapés que eles soltam nos largos, por troça, em meio de muita gente reunida, dispersando e alvoroçando tudo, entre galhofas e risadas. Mas a noite de S. João dobra de encantos e de enlevos.

Agora, fogueiras crepitantes estendem a sua ardente chama, loura e alegre, na frente das casas, dourando-as. Agora, a rapaziada, crianças saltam as fogueiras; velhos de cócoras ou sentados em redor contam uns aos outros histórias cabalísticas de bruxas e almas do outro mundo, e, aquecendo-se do frio da noite, esfregam confortavelmente as mãos, fazendo às vezes ressoar no claro ar sereno a nota cristalina de uma cantiga de ritmo simples, como motivo da festa, tremida e repinicada na voz, misteriosa e cheia de saudades amadas.

Agora são as novenas nos lares — as velhas novenas que de tão longe vêm na religião, como ainda um doloroso soluço atormentado dessa fanática e sonâmbula Idade Média...

Numa sala, ao centro de um altar armado em dossel, resplandecente de luzes, de alfaias, de jarras azuis e de flores, S. João Batista, com o seu rosto roliço e doce, destaca, sorrindo, de um quadro de moldura dourada, em estampa, do fundo de um nimbo cinzento, cabeleira crespa, faces coloridas, abraçado ao cordeiro manso, que olha para a gente com os seus olhos pequeninos, plenos de docilidade e de paz.

E, depois da novena cantarolada numa lúgubre melopeia, a rapaziada cai na arrastação dos pés, e dança, gingando, com os voluptuosos requebros e bamboleios quentes da raça.

No intervalo das danças, bebe-se Carlsberg e comem-se belos bons-bocados saborosos que cocegam aperitivamente o céu da boca, e as brancas ou rosadas cocadas, em forma de estrela, que lembram a Bahia, tal é o paladar do coco de que elas são feitas.

No meio disso tira-se a sorte, numa espécie de consulta ao destino: para saber se morrerá cedo ou tarde, se casará, se terá este ou aquele desejo. Passatempo esse que dá às pessoas que nele tomam parte um contentamento e uma felicidade que iluminam as fisionomias, remoçando e fortalecendo a velhice e consolando de esperança a todos.

No fim desse contratempo e das últimas contradanças de grandes e frenéticos galopes, todo o mundo volta para casa, tarde bastante, no frio silêncio hibernal da longa noite já sem lua, mas estrelada, de um amarelado tom esmaecido de madrugada cor de limão.

Nem mais um só ruído notável do prazer se escuta na rua.

Apenas, a essa alta hora, um ou outro foguete tardio, ao longe, aqui e ali, como esquecido elemento da festa ou indiferente conviva que chega tarde, estala e brilha no ar saudosamente.

Croqui dum excêntrico

DIANTE DO NOME deste excêntrico, dum brilho feérico de fantasia, desenrolado aos meus olhos como tapeçaria de Beauvais, lembro nitidamente o remoto Oriente: a Turquia, a Arábia, a Pérsia — todos os povos muçulmanos, que têm a frouxidão dos nervos, a elasticidade de membros de raças decadentes, em todas as suas especiais funções fisiológicas e manifestações psíquicas.

Principalmente a Pérsia lembra-me a indolência, a morbidez orgânica deste Excêntrico — a indolência que não constitui, no entanto, defeito fundamental, ausência de qualidades singulares de espírito, mas que antes representa uma maneira de ser na vida — muda abstração na qual o pensamento é um grande pássaro viajando nas mais altas regiões, inacessíveis à vontade da matéria.

Com o seu ar fidalgo, que lhe dá, através dos finos vidros claros do pince-nez, as linhas e a distinção correta e douta de um sadio e forte estudante da Universidade de Bonn ou de Oxford, o Excêntrico parece viver apenas numa flirtation de ideias, numa despreocupação de touriste e num diletantismo fatigado de artista boulevardier, a quem as asperezas e arestosidades do meio emprestaram já as findas cores carregadas e pungentes do pessimismo — conquanto na transparência dessa despreocupação aparente, ele analise, perceba e sinta passar, como entre uma luz difusa, o corpo vivo dos positivos fenômenos naturais.

Na verdade, esse amargo pessimismo que os artistas anglo-saxônios e eslavos beberam, como numa dorna onde se houvesse purificado num vinho negro o sentir e o dolorido pensar de várias gerações; esse pessimismo torturante por vezes nos livros de Schopenhauer e Hartmann, especialmente nessa transcendente Filosofia do Inconsciente, parece prendê-lo também ao ceticismo mórbido de Murger, de Nerval e Chatterton e de tantos outros artistas queimados pela flamejante chama interna de um desejo nunca realizado.

Mas esse pessimismo, feito de germanismo e eslavismo, tênue, fluido, sutil, que entontece capciosamente, insensivelmente, como os glóbulos microscópicos do álcool que fica no fundo do copo de um russo envenenado pelo niilismo e pelo rum, esse pessimismo, se o Excêntrico o possui, não lhe tira, de resto, a bizarra, a garrida forma do espírito leve, fino, a iriante graça de abelha.

É que ele, contudo, por entre a variabilidade do tempo, não perde as latentes atitudes nervosas do seu temperamento, acordando dessa pérsica indolência para gozar a Arte, para sentir e para amar a Arte.

Num centro antagônico do desenvolvimento e fulgor do seu espírito estético, na aridez dos fatos, numa atmosfera onde um ar livre de ideal não circula no sangue, um sangue fremente, rico, não gorgoleja nas veias e as turgesce, o Excêntrico lembra um cactus, uma rara flor nascida no gelo, alva na vastidão das fulgurantes neves, dando, entretanto, uma encantadora poesia serena de pitoresco e originalidade a toda a amplidão do terreno.

Ou, então, para abrasileirar mais o símile comparativo, lembra também uma dessas simples parasitas brancas, flores pensativas e melancólicas que rebentam dentre pedras, florindo virginalmente para o azul, indiferentes à rigidez do granito...

O seu estado de morbidez intelectual, que parece, por humorismo sombrio talvez, corresponder a um estado comatoso, é como a aparência de certos céus turvos, nebulosos, não obstante carregados do ouro flamejante do sol e do intenso azul, que de repente aparece em nesgas, como um prenúncio de aurora, através de fuscos, floculosos pedaços de nuvens que se vão, lenta, demoradamente esgarçando... Depois, outras nuvens, mais pesadas, mais densas, correm, como cortina de brumas, sobre esse ouro de sol e esse azul, voltando então tudo às primitivas névoas eternas.

Alma êxul do Espaço, triste às vezes, decerto, mas dessa alta e excelsa tristeza e magoada nonchalance de velha águia real de cabeça pendida e parado voo, como que adormecida, sonhando dolentemente a melancolia do Azul...

Assim é, assim será para sempre esse meditativo Excêntrico!

Névoa de emoções, debaixo da qual estão o sol e o azul de uma ideia, que se descobrem, bem poucas vezes, para determinadas observações delicadas sentirem; cinza fria de afetos debaixo da qual arde a radiante, rubra constelação de um anelar do espírito, cuja complexidade o entendimento comum dos homens não apreende nem percebe.

Natureza calma, contemplativa, que a placidez das montanhas e os aspectos quietos, remansosos do campo pacificaram, ele se apura e delicia na nobre convivência, na grandeza mental dos livros, onde a espiritualidade e o esmalte da forma pedem a atenção dos sentidos civilizados.

A casa

PERTO DO MAR, junto às velhas e carcomidas muralhas musgosas de uma antiga fortaleza, em redor da qual cresce a erva como a hera que alastra os pórticos de um solar em ruínas, há uma tosca vivenda dentro de um pequeno cercado de espinheiros e miúdas e coloridas rosas agrestes.

Aí arborizações luxuriosamente sobem para o alto, numa alacridade de vivos tons de folhagem.

Na rusticidade dessa vivenda, todas as tardes, numa ilha verde do Atlântico, eu vou gozar o incoercível sentimento humano do amor, olhando o mar sulcado de embarcações, calmo, brando de leite, como um luxuoso e pesado damasco azul, e olhando os ocasos incomparáveis do sol solene que mergulha num ouro infinito, através das montanhas.

Para ali vou gozar o sentimento incoercível do amor, que emociona e exalta, faz nascerem e viverem em mim, desprenderem para longe o voo, indefiníveis águias do pensamento.

E eu não sei que fluidos serenos se exalam dos nossos corações e se encontram; que há em nós a mais harmoniosa simpatia congênere de sentimentos.

A doçura lirial da palma de sua mão, quando eu a aperto nas minhas, passa-me inteiramente a sua alma em eflúvios, inteiramente, com a recôndita emoção afetiva de todo o seu ser — e, nesses instantes, seria pequeno o mar, tão grande, que lá está fulgurando e cantando diante dos nossos olhos, e o céu, lá em cima, amplo e azul, para conter tão intensa e consoladora ventura.

Então, assim, só com ela, eu desejara bem estabelecer lar, fundar casa — não sobre alicerces de pedra e areia, mas sobre o alicerce profundo das nossas almas. Fazer da casa uma canção eterna, uma simples tenda de irmãos, arejada pela comunicativa e mútua afinidade suave do afeto dos dois, e que cada um, na preciosa singeleza do gosto, firmasse a lei do viver, a lei de amar, a lei de ser feliz, deixando fluir, fortalecente e livre, o amor — como um fio d'água subindo e descendo montes, descendo e subindo vales, regando ervagens, fartando a sede à terra e fartando a sede aos que erram, sob sóis ardentes.

No íntimo desse conforto, no supremo egoísmo desse sentimento, da vida exterior apenas eu gozaria as aves meigas e afagadoras, que voassem, d'asas abertas e ruflantes, espalmadas no espaço, arrulhando sobre o nosso amor; os navios que passassem, eretos, na ideal e fugidia correção dos mastros, velas brancas tufadas, quando o mar está rosetado das arestas do sol, picado de agulhetas de raios, como uma fulgurante tapeçaria chamalotada; o crescente da lua, frescura salutar, subindo, meigo, numa ternura de poma cheia e afagadora que aleita os eternos peregrinos e os sequiosos eternos, fria, silenciosa, na soturna paz da noite; as ridentes veigas que se estendem para os lados, além, verdes, em raros veludos, na planície infinita...

Depois a morte aí me viria colher, aí seria para mim como uma leve mudança fácil de sonhos, a viagem para o abstrato ideal, transformação passageira, enfim, ascensão de voo perdido no éter transluzente...

Mas, acima dessa perspectiva que eu gozasse e sentisse em torno da existência, que o seu olhar sobre mim radiasse, fulgisse, resplandecesse, protetor e angélico, com o misticismo, a suavidade dos astros...

Para isso, porém, bastaria, bastaria para isso, que essa recíproca afeição tivesse sempre o encanto, a limpidez e a graça original, a vegetal candidez de flores que se leva por uma doirada manhã de presente a alguém. Bastaria que uma música só fizesse o acordo de dois corações, como muitos aromas reunidos dão ao olfato uma só sensação. Não bastaria, certamente, sentir dentro de nós uma igual similitude de enlevos e de cuidados: seria preciso que ambos se percebessem, se completassem, se identificassem nessa similitude, como edificação moral em que cada um trabalhasse, conjunta e compreensivamente, para o outro. Seria mister viver numa absoluta homogeneidade de entendimentos e afetos — como as aves que pousam nas romãzeiras e nos pessegueiros em flor, têm, cada uma, todos os dias, a mesma homogeneidade inefável nas gorjeações e no voo...

Assim, a casa, dessa forma, bem fundada e perfeita ficaria; e, sol, harmonia e perfume, canções de amor e de mocidade, subiriam alto no tempo, adoçando todas as coisas, pacificando a existência dos dois, como uma grande bênção e um grande perdão podem trazer messes de felicidade e misericórdia à consciência de muitos.

Ao contrário disso, tudo terminaria enfim para ambos.

A vegetação que ao redor daquelas regiões, fora das proximidades da vivenda, viça em arbustos rentes como em terras da Palestina, pareceria murchar, definhar, secar e acabar para sempre; e os ramos d'árvores, pela manhã enxameada de pássaros, perderiam toda a sonoridade dos trinados; e o mar, bucólico e épico, que tem às vezes o seu som profundo, as graves e harmoniosas imponências catedralescas de órgão, circunvolvendo em ondas toda essa habitação de amor, como uma ronda poderosa que guardasse raro e fabuloso tesouro escondido, — o mar ficaria então semelhante a um surdo e cego a quem são indiferentes belezas virgens de paisagens, enroseirados trechos de colinas, madrugadas, auroras e noites estreladas, peregrinos cantos melodiosos de pássaros e trinados cantos matinais de raparigas do campo indo à fonte encher os cântaros d'água.

Sem poder jamais fundar a casa, dirigir a casa, dar-lhe o claro, gradual desenvolvimento de um livro, tudo, afinal, em mim, esperanças e sonhos, de repente se esvairia, como esses opulentos ocasos undiflavados, tintos de prata e sangue, que na turva neblina crepuscular das tardes esmaecem e morrem... E a alma alegre do meu ser, como uma fresca e fina flor de neve, definharia no Esquecimento e na Sombra; e na minha boca, como na boca dessa criatura amada, os sorrisos e os beijos morreriam logo, como plantas estioladas a que os fortes verões abrasadores crestaram fundo as entranhadas, enraizadas origens...

O senhor presidente

(Desterro)

O SENHOR PRESIDENTE vai chegar, vai chegar o senhor presidente.

Por toda a parte da terra pacata e simples os senhores burocratas, os senhores políticos de ambas as parcialidades, e o povo murmuram: O senhor presidente vai chegar, vai chegar o senhor presidente.

Boatos locais correm parelhas, vitoriam e martirizam, conforme o caso, desprestigiosos ou honrosos, a pessoa ignota do senhor presidente.

Homens e mulheres, à maneira de necromantes deitam pareceres, opiniões, como numa mesa de jogo se deitam cartas ao azar: será alto, gordo, baixo, magro; usará cavaignac, será louro, terá suíças, será moreno, ou usará simplesmente bigode, ou não terá barba nenhuma?

Os provincianos não sabem. Calculam, estabelecem semelhanças, fazem paralelos, comparam o presidente fulano, o presidente sicrano, etc., e o nome do senhor presidente que deve chegar no paquete do dia, desenrola-se de todas as bocas, flexivelmente, invariavelmente, dando impaciências e febrilidades à massa anônima que o quer ver já ao pé de si, saber-lhe os tics, como veste, se é bonito ou se é feio.

Mas lá no fundo do horizonte plúmbeo destaca-se um vultinho, por ora sem forma, vago, indeciso e nebuloso, como uma bola negra.

Porém, à proporção que os horizontes se desfumaçam e as montanhas somam saliências azuladas e contornadas, transparentizando-se então os variados aspectos das cousas em consequência da onda de luz matinal que agora ilumina e faz viver tudo, a bola negra avulta gradualmente, veste as conformações que lhe dá a luz da manhã caindo eterificada, diluída em prata no mar, destaca-se, afirma-se e, todos, algumas senhoras e cavalheiros que assestam o binóculo para lá, e o povo, apinhado no cais, curioso e alvoroçado, exclamam: É o vapor, é o vapor; aí vem o presidente, aí vem o presidente.

Que tal será, seu Barbosa, perguntam uns indivíduos, você que entende isso de política?!

E o seu Barbosa, homenzinho hirto, franzino e magro, conhecido por muito engraçado, de boas chalaças e que estava placidamente a olhar o mar, volta os olhos para estes indivíduos, endireitando e puxando para cima, desafogando do pescoço o alto colarinho brilhante, como não cabendo na honra e no orgulho da consulta que lhe fazem e da competência que lhe dão em assunto tão palpitante e melindroso, dizendo com importância: Homem, isto de presidentes médicos não é lá para que digamos. Todo o mundo bem sabe que ele é médico; ora, é muito capaz o nosso cidadão de quando a província precisar leis fazer-lhe receitas. Não aprovo um facultativo no governo da província.

E o seu Barbosa, rindo, gingando com garbo e discretamente, para não perder a sua linha de sensatez, foi indo para outras rodas, inchado de bazófia, supondo-se imortalizado pela sua opinião.

Então aqueles indivíduos insuflados por aqueles argumentos, banais e atrabiliários, sem cor e sem retidão, deram-se mutuamente os pêsames de não haverem tido há mais tempo a ideia tão original e exata sobre o senhor presidente. Mas um som rasgado e metálico de cornetas ouve-se ao longe: é a guarda que vem fazer honras do estilo ao senhor presidente. Chega ao cais, ao mando do superior e aguarda as ordens, formada, porque o paquete aproxima-se já, entra no porto, fundeia entre baforadas alvas de fumo, apitando.

E, do lado da capitania, do lado da polícia, da alfândega e do trapiche geral parte uma fila vileira e alegre de botes, de escaleres, repletos de gente, leves e alígeros como golfinhos, os escaleres com os seus toldos brancos debruados de vermelho, os botes com as suas velas em verga, enfunadas, de bandeirolas e galhardetes no topo do mastro, aproando ao paquete, na alegria e no colorido brunido da manhã, às frescas aragens salutares que afiam do norte. Após a visita de bordo, o senhor presidente aparece no tombadilho, na doçura e na nitidez da paisagem marinha, novo como uma surpresa, de estatura regular e curta barba redonda e preta, parecendo feita a riscos de fusain, e pince-nez nos olhos profundos e graves. É abraçado e saudado no meio de muita palavra balofa, com falta de S, S, cheia de perdigotos, de alguns senhores funcionários públicos que se atrapalham e coram. O senhor presidente toma então o escaler que lhe é destinado e embarca com os correligionários e algumas autoridades da terra.

Logo que o senhor presidente se aproxima do trapiche, o povo murmurinha, sussurra, gesticula e olha vagamente, com uma interjeição pregada à cara: Qual daqueles será, vêm outros estranhos no escaler da polícia.

Efetivamente com o senhor presidente vêm outras pessoas. Passageiros, amigos do senhor presidente talvez. Mas o povo está frenético; sentem a prurigem da ansiedade. Ah! dizem uns, há de ser aquele ali, à direita daquele sujeito baixo de pince-nez — aquele alto e louro, de chapéu de castor branco, fino sobretudo claro no braço.

Sim! Sim! É esse naturalmente, é aquele mesmo, confirmam outros, logo se vê pela figura importante e pelos trajes.

Mas o senhor presidente chegava ao cais, saltara já com os seus companheiros. E a curiosidade crescia, crescia como uma onda muito alta que avassala e alastra tudo.

Porém a multidão se desiludira afinal a respeito do seu modo de ver sobre o qual era o senhor presidente; porque agora o senhor presidente é cumprimentado, apertando-lhe a mão, dizendo-lhe coisas sepulcrais, tristes de espírito: Cumprimentamos a V. Ex.ª, felicitamos a província, etc.

E o povo vê então que o sujeito de pince-nez e sem mais elegantes maneiras de toilette é que é o senhor presidente.

Já daí nasce uma dúvida sobre o governamento que ele poderia dar à província.

No entanto o senhor presidente com o seu amplo olhar de médico conhece de um só golpe de vista qual a doença étnica desse povo e qual o diagnóstico a fazer-se.

Os soldados que aguardam a presença do senhor presidente, fazem sentido, braço armas, apresentar armas, enquanto o senhor presidente passa, baixo e moreno, enxergando através do seu pince-nez de vidro claro, como de uma larga vitrina aberta ao sol, todas as aspirações e necessidades da terra.

O senhor presidente é transcendentalista. O seu espírito latino, incomensural e vasto como o mar donde acaba de vir, tem a larga solenidade austera das catedrais babilônicas do mundo. No cérebro do senhor presidente cabem todas as grandezas e todas as elevadas nobrezas mentais. Nunca a terra tivera na gerência dos seus negócios tão transcendentalmente ilustre e preclaro.

O franco ar iluminado que vinha de sua erudição, da sua serenidade anglo-saxônia, fazia impressão rude e brusca nos patriotas, nos dissidentes de pequena política, a ponto de tomarem o senhor presidente por selvagem.

A imaginação popular pensou jamais poder compreender o senhor presidente; se atordoava e entontecia como sujeito que leva à noite numa esquina forte pedrada na cabeça sem saber de que lado partiu.

E o senhor presidente vivia num modesto luxo burguês e clássico de palácio de província, numa vida de fábula como um deus fantástico cuja ausência provocava ateísmos e anátemas, exorcismos puros, mas cuja presença acabrunhava e desarmava a todos, tal era o respeito que lhe vinha debaixo do pince-nez dos seus tranquilos olhos de filósofo, como um poderoso e desconhecido fluido do magnetismo animal que, sem saber como, tendo sobre o povo as mais inabaláveis e prontas influências, imobilizava-o, transformava-o em mudo, um mudo e automático eunuco.

O senhor secretário

O SENHOR SECRETÁRIO está sentado à mesa do trabalho e faz os papéis do seu mister oficial com uma letra espichada e magra, como pernas de inseto.

O senhor secretário também é magro, de uma magreza natural e estética, tendo o rosto, como um pergaminho, estrelado de miudinhos sinais de sarda.

O senhor secretário veste com certa elegância que, num golpe de vista rápido, não parece de todo provinciana.

Há mesmo um discreto tic de parisianismo na forma do seu chapéu em forro, verde-garrafão, um tanto afunilado, armado em cone, de abas quase direitas, colocado em cima de uma estante em que há jornais velhos.

O senhor secretário está na sua juventude valente e florida e tem um enamorado jeitinho patrício; diz-se até que ele vive na flirtation das belas jovens de cuja sociedade faz parte; e, como na sua linda cabeça meridional há uma provável calvície e o senhor secretário quer parecer sempre bem às mulheres, deixa cair para a testa, desde a nuca, uma grande pasta castanha perfumada a Orisa e a Ilan-Ilang.

Traz ao pescoço, à maneira dos rio-grandenses, um fourlard a listas estreitas e de cores variadas que parecem significar os tons cambiantes do ideal que o senhor secretário abraça.

De vez em quando para de escrever, e abre, com uma espátula de marfim, as folhas de um livro de tipo elzeviriano, impresso em papel melado, com filetes e delicadas bordaduras na fina capa de granito e apenas com dois frisos dourados na lombada.

São versos.

Depois abre a gaveta de verniz rosé da sua secretária e tira de lá um outro livro, volumoso, mas não de tão elegante luxo de arte como o primeiro. Folheia-o. Lê uma passagem, alto, para uma pessoa que está à sua direita.

É O Primo Basílio.

Oh! o senhor secretário é literato?! Parece que sim...

Ele tem um precioso paladar estético, muito celta, e goza então a delícia de ler o Eça.

Esse artista incomparável tem para o senhor secretário a alta importância, quase cultual, de uma adoração.

O severo estilo impecável do Primo Basílio dá ao senhor secretário uma grande vitalidade mental, ampla, larga, que o inunda de sol.

Nunca esse livro admirável sai das burocráticas mãos do senhor secretário, tão amado e contemplado é ele.

Os trechos mais delicados, os tipos mais característicos, as descrições mais fotográficas, de mais pompa e esplendoroso vigor de estilo passam e tornam a passar na retina psíquica do senhor secretário, intermitentemente, como vistas vivas e brilhantes de um gigantesco Caleidoscópio.

A paisagem da Escócia, vivendo fundo no livro; o Visconde Reinaldo, esquelético e finamente elegante e crevé, murmuram e vivem nas ideias do senhor secretário numa forte chama sideral de astro.

Ah! que suntuoso e que nobre, ser-se o senhor secretário.

Na verdade há um límpido ar de conforto na repartição em que ele está! Um ar fresco e lavado de marinha, de capitania do porto.

Deve bem ser agradável, sem dúvida, fruir ali, desde as 10 horas, o expediente encerrado às 3.

Que o mesmo senhor secretário, na atmosfera clara da arejada sala verde, rodeado de cartas geográficas, de tabelas de sinais, fazendo a escrita com uma bela tinta azul muito fluida, sobre o vistoso e polido papel oficial com os troféus de armas da Nação, como um brasão nobiliário, e tendo a alegria touriste de viajar os olhos pelo mar que freme perto, o senhor secretário parece gozar um céu exclusivo, ter um paradisíaco Te Deuni de felicidades.

Quem o vê fazer soar cristalinamente o tímpano a fim de que se dê cumprimento a qualquer ordem superior, de que se expeça qualquer papel, tem-no por um pequeno príncipe gentil (porque o senhor secretário é de pequena estatura) coberto de opulência e cuja hierarquia o mundo constela de glórias supremas.

Feliz, no entanto, sem essas apoteoses, o senhor secretário vive cantando e sorrindo à limpidez do seu espírito desabrochado e reflorido com a virgindade das rosas que abrem à beira mar...

Nicho de virgem

LOURA, numa frescura de prados atravessados de luar, de madressilvais floridos ou, morena, tostada a pele virginal de fino fruto aromado, assim é que eu te vejo dentro do nicho da tua alcova, quando, no alto do teu claro palácio, uma janela me aparece iluminada na noite.

Bem por vezes o firmamento suntuoso d'estrelas espalha no silêncio da natureza uma irradiação eucarística de sacrário e no meu ser viva chama de emoção.

E, bem por outras vezes, uma estrela, só surge com um brilho aceso, coruscante, pelo firmamento tranquilo, quando eu, amorosa e instintivamente, olho a janela do santuário em que tu às vezes na noite apareces, como se olhasse a estrela em cima.

E fico a meditar, languidamente, nos linhos, nas bretanhas e cambraias finas dessa alcova, nas painas alvas do teu leito, onde a tua vida de astro resplende na nudez da carne.

Fico a meditar nessa serena beleza que brilha e canta na capela mística do Amor, num nicho de prata e esmeralda, com o esplendor das Virgens, por entre ritmos e timbres diamantinos e verdes.

Idealizo logo majestosos salões iluminados, ondulosas, vaporosas nuvens de valsas, amantes entrelaçados, num noivado de aves, por exalações de aromas voluptuosos, inebriando-te, fascinando-te em sonhos o cérebro delicado.

Um véu tenuíssimo, como que tecido de névoas, pende-te candidamente da cabeça enflorada e radiante; tens suntuosidades e linhas harmoniosas de harpas e elances augustos, etéreos, idealidades soberbas e sonhadoras, de arcanjo, cujas níveas e transluzentes asas vão desprender voos inefáveis, celestes; os teus olhos fulguram com tão incomparável fulgor e toda a tua formosura desfere uma luz tão original, tão imaculada, tão nobre, que parece que as graças, os infinitos encantos, as eternas mocidades, só de dentro de ti, da tua carne, auroram.

E, na penumbra fidalga do nicho onde repousas, entre lustres e candelabros, esse vulto valquiriano, essa sombra doce de balada, formada das espirais d'incenso do teu próprio sonho, se esvairá, se apagará, como o último cintilar da luz no cristal dos lustres e candelabros.

E aí ficarás, só e dolente, fechada na treva da tua alcova, no cárcere de chumbo do sono, com as curiosas seduções e os eletrismos atraentes de veludosa serpente de volúpia, à espera que o sol, esmaltando a alta e branca janela do teu palácio, venha abrir-te os olhos no nicho das cambraias e das bretanhas; à espera que o sol, fabuloso dragão de asas consteladas, desprenda os seus voos majestosos e rufle sonora e fulgentemente as asas sobre o teu corpo, surpreendendo-te a luxuosa florescência carnal e deixando escorrer das asas, sobre ela, como finos vinhos de ouro, cálidos e palpitantes, das Estrelas das Vindimas, o pólen claro e virgem das supremas fecundações — ó formosa e frívola Divindade que com os tentáculos magnéticos e fascinantes da Carne estrangulas o mundo...

Aroma

MANHÃ CLARA, cristais de luz, que parecem ter finas vibrações de sonorosos clarins no ar...

Uma dessas manhãs líricas, aromadas, de um azul apaixonado...

Alta, loura, esguia, o perfil nervoso, destacado ao sol com a nitidez, a correção de gravura em aço, vem subindo a areada alameda das violetas e jasmins, dos resedás e lilases de antigo parque famoso, na toilette fofa e fresca dos climas quentes, meio-dia em dezembro, à fulva irradiação do calor.

De toda a sua estatura nova, lirial, exala-se brandamente um peregrino perfume, um aroma delicioso de campo enroseirado, quando o luar acorda as culturas.

As madeixas caprichosas, lânguidas serpentes do sol, preguiçosamente se lhe abandonam, em carícias luminosas, sobre as aladas formas, arcangélicas, das espáduas de ouro, de marfim e rosa; o colo claro esplende na brancura macia de penugentos veludos, fascinantemente desnudado para o tecido enlaçamento dos braços, para o chamejante estrelejamento dos beijos.

Toda a linha suave do seu perfil encanta, atrai os sentidos; enquanto o olfato penetrante, delicado, sutil, talvez por um requinte artístico de sensualidade, busca-a, procura-a, percorre-lhe o corpo todo, a rósea, áurea carne cheirosa, como infinidade de irrequietos e sequiosos faunos.

E tudo o que dela vem, a emanação virginal dos seios e da sua boca, parece fecundar a luz de frescuras imaculadas, purificar o aroma das Cousas, inebriar o som.

Como que o ar onde cintila a auréola resplandecente da sua formosura recende embalsamado do feno fresco dos prados, fica banhado em ambrosias, em nardos, mirras e sândalos orientais.

Experimenta-se rara sensação esquisita, que dilata, sensibiliza os nervos, dá agudas vibratilidades, intensos espasmos de luxúria, quando o olfato mais a sente, mais se aproxima dela, tateando-a, tocando-a, absorvendo-a, como se o olfato só para ela palpitasse...

Há um deslumbramento de gozo, à flor do decote lácteo do seio, entre os cetinosos rendados e os folhos luxuosos do corpete, um aroma impoluto de aristocráticas magnólias trescala, adocicado e morno.

E há também o mesmo, ou maior deslumbramento ainda, quando, numa graça de ave, ela abre, rindo, a boca.

Então, não só da boca, não só do seio, como de toda a aveludada alvura daquele ser, evola-se um eflúvio de forças virgens, a suprema beleza em auroras flavas aflora.

Delgada, ágil, com histerismos de mulher felina, faz idealmente lembrar cinzelada ânfora d'incenso; marchetado turíbulo de prata, de onde, para o alto, alam-se claros, alvos fumos puríssimos e sacros...

E, sempre que o olfato iluminado, atilado, sente, longe ou perto, o aroma casto, inalterável, da loura resplandecente, é como se ela, então, de repente vicejasse, florescesse na frescura cheirosa de suntuoso pomar de frutos e alvorecesse em rosas ou em flores níveas e afrodisíacas do Noivado, majestosamente nua, de dentro de um tálamo branco...

A milionária

TODOS OS QUE TE VEEM PASSAR, ou passeando o olhar através dos brancos luares tranquilos, ou, pelas tardes de março, indo às pitorescas digressões costumadas e elegantes, a algum pic-nic de rapazes do tom no teu coupé ou na tua victoria puxada por vistosos e lindos cavalos do Cabo, — os que te veem passar exclamam a meia voz e com respeito, com solenidade:

— Oh! como esta senhora é milionária!

Na verdade, essas pessoas não mentem.

O irradioso luxo das tuas toilettes de verão e de inverno, de um alto ar nobre e aristocrático, enchendo as ruas por onde passas de uma majestade principesca, lembra as fulgurantíssimas pompas orientais, perto das quais o sol parece triste e desmaiado tal é a prodigiosa onda de luz, de perfume e encantamento que nelas faz explosão e ruído...

E o teu formoso chalet, de altas janelas para os ares frescos, engrinaldado de rosas, de heras e madressilvas, com incrustações de marfim como os chalets chineses, cantante e alegre ao sol, como é artístico e raro!

E o teu parque, o teu parque, largo e doce, de tanques cheios de pequenos peixes de prata e vermelhos, que pulam n'água estrelando-a de irradiações sulfúreas; de esquisitas aves de toda a parte do mundo, desde o pavão, que vem da Ásia, colorido e ovante, até ao melro e o rouxinol da Europa e até aos sabiás da América do Sul, que cantam nas palmeiras; de árvores grandes e graves, viçosas, que murmuram luxuriosos salmos de amor na sua folhagem rica e farta de seiva — o teu parque, milionária senhora, tem a placidez, a vasta serenidade do conforto das riquezas.

Realmente, tu és milionária. Tem razão o povo.

No entanto, entre essas qualidades possuis uma outra, que parece destoar do caráter geral da tua pompa.

És caridosa, muito caridosa, tão caridosa mesmo quanto és rica.

Muitas vezes os teus sentimentos de mulher ilustre, preclara, têm sido cantados em prosa e verso, em prosa seca e desalinhada e em verso ainda pior do que a prosa. E tu, sentindo no ouvido o velho tom clássico daquela frase banal que diz "Valha o desejo se não vale o canto", lês os jornais, orgulhada e embevecida dos dizeres chics, encomiásticos, sentada na tua chaise-longue ou na tua conversadeira, na sala amarela de reposteiros também amarelos, cheia de bijouteries, de estatuetas de Saxe, de cristais de Sèvres, lembrando todo esse requinte e galanteria da arte de Luís XV e da Pompadour.

E ficas vivamente enlevada, tocada de um eflúvio de grandeza e opulência bizarra, abandonada a mão fidalga e polposa, de transparentes unhas rosadas, sobre o regaço que treme debaixo do roupão claro e em tufos na frente, entremeados de fitas azuis e rendas.

Não obstante, apesar do rumor e da luz que sai do teu ouro, me parece a mim, rica senhora, que tu não és caridosa. Pelo menos ia eu jurá-lo.

E senão, vejamos. Prodigamente ofertas quantias aos clubes de dança, aos jockey-clubs, aos clubes de regatas, ao lírico, aos concertos, aos jornais de modas, a todo o mundanismo elegante das belas cidades de estilo e de élite. Mas tudo isso que fazes é com rubros cartazes de ostentação, é propalado com reclamos espetaculosos, a mise-en-scène mágica da tua vaidade.

Mesmo os hospitais, as sociedades de utilidade pública que socorres com a tua bolsa, inesgotável e poderosa, não é por um simples impulso emocional, simpático, de uma risonha compreensividade, mas sim por um chiquismo, um certo aplomb oficial das naturezas criadas, desenvolvidas na atmosfera fácil da riqueza.

Depois tu serias profunda e evangelicamente caridosa se eu próprio nada soubesse das tuas magnanimidades. E eu não tive ainda a suprema delícia de sonhar, ao menos acordado, que entras obscuramente numa casa onde há crianças famintas e maltrapilhas e aí deixas uma bolsa cheia de ouro, sem um sinal qualquer, sem os teus brasões, sem o traço azul da tua filiação genealógica de sangue, se é que és baronesa ou condessa.

Porque tu só praticas a caridade pela apoteose gloriosa, triunfante do teu nome.

E tanto é assim, que, no dia seguinte a uma magnanimidade tua, toda a gente te vê nas ruas e nos bairros mais populosos da terra a mostrares a tua pessoa, moça e formosa, como uma vitrina se mostra, aos olhos ávidos e espantados do transeunte inexperiente das maravilhas do mundo, um originalíssimo brilhante negro.

A caridade tem para ti a influência de um perfume raro e forte que, aspirado persistentemente, perturba e excita os nervos.

É uma espécie de ópio ou de haschich árabe que te permite ter alucinações, deliciosas visões fantásticas e sonhar com cousas paradisíacas, com galgos e genuflexões de indivíduos de curvatura flexível e leve.

E o que tu pareces sonhar vê-lo realizado pelos jornais, por pessoas que falam em ti com adoração, com respeito, quase com medo; pelos Srs. deputados, ministros, conselheiros e toda uma ala luzida de titulares, que te tiram o chapéu a grandes e amplas barretadas adulatórias, todos eles refulgentes de triunfo, por terem ocasião de te saudar sempre e por serem os primeiros que aparecem nos teus chás cavalheirescos, pondo-te açúcar na preciosa xícara dourada aberta em preciosos lavores.

De volta aos prados

VENHO DA PAISAGEM.

Acaba de me entrar um largo jorro de vida pelos pulmões.

De andar todo o dia através searas e prados, entre giestas em flor, finas, frescas e fofas papoulas rubras, campos verdes e floridos de rosais, trago o aspecto um tanto rude e campônio, tenho a linha pitoresca e viril de um rural boy.

A fim de me arejar do pó da cidade levei para a natureza virgem dos campos, de onde volto agora, um livro espiritualizante.

E nada mais encantador e sereno do que esse pic-nic de bom humor e de verve que eu acabo de fazer, sob as árvores, como um druida, debaixo de tetos verdes onde as aves cantam, sentindo, na frescura da seiva, os vegetais virem à carícia morna do sol.

Nada mais de sentimentos nostálgicos, de vagos nevoeiros de spleen.

O ar salubérrimo da paisagem, pondo-me nas carnes a elétrica sensação do sangue alvoroçado, despertou-me a intensa, a profunda, a complexa fibra sonora da Arte.

Porque eu não sei de cascatas de ouro de lei, de portentosas riquezas nabábicas, de luxos asiáticos, os mais extravagantes e majestosos, que possam apagar na imaginação dos verdadeiros artistas as impressões que se recebe de uma bela prosa estilada, certa, onde a palavra esboça, desenha e colore todos os variados e complicados assuntos da vida, como que fotografando a luz, o perfume, o movimento, a cor.

Na natureza de cada objeto, na essência de cada ser, há, nos livros que se propõem a mais alguma cousa do que divertir, e a agradar mas a convencer, a impressionar, a comover pela psicologia e a análise, uma resplandecente verdade que ilumina de um largo clarão de filosofia a consciência do escritor.

Com nuances diversas, como fitas de fuzis, os livros acusam sempre a maneira literária, sugestiva de um temperamento, pondo-lhe à luz a excitabilidade nervosa das personalidades desenvolvidas num dado meio, amorosas, apaixonadas, tendo, para cada expansão da vida, além de um espírito seguro, impulsivo, uma qualidade de sentir, de ver, de assimilar, de discernir e de crer, a mais estética e delicada.

Nós, que estamos cá para a América do Sul, parece-me que ainda não nos podemos compenetrar bem, com toda a profundidade e largueza, desses grandes sentimentos afetivos que, filtrados do cristal da alma, passam, na mais graciosa e límpida forma literária, para umas tantas páginas de livro.

Porque é preciso fazer transplantar para a escrita aquilo que sentimos, com toda a expressão do colorido, com toda a gradação de tons, com toda a crua exposição do real; — do mesmo modo e com a mesma intensidade com que o ar nos tonifica o sangue e nos dá movimento, ação, a todas as funções do organismo.

Agora, porém, é que vêm rompendo uma floração de talentos, artistas do Atlântico, mais complexos, mais dúcteis, com toda a delicadeza da expressão e o colorido de cinzelada forma — artistas preocupados da correção suprema, que num trecho de prosa fazem vibrar os seus nervos, palpitar a vigorosa força dos seus músculos, resplandecer a flamante aurora vertiginosa do seu sangue.

Esses são os impressionistas, os coloristas, os estilistas, dando à escrita a intensa vibração dos órgãos humanos, fazendo da linguagem o mais prodigioso aparelho que, como um estranho instrumento de ouro, brilha nos nossos olhos, canta nos nossos ouvidos, impressiona e sensibiliza a nossa alma.

Todo o processo literário depende, primeiro que tudo, das tendências, do caráter objetivo do escritor.

E, quem conseguir ter ideias gerais das cousas e souber dispor de elementos de observação e análise será necessariamente um escritor, dentro dos limites do seu alto dever artístico, pintando a natureza como a natureza se apresenta, e dando a cada assunto, a cada particularidade a cor e o estilo que cada assunto e que cada particularidade pedir.

Assim far-se-ão escritores e não máquinas reprodutivas de toda uma natureza morta, de todo um cliché de ideias por bitola, e isso para o bem, para a inteira perfeição da Arte.

Investigação

O QUE ELA PENSA de ti não é nada gentil e não é nada amável. Tu fazes versos. Ninguém sabe se os teus madrigais, se os teus idílios rimados nadam diluídos no éter ou servem de harmonia à garganta de algum pássaro. Ninguém sabe disso. Mas o certo é que tu fazes versos, lindos versos, sonoros versos musicais e frementes, que dizem toda a história do coração, todos os episódios da alma humana.

O teu modo de vibrar as estrofes é natural e fluente, e exprime bem o estado do teu ser, penetra nos organismos, tem toda a comunicabilidade sutil e delicada como um excitante perfume.

Incontestavelmente possuis algum oculto veio de sol no cérebro! Porque, na verdade, tudo isso, florescente e radiando, que te surge assim do pensamento, não pode vir apenas do sangue. É necessário um outro elemento mais poderoso e intenso para te inflamar, exaltar assim de poesia e esse elemento, é, sem dúvida alguma, o sol...

Contudo, isso, assim como num enxurro que as chuvas carregam para os rios vai muita coisa inútil e pode ir também muito brilhante e muita pérola, no jorro de luz da tua imaginação vem às vezes, como ironia aguda, muito morto elemento de verso fútil, que passa e que vai embora, ao mesmo tempo que se sucedem os mais heroicos e bravios leões da ideia...

E é de forma tal o teu espírito, que o teu nome poderia constelar de glória qualquer página de história sem o mais tênue ridículo.

No entanto, são bastantes todas essas qualidades para ela te aborrecer e preferir a ti o mais banal e ínfimo dos homens.

É certo, porém, que tens obtido dela firmes provas de afeição: os anéis de cabelo, os mais sedosos e belos; os olhares, os mais apaixonados e ardentes; as frases, as mais convencedoras e amantes.

Mas tu esqueceste que o coração ilude quase sempre, esqueceste o coração dela, não lhe perguntaste nada, não o dissecaste como a um querido cadáver, porque ai! o coração das nossas amadas é quase sempre um indiferente cadáver gelado.

Nada indagando, enfim, do coração da tua morena ou da tua loura, deixaste-te ir boiando na embaladora onda dos seus beijos e das suas carícias, dormiste sobre essa onda, a sonhar, e acordaste nas aflições e nos desesperos do naufrágio...

Oh! oh! dirás, este senhor escritor entra-me pela alma a dentro como se entrasse por uma sala deserta... É exato que ela me tem iludido algumas vezes, mas tão poucas vezes mesmo que até nem me dei ao trabalho de contar, nem valeria a pena fazê-lo...

E esse senhor escritor te responderá: Não, não acertaste por esse lado. Se ela te tem enganado tão poucas vezes, que não te deste ao trabalho de contar, oh! dói-te de ti mesmo, errante louco do amor! porque se não consegues te enumerar todas as vezes que ela te iludiu, é que tantas, tantas foram elas, que o teu brio aparenta ou a tua consciência de forte se envergonha de o confessar...

Esta é que parece ser a verdade tremenda, esmagadora, que te comprime e achata o cérebro. E se não crês, vejamos.

Ontem ela viu-te passar, a "tua eternamente", como ela mesmo te diz nas suas cartas. Tu não a viste. Ela estava à janela, e, assim que te aproximaste, ocultou-se. E por quê? Não te adora ela tanto?

Mas é que tu te não lembras que vinhas com companheiros, amigos, rapazes como tu, e, entre eles todos, eras, não o mais feio, mais o mais pobre de toilette.

As tuas botas tortas e rotas faziam-te escorregar na calçada, dando-te a aparência dúbia de bêbado. Tu não pisavas firme, não tinhas elegância como os outros, e isso oh! perdoa, mas a tua amada não podia suportar nem desculpar sequer. Ah!

Ah! doía-lhe mais isso na vaidade, certamente, do que se soubesse, nesse mesmo instante, que tinhas acabado de morrer.

Parece-te demais isto, não? Pois escuta ainda.

Hoje há um grande baile de luxo num clube da capital. Foram expedidos convites a toda a gente fina e ilustre. A ti ninguém julga ilustre; e se alguém te julga fino é apenas na magreza da luta pela vida que te enruga o semblante num brusco movimento de dor, quase numa picaresca momice. Mas, como tu andas pelos jornais, em espírito, e os senhores sócios do clube, supondo-te um imbecil, "contam com uma notícia floreada sobre a festa", como eles dizem, tu alcanças o teu convite, bem certo de que ela irá, e simplesmente por causa dela.

― Para isso vais consultá-la. Ela diz-te que irá com certeza, sem se esquecer de te fazer sentir que vai por teu respeito, por valsar contigo, para estar perto de ti. E, não obstante os seus olhos dizerem o contrário, não obstante afirmarem que vai para ver os outros, para divertir-se, tu, com todo o teu poder de espírito e verve, ficas preso nas capciosas malhas dessa fidelidade de momento, mas em que tu absolutamente crês, e vais ao clube, alegre e triunfante, como os vencedores.

Lá, ninguém sabe que tamanha nevrose experimentas, que ficas excitado, bebes demais, começas a tontear no solo das contradanças, não por causa das botas tortas, porque nesse dia tiveste o cuidado gentil de calçar um Milliés elegante, mas pelo álcool que te sobe então à cabeça em espessas e atordoantes névoas de vapor...

De repente perdes o equilíbrio num galope e cais bruscamente no assoalho. Todos te cercam e dão-te socorros que o acidente requer; mas a "a tua amada para sempre", essa, deixa-se ficar a um canto, no vão da sacada, pelo braço do cavalheiro, pálida e trêmula, é verdade, mas do susto apenas, tendo logo o cuidado de dizer: — Que inconveniente! Quem o convidaria? Eu nem o conheço, é a primeira vez que o vejo.

E tu, desfigurado, abatido depois de mais calmo o teu estado fatal, voltas para casa com uma agonia de despeito e de vergonha que te insufla de soturnos soluços abafados toda a concavidade do peito.

E se isto não basta ainda, se te não convence, ora ouve lá então...

No dia seguinte, tu, com o corpo mole e quebrado como se te houvessem esbordoado com chibatadas de junco, com o paladar azedo para tudo, deixaste-te ficar em casa, e, incendiado por um ciúme que aplica tenazes em brasa nas carnes — profundo ciúme despedaçador nascido do ridículo que pusera em ti aquele fato, e dos indivíduos que ficaram ainda no clube a gozar a beleza da tua amada, tu lhe escreves umas linhas emocionadas, quentes, cheias de febre da paixão, desculpando-te o mais hábil e convencedoramente possível daquele incidente involuntário, dado apenas pela vertigem de adoração que ela te inspirou no clube.

Porém ela, recebendo a carta, impassível e fria, não a abrirá, não a lerá, rasgando-a.

E o portador, já teu conhecido, que leva a resposta e que viu, de olhos arregalados de espanto, a tua amada rasgar a carta na sua presença, tendo dó de ti, porque sabe o tormentoso amor que tu votas a ela, te há de dizer que ela leu a carta com desvanecimento, com interesse, à sua vista; e que acrescentou mais até que não escrevia já naquele momento por estar muito nervosa em consequência de um pobre, esfrangalhado e sujo, que lhe foi pedir esmola logo pela manhã, atrever-se a apertar, beijando-a, a sua mão delicada.

Tu, então, vendo nisso a graciosa maneira de reatar uma afeição que parecia perdida, acreditarás no portador; e apesar de todos os teus grandes sentimentos, por ti mesmo apregoados, maldirás no íntimo esse miserável pobre que te impediu de receberes logo a desejada, a querida resposta da tua carta.

E, assim, andarás, dessa amada para outra, ontem, hoje, amanhã, como em três pesadelos da vida, jogado para lá, para cá, como um corpo morto, no mar, ao embate das ondas entre recifes — sem quereres admitir que o que ela pensa de ti não é nada gentil e nem é nada amável; sem acreditares que tu és para ela nada mais nada menos que um pequeno cão bravio, que late e se arrepela às vezes, mas que serena, amansa logo, desde que o tacão ou a ponta de uma bota se levanta no ar ameaçadoramente.

Psicose

RITMOS DE CRISTAIS aristocráticos; harmonias veludosas de órgão; nostálgicos, neblinosos violinos; maravilhosas sonatas tudescas de um sonâmbulo luar; sons dispersos, inexpremíveis da Noite! está diante de vós o cruciante fantasma da minha Dor!

Ele persegue-me eternamente, como um vigia que eu tivesse dentro de mim! E eu o sinto horrivelmente escancarar a boca, e rir, e rir, numa risada pungente, dilacerante, como a das figuras dantescas que o funambulesco Doré criou.

É a comédia negra, a comédia das torturas psíquicas, que ri, porque a sua faculdade de chorar é rindo, nuns esgares bufos, numa ironia musical de Offenbach.

Ah! são precisas lâmpadas de entendimento para descer aos ergástulos sombrios, lôbregos de certas almas, para ver-lhe o fundo tenebroso onde a Dor sempre cavou a fonte das lágrimas.

Tudo o que essas almas manifestam para fora de si, são apenas efeitos, esmaltes de sol, que se apagam logo que a luz na altura se apaga.

O que realmente existe lá dentro é uma densa poeira triste de desertos caminhados em desolação, onde a figura torva do tédio fica ao alto, num relevo de bronze, na eterna gravura do humorismo.

Flor de luxo das civilizações requintadas, flor doente, o tédio espiritualiza-se, recebe a contextura da prosa, entra na concepção e no estilo.

É como o personagem ideal, alegre e doloroso ao mesmo tempo, o personagem vermelho e negro, o Mefistófeles fantasioso que, sob as estrelas, sabe peregrinamente cantar, para que algumas almas solucem.

Olhando para dentro de certas naturezas nem sempre tudo é claro, de uma luz larga, ampla e vivamente palpitante como o mar ao sol.

Há pontos obscuros, turvos, nebulosos, espécie de mundos de ideias ainda em gênese, em formação e que às vezes não chegam nunca a desenvolver-se.

Aspectos vagos de chuva e sol, quando, entre a leve cintilação da luz, caem as neblinas, os nevoeiros, a chuva, apresentando à visão um brando tom impressionista de clarão e de sombra.

Assim és tu, nobre natureza das ideias que eu amo!

Tu te fortaleceste nos combates, te avigoraste e reuniste em ti a força, a alegria nova dos campos lavrados, quando os primeiros rebentos começam virginalmente a florir numa intensidade de verdura.

Em ti — natureza das ideias — deu-se o mesmo que nos campos: a charrua era forte, o aço era fino e lampejante e poderia bem lavrar terras abundantes para que o veio original do espírito surgisse, viesse, raiasse a flor.

Mas, ante essa força e alegria nova de campos, raramente deixa de perseguir-te, de avassalar-te, — nobre natureza das ideias que eu amo! — esse duro tédio que, como a invasão de um budismo nirvanamente religioso, lança-me venenos letais nas veias.

Em vão, em vão às vezes o meu sangue flameja, como uma aurora boreal de reação contra essa noite fria, glacial, apagada d'estrelas e rijamente cortada de uivos convulsivos de ventos epiléticos...

Luz e treva

NÃO SEI QUE LUZ estranha ilumina os espíritos superiores; eles refletem cousas extraordinárias que os seres vulgares nem sequer percebem, cambiantes de mágico brilho, fulgurações de astros incendidos no céu através a bruma transparente distendida no espaço.

Nessas imaginações esplêndidas, que parecem continuamente mergulhadas numa fosforescência translúcida, há incêndios de sóis, rendilhados jasperinos de espumas, colorações de astros e flores, diafaneidades de gozos indescritíveis; há risos de auroras, prantos de orvalho, rios de lágrimas, céus de alegrias, noites de tristezas, oceanos estrelados de amor, tempestades de ódio, eternidades de agonia; há envergaduras de heróis, reflexos de mulheres divinas, corpos aéreos de criaturas sobre-humanas!...

Há um mundo, uma natureza além das cousas terrestres superior a todas as cousas, em que vivem deuses fabulosos, arcanjos e sombras, que a vulgaridade não conhece.

É a grande visão do imenso olhar do talento, que se debruça para dentro do próprio cérebro, que reverbera como um grande foco elétrico, deslumbrado, refletindo visões que pairam no pensamento, aureoladas e fúlgidas, como as cousas sublimes que o escritor transporta à tela incomparável dos seus quadros fantásticos, luminosos...

Só os cérebros apagados não sabem ver assim; só os que não possuem o reflexo da luz suavíssima e aurifulgente das auroras do pensamento, só eles não podem ver, na cinza escura da sua esterilidade, as grandes telas esbatidas e enfeixadas de raios, estrelas, e sóis dentro de infinitos azulados e tranquilos; é que na escuridão vazia e tenebrosa que eles têm em si, nada distinguem, nada compreendem, porque não lhes chameja a imaginação, essa peregrina centelha acendida no cérebro como um grande farol na imensidade, essa luz fertilizante que vê as cousas inauditas que nos deslumbram; é que eles têm dentro do crânio a maldição da treva a esterilizar-lhes a mente, a mergulhá-los na sombra implacável do vácuo e do nada!

Volúpia...

A CHUVA CAI LÁ FORA, ininterrupta, em torrente fria...

Uma tinta escura entenebrece o ar. Não se vê mais o sol. O grande sol flavo, original Fecundador, não surgiu hoje das nuvens, não raiou, com a sua prodigiosa luz.

E a chuva, assim torrencial nesta manhã de outubro, dá-me um afrouxamento aos nervos, uma infinita lassidão, um torpor que voluptuosamente sensibiliza...

Que continue a cair lá fora a chuva, morosa e nostálgica, nessa viuvez triste de melancolia, numa cadência, num lânguido ritmo.

Não sei por que vaga, abstrata expressão dos horizontes, ao longe, das horas dormentes deste dia, eu amo fidalgamente a chuva que cai dos altos espaços.

Quisera estar agora, na indolente filosofia de um faquir, com a luxúria e o luxo de um mandarim, numa larga sala de mármores brancos, ouvindo a sonoridade da água que desce das brumas e ouvindo músicas aristocráticas, sonatas convulsivas e dolentes e místicas de Beethoven, que me enlevassem, a pensar, a pensar, organizando com delicadeza e curiosidade ideias imaculadas.

E que a chuva, fora, caísse, jorrasse, cantasse em amplos, largos, claros, frescos pátios sonoros ladrilhados de verdes mosaicos.

Ou, então, quisera bem, numa igreja silenciosa, ouvir ao confessionário, como os sacerdotes católicos, as femininas almas amarguradas e virgens, que me dissessem, numa pureza de veio original, na linguagem de luz que só os astros devem cristalinamente possuir, os secretos dilaceramentos e ansiedades, as obscuras e inquietantes paixões que como áspides ardentes e caprichosas alvoroçam e mordem de nervosidades, de êxtases, nos paroxismos do delírio genital, as alvoradas brancas das Noivas adolescentes.

E, contemplativo, absorto, desejara, do meio de velhos e austeros palácios renanos, ouvir, sublimemente, comentar Schopenhauer, dentre um fundo meditativo de bruma germânica, sob retalhante, fuzilante humor a Heine; ou, senão, num evocativo transporte, ver passar, desfilar diante dos meus olhos, fagulhante e em pompa, empoada, numa esfuziante coquetterie e ostentação fabulosa, a brava Corte fascinante e faustosa de Luís Quinze, na linha dos ritmos donairosos, dentre os meneios fidalgos do minuete — cintilante colmeia de sol, de onde se filtrou outrora o divino mel da graça e onde essa voluptuosa e luxuosa Pompadour tentadoramente reinou, esvoaçando, ágil, trêfega, com a sua volubilidade e favoritos encantos de grande e deslumbrante Abelha funesta e cor-de-rosa.

Desse modo, então, tudo na minha imaginação ficaria deliciado, pelo esplendor e bizarra galanteria nobre das mulheres, como por esquisita essência finíssima de ambrosia, de formosura e sol.

Assim concentrado, alheado de tudo, como que vagamente entontecido pelos vapores quiméricos do vinho alvo de um luar de Idealismos, ansiara infinitamente gozar todos os Grandes Amados, os curiosos sensibilizados do Pensamento e da Forma.

Gozá-los nas suas vivas páginas evocativas, sagradamente, com emoção e paixão, incendiando-me nas suas chamas, perdendo-me nas suas lânguidas e extravagantes Arábias de Sonhos, subindo aos seus crepitantes delírios, às suas alucinações e crises nervosas que a mentalidade gera, mergulhando com intensidade, com profundidade, nas suas poderosas sensações.

Assim, penetrado de emoções tocantes e luminosas, eu vivamente sentiria a alegria espiritual, voluptuosa, de viver e todo o meu ser viçaria logo numa triunfal beleza radiante de grandes rosas escarlates.

Poderia a chuva insistentemente cair! Eu experimentaria, no religioso e cativante silêncio da minha reclusão mental, uma sensação íntima, preciosa, original, que me vibrasse, despertando a mais delicada tensibilidade nervosa, o frêmito, o alvoroço d'asas, os caprichos d'arrebatamento de voo de pássaro selvagem, ao sol do mar largo, e o ressurgir inefável de certas sentimentalidades passadas...

A carne

PARA NÓS, que estamos sentindo, como numa grande calamidade de legenda, a carestia da carne, a sua fabulosa inópia, a visão da felicidade toma aspecto de bife de grelha, sangrento, alapardado numa porcelana de frisos doirados, entre as franjas louras das alfaces lavadas, macias, frescas, deliciosas...

Adormece-se ao entorpecimento de um dia mal alimentado; tem-se sonhos terríveis de voracidades espantosas, entrevendo através de mil estiletes agudos de uma barreira de dificuldades, as pomposas polpas de carne rubra, fascinante como um sorriso de madona, sob a roupagem amarela e tênue da gordura fresca, oleosa...

Mais além, na planície verdurosa e banhada de córregos múrmuros, a boiada ofegante, coleando na pastagem rica, mastigando e mugindo, como numa antecâmara de guilhotina, à espera da hora em que terá de entrar para o talho...

São as visões cruciantes do caminheiro abandonado num deserto de areias, ressequido e estéril, a ver, na vigília causticante, no sono, as límpidas cascatas em borbotões espumarados, jorrando as massas líquidas, irisadas, de um pedregal entre selvas, marulhado de ondas e bafejado de coruscantes brisas, por uma fresca e iluminada manhã outonal, do sul.

Mas como num acordar de sonho, alquebrados, famintos e triturantes, ao volver os olhos à realidade, eis-nos deparados com a lamentável e furibunda inópia: a dessa farta iguaria que os deuses chamariam o seu manjar, em terras da América, mais ricas do que os campos da Austrália. E uma grande tristeza, alastrada de lágrimas, em nossos olhos rasos se desenha, como numa noite de inverno, ao viandante friorento, em torno de uma fogueira apagada!

O que estamos sofrendo todos, na sequidão devorante dos apetites dilacerados pela ignomínia da carestia que nos tortura, é uma cousa inaudita, semelhante àquelas antigas calamidades bíblicas, dos tempos dos Faraós, pela penúria dos trigos.

Pode-se dizer que o bife está transformando o caráter nacional. Já não se encontra quem tenha no rosto a expressão da alegria sã, com um sinal evidente de um povo repleto e farto; toda a gente nesta terra parece triste, por essa espécie de alta inopinada da carne que, mais avara de si mesma que a libra esterlina, ou não vem aos mercados ou apodrece à porta dos açougues, mas não se deixa ir para a mesa de qualquer, se não a peso de ouro e destemperado como um acepipe alemão.

O horror da fome já nos apunhala a alma; porque tudo que em nós não é fome, é mágoa pela escassez do bife, pelo adelgaçamento da pança, pelas torturas das vísceras, que pedem beef!

Daqui a mais alguns dias, se não abranda a carestia, seremos apenas isto — a fome!

Os felizes

NO BAIRRO ARISTOCRÁTICO duma aprazível cidade do sul da América, quem mora lá ou quem viaja para lá há de ver uma elegante habitação pitoresca, ao rés-do-chão, graciosa na rua arejada e larga, entrançada de heras e de roseiras que alastram pelas vidraças e pelos telhados, transformando-a num nicho de viçosa e tufada verdura.

Nos lados que deitam saudavelmente para o mar erguem-se pombais, onde pombos alvadios, de peito oválico, entram e saem, numa revoada alegre, ruflando a branca plumagem das asas e ternamente arrulhando, como num tom de soluços, amorosas baladas que só eles conhecem.

Uma habitação colocada num trecho fremente e confortador de paisagem, recebendo a frescura marinha das praias, o bom cheiro acre da maresia, bem certo é que parece um castelo feudal medievo, na Alemanha, entre árvores velhas e enevoadas. Só lhe falta a montanha alpestre e o rio azul fluindo e gorgolejando nas penedias.

Mas, à falta do rio azul, tem a caprichosa morada um pequeno ribeiro que vai, a uns tantos passos de distância, em estrias de prata, gemente nas suas águas tranquilas.

Ah! aí nessa vivenda deve existir a felicidade!

O casal que lá mora não pode ter mais conforto, mais bem-estar, melhor graça na vida.

A mulher, ménagère alemã, ativa e prática no mister do seu ménage virtuosa, fiel como poucas — um belo tipo de nobreza grega, esbelto, de uma plástica doce, linha direita de imperatriz da Áustria, formosa como se se tivesse gerado da luz.

O marido, quase um lorde, satisfeito nas toilettes finas, muito sportsman, sempre num belo cavalo fogoso e claro d'espuma, de crinas cetinosas que o vento agita e faz tremular nos galopes, ao sol, como delicadíssimos filamentos de astros.

À noite, quer haja luar, quer não; quer a lua surja, redonda e glacial, quer haja apenas estrelas, a música consoladora soa ali, através dos stores verdes, em partituras alemãs, em scherzos e melancólicas sonatas. A orquestra que se escuta dentro é executada por um curioso terceto de instrumentos: é o piano, o violino e o violoncelo — almas apaixonadas que murmuram sonoramente todas as alegrias e amarguras das notas.

Mas, ah! egoístas da felicidade!

Esses pequenos concertos a négligé, feitos entre o chá da noite, sem diletantismo, são ocultos e misteriosos.

O gentil casal fecha discretamente todas as portas da sua linda casa e encerra-se com a sua música dentro de uma sala, como Luís da Baviera e Wagner, sozinhos, dentro de suntuosos palácios reais.

E, olhando de fora, através dos stores verdes, descidos nas janelas, entre a luz também verde, coada da sala para a rua, os olhos e a alma, embevecidos, enlevados, extasiam-se diante daquela atmosfera de paz e de afetos, perfumosa e confortável, onde as harmonias, como uma água fresca muito fina que flui ou como prantos arrancados de cítaras saudosas, se evolam, sobem alto, muito alto, até onde a nossa fantasia não poderá voar jamais.

Dá veementes desejos de amar, de abrir os braços, num êxtase, a um ideal qualquer, tal é o inefável ritmo penetrante de suavidade que sobe desse retiro sereno, banhado de um misticismo casto de sacrário, onde parece que devem viver e cantar as lendas nevoentas dos Niebelungen todas as almas virgens dos seres apaixonados, contemplativos e comovidos, sonhando quimeras no alvo regaço das suas valquírias de neve.

Então, assim como essas provas irrefutáveis que a gente sente em redor de si, como que se afirma logo que há nesse casal uma duradoura felicidade de céu claro, firme, perfeita e eterna como a morte.

Mas, entretanto, não vos assombreis, não duvideis um instante, ó iludidos felizes do mundo! se alguém vos for dizer que esse casal divorciou-se porque o alemão, num doloroso momento, encontrou a altiva ménagère entregue à pecadora lascívia de outro — daquele, talvez, que ele acreditara incapaz de inspirar afeto a quem quer que fosse, e de quem, por julgá-lo tão ignóbil e fútil, não se daria a honra de ter, ao menos, nem piedade, nem ódio, nem compaixão sequer.

Natal

À HORA MATINAL, das borboletas brancas e do lirial desabrochamento das rosas, cedo na luz, quando havia ainda uma espécie de oscilante névoa luminosa nos ares, dando uma translucidez aos aspectos e espiritualizando os longes — good morning! — salta fora do leito! Adeus atarracadas casarias tumulares da cidade, adeus ruas estreitas, encaminhadas e lôbregas como corredores de convento, adeus por um dia e vamos para o campo.

A luz, duma finíssima e branca fulguração, dava vivas tonalidades da prata às perspectivas.

Rios de prata sonora; verdes de paisagem com suavíssimas nuances de prata; curtos e coleados riachos de prata; colinas e montes polvilhados de uma leve rutilância de prata; e ao fundo, destacando na linha geral do campo, o mar, fúlgido, calmo, cinzelado num esmalte d'águas, como vasta e polida baixela de prata para dar de comer às nereidas e às náiades.

Dentro e fora, na cidade, ficará em brilho o Natal.

E as casas, numa radiante alacridade de primavera, como se o sol, à maneira de uma champagne de ouro, as tivesse alvoroçado e por elas se derramado em cascata; na garridice de presepes, de bibelots, de árvores luminosas e coloridas, garrulavam de risos, de alegria, de flores e vaporosos riachos espumantes à mesa do almoço e do jantar, nas comunicativas horas simpáticas do lar, quando em torno à querida mamã, morenas e louras crianças cor-de-rosa, de cheirosa carne macia, meigas e delicadas, para o fino pincel maneiroso de Lobrichon ou Geoffroy, são os mais encantadores frutos e as mais risonhas festas do Natal.

E eu tive como presentes e festas a vastidão do campo, entre a natureza solene e as grandes árvores revestidas de folhagens como de ilusões, mais vigorosas e verdadeiras do que as simbólicas árvores do Natal, porque naquelas corre a livre seiva impetuosa da força vegetativa que maravilhosamente desenvolve os troncos, faz infinitamente brotar a folha e o fruto.

Indo para o campo, como um pagão, farto da materialidade da forma prática da vida em cidade, — cidade fusca, pesada, cor de terra da Arábia, — eu simples, banalmente não fui contemplar, mudo, num êxtase muçulmano de dervixe, a natureza verde, rindo em tudo a luz, surpreendendo em tudo o aroma e cantando em tudo o colorido.

Não fui para consultar os sombrios monges dos troncos, para que eles me revelassem toda a evolução do mundo, que é, nativamente, em essência, a genuína, a clara evolução do amor.

Fui, para que em todos os ninhos das árvores desse campo, tão conhecido e por mim gozado na infância, os mesmos bicos de aves implumes eu visse, como outrora, abertos e trêmulos de ansiedade à aproximação maternal dos alimentos, pipilando, balbuciando as notas que mais tarde haveriam de encher o espaço de harmoniosos sons alados.

Fui, para que esses ninhos, vazios agora de pássaros, eu os encontrasse, como corações desabrochando em sonhos, derramados na tenra verdura campestre das ramagens.

As árvores, umas, figueiras e nogueiras, laranjeiras a que eu tanta vez subira e vira crivadas de gaturamos furta-cores, que ao sol tinham fugidios tons de arco-íris, são as mesmas de há bem vinte anos; e outras, viçosas e reluzentes de folhagem, numa exuberância de força, são desconhecidas para mim, novas e virginais habitantes que eu estranho ao enfrentar com elas, mas que entretanto adoro também porque continuam a viver na mesma amplidão fecunda do terreno onde a minha infância floriu, resplandeceu e cantou...

Assim um coração que ama na vida uma só mulher, não é de todo indiferente às outras mulheres virgens e formosas, que desconhece, mas que no entanto o perfumam com a esvoaçante graça de um sorriso e o fascinante enlevo de uma sedução passageira.

Os ninhos caíram dessas árvores amadas, se desfizeram, findaram. Emigraram já para longe os pássaros: chegou um dia a neve do tempo e enregelou-lhes as asas.

Morreram. Tal e qual o passado em mim, para sempre morreram.

Apenas resta em meio à nostalgia e desolação que me invadem, aquele imenso campo que me ensinou a sonhar e algumas árvores, já velhas, onde os ventos tantas canções e baladas desferiram.

Contudo, a esses que pelo Natal recebem ricas e suntuosas festas em deliciosos presentes, e parecem ficar profundamente satisfeitos e gloriosos, a esses nem mesmo eu de leve me posso comparar agora, — porque tenho nesta perfumosa e idolatrada recordação, o mais carinhoso, o mais casto e consolador presente de festas que o Natal me poderia trazer à comovida e espiritual alegria.

Em julho

CANTANTE SOL e cantante azul impregnado de frescura, de aroma dos campos, sonoro de alegria e trinados de ave!

Cantante sol e cantante azul de julho! Há agora na natureza um terrestre noivado de rosas brancas, nas manhãs frias, e um celeste noivado de estrelas brancas, pelas noites claras!

A natureza flori agora em rosas; é tudo um vasto, opulento rosal, como os rosais de Jerusalém, os rosais de Sião, numa pompa de rosas.

Ritmos de amor afinam as almas numa só esperança e num só desejo e as almas buscam o tépido, carinhoso aconchego dos ninhos.

Ardam, ardam no grande esplendor das paixões fecundantes, os corações que se amam; palpitem, sensibilizadas as fibras que se desejam, as carnes que se procuram, os organismos sãos, felizes e virgens que se completam.

Julho aí está, doirado e frio, luminoso, para fecundar a aurora desses sangues frementes, desses sangues vivazes.

Desflorem-se alvas grinaldas, esgarcem-se véus castos e, sob a púrpura ardente, sob a chama inflamada do luxurioso desejo, brote, surja mais tarde um demoninho louro ou moreno, que encha de encanto tudo, bulhento, garrulador de alacridante vivacidade de pássaro, vindo em festa, como este próprio julho.

E que tu, belo astro nobre das salas, divinizado na formosura, alta e irradiai, guardes ainda para mim, por este e por outros julhos, a mirra pura e real dos teus beijos, dentre a melancolia monástica, a dolência meiga dos teus olhos de monja.

Guarda para mim, sempre, como infinita, indelével primavera, esses beijos imaculados, e, eu, gloriosamente, das profundas catedrais iluminadas onde celebro o culto deste Ideal, farei brilhar, faiscar ao sol, sobre os polidos zimbórios elevados, a bandeira vermelha e a negra cruz do Amor!

Símbolo

EM NORTE AMÉRICA, contam as crônicas, um terrível desastre ocorreu outrora nas costas da Virgínia.

Sobrevindo ali tremenda e trovejante borrasca, como as que tragicamente abalam aquelas costas, deu-se, além de imensos naufrágios no mar, da inundação da cidade de Norfolk, um dos mais destruidores e surpreendentes incêndios.

No momento em que um trem expresso, repleto de viajantes, entrava nos campos de Dakota, uma faísca elétrica caiu sobre os campos, inflamando-os, acendendo neles um estranho, infernal esplendor dantesco.

Era mister atravessar a zona incendiada; porém a zona era muito mais extensa do que na realidade se julgava.

O trem, então, teve de parar, decidindo-se, fatalmente, que recuaria. Mas era muito tarde já.

Para trás o incêndio ganhara os trilhos; para diante alastrava cada vez mais, devastador, horrível, em tentáculos de fogo.

A morte, morte aflitiva, angustiosa, tornara-se, decerto, inevitável.

Os viajantes, batidos, acossados de pânico, lívidos, ansiosos, como se acabassem de ser desenterrados vivos, apearam-se, como visões espectrais, na mudez sinistra dos pavores absolutos, tentando salvar-se, alcançar o ar, a frescura, a livre expansão dos pulmões quase asfixiados.

Em vão! em vão!

Todos os passageiros tiveram de voltar ao trem, queimados, com as roupas em desordem, numa confusão de derrota.

Então, aí, o terror tornou-se indescritível.

Homens e mulheres, num desespero, num dilaceramento profundo, atravessavam desgrenhados, com aspecto selvagem, por entre o fumo que subia em grossos rolos, em novelos densos, empastados, como longas e largas, espessas telas negras suspensas no ar...

Aquilo lembrava avalanche humana, delirante e enorme, quase louca, através de campos incendiados.

Modelada em bronze, numa ampla gravura, essa palpitante tragédia daria ao genial Doré uma vasta página assombrosa, como aquelas em que ele pinta, a sangue, a treva e a sol, exércitos armipotentes, d'armas duras de aço, e báratros avérnicos, formidandos, onde arrojam-se capros, peludos, cornoides e corpulentos satanases.

Naquela assoberbante catástrofe de chamas tornava-se impossível respirar.

Dentro, no trem, na vasta galeria dos vagões, silhouettes confusas de cabeças e braços moviam-se, agitavam-se agora, numa ânsia suprema, na cruciante expressão dos enforcados.

Um esforço de maravilhosa coragem, um verdadeiro prodígio de resolução, imediatamente, e talvez ficassem salvos!

Essa coragem, essa resolução surgiu enfim, triunfal, na alegre, na rumorosa esperança, no poderoso sentimento instintivo da conservação da vida, como um fio d'água brotando, fluindo de repente da avidez de uma rocha e dessedentando bocas ardentes e ressequidas que andassem sequiosas, sob sóis tórridos, por torvos e escalvados desertos.

Era forçoso caminhar adiante. Então, o maquinista deu todo o vapor à máquina.

E durante alguns segundos o trem, colossal, como um formidável animal pré-histórico, atravessou, numa velocidade vertiginosa, elétrica, os campos de Dakota.

Afinal, decorridos esses pungentes, torturantes segundos, o trem franqueou o círculo de fogo, ganhando o terreno livre até onde o incêndio não alastrara.

Já era tempo, porque os vagões começavam a arder e os viajantes estavam desfalecidos de asfixia...

*

O nervosa mulher glacial e satânica, Lésbia pálida e sarcástica, por quem, no entanto, clamo e procuro nas horas da concentração do silêncio!

Como esse aterrador incêndio nos campos de Dakota, também um outro incêndio, mais funesto, mais impetuoso e mortal, absorveu-me, extinguiu-me dolorosamente o coração.

Como um glorioso viajante, um deus original coroado de pâmpanos, ele embarcara um dia numa locomotiva iluminada, florida de rosas e doirada como as galeras de Cleópatra.

Partira alegre e feliz, a rir e a cantar, na carreira vertiginosa da vida, às conquistas triunfais do Amor, indo afinal morrer por entre as chamas altas e deslumbrantes do Sonho.

O batizado
(Desterro)

Ao fulgurante talento de Horácio de Carvalho

2° dedicatória: a Gonzaga Duque-Estrada

POR UMA MANHÃ de aromas, cheia de rosas e ouro, em que voavam pombos em voos triangulares ao alto dos beirais das casas, e os pássaros trinavam festivalmente nos arvoredos ramosos, um rancho alegre de lavradores descia, em caminho da igreja do sítio e no ruído vivaz de coloridas conversas, risonhas e cantadas, a íngreme ladeira barrenta daqueles terrenos agrestes, mais para o lado em que o mar freme e se encrespa à chicotada brusca dos ventos, nas brancas praias caladas.

Era um rancho em descanso e em festa, um tanto livre dos amanhos das terras e do longo mourejar dos dias passados, que levava a batizar um filho do seu amor, o gorducho pimpolho rosado das lavouras do coração, e que lá ia, sorrindo na ternura das delicadas carnes infantis, cheiroso, perfumado de trevo, contente e fresco como um rosal, de linda touca de fitas escarlates esvoaçantes na aragem, envolto numa toalha de trabalhadas rendas vistosas, sobre os orgulhosos braços polpudos da madrinha, rica rapariga de sol, radiante como um altar em maio, florente como trigais.

O dulçoroso encanto dessa abençoada gente, passando ali, sob o raro calmo damasco do Azul, através de campos, dava à paisagem uma leve graça pitoresca de pintura aldeã pastoril, ou lembrava essa tão séria vida holandesa disciplinar e feliz de outrora, em que as pessoas, só com terem um fértil pedaço de pasto vivo e o bucolismo e o idílio de alguns bois amenizadamente a gozarem, ou a viçosa horta dentro da simpleza campestre de cercados verdes, eram, para todo o sempre, consoladamente ditosas e cristãs!

Na margem dos caminhos alvoroçados de rumor e de alacridade vibrante da luz, em murmurosas fontes cristalinas, cujos finos veios de prata corriam nitidamente estiados, rudes mulheres lavadeiras tagarelavam, batendo a roupa na pedra, com um estalo seco, à proporção que interminantemente desenrolavam os picantes episódios de amor e as fundas desgraças negras daquele sítio, que se desfolhavam e sumiam na correnteza espumante e túrgida das águas.

O rancho dos lavradores tomava agora por um comprido atalho, fazendo curva, coleando, até chegar a uma ampla várzea, onde, no tom alvo de uma visão de balada, ficava a igrejinha, muda e clara no dia, como um símbolo sereno de religião e de fé, na crença e na primitiva paz vegetal da natureza.

Subiam já, sorrindo e palrando, o curto adro da igreja e entravam na alegria comunicativa do ato que iam realizar — pura e cândida alegria essa! tão pura e tão cândida mesmo como a infância que floria no colo da madrinha, — quase mais batizada também pela luz que a acariciava e doirava então do que pelas católicas águas lustrais que lhe deveriam apostolicamente banhar a virginal cabeça pequenina.

À volta, após o batizado, na humildade rústica do lar, os chorados repinicados da viola, entre cantigas esfuziadas, no rosto meigo da criança, aos padrinhos, aos pais, num tropear jubiloso e fremente, e num alentado e aberto gozo tranquilo de felicidade obtida sem queixas, sem invejas, sem cuidados e sem remorsos, na pobreza calma e sagrada das suas almas chãs, ante a lembrança do Senhor do Bonfim e da cera que a Maricas prometera o ano passado para que aquele bem tão querido, agora alvorecido no mundo, nascesse e se batizasse e crescesse sem inales, sem dores, são, saudável como os campos que se andavam sachando e mondando por tantos verões amados.

Não há nem doces nem vinho.

Tão somente, mais quase à noite, no meio dos sonoros guizos dos grilos melancolicamente nas folhagens mudas de sombra, os ocasos em chamas, tão vermelhos como se houvessem passado nas nuvens uma enorme esponja grossa embebida e encharcada em sangue, são a acesa púrpura do vinho com que estas serenas gentes dos sítios apenas se confortam e aquecem, nas suas festas, dos frios invernos da vida.

Doença psíquica

QUE MAL VOS FEZ A VIDA, ó serenos filósofos, para a encherdes do mais negro Pessimismo, como de uma treva noturna e dolorosa e de um rio de sangue eternamente caudaloso?!

Para ti, Schopenhauer, a existência é a materialidade, o alimento, para ti, é apenas a necessidade de prevalecer na luta, a força para a função dos órgãos nervosos, a bem de que se propague a espécie; — enquanto que para outros, ó sombrios monges do Pensamento, o alimento é a lascívia, a lascívia da Carne, que fazia, desde os romanos, a carne viçosa e rica.

Basta, para ti, que o estômago metodicamente funcione, na normalidade cronométrica de um relógio, a fim de que tenhas a positiva segurança de que subsiste aos vermes e à seca dissecação dos fenômenos da natureza.

No entanto, para outros, o sentimento palatal educado, gozando o requinte das iguarias faustosas, de incomparáveis gourmandises, as vaporosas luminosidades de dourados vinhos, apenas, bastam para que os sonhos sejam felizes e o sorriso seja alegre.

Para esses, os alimentos, como no Oriente o fumo, têm insubstituíveis encantos, voluptuosas graças de viver, que afilam, acendem a imaginação, fazem abrir e flamejar por todos os pontos do mundo, infinitamente, os mais inauditos sóis do espírito.

Neles, é um fluido, um alado perfume de úmidas bocas purpúreas de rosa, de níveos colos cor de camélia, de veludosos seios, macios como a alva plumagem fresca de um pássaro real; um amoroso ansiar de etéreos olhos de estrelas, atravessando em visão, claros e pesados de luz, com o brilho aceso e ardente de preciosas e raras pedrarias, a quase extinta noite remota das recordações.

Para ti, Schopenhauer, os seres orgânicos não têm senão o caráter essencial da consciência vital e representam no mundo, funcionalmente, o mesmo valor dos elementos inorgânicos, químicos e físicos da terra.

Assim, a pedra, o fogo, o ar, a água, são tantas forças complexas da vida como o homem — ou labore pelo psiquismo, num século de livros, sob o complicado aparelho da ciência ou, simplesmente, ame, seja fator da evolução humana, dando a forma do Amor ao princípio genesíaco da sensualidade.

Por isso, ó egrégio, magnificente filósofo alemão, eu, que no entanto sinto e percebo a sua radiante e clara verdade, que brilha e fere como as arestas agudas de um cristal, — verdade aceita pelos homens sob a nebulosa denominação de Pessimismo, — eu tenho tédio, profundo, supremo, e inesgotável tédio, vendo que a vida orgânica é toda ela adstrita à matéria, e que apenas, para ser feliz, nada mais é preciso do que ter a estrutura de um forte e belo animal, premunido de garras para o assalto, de dentes para devorar e com a regular circulação do sangue para o equilíbrio do coração e do cérebro.

Policromia

A Mauricio Jubim

PINTAR A COR sangrenta da vida, a cor gelada da morte; dizer a dor dos tons, todo o cromatismo das tintas interpretar, à maneira nova, fresca, original, palpitante, de forma que os pincéis comuniquem com veemência uma alma à tela, que os coloridos vivam e cantem na trinalagem vibrante de pássaros matutinos.

Exprimir as tonalidades quentes e possantes, os rubores humanos, o purpurejamento dos sangues, com tintas acres e com tintas delicadas, numa expressão forte de luxúria ou numa branda nuance de carne virginal e saudável, onde a aurora das seivas puras resplende.

Pintar toda a pungência latente de uma Cabeça triunfante de vida, perfumada de graça, idealizada por algum sonho enevoado; dar-lhe, à feição da tua sensibilidade artística, linhas vagas, fugidias, linhas angélicas e pulcras, firme e fundo cavando-lhe a negro ou a louro a onda torrencial dos cabelos, dando-lhe luz estrelar aos olhos, sangrando-lhe álacre a massa tenra dos lábios, traçando-lhe a meia lua dos seios lácteos — gerando-a, enfim, com tintas dúcteis, de modo que a cabeça surja maravilhosamente da tela, te fascine, te deslumbre e tu a ames, como se ela possuísse o recôndito sentimento chamejante da Vida.

E, assim, boca, olhos, cabelos, nariz, seios e faces, pintar a claro, na limpidez d'ouro da luz, banhando a tela de luz, inundando-a de luz, descrevendo as curvas da primorosa cabeça com o pincel encharcado em sol, no clarão sideral de uma luz ampla, larga, alastrante...

Com esse fulgor de execução, sem os empirismos clássicos, com toda a expansão da liberdade de sentir e de ver, de traçar, de apanhar os efeitos, de aparelhar as tintas, é que te fora prodigioso pintar, dum golpe altivo de concepção, fora da tacanhez dos moldes, já célebres embora, já afamados e já universais, mas por isso mesmo acadêmicos, arcaicos, sem o grito rubro das grandes revoltas, o clamor agudo das naturezas inquietas que lutam para significarem, à parte das confusões e leis preestabelecidas, a seleção das faculdades estéticas.

Recluso do ideal, enclausurado, sombrio e mudo, alvoroça-te o desejo vertiginoso de pintar intenso, de pintar singular, numa virgindade de cores, com toda a escala do íris, com a gama variada do alvorecer e a indizível cor abstrata de tudo aquilo que te sensibiliza.

Tons violáceos e espiritualizados de crepúsculos ou tons brancos de manhãs diáfanas, com sonoridade de trompa de caça, branca e fresca também na claridade matinal; sensações rasadas de carnes impolutas, cheirosas a flor de laranjeira e a leite, excitam-te a pintar miraculosamente, a distribuir na palheta tintas inexploradas e imortais e passá-las e filtrá-las para a tela, na execução da misteriosa Cabeça, a tua simbólica ansiedade mais viva, mais vibrante, através dessa fecunda e fremente paixão da Arte — sempre flamante, em labareda febril e alta, aberta na tua alma brava e branca como uma sagrada umbela rutilante e vermelha.

Um movimento nervoso, um impulso decisivo e vitorioso do teu pincel imaginativo, donde as cores jorram como um turbilhonante enxame de colibris e de borboletas iriadas voejando e a Cabeça, em que meditas e te alagas sonhadoramente em contemplações, emergirá da tela, lavada em tons puros, nascida do cristal virgem da Originalidade, sem mácula e sem defeito, numa harmonia de toques deliciosos, imprevistos, vivendo nas tintas castas, viçosas e cintilantes que lembrem a irradiação do teu sangue primaveril, forte, sadio, latejando nas veias de ricos rubis de glóbulos abundantes.

Fantasias finas, como silfos aéreos, te fecundarão a palheta com pólenes radiantes; e em torno a esse símbolo das tuas emoções, com que andas ainda alimentando a imaginação, como um produto de idealizados requintes, visões em variadas formas de cabeças liriais circularão anelantes e vaporosas, leves nas infinitas brancuras do colorido inefável, floridas de peregrino encanto, consteladas por esse Amor dominante da Arte que tudo diviniza e transfigura, cada uma delas mais nobre, mais bela e mais maravilhosa, rindo, como ninfas na frescura açucenal de vergéis, dentre a vitalidade, a força juvenil, a impulsiva espontaneidade nervosa da coloração.

Tintas alvas de lírios e de espumas para os cetins e veludos da epiderme; tintas fluidas e secretas para dar o deslumbramento aos olhos; tintas voluptuosas, purpurinadas, para a expressão fascinante da boca, para o inaudito e cristalino borbulhar do riso; tintas sutis, flexíveis, etéreas, para as curvas arredondadas da face, para as linhas cinzeladas do busto a Cabeça que idealizas tanto raiará, alvorecerá da tela — tão viva e virginal como a sensibilidade do teu temperamento inquieto, do teu ser errante de beduíno que vaga e cisma na planície oriental infinita.

Flor sentimental

Prodigioso Santa Sanctorum vedado aos Infiéis, ó mistério sutil da Sensibilidade, envolve-me nos delicados azuis, nas diluências de magnólias maceradas dos teus diáfanos luares, vibra-me os vagos e finos scherzos dos teus stradivarius amargurados...

FLOR SENTIMENTAL, que te despojaste, na Morte, da carne maravilhosa, perfumadamente tecida de jasmins e lírios.

Ó Flor sentimental, que os grandes e fervorosos beijos de uma paixão sacramentada, ungida nas profundas lágrimas, purificaram para sempre!

Ó Flor sentimental que as imensas caudais de sangue das chagas do sofrimento, da dilaceração, da angústia martirizante, outrora tanto e tão intensamente orvalharam!

Se é que te podes recompor ainda, ao menos uma vez em sonhos, das essências imaculadas do teu ser delicado, angélico, surge, aparece e vem trazer a esta existência que se debate, que anseia nos círculos titânicos das inquisitoriais inclemências, o segredo da crença, que tu levaste.

Dos cibórios d'ouro dos Astros, vem, sidéreo, Sirius sagrado, Vésper clara, clara Vésper diamantina e matutina e traz-me essa hóstia magnolial e rara, lá dos altos cibórios d'ouro dos Astros...

Se é verdade que agora reinas triunfalmente, por entre chamas de luz azul, nas serenas Espiritualidades celestes; se bem certo é, sidério Sirius Sagrado, clara, cândida Vésper diamantina e matutina, que te exilaste lá, cismativa, solitária, ó fria e fina Flor sentimental!, dentre as pálidas, lânguidas, mortas auréolas de luar da Eternidade, ressurge, vem, flameja por esses níveos caminhos constelados, na tua meiga, terna harmonia de claridade e saudade e nesse breve encanto alado do teu perfil de forma hasteal de letra siríaca.

Traz contigo velhas recordações impalpáveis, doces e tépidos abraços da adolescência, — a alegria aleluial de cânticos na frescura nova das primaveras louras, a flórea suavidade do oásis virgem e cor-de-rosa da Infância, todo esse incomparável Amor que tu levaste para além contigo.

Ah! como eu vos recordo, Sombras, como eu vos lembro, Fantasmas, como eu vos evoco, Espectros, como eu me revolvo em ânsias, em palpitações, em êxtase, no infindável deserto das Noites sensibilizantes dessas agora tão longínquas e enregeladas reminiscências...

Como eu me despenho, choroso, taciturno, só, absurdamente só, no silêncio e no esquecimento, negras, lôbregas e abismadoras galerias que vão dar aos subterrâneos da loucura, foragido dos flagelados clamores humanos, na desolação e empoeirado desalinho de derrotado ovante guerreiro de cem batalhas heroicas, pela primeira vez ferido e insolitamente vencido ou na melancolia decadente do ideólogo, imaginoso demônio inclementemente apedrejado de Anátemas!

Ó tristeza dos momentos lívidos! Vácuos amargos desses longos, lentos poentes nublados, ciliciados de ansiedade, de aflitivas visões de dúvida, e onde o Espírito erra, ondula, flutua por entre névoas e surdinas...

Sentimento indefinido, inquieto, insatisfeito, que turvas e agitas e convulsionas de tumultos a alma, num torvo, vendavalesco rodomoinho de ardente e atordoante simum!...

O algidez fulminante, aterradora, mortal, de tudo o que finda, leve, vaporoso, vago, nas linhas sutis, fugidias, da infinita lembrança!

O antiga velhice das Mágoas! Ó dor de esquecer! Ó dor de desesperar e descrer! Como toda essa música negra, toda essa mórbida sinfonia nervosa voluptuosamente me punge...

Velho

PELAS INFINITAS estradas do tempo, a fora, ao sol, segue, mudo, soturnamente silencioso, esse frio deserto ambulante, a que alguns chamam Velho e os outros chamam apenas Desilusão.

Hirto, engelhado, com o seu alforje de peregrino, a sua rude veste de estamenha, o seu bordão de jornada, e os pés nus, caminha, deserto frio — tão vago, tão tateante, tão verdadeiramente sombra, que dir-se-ia que é o vácuo, o intangível, que caminha...

Longas, profundas barbas brancas alvejam-lhe no rosto, dando-lhe um ar de austeridade profética, evocando as severas e legendárias figuras dos Patriarcados bíblicos.

Na sua fronte vasta sulcos imensos formam como que veias dolorosas por onde pensamentos amargos percorrem, lembranças angustiantes peregrinando passam...

Certo, esse Velho, assim sugestivo e belo, viera dos Mitos, do fundo das odisseias gregas e ouvira d'alto cantar nos finos céus d'ouro da Hélade a alma augusta e mediterrânea de Homero, sentira as linhas doces da Grécia antiga e mergulhara sereno no seio branco e de rosas do Olimpo dos deuses priscos.

Nenhum manto real o cobria, nenhum laurel o coroava — nada parecia revelar, tangivelmente, os seus troféus de onipotência.

No entanto, pelos vestígios supremos, deixados, não só nas rugas da sua face, não só na tristeza e contemplatividade ascética dos seus olhos e até nos caracteres abstratos da Angústia que lhe singularizava o aspecto, como também em todo o seu vulto fascinante, dominativo e grave, percebia-se o poder e a clarividência transcendental de um Predestinado, de um Inspirado, de um deus, perfeito e sagrado deus concebido da Dor, alimentado e envelhecido na Dor.

Certo, era ele, o Poderoso da Dor, aquele a quem a Dor avassalara mas não vencera, a quem a Dor ungira mas não execrara nem banalizara.

Maior, talvez um século maior com o contacto espiritualizante dos Sofrimentos, era efetivamente agora que ele existia, como a própria consubstanciação da Dor.

Mas, nos abismos fundos dos seus olhos velados, amortalhados de saudade, vivos e vendo e parecendo, no entanto, cegos, um sonho impenetrável esvoaça muito de leve, e de muito leve surge, sai, em forma de silfo, de dentro dos olhos amortalhados do Velho e põe-se então a rondar, a rondar em torno dele, numa fascinação, com as suas asas diáfanas e fosforescentes de tentador demônio...

E o Velho, subitamente deslumbrado pela fosforescência das asas, das asas diáfanas de silfo, tem estremecimentos convulsivos; e a sua face, então, toma a expressão singularíssima, de tal modo fica nesse momento transfigurada, que até como que se lhe aprofundam, que se lhe cavam mais as rugas...

Também logo, com a rapidez própria dos sonhos, a fosforescente Visão desaparece... E o Velho, taciturno e trágico, parecendo concentrar em si toda a eloquência simbólica do Eclesiastes, como que lança na terra a condenação suprema do Juízo Final, tendo, porém, na face agora imensamente lívida, duro rictus sarcástico de ceticismo voltaireano...

Mas, ah! quem poderia penetrar nos labirintos daquela existência; quem poderia saber os vergéis, campos, vales cheirosos, enflorados de Ilusão, onde essa alma viveu, floresceu e gozou; os pântanos esverdeados, de concupiscência animal ou de tédio desesperado, onde ela mergulhou vencida; as alvejantes e ermas encruzilhadas de caminhos onde a Imagem desolada dos seus Destinos errou, vagueou e gemeu exausta, fatigada, batida ao largo dos temporais atroantes e tremendos da Vida!

Todos os que o viam passar, que lhe admiravam a enfibratura óssea, os filamentos nervosos das grandes rugas; que experimentavam a sensação quase de um pavor abstrato de respeito divino que a sua patriarcal figura inspirava, pareciam inquiri-lo, fazer-lhe mil curiosas e significativas perguntas: — Se tinha já cem anos, que saudades, que recordações trouxera na alma, que pão fresco no alforje; que jornadas fizera, e se cansara muito, nas longas e pedregosas estradas áridas; se tivera fome através os pomposos banquetes à Luculo das altas cidades; se tivera frio sob as cruas neves inclementes e fulgurantes; se sentira sede de água, por tórridos e languescentes calores, ou se sentira sede insaciável de desejos ante o pecado de uns olhos.

Solenemente grande pela Dor, fazia lembrar, como sentimento de religiosidade que dele vinha, todas as magnificências do Elevado e do Sagrado.

Parecia, então, que aquela incomparável amargura de Doloroso ganhava proporções de matéria inerte, se condensava, concretizava em blocos de granito e mármore; que aquela sublimidade de mistérios de secular Velhice tomava formas estáveis, solidificadas com raízes infinitas na Terra, de arquiteturas prodigiosas de catedrais, de igrejas góticas, de basílicas, de templos vetustos.

E pelo sentimento de divinização que ele inspirava, os olhos absortos, extasiados imaginosamente, viam que essa Dor ia se transmutando e avultando colossalmente como organismo físico, alargando, alargando, alargando para o espaço, na vastidão de um bojo enorme, arredondando pomposamente em cúpulas estreladas, em zimbórios de bronze, em torres formidáveis, crescendo, crescendo, ficando então monstruosamente de pé na amplidão alta, a majestade eterna da Basílica da Dor — ao mesmo tempo de venerações e sacrilégios, igualmente divina e profanada!

Passados ermos, remotas antiguidades, eram extintas, recordando lentos, longos desânimos; ansiedades, desesperos, impaciências e saudades, eram como que a melancólica penumbra da imensa nave dessa Basílica.

E as paixões atormentadas, os ímpetos lascivos, os desejos delirantes e em grita, as deprecações e blasfêmias, as raivas rugidoras, os ódios tempestuosos, eram então as vozes clamantes e plangentes dos violoncelos, no coro, e os profundos graves chorosos, de soluços pungentes e atormentados, dos órgãos e cantochão.

Alvoroços másculos e sãos de juventude, heroísmos alegres e alados de esperança, bondade bizarra e florescente, galhardias, lhanezas afetivas, pensamentos límpidos, castos, de brancuras virgens, ternuras angelicais de sonho, eram, enfim, símbolos eucarísticos, pão e vinho claros de comunhões puras.

Todo o espírito do Velho se afinava por esse acorde, a harmonia das grandes Intuições e Criações evangélicas o consagrava e santificava deus — harmonia que se elevava para ele numa auréola de bênção elísia...

*

A natureza, em redor, calma, repousada, tranquila, penetrada dos sentimentos imponderáveis do Absoluto, ampliava-se numa expansibilidade de vegetações que pareciam quiméricas, numa concentrativa mudez de forças originais.

Para os largos e longes do vasto e verde mar melancólico, alguns barcos singravam, dentre os espreguiçamentos voluptuosos da luz, no leve ritmo da graça banzeira de bamboleantes bailadeiras bailando...

E a figura profética do Velho, com a alva cabeça nua, as longas barbas brancas ondulando aos ventos gementes, ia vivamente desenhada no fundo vago da luz, como a concepção extraordinariamente soberana, grandiosa, dos egrégios Desígnios, a caminho das jornadas eternas, pelas peregrinações perpétuas, pelas estradas sem termo, pelos indefiníveis desertos sem fim...

Vai, Velho! Clarão frio, clarão morto! Tu que trazes contigo Agonias e Recordações seculares, ríspidas alvas, dos Fatalismos tremendos, eloquentes, épicos, rasgando, ferindo, chagando, ensanguentando mortalmente os pés.

Vai para o Esquecimento e para o Nada, calado, mudo, fechado no sepulcro do teu segredo místico, com os extremos e expressivos silêncios da clausura da tu'alma, levando sob a umbela dos Astros o Sacramento eucarístico da tua Dor.

Vai! Vai! Some-te, perde-te, mergulha soturnamente, aprofundadamente, nas estranhas sombras, nas estranhas sombras, nas estranhas sombras...

Decaído

ARREBATADO NUM VIOLENTO RODOMOINHO, num verdadeiro ciclone de paixões, o que esperas, Tu, Sátiro tricórnio e bufo, que resfolegas e inchas de pantagruelismo e luxúria — tricórnio como trifloro, — com três hirtos cardos agudos?!

O gozo das mórbidas concupiscências tornou para a tua idiossincrasia afetada do Infinito, aspectos soturnos e miríficos, efeitos mais do que genuinamente capros, mais do que genitalmente eróticos, duma insânia ingênita e transcendental de lascívia; e isso de tal forma superssexual intensa, que és apenas um simples Sátiro tricórnio e bufo e não és mais Diabo mago e sulfúreo, nem radiante belo e horrível Arcanjo de maravilhosas asas colossais e flamipotentes, de fundas envergaduras a ouro fosco e bronze, mas um Satanás suíno e gongórico, um Sileno senil tatuado das equimoses do Vício, tremendamente decaído nos abismos torvos...

Êxtases, indefinidos espasmos estéticos, que espiritualizavam outrora, em eras primitivas, os teus estranhos olhos d'águia, cheios de um fulgor de epopeias, operaram nesse maquiavélico, complicado organismo, evoluções, metamorfoses, profundas transfigurações; e a tua cabeça titânica, satânica, cortada, detalhada fundo nas auréolas negras das supremas Blasfêmias e dos Anátemas, cantou e radiou vitória, triunfou milenarmente das outras frívolas, desfantasiadas cabeças.

Era a conquista real do Sonho, em que a tua cauda espiralante e magnética ia traçando caracteres simbólicos e feiticeiros e em que os teus cornos tetros e sibilinos, expressivamente assinalados como a coroa genial e hostil da Rebelião, davam o ritmo, com a cauda espiralante e magnética, das divinas sinfonias da Imaginação.

Porque, Tu, criador legendário das Ideogenias! velho Ideólogo imortal!, desde logo foste o deus uno e trino, o Todo-Poderoso do Sonho, fascinando almas e almas, almas e almas arrastando-as, frementes, aos teus lagos noturnos e chamejados, originalmente brotando da condensação de bilhões de noites sem estrelas, porque já eram, abstratamente, esses chamejados lagos noturnos, estrelados de Ideal.

E os teus cornos tetros e sibilinos, dominando amplidões, esgarçavam, rasgavam, defloravam os diáfanos véus nevoentos das Nuvens, onde o segredo dos viços e germens ocultos, das virgindades brancas, das castidades tenras, das originalidades puras, dormia, mumiamente, sonos seculares e ignaros.

E esse segredo e mistério que dormiam perpétuos sonos, num dormir infinito de fenômenos, Tu, com a significativa mágica do Ideal, fizeste para sempre acordar e circular e morrer e febricitar de vertigens e alucinações a Terra.

E esse abençoado e prodigioso bem fecundou admiravelmente a terra, semeou constelações nos mares, tocou de auroras os temperamentos, floresceu de rosas, de madressilvas e lírios, as leves, as sutis espiritualidades humanas.

Uma seiva do Desconhecido errou e cintilou por toda a parte, inundou tudo; as púrpuras palpitantes de um novo Idealismo se desdobraram como firmamentos ou majestosos mediterrâneos.

Mas hoje, que o teu mundanal e soberano domínio é bem raro já, que todo o esplendor das tuas fiavas, flamejantes glórias é já remotamente e olvidadamente passado, não és mais o excelso, o preclaro Sátiro fino, o Diabo prófugo e ágil, aventureiro e sábio, que notivagou em gôndolas por Veneza, nos estrelados idílios; que cantou outrora baladas aos astros aristocráticos, com o seu bandolim de luar e o seu perfil mais aristocrático ainda; que apaixonou e languesceu as monjas com suas curiosas lendas enevoadas e rendilhadas; que foi o Gentil-Homem da Aventura e da Graça nas cortes de Luís Quinze; que dourou e enflorou toda a Grécia e fecundou de Poesia e Arte o antigo Inferno mítico.

Arrebatado num violento rodomoinho, num verdadeiro ciclone de paixões, és agora o Sátiro tricórnio e bufo, o membralhudo e velho histrião devasso, que resfolegas e inchas de pantagruelismo e luxúria.

Não és mais o delicado deus artista, que eu muitas vezes vi, através das brumas azuladas da fantasia, pelos contemplativos crepúsculos da Alemanha, cismando, envolto num resplendor de imponderáveis saudades e nostalgias, tocado dos supremos desdéns, sentado junto aos pórticos medievais com as alongadas, esguias pernas mefistofélicas fidalgamente cruzadas em x.

E tu perpetuas agora, através da universal harmonia, no equilíbrio sempiterno, Belzebu obeso e bonzo, inchado de concupiscência e tédio, ignobilmente obsceno, grotesco e esfingético, sonâmbulo de melancolias, tragicamente triste, atirado para um canto obscuro das Idades, como a truanesca e monstruosa figura orgíaca, báquica e pantagruélica do Vício!

Fugitivo sonho

POUCO SENTIRIA eu que o teu olhar fulgisse e a tua voz vibrasse, se tu não fosses a loura e sugestiva Imagem que vi em sonhos e ainda hoje entre os nimbos da memória me aparece, terna como as baladas antigas.

Eu não digo que seja o luzido e bizarro cavaleiro medieval de nobre coturno e cinzelada espada de aço polido, retinindo e fulgindo, que te aguarde na rendilhada sala gótica, ou nos pátios de mármore, ou nos balcões em flor, para fugirmos, alucinados e errantes, por alguma escada de seda, nalgum nitrente corcel.

Tu és bem loura e bem fria para os medievos arrojos, para esses aventurosos jogos florais, e eu sou, talvez, em demasia tímido para arriscar-me a tais assaltos, que romanticamente e naturalmente teriam de ser ao luar, na vaporosa e velada voluptuosidade da lua, como nesses lascivos jardins do Capuleto aquela sonhadora Julieta e aquele pálido Romeu arrulhando em abraços e beijos.

Mas tu cantaste. Cantaste, e o que eu tinha já morto nas recordações ressurgiu, enfim, nesse canto. Tu cantaste e eu, enfim, revivi e resplandeci para o Amor.

A tua garganta, fina, aristocrática, fazia voar, como um pássaro branco, uma voz alada, cuja harmoniosa sonoridade penetrava, escorria pelo meu ser como um vago líquido untuoso...

E eu parecia diluir-me em essência, em leves eflúvios, nos gorjeios, nos límpidos trinados, nos apaixonados, impetuosos voos altos da tua voz — pura, clara, clara fresca e aberta no ar — amplo firmamento estrelado desenrolando por sobre mim odorante dilúvio de luar, ou como um pássaro branco e estranho que por ali surgisse, abrisse, ruflasse, batesse fremente as asas para além dos etéreos seios virgens das empíreas regiões...

Tu cantaste, trinaste, desfolhaste em rosas, fizeste esvoaçar em abelhas e borboletas radiantes todas as músicas, todas as emotivas canções, todas as barcarolas e baladas em que há névoas e lágrimas e essas lágrimas — tanta era a melodiosa tonalidade da tua voz — quase que as sentia eu passar, nítidas, cristalinas, através da transparência do canto que constelava sonoramente o ar como um luminoso tecido de finos fios melodiosos.

E, enquanto, dessa forma, em requinte, funcionava em mim o extasiado sentimento, o teu olhar fulgia e a tua voz vibrava, vibrava, vibrava infinitamente, num esplendor harmonioso e claro, fazendo evocar a expressão feérica de uma lua muito branca, do alto cantando sonoridades de prata, subindo céus acima, astros acima, por legiões luminosas e gloriosas de águias, cantando...

Formas e coloridos

A abelha

NAQUELE DIA a industriosa abelha iriada, como surgisse a manhã num fulgurante pó branco de neblinas e ela fosse desferir o voo até à colmeia onde trabalhava, nos quentes serões, com outras companheiras, perdeu-se em caminho, entre o nevoeiro, como se a cegasse de repente ali aquela alva irradiação matinal.

Contudo, animada por uma chama intensa e viva, e que outra cousa não era mais do que o amor à carinhosa colmeia, tentava sempre romper o nevoeiro, ir através da bruma espessa, penetrar nela num arrojo mais de voo, fazendo um pequenino orifício por onde pudesse atravessar, feliz e gloriosamente, o seu gentil organismo diminuto e alado.

Mas em vão! A cada esforço empregado em distender para a frente as asas débeis, a cada ímpeto resoluto, a cada impulso tenaz, parecia que a neblina se obstinava em condensar-se, em intensificar-se mais; e estava esta lua já assim há tempo continuada resultando talvez num triste perigo para o volatilizado ser microscópico e sonoro, quando, finalmente, num golpe de luz — o sol irrompeu, surgiu, subiu festivo e triunfoso para o alto, como um redondo cano de ouro cheio de molhos inflamados de loiras espigas ardendo.

Perante o brusco emergir flamejante do sol a rápida (...) abelha mais ainda se entonteceu e deslumbrou então; e tanto se deslumbrou e entonteceu que jamais conseguiu vencer a fina gaze diáfana, que, agora, com o súbito clarão já se ia esvaindo no ar...

E era inefável, deliciava entretanto ver a abelha presa no éter, sem poder caminhar, sem poder voar, suspensa no azul e doirada pelo sol, como uma leve gota que o sol deixasse pender no espaço, caída das suas rutilantes pedrarias de raios, e librada apenas nos imperceptíveis fios sutis do fluido luminoso.

Ah! se a abelha pudesse enviar recado à colmeia, às companheiras, que a viessem tirar bem depressa dali!

Mas quem sabia onde era a colmeia?

Os reis, que habitam, lá acima, os claros palácios de luxo, entre soberanos confortos sedosos? Os ministros que passam lá embaixo no culto rumor da cidade, fechados no seu coupé, lendo jornais, como dentro de um rodante e tépido gabinete de estudo?

A rapariga do campo, que através da frescura dos fenos leva o gado a pastar na grama vasta e viçosa que cintila e fuma pelas manhãs? Quem sabia onde era a colmeia?!

Ninguém o saberia decerto! E essa tênue e voejante abelha, embora solta da trama da luz e não obstante claramente saber para que lados ficava a colmeia, erraria em vão pelos vales cheirosos, perdida para todos os pontos daqueles virgens, castos vergéis, — porque esse tempo gasto a vaguear e a vacilar na neblina a cobriria de receio de comparecer, mais uma vez só que fosse, à presença das outras, sem que sentisse nos seus dormentes e enxameados zumbidos a mais acusadora censura e a queixa mais penetrante às horas que, no exigente pensar egoísta e caprichoso das companheiras, ela andara à toa no campo em flor, amando e sugando alguma pétala, em vez de ir por essa radiosa manhã, para o trabalho, abrir, no favo de mel, as curiosidades artísticas aos arabescos filigranados da efervescente colmeia.

Também, ó imaginária criatura amada! a peregrina abelha do meu sonho, voando um dia para a vida, foi logo em viagem surpreendida pelas profundas névoas impenetráveis das desilusões, e, sem poder nem prosseguir nem recuar, vencida pela distância e pela altura vertiginosa do ideal, perdeu para sempre, para nunca mais encontrar o desejado rumo, o caminho fluido, luminoso e gorjeante, que vai dar ao teu coração.

Obsessão da noite

VEM, TARTUFO, rir ao pé de mim a tua risada de fel.

O sol, em cima, ri a sua risada de aurora, que tudo aclara e resplende. Mas é em vão para essa risada de luz, que jorra d'alto sobre tudo, que tudo ilumina e floresce.

Quero-te a ti, risada de fel, Tartufo! Quero-te a ti, risada do crime, risada da noite, risada da treva.

Apavora-me esse sol, eterno, a flamejar, incendiado na altura, porque ele todas as coisas põe em relevo. Eu não quero essa aflitiva evidência da luz — que ri das nossas chagas, ironiza o nosso amor e avulta o nosso remorso.

Quero a sombra que esbate os claros aspectos, que esfuminha os longes, que enevoa e quebra a linha dos corpos.

A sombra que desce, que se desdobra em noite, em trevas amargas. Esse luto etéreo que tudo esconde e faz repousar no mesmo vasto silêncio.

O luto que esconde o crime e esconde a dor, que confunde a máscara hedionda de Gwymplaine com a máscara loura de Vênus.

Esse luto, essa noite, essa treva é que eu desejo. Treva deliciosa que me anule entre a degenerescência dos sentimentos humanos. Treva que me disperse no caos, que me eterifique, que me dissolva no vácuo, como um som noturno e místico de floresta, como um voo de pássaro errante. Treva sem fim, que seja o meu manto sem estrelas que eu arraste indiferente e obscuro pelo mundo a fora, arredado dos homens e das cousas, confundido no supremo movimento da natureza, como um ignorado braço de rio, que através de profundas selvas escuras vai sombria e misteriosamente morrer no mar...

Nela é que eu quero afundar-me, na noite que me defende da lesma humana que babuja ao sol, à grandeza da luz. Nela é que eu quero viver, na treva que me despe da realidade da vida, que me sepulta e piedosamente consola.

Ela tem a majestade para me apagar da vista esses mil animais sinistros e terríveis que, em múltiplas formas diversas, mordem sempre, caminhando para mim ao clarão do dia em truculenta marcha cerrada de massas pesadas e formidáveis. Quero, ó noite niveladora, fria águia negra das solidões infinitas, ir preso nas tuas asas e perder-me, insensivelmente vagar — átomo desconhecido, talvez a gerar longe o mundo de uma nova Dor!

Hora certa

INEXORAVELMENTE, imperturbavelmente, na inevitabilidade de um pêndulo estranho, o último suspiro há de soar, na hora atroz, que reboará soturna como por cavernas e subterrâneos.

Com a alma supliciada de nevroses, assediada por ciúmes inquisidores, através de trêmulos angustiantes de violinos, o Agonizante elevará os olhos claros, cheios já da transfulgência de outras esferas e aspirará, ainda, gemente, Águia triste de solenes asas despedaçadas, os desejos esparsos, perdidos, que para além ficaram no clamor atordoante da Vida.

Como por um mapa fabuloso, viajará ainda a imaginação desfalecida pelas regiões de outrora, onde se agitaram, vivas e palpitantes, todas as grandes forças do seu sentir.

E, diante dos olhos adivinhadores de belezas secretas; dos olhos penetrantes e gozadores que pousavam inteligentemente nas cousas com finas asas ideais, amando-as, envolvendo-as numa chama de sentimento, nobres olhos de emoção e profundidade; dos olhos, cujo entendimento cintilava quando olhavam curiosamente tudo; diante dos olhos do Agonizante desfilará então a Visão do seu Ideal — Beleza tão radiante, tão doce, que lhe lembrará ao mesmo tempo a frescura iluminada de um vale e a profunda pompa noturna das estrelas.

O muito que odiou e o muito que amou, os traços reveladores do seu espírito, formas de enunciação características de sentimento, ondulações voluptuosas de som, tudo, como um fumo, lhe tecerá brumas na retina; e certas recordações, já nebulosas na memória, certas tempestades d'alma, já entrecruzadas, difundidas e repercutidas na tempestade das Esferas, tudo, como um fumo, lhe tecerá brumas na retina.

Soberbos oceanos de imaginação onde mergulhou seguro, o desenterramento da sua Obra, do Escuro para a Luz, ressuscitando-a das sepulturas do Nada e fazendo-a logo abrir clarões e asas no Espaço, tudo, tudo há de ecoar, em extremo, nos desvãos do seu cérebro a fenecer, como a vibração esmorecidamente saudosa de rouca fanfarra longínqua no fim crepuscular de triste e ovante vitória assinalada por aclamações e festões de louros, regada abundantemente pelo vinho quente e humano do sangue.

E, relembrando cousas, revendo todas as veredas passadas, como quem revolve poeira, se o Agonizante achar então que afinal lhe doeu muito a Vida, consolado morrerá de que sofrendo por rodos teve assim a mais bela e nobre purificação e consagração dessa Dor.

E, de reminiscência em reminiscência, consultando no largo, no amplo, no formidável mostrador do Tempo as horas certas do Mundo, — a hora certa para o Amor, a hora certa para o Ouro, a hora certa para o ódio, — sentirá, então, claro, nítido, evidente na eloquência fatal do último suspiro — concentração tremenda de todos os círculos tremendos do Ser — sentirá então que a única hora certa, ó Vida!, é a hora da Morte, quando o último suspiro soa, trêmulo, marcando o inevitável rumo, como um pêndulo estranho que marca horas imponderáveis caindo inexoravelmente, imperturbavelmente...

Rosicler

IMAGINAR AGORA, saudosa Rosicler, que essa boca virginal, onde têm vivido, esvoaçado e cantado os ardentes pássaros dos beijos, fica gelada e muda, negra, como a boca de uma cova; que o colorido alvoral da tua carne esmaece, morre; que os fluidos Danúbios claros e azuis dos teus olhos somem-se na névoa da morte; que tu toda esfrias horrivelmente nas minhas mãos, num pavoroso contacto de neves álgidas, — hirta, inteiriçada, glacial — como pesado e rígido bloco maciço de mármore branco!

E imaginar, também, que a tua infância de flor, de alva magnólia cheirosa cor de luar, na seda fina da pele nívea, foi passada entre os meus braços: todo o delicioso encanto louro dos teus cabelos, a delicada polpa rosada dos teus lábios e as límpidas marchetarias dos teus dentes na láctea candidez do rosto a que os fluidos Danúbios claros e azuis dos teus olhos de ninfa davam frescuras bucólicas de mirtais e de mares meigos da Grécia.

E imaginar, também, celeste Rosicler, que tu, já na pubescência, com as nobrezas régias de dama medieval, planta inglesa e forte desabrochada na atmosfera de uma estufa de Lorde, na luxuosa irradiação da formosura, vais, através do aristocrático rumor de cidades, alta e loura, como soberba Águia fidalga que para sempre houvesse abandonado algum antigo, grande palácio renano!

Outros chamem-te Aurora! Hoje que já tens a esbeltez palmeiral, o viçoso verdor primaveril e que na transparência d'ouro da epiderme dos seios cantam-te inefavelmente os desejos...

Outros chamem-te Aurora! Hoje que já o travo picante da perfídia feminina dá um encanto fatal e acídulo à tua cabeça funesta e trêfega e dá volúpias secretas e tentadoras às tuas garridas formas de louro demônio, a essa sedução prófuga e prônuba, entre sílfide e áspide...

Outros chamem-te Aurora!

Uma vez que ainda diante dos olhos vejo a rosada e consoladora luz difusa da tua Infância; que ainda sinto os leves e perfumados eflúvios da tua voz; o cristalinar do teu riso nos lábios frescos de vida e de leite; os fios sonoros do teu cabelo de sol na primorosa, suave, resplandecente cabeça; agora que tudo isso, enfim, acorda ainda no meu ser a balada longínqua das Recordações, não te chamarei jamais Aurora, mas Rosicler! que lembra os tons alvorais incomparáveis da tua vaporosa existência de aroma, quando eu tinha nos braços, envolta em neblinas paradisíacas do sonho, a tua formosa, suave, resplandecente cabeça, da excelsa idealização de cabeças de Anjos, revivescentemente cinzeladas em astro...

Beijos mortos

PARA O FRIO SILÊNCIO do firmamento, para a alta sideração das estrelas, os beijos de chama que me deste outrora subiram mortos, frígidos, glaciais, sem aquele quente, inflamado clarão que os tornava apaixonados.

Foram-se os beijos e tu te foste também com eles, Alma sonora, Carne de perfume e de luz, cujos olhos, de tanto incomparável amor carinhosamente me falavam.

A minha boca, sequiosa e saudosa agora desses beijos que a constelaram, mal pode sonorizar as sílabas de sol — Amor — que tão inefavelmente sonorizava.

Foram-se os teus beijos, sumiram-se aqueles astros, que ardiam, e agora, ei-los, já frios, lá acima, no esplendor, esparsos no arqueado Azul infinito...

Que brilhem, lá, gélidos, esses beijos mortos, como a serena e sagrada Via Láctea da Paixão!

Para mim, cá da terra, embaixo, eu os verei e os sentirei ainda palpitar para sempre sobre a minha'alma, purificando-a e iluminando-a, miraculosamente, contra o frio veneno negro da Dor, derramada fundo no meu peito por fulvos e inquisitoriais demônios, atropeladamente arremessados à escalada vertiginosa do Mundo!