Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Os papéis do coronel, de Harry Laus. 2 Ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1997. Os Papéis do CoronelHarry LausPara Claire Cayron que me encorajou a escrever este livro.
O outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
— Paulo Leminski

1902: nasce Vitório de Lima e Silva em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, a 28 de dezembro. 1923: ingressa na Escola Militar do Realengo, Rio de Janeiro, a 15 de março. 1926: declarado Aspirante a Oficial a 28 de dezembro, com 24 anos, e classificado em Joinville, Santa Catarina. 1927: promovido a Segundo-Tenente dia 25 de junho. 1929: promovido a Primeiro-Tenente a 25 de agosto; casa-se com Elza Alves a 14 de setembro, ela nascida a 25 de fevereiro de 1907. 1932: nasce Alírio Alves de Lima e Silva a 30 de janeiro; Vitório é promovido a Capitão dia 25 de abril com transferência para Passo Fundo. 1939: promoção a Major a 25 de dezembro e transferido para Juiz de Fora, Minas Gerais. 1946: janeiro, viagem para Natal, Rio Grande do Norte, para onde Vitório é transferido. 1950: janeiro, regresso de Natal com destino a Corumbá, Mato Grosso; promoção a Tenente-Coronel dia 25 de dezembro. 1953: maioridade de Alírio a 30 de janeiro; transferência de Vitório para o Rio de Janeiro. 1955: Vitório requer transferência para a Reserva.

Dentro de alguns minutos, o Coronel pode tirar a roupa e ficar à vontade para fugir ao calor. A viagem de ônibus Florianópolis–Porto Belo havia sido incômoda, o suor escorrendo pelas costas, a camisa grudando no encosto da poltrona. Nada fizera durante hora e meia do trajeto senão pensar em si, no encaminhamento do livro em que trabalhava, nos três pacotinhos que trazia na sacola junto a outras coisas que havia comprado.

Abriu o portãozinho de madeira, desceu os quatro degraus de tijolos e fugiu do sol na sombra da varanda. A camisa fora das calças, sentou-se na cadeira de balanço, aproveitando a aragem que lhe entrava pela camisa aberta ao peito. O pequeno jardim gramado, tufos de samambaias acompanhando a escada, duas palmeiras reais ainda jovens, um flamboyant virgem de flores, completava-se na varanda por baraços de jiboia trazida de Joinville subindo para uma das colunas; pela outra, os ramos de grinalda-de-viúva cheio de cachos lilases. Junto ao muro, uma cerca-viva de hibiscos vermelhos tirava quase totalmente a vista da rua. Não dava para reconhecer as pessoas que raramente passavam, e a velocidade dos carros, também raros, oscilava estranho painel, conjugando as folhas e o colorido das flores.

Atrás da cadeira que balançava lentamente, a casa. Mesmo sem olhar a porta, o Coronel sabia de cor o que o esperava lá dentro. Abrir a camisa e sentar-se ali, sob o pretexto da brisa, foi a maneira que encontrou para retardar a entrada. O sofrimento começava ao escutar o ruído da chave na fechadura. Um aperto no coração. Vidraças abaixadas, persianas fechadas, a sala estaria na penumbra. O vulto dos móveis poderia levá-lo a outros cenários, pois o acompanhavam pelas várias cidades onde andou. Nem todos, naturalmente. Todos não poderiam reconstituir as tropelias de sua vida, de tenente até coronel. Uns vieram desde Juiz de Fora, outros de Natal, Porto Alegre, Corumbá, Rio de Janeiro, conforme ia crescendo a casa, a carência de conforto, a irresistível necessidade de posse. Como a mesinha com tampo de mármore apoiado num tronco roliço de madeira que entrava por três pés de ferro trabalhado, terminando por esferas. Foi difícil comprá-la de um bar da Lapa, no Rio. Por fim, o dono concordou em trocá-la por uma mesa de fórmica. Ou o banquinho mineiro em jacarandá – “Serviu aos escravos no século XVIII”, garantiu o vendedor de Juiz de Fora. Poderia até não ser antigo nem ter servido a escravo algum, mas era tão cômodo e gentil que o Coronel não poderia prescindir de nele sentar-se para calçar e descalçar os borzeguins de tenente, as botas de capitão e major, os sapatos de agora e de sempre.

Na semiescuridão da sala, as lombadas dos livros perdiam cores e títulos e ele poderia imaginar todos: os que ainda o acompanhavam; os emprestados e nunca devolvidos; aqueles que deu e se arrependeu; outros que se perderam em mudanças e viagens de transferência pelo Brasil – cada qual necessário por uma simples palavra que se perdeu com eles, uma ideia que lhe sugeriu nova e não mais recorda. Lia com um lápis na mão, um traço vertical ao longo do texto marcando as ideias que mais o haviam impressionado. E na folha de guarda, ao fim do volume, anotava as páginas onde o autor falasse em amor, liberdade, morte, tudo o que, afinal, participa de sua própria vida. Como se fosse possível aproveitar a experiência alheia, quando cada um traz em si reações próprias aos próprios dramas que, na maioria das vezes, apresentam-se de improviso, exigem soluções imediatas que não nos dão tempo de recorrer a ninguém.

Depois da sala de estar, com poltronas, sofá, tapetes, estantes, uma mesa redonda a um canto próximo à cozinha indica o lugar das refeições. Um pequeno corredor leva ao banheiro e a dois quartos: o dele e outro para os poucos hóspedes que aparecem. O último foi Bernardo, colega da Academia Militar, o melhor amigo daqueles tempos, agora coronel como ele mas que, em vez de se aposentar, leciona História para os cadetes. Sua chegada foi uma alegria! Uma espécie de teatro abriu-se para a juventude de ambos. Naquele tempo, passavam horas comentando os livros que liam, em longas caminhadas de fim de tarde depois das aulas e antes do estudo, para aliviar as tensões da instrução militar, as cansativas lições de Tática e Estratégia, ou mesmo de Física e Química.

A primeira divergência que os anos haviam aberto entre os dois apareceu quando o Coronel trouxe copos, gelo e bebida para a mesinha da varanda, onde agora ele se refresca na cadeira de balanço. Bernardo não bebia. A conversa voltou aos tempos de cadete, recordação de colegas, o comportamento dos oficiais. “Lembras do capitão Lupi, aquele que perdeu os óculos e saiu correndo nu atrás da mulher, meio bêbado, e foi flagrado no jardim pelos vizinhos?” Os dois riam, o Coronel bebia.

Aos poucos ele foi achando aquela presença incômoda por trazer-lhe à memória fatos que não fazia questão de lembrar, pela falta de importância ou porque nada tinham a ver com sua vida atual. O próprio amigo, gordo e feio, estava tão longe do passado que desagradava ao Coronel olhá-lo: o outro estaria vendo nele uma pessoa alquebrada, nenhum vislumbre da figura esbelta e elegante dos anos de cadete. Não bastava ver-se no espelho e lamentar a deformação dos olhos, da boca, os vincos no rosto, o cabelo grisalho, tudo o que o distanciava da mocidade?

A noite encontrou ambos ainda conversando na varanda, Bernardo tentando um reencontro que para o Coronel era impossível. A longa e minuciosa descrição que o amigo fez de sua vida metódica, o prazer de preparar as aulas, o convívio com os cadetes, tudo desagradava mais e mais o Coronel, vendo o quanto se haviam distanciado em todos os sentidos. Quando o ex-companheiro e confidente passou a falar sobre sua vida tranquila com mulher e um casal de filhos, baixou os olhos e encheu o copo mais uma vez. Sentiu-se tentado a falar sobre Elza e Alírio mas conteve-se: temeu perguntas indiscretas sobre situações que nem ele havia resolvido. Aliás, o tom professoral do amigo, passeando sua gordura de um lado a outro da pequena varanda, dava pouca oportunidade a que o Coronel falasse. Melhor assim. Passou a analisá-lo como se faz a um conferencista e concluiu estar em presença de um estranho que viera de tão longe perturbar seu retiro em Porto Belo. Só voltou a animar-se quando chegaram dois rapazes da vizinhança. O Coronel, muito solícito, convidou a todos para passarem à sala – “muito mais confortável” – e serviu bebida aos recém-chegados. O professor não teve mais oportunidade de falar. Estava escandalizado com a intimidade dos moços – “Onde se viu chamar um Coronel por tu?” – a licenciosidade das palavras, o relato imoral que faziam de seu relacionamento com as moças da cidade. O Coronel, rindo de tudo e bebendo cada vez mais, esqueceu a presença de Bernardo que, mostrando-se decepcionado e ofendido, foi para o quarto e trancou a porta. A amizade dos dois acabara naquela noite como se desfaz a fumaça de um cigarro ou um vidro se estilhaça no ar. Não fosse o bilhete deixado por Bernardo, ao sair de madrugada sem acordá-lo, pouco se importaria o Coronel com o fim desse relacionamento de juventude que não fazia questão de ressuscitar. Mas a frase final era dura demais para que pudesse esquecê-la.

Os livros não estavam apenas na sala. Uma estante baixa e comprida, no quarto, estava repleta, além de outra menor com dicionários, livros de consulta, a documentação particular em pastas de papelão, ao lado da mesa de trabalho. Não seria por falta de subsídios que deixaria de escrever o pretendido livro, motivo principal de sua vinda para Porto Belo.

Embutida no final do quarto, a cama de casal terminava por uma cabeceira larga, de tijolos, onde uma televisão era ligada apenas para ele atualizar-se com os noticiários. Sua relíquia era a mesa onde planejava capítulos e passava grande tempo lendo ou fazendo rabiscos inconsequentes. Em jacarandá, datava do Brasil Colônia, vinda de Minas Gerais. Um enorme gavetão pesado rangia ao ser aberto. Dentro diversas divisões onde o Coronel guardava velhas cadernetas de endereço, diários de bolso com impressões de viagem à Europa e Estados Unidos, passaportes vencidos e material de escritório. Sobre a mesa, a aparente desordem só entendida por ele, incluindo folhas manuscritas em letra miudinha que como a desordem, só ele compreendia. Vez por outra, animado por uma estranha força que o enchia de otimismo, punha-se a datilografar o que lhe parecia digno de figurar no futuro livro.

O Coronel, apoiando os pés no chão para imobilizar a cadeira de balanço, acendeu um cigarro e olhou a sacola de compras. Meteu a mão direita entre os embrulhos até tocar com a ponta dos dedos os três pacotinhos coloridos, em forma de envelopes. Estavam bem no fundo. A satisfação espelhou-se em seus olhos. Realizar o novo plano assenhoreou-se dele com tal força que não lhe importava saber que, aberta a porta, ninguém viria saudá-lo.

Sem mesmo perceber o ruído de fechadura, deixou cair a sacola sobre o sofá, atravessou a sala, o corredor, e entrou no quarto. Sobre a mesa, as folhas que havia datilografado na véspera.

O rufar de um pandeiro junto aos ouvidos de Vitório de Lima e Silva acordou-o do sonho de chegar a general. Estava num baile carnavalesco da Sociedade Harmonia Lyra,em Joinville, onde curtiu três anos de aspirante a oficial a primeiro-tenente e, no meio de tanta confusão – o ritmo alucinante da orquestra, a cantoria de milhares de foliões pulando no salão multicolorido por balões, serpentinas, máscaras e fantasias – não entendeu como a batucada de um simples pandeiro conseguiu interromper-lhe os pensamentos. Puxando-o pelo braço para que também entrasse na folia, uma cigana com saia de cetim vermelho bordado a lantejoulas douradas, duas enormes argolas como brincos, o corpete preto e justo denunciando amplos seios comprimidos no decote, carregou-o rindo e ambos caíram na dança.

Cansado da vida insípida de solteiro, Vitório levou adiante o baile com Elza Alves. Namoro, noivado e casamento foram questão de meses. Em plena lua-de-mel, rebentou a Revolução de 30. Só numa escaramuça, dez mortos e nove feridos, inclusive o Sargento Moisés que morreu como um bravo. O Capitão Braga marchou com um pequeno contingente, da Estação Ferroviária ao centro e dominou a cidade. Vitório, Secretário do Batalhão, não se envolveu na refrega. Só com o acúmulo de ordens e contraordens, radiogramas urgentes, ele correndo de um lado para outro a fim de dar conta de tudo. Elza, morrendo de medo e cuidados com as notícias desencontradas sobre o conflito, refugiou-se em casa da mãe enquanto o marido cumpria prontidão.

Quando acabou a Revolução e Getúlio Vargas assumiu o governo, Vitório passou a pensar na transferência para Passo Fundo, mesmo antes da promoção a capitão, esperada para abril.

Se dependesse de Elza, o casal ficaria para sempre em Joinville, perto de sua família, das amigas, os passeios pela rua do Príncipe, rua das Palmeiras. Mas não devia interferir nos planos do marido. Casada com militar, tinha de se ajustar às constantes mudanças a que a carreira o sujeitaria. Quando solteira não desejou tanto viajar, conhecer o Brasil, quem sabe o mundo inteiro? Por que não começar por Passo Fundo, terra natal de Vitório?

Um obstáculo perturbou os planos do tenente: Elza anunciou a gravidez. Feliz com a notícia, Vitório concordou em retardar a viagem.

— Está bem. Tu dizes que a criança vem em janeiro, vamos embora depois da promoção.

E propôs um acordo:

— Se for homem, eu escolho o nome; se for menina, tu escolhes.

Elza olhou para o ventre.

— Luiz não é bonito? – perguntou Vitório. Com teu sobrenome mais o meu ficaria Luiz Alves de Lima e Silva.

Ela discordou.

— Meu Alves não tem nada a ver com o Duque de Caxias e teu Lima e Silva...

O Tenente Vitório persuadia-se ser neto, ainda que bastardo, do patrono do Exército, por obra e graça da Revolução Farroupilha: lá por 1837 o Duque andou pelo Rio Grande do Sul pacificando os ânimos. Elza, como muita gente, duvidava dessa possibilidade, até por uma questão de pudor, onde se viu pôr em dúvida a honra da avó? Mas o marido não escondia um sorriso de satisfação ao ouvir de algum superior:

— Parente do Duque?

Sentia orgulho desse parentesco equívoco e chegava a pensar que, no futuro, quem sabe algum dedo providencial de Caxias não poderia facilitar-lhe as promoções?

— Então não será Luiz. E se for menina?

— Se for menina... Vitória.

O marido, bobo, bobo, fez-se de desentendido.

— Vitória por quê?

— Em homenagem à rainha da Inglaterra, à Vitória de Samotrácia... a todas as vitórias do teu Duque de Caixas.

Vitório, amuado, fingiu indiferença, mal contida na voz.

— Se for homem será Alexandre, Aníbal, Napoleão...

— Vitória em homenagem a ti, seu tolo.

Os olhos do tenente encheram-se de alegria, beijou a mulher, acariciou o ventre bojudo onde o ser incompleto debateu-se debilmente.

Outro dia, retomaram o assunto:

— Gosto muito de um nome que lembra as águas e as flores, disse Elza.

— Qual?

— Alírio.

Nos tempos de criança ela havia lido num livro qualquer que “por ali desceu um lírio pelo rio”. Ou foi a própria Elza quem inventou o verso?

Vitório não se mostrou entusiasmado.

— Resolvo na hora, quando o bichinho começar a chorar.

Depois do cafezinho e do beijo carinhoso da mulher, o tenente saía pela rua ainda escura, o dia dando os primeiros sinais de claridade, para tomar o café da manhã no quartel com toda a oficialidade. A rotina começava a ficar pesada para ele, às voltas com ofícios e memorandos, o comandante nunca satisfeito com a redação. Melhor tinha sido o tempo em que lidava com a tropa, os soldados simplórios falando um português arrevesado, sem deixarem o sotaque alemão.

Num dia de janeiro, os hábitos de Vitório foram transtornados desde a madrugada. Ao toque da alvorada, em vez de dirigir-se ao quartel, teve de levar Elza às pressas para a Maternidade. Na sala de espera entre Amélia e Alice, mãe e irmã de Elza, o futuro capitão sofria o passar das horas, o escorrer dos minutos um a um. Nunca um relógio de pulso foi tão consultado.

Pela janela da sala, Vitório viu a suave transformação da madrugada em dia claro. As nuvens mudavam de forma lentamente, tangidas por brisas misteriosas. O cinza passou por todas as gradações até chegar ao branco, mudando-se num leve rosado às primeiras luzes do sol. O céu acompanhava a mutação das nuvens, invertendo o processo do azul sobre o cinzento pela ação da claridade irrevogável. Sons em repouso despertavam: o canto dos pássaros, o chiar das rodas de bicicleta, vozes sonolentas se cumprimentando na rua. “Assim como o dia, vai nascer meu filho e ficar adulto”, pensava ele.

A chegada de um jornaleiro trouxe-lhe uma esperança, poderia distrair-se com a leitura. Mas as letras fugiam, as palavras dissolviam-se como nuvens, o sentido das frases não se completava. De repente, parou na palavra ovante, logo depois da manchete principal. Não seria avante? Por alguns momentos esqueceu a esposa e o impasse em que se encontravam, tentando descobrir o sentido dessas seis letras que poderiam lembrar ovo. A frase tirava qualquer possibilidade de aproximação por tratar-se da inauguração do sistema de telefone automático. “Joinville marcará hoje mais uma etapa gloriosa na marcha ovante do seu glorioso porvir”. Passou os olhos pelos outros títulos, sem deixar de controlar a porta por onde seria anunciada sua paternidade. “Aniversário de Guilherme II – Berlim...” – “Unhas arrancadas a alicate – Recife...” – “A Questão Indiana – Calcutá...” – “A Conferência do Matte – Buenos Aires...” – “Situação política na Áustria – Viena...”

Remexeu-se na poltrona, encarou outra vez a porta. Dona Amélia cochilava no sofá, caindo sobre o ombro de Alice. Vitório retomou a leitura e a palavra ovante voltou a seus olhos. “Se há ovular, haverá ovante como forma de gerúndio?” Não podia ser. Como relacionar ovo e telefone? Começou a ler apenas os títulos, sem ver de onde vinham as notícias. Impossível concentrar-se.

Nasceu, informou a enfermeira.

Surpreendido, Vitório levantou-se na posição de sentido, como se um general tivesse entrado na sala. Viu a mãe e a irmã de Elza se aproximarem da porta, vacilou, conseguiu andar a passos lentos.

— Primeiro o pai.

Na cama do quarto branco, o sorriso de Elza mais terno do que todos que Vitório havia visto.

— Olha, é um homenzinho.

Vitório olhou a cabecinha minúscula, mancha avermelhada entre a brancura dos panos. Passou lentamente o dorso da mão pela carne virgem do filho. Ao beijar a mulher, ouviu a pergunta em voz muito fraca:

— E o nome? Ele já chorou...

— Aquele verso, como é aquele verso?

— Por ali desceu...

— ... um lírio...

— ... pelo rio.

Disseram juntos:

— Alírio.

O Coronel leu o capítulo andando pelo quarto. Era preciso contar tudo aquilo mas a forma estava banal. Se falou na Revolução, não precisaria aprofundar o assunto? Pelo menos uma frase esclarecendo que o movimento subiu do Rio Grande do Sul em direção ao Rio, a deposição do Presidente Washington Luiz, a posse de Getúlio que acabaria ditador por quinze anos. Qualquer coisa assim, que não queria escrever a História do Brasil. Falara no Sargento Moisés e no Capitão Braga por uma questão de justiça, mas o episódio não soaria gratuito no contexto geral? Na vida de Vitório, que importância teve a Revolução? Acabou concluindo, irritado, que aquela revolução a que Vitório assistiu como Secretário, fora de qualquer perigo, nunca foi esquecida por tratar-se de uma oportunidade perdida de mostrar alguma forma de heroísmo.

Excluíra do texto os monólogos do feto nas entranhas da mãe, intercalados ao diálogo para dar mais consistência ao capítulo. Estava em dúvida se não soaria falso ou pretensioso. Procurou-os entre os papéis espalhados sobre a mesa.

“não imagino como possa ser isto de olhos verdes negros azuis vestido cor-de-rosa rosa vermelha alaranjada rosa rosa tudo meio confuso mas também dizem céu azul o amarelo das flores que minha mãe colhe no jardim coisas coloridas que comem ou bebem o branco do leite o arco-íris tem sete cores minha mãe escolhendo linhas de todas as cores para fazer bordados enquanto espera que eu saia desta gruta escura talvez sem cor alguma para a claridade não sei se vou suportar a diferença entre isto aqui e aquilo lá fora mas desejo saber como são as cores o gosto das coisas quando dizem está uma delícia ou fraco forte doce amargo sentir o perfume de tudo para encontrar sentido quando falam tem cheiro de jasmim de café recém-passado de goiaba fervendo no fogo a sensação de frio e calor quanta coisa para aprender acho que se aprende logo à saída deste pacote mal suportando minha ânsia de escapar... ”

“além das cores gostos e perfumes quero entender o espaço Rio Grande do Sul Santa Catarina Paraná também São Paulo Rio de Janeiro que o pai conta e repete ao relembrar o tempo da tal revolução quando houve muitas prisões em Joinville parece que o pai se arrepende de não ter participado pois diz sempre que perdeu o batismo de fogo sei lá o que é isto a mãe dá graças a Deus pois do contrário poderia estar só com a lembrança do marido para o resto da vida sofrendo saudades então eles se abraçam comigo no meio deles os dois se consolam parece que ela chora pela alegria de ainda o ter ele começa a falar em mim trancado neste cofre até estar totalmente pronto e dar um salto para o que chamam de vida sondar o espaço ver se é grande ou pequeno naturalmente muito maior do que este reduto sem luz alguma para se poder diferenciar as cores gostos perfumes...”

“Quando conseguir suplantar o tormento de atravessar este túnel a primeira coisa a fazer será abrir os olhos para perceber de relance tudo o que quero aprender mas por enquanto minha mãe não cessa de gemer de se agitar numa atmosfera onde ouço também a voz abafada de um homem a quem uma mulher chama de doutor e desta mulher que o homem chama de enfermeira mais um ruído variável de objetos estranhos os dois empregando palavras desconhecidas para usá-los estou quase me sufocando mas resistirei pois quero entender tudo caso seja possível pelo menos tem sido muito difícil para minha mãe que quando reza pede sempre a Deus que lhe dê paciência para aceitar a vida apesar de não saber qual seu sentido compreender o marido para viverem em paz aceitando o próprio destino sem sofrer demais então além de já se sair marcado com um nome também o caminho está todo traçado nada se podendo fazer para melhorá-lo realmente qual o sentido que pode ter a vida se o tal destino existe a não ser que a gente não saiba que destino é este vá vivendo às cegas lutando por uma coisa que nunca será nossa porque não está escrito e assim viveremos sempre enganados não não pode ser se Deus é justo e bom como diz minha mãe haverá sempre uma recompensa pela esperança que se tem mas sinto que me tocam a cabeça percebo que tudo vai ficando claro quero abrir os olhos não consigo quero voltar ainda não estou pronto os olhos se negam a se abrir onde estão as cores quero ver as cores saber do azul do verde do laranja vermelho amarelo agora as mãos que me seguram são mais suaves outra mão mais forte me bate consigo reagir não com um grito terrível como gostaria de dar a fim de saudar minha existência mas um débil chorar de quem tem medo de tudo o que vai encontrar lá fora...”

A vida do Coronel em Porto Belo era de uma pasmaceira enervante. Na cidade grande, basta você pôr os pés na rua que tem com que se distrair, as pessoas que passam, a atenção com o trânsito, as vitrinas, pedaços de conversa que se captam. O Coronel gostava de imaginar histórias inteiras com palavras dispersas. “Muito mal, coitadinho”. Via o doente na cama, o médico à cabeceira balançando negativamente a cabeça, a família choramingando pelos cantos da casa, o padre paramentado para a extrema-unção. Nem sempre era fácil compor uma cena. “Ontem”. Foi só o que ouviu a mocinha dizer para outra e saírem rindo de mãos dadas. Que poderia ter acontecido de tão engraçado, ontem? Acabou imaginando que, ontem, ela havia sido beijada pela primeira vez. Tolice, hoje em dia o beijo acontece a três por dois, não é mais como no tempo dele, quando beijar a namorada era uma façanha tão grande que acabava em noivado, ou a moça difamada. Deflorar, então, nem se fala: ou casamento, ou morte que os irmãos ou o pai da menina juravam vingança e a cumpriam. Melhor nos tempos de hoje, concluiu o Coronel. Casamento forçado não pode dar certo. A excitação de um momento, a realização nervosa de um desejo intempestivo não dá condições de alimentar uma vida inteira sem amor. Com Elza não poderia ter sido como agora, mesmo porque o conhecimento com Vitório aconteceu antes da Revolução de 30.

A monotonia da vida do Coronel modificava-se pelo menos uma vez por mês, no dia do pagamento, quando ia a Florianópolis. O ônibus parava em frente à casa, era só estender o braço. E atendia a qualquer aceno de mão, o que tornava a viagem irritante. Para servir a mais passageiros, fazia voltas por estradas de terra e pontilhões ameaçadores. Como em Santa Luzia. Passar a são e salvo, garantia chegar a Tijucas. O carro praticamente esvaziava-se para sair outra vez lotado, as pessoas comprimidas no corredor tentando acomodar-se melhor, andando de lado feito caranguejo, roçando bundas e sexos no ombro e no braço do Coronel, que nem sempre conseguia lugar junto à janela. Como seriam essas pessoas nas situações em que esses órgãos têm função mais explícita do que roçar-se nele, despudoradamente? E se desse um beliscão nesta coxa grossa que agora esfrega-se em seu ombro? Grito de mulher, balbúrdia dentro do ônibus, antes que a tentação o vença, enfia a mão no bolso da calça.

Em Florianópolis, a arquitetura moderna e majestosa do Terminal Rita Maria tinha cheiro de cidade grande. O movimento de chegada e saída dos ônibus, saguão cheio de passageiros andando de um lado para o outro, ou sentados olhando a televisão em circuito fechado, lojinhas oferecendo de tudo, dava-lhe a ideia de São Paulo. Não tanto, talvez Belo Horizonte.

Depois de ir ao banco e pagar contas, um giro pelas livrarias. Sempre havia o que comprar, nem que fossem jornais e revistas. Folheava as publicações enquanto aguardava o almoço num restaurante do Mercado Público: peixe frito, arroz, feijão, e farofa, coisa que não pesasse muito porque não gostava de dormir na viagem.

Os outros dias, sem a viagem à Capital, eram mais monótonos. Pela manhã, depois do café que ele mesmo preparava, algum tempo remexendo papéis, emendando aqui e ali, escrevendo alguma coisa que lhe havia ocorrido, o passeio pela praia. A beleza do mar, o vento no corpo, a curva da baía cheia de barcos pesqueiros... O Coronel enchia-se de amor pela vida. Ia ao correio, mesmo quando sabia nada haver para ele. Valia o exercício. Como valiam o sorriso e o cumprimento com que era saudado por quem já o conhecia na cidade, onde a palavra Coronel ligada a ele continha algo de misterioso. Ninguém entendia o que viera fazer ali um homem de tamanha posição na hierarquia militar, cujo nome todos ignoravam porque ele dizia sempre: “Pode me chamar de Coronel”.

A volta era menos agradável. Não que estivesse cansado, mas significava reencontrar a casa vazia. Culpa unicamente dele porque a decisão de isolar-se saíra de sua cabeça. Mesmo na hora mais difícil, aquela em que o dia reage e negaceia para não entregar-se à escuridão; quando a luz acaba por cobrir-se de sombras para o idílio sempre repetido e nunca esgotado; nesse intervalo penoso em que o Coronel não queria demorar o pensamento em ninguém porque todos estavam longe e definitivamente perdidos para ele, nem nesses momentos tinha a quem culpar.

Em Passo Fundo, Vitório chegou à conclusão de que jamais se acostumaria com a rotina enervante do quartel.

— Muda de profissão, homem – acabou por dizer-lhe Elza. Contrariado a vida inteira podendo tentar outra coisa! Com trinta anos ainda se pode começar tudo de novo.

“Começar tudo de novo”. Seria exatamente isto porque não se sentia habilitado para nada. Como militar, vivia preparando-se para a guerra, uma guerra fantasma que, como o inimigo dos exercícios de campanha, nunca aparecia. Nos tempos de Escola Militar, quantas vezes desejou abandonar tudo, tentar outra profissão, talvez o jornalismo, já que gostava tanto de escrever. Não tinha coragem de enfrentar “o mundo lá fora”. Bem ou mal, no Exército ia levando a vida, monótona e irritante mas com o dinheiro certo no fim do mês, um dinheiro cada vez mais curto, igual para todos os capitães como ele, quer trabalhasse ou ficasse coçando saco em papos intermináveis ou jogando dama e gamão no cassino dos oficiais, enquanto sargentos e aspirantes davam duro na instrução da tropa. Em casa, além das conversas com Elza e as brincadeiras com o filho, Vitório descobriu outra maneira de passar o tempo, quando não tinha que estudar temas táticos para os exercícios de campo. Sob o pretexto de fazer economia, preparou uma pequena horta nos fundos do quintal e acompanhava o crescimento de tomates e ervilhas como se seu futuro dependesse daquela contemplação.

Para ser promovido, única maneira de passar a ganhar um pouco mais, não bastaria esperar a passagem do tempo, precisaria deixar Elza sozinha com o filho, ir ao Rio tirar o Curso de Aperfeiçoamento.

Alírio sentiu medo ao ver a locomotiva entrando esbaforida na Estação. Apertou com força as mãos de Elza, enquanto o pai entrava no vagão para acomodar a bagagem.

— Ele vai embora?

— Não, meu filho, ainda vem se despedir.

Alírio não entendia a pressa dos passageiros, choro e risos nos abraços, carrinhos passando com malas e sacos, a imponência do trem. Não percebeu as lágrimas da mãe, o beijo do pai, “cuida bem da mamãe”, a promessa de trazer uma porção de presentes. O apito aflitivo do guarda, a correria dos retardatários, a violenta onda sonora do silvo da locomotiva, os vagões se deslocando lentamente tomavam toda a sua atenção. As fagulhas! A mais remota lembrança de Alírio ficaria sendo a explosão das fagulhas da locomotiva naquela partida do pai. Para o resto da vida, qualquer fogo de artifício no espaço traria a locomotiva de Passo Fundo. Ou teria sido o pião a primeira lembrança?

Quando Vó Amélia chegou para fazer companhia a Elza durante a ausência do marido, entregou uma caixa colorida para Alírio.

— Abre.

Desajeitado, o menino não conseguia desfazer o laço de fita. A mãe puxou uma ponta e a fita caiu.

— Agora tira o papel.

Alírio, ajoelhado no chão, desfez as dobras do papel até deixar livre a caixa com desenhos e instruções que ele não entendia. Olhou para as mulheres sem coragem de desvendar o mistério.

— Abre a tampa, anda, assim, agora tira o papel de seda.

Decidido, o menino puxou a folha com força, a caixa virou e o pião rolou pelo assoalho o bojo redondo com faixas coloridas. Como funcionaria? Elza sentou-se a seu lado, aprumou o brinquedo, começou a suspender a haste até que a soltou. O som inundou toda a sala, deslumbrado o coração de Alírio. Muito sério, a expressão dos olhos foi ficando meiga e ele abriu um sorriso de tanta felicidade que Vó Amélia pôs-se a chorar.

Ao voltar do Rio, o Capitão Vitório foi ao quartel reassumir suas funções por pouco tempo. Seria promovido em dezembro e seguiria novo destino. O Sub-Comandante encontrou-o no pátio do batalhão.

— Então, já sabe para onde vai?

— Juiz de Fora. Eu pretendia voltar a Joinville, minha patroa gostaria de educar Alírio em Santa Catarina, mas o grau não deu, não foi dos melhores.

— Por que não estudou mais?

Vitório recebeu aquilo como uma repreensão do Major Nepomuceno. Não teve coragem de confessar que mal havia tolerado os intermináveis estudos de situação, as ordens de operações militares, o senta-levanta nos caminhões para acompanhar os movimentos fictícios de tropas inexistentes pelos campos de Gericinó. Até mesmo o bom-humor dos companheiros da turma, que não via desde a Escola Militar, o irritava. Reunidos novamente, brincavam e riam de qualquer bobagem, como se tivessem voltado no tempo, reassumindo a condição de cadetes. Achava ridículo tamanhos homens, com mulher e filhos, comportando-se como adolescentes. Pior ainda era a saudade de Elza e do menino. Enquanto os instrutores ficavam nas intermináveis arengas sobre as possibilidades do inimigo invisível, Vitório voava para Passo Fundo.

— A seu ver, qual é a linha de ação aconselhável, Capitão Vitório?

— Desculpe, Major, não ouvi bem a pergunta.

O instrutor, decepcionado, anotava qualquer coisa na ficha de Vitório e escolhia um oficial mais atento, menos voador, como eram chamados os distraídos.

Quando, em pleno campo, os monitores distribuíam os impressos das provas apelidadas de assustados, era exatamente assustado que Vitório deixava em branco uma porção de respostas.

— Não deu, Major Nepomuceno, minha capacidade de concentração dos tempos de cadete desapareceu.

— Compreendo. Mas não se esqueça de que tem pela frente a Escola de Estado Maior, três anos de estudo puxado.

Um pesadelo. Talvez nunca tivesse coragem para fazer tal curso. Ficaria Coronel para sempre, um Coronel tropeiro, como eram conhecidos os que não cursavam o Estado Maior. Quem tinha um raminho bordado na manga do uniforme, como Nepomuceno, formava uma casta sonhando com o generalato, cursos de extensão no estrangeiro, talvez Ministro da Guerra, quem sabe até Presidente da República? Por que não? Não vinha sendo assim, direta ou indiretamente, desde 1889? Outros, mais modestos sonhavam apenas com o cargo de Adido Militar em Berlim, Paris... A lembrança destas cidades deu a Vitório a oportunidade de mudar de assunto.

— E a guerra, Major, será que sai?

— Não há dúvida, Capitão. A coisa complica-se dia a dia. Basta analisar as atitudes do Japão, da Itália e da Alemanha. A França e a Inglaterra estão perdendo tempo, quase indiferentes com a Guerra Civil Espanhola. Hitler, que não é bobo, usa a Espanha como campo de provas para suas tropas, principalmente a aviação.

Vitório olhou o raminho bordado na manga da farda de Nepomuceno. Não poderia manter o nível da conversação; preocupava-se mais com a sua horta particular do que com tática e estratégia.

— Se a coisa sair será que o Brasil entra?

— Entrar, entra, só não se sabe de que lado. O Getúlio não esconde suas preferências pelo Eixo. Mas é bom não esquecer que temos os Estados Unidos em cima de nós.

— Em cima de nós?

— Falo em termos geográficos, Capitão.

Depois de muito procurar, o Coronel acabou conseguindo uma empregada. Não precisaria sair todos os dias, com o sol ou chuva, para almoçar nos restaurantes da cidade, onde sujeitava-se a quatro opções: peixe frito, camarão, churrasco ou frango, sempre acompanhados de arroz, feijão, salada mista e farofa.

Lila chegava pelas oito da manhã, depois que ele já havia tomado café. Muito pintada, olhos, lábios, rosto, como se tivesse acabado de sair de um baile, vestido justo e decotado, olhar brilhante e inquieto, parecia disposta a conquistar o Coronel. Mas falava pouco, limitando-se a perguntas e respostas indispensáveis, com um avental surrado que ela vestia para arrumar e varrer a casa, dedicando-se em seguida aos afazeres da cozinha.

Quando o Coronel voltava do passeio pela praia, o quarto estava em ordem, a cama arrumada. Uma das vantagens de ter contratado Lila, pois ele detestava fazer a cama e deixava-a com as cobertas em desordem a semana inteira. Pelos fins de semana, como pudesse aparecer alguém, estendia os lençóis, a colcha, lembrando-se dos tempos de cadete. Para cada dia da semana, um modo de dobrar os dois cobertores verde-oliva; um quadro à entrada do alojamento mostrava as diferentes maneiras: em dois w como as divisas de um cabo; um x, fácil de fazer; ou ocupando meia cama, dobrados ao meio; em leque duplo formando uma flor... A primeira coisa que decidiu, ao sair Aspirante, foi nunca mais arrumar camas.

Uma vez por semana, Lila lavava roupa. “Hoje é dia de mexer com água”, dizia. Ficava cantarolando no tanque, estendia tudo ao sol, depois preparava o almoço. O Coronel nunca entendeu como ela aprendera a fazer pratos tão gostosos. Tudo que ele desejasse, esmerava-se em atender e servia a mesa com o requinte de uma grande dama. O que sobrasse, depois de haver almoçado só e em silêncio, Lila guardava na geladeira para o jantar. “É só esquentar”. Retocava a pintura e saía como se tivesse entrado naquela casa para fazer uma visita.

Tudo quieto ao redor do Coronel. Às vezes deitava-se com um livro nas mãos, mas nem sempre conseguia ler ou dormir. Assim como não se percebe o momento exato em que o sono nos alcança, ele não podia apreciar o instante em que o pensamento fugia da leitura para o projeto do livro. Mesmo com os olhos presos na página, a ideia andava longe, no tempo e no espaço, percorrendo cidades, campos de manobras, acampamentos, paradas militares. Retirado de tudo, não se reconhecia naquele cadete garboso que vibrava com as bandas militares, a perfeita imobilidade em plena Avenida Rio Branco, no Rio, enquanto aguardava os toques de corneta para início do desfile, a pele arrepiada de emoção, músculos tensos, cadência batida no passo marcial, a preocupação da cobertura e do alinhamento, a satisfação pelos aplausos do povo ao desfilar a Escola Militar frente ao palanque das autoridades, os uniformes de gala em tons de azul, botões e dragonas douradas, a barretina de verniz negro rebrilhando ao sol com o topete de plumas vermelhas... Por onde andaria aquele cadete que chorou ao receber o espadim das mãos de sua irmã Cora? Estaria ainda guardado no mesmo corpo, neste corpo agora flácido e sem encantos, deitado numa cama em Porto Belo?

Como saber o que faz uma obra de arte literária? Arte é resumo, é sumo, é essência. Seria preciso analisar tudo, os menores detalhes de sua vida, os desgostos e as misérias, a glória, a covardia, o arrependimento. Saber dosá-las e apresentá-las na medida exata. Tudo pode ser arte, se tornado arte pelo artista. Quando o mínimo atinge o máximo; sem apara alguma, nenhuma palavra vã, tudo encaminhado para o cerco final do propósito. Mas como chegar lá? Onde a autocrítica para separar grãos tão semelhantes que, no juízo de uns podem ser primorosos, e vãos no julgamento de outros?

O Coronel lembrou-se do poeta Mário Faustino que uma vez lhe disse: – “Escreve tudo o que vier à cabeça, depois corta e emenda, como um diretor de cinema.”

A beleza mais ampla do Rio de Janeiro começou a mostrar-se a Alírio quando o Itaimbé foi-se afastando do cais para ganhar a Baía da Guanabara. Anoitecia. As luzes da cidade ainda não estavam acesas. Debruçado na balaustrada do convés, entre Elza e Vitório, o rapaz olhava em silêncio a paisagem mutante sob a claridade dourada que o sol ia aos poucos recolhendo.

A família Lima e Silva mudava mais uma vez de rumo, por força de nova transferência de Vitório. Alírio contava manhãs e noites como se no dia 30 de janeiro, ao completar catorze anos, sua vida fosse transformar-se completamente. Elza aproximava-se dos quarenta e o Major estava com quarenta e três. Haviam passado as festas de fim de ano em Joinville, para rever a família de Elza, amigos de Vitório e revelar a Alírio um pouco da sabedoria de Vó Amélia, de quem guardara poucas recordações do tempo de Passo Fundo.

Quando o navio atingiu a altura da Ilha Fiscal, o Major começou a falar em voz baixa, como se estivesse sozinho, descrevendo alguns pontos com pequenas referências históricas. Citou o último baile da Ilha Fiscal; indicou a Praça Quinze, antigo embarcadouro da Família Imperial, de onde partia nesse momento uma barca para Niterói; a Escola Naval, na Ilha Villegaignon, “abordada pelos franceses em 1555 quando lhe deram este nome”. No momento em que Vitório ia assinalar a igrejinha da Glória, no outeiro, iluminou-se a Praça Paris e sua voz silenciou.

O deslizar da embarcação pelas águas calmas da Guanabara e o silêncio imposto aos três pelo acender das luzes da cidade, num espetáculo inédito para eles, isolaram um do outro como se nada tivessem entre si. Tão próximos, os corpos quase se tocando, e tão distantes pelo pensamento que fluía, desprezando noções de tempo e espaço, confundidos e tumultuados como se dias, meses e anos tivessem o mesmo valor de medição e intensidade sentimental.

Vitório lembrou-se da velha Escola Militar do Realengo, os antigos pavilhões acinzentados descansando por detrás do Corcovado, agora que o navio passava ao largo de Botafogo. Quem diria que há vinte anos deixava aquele conjunto opaco para não mais habitá-lo, deixava-o sem saudade alguma porque, como Aspirante a Oficial, os sonhos não cediam espaço para mais nada. Do subúrbio carioca o pensamento voou para Joinville, onde fora classificado. A cidade de amplos casarões terminados por pequenas torres, iria marcá-lo; lá se casou, lá nasceu Alírio. Depois, o retomo a Passo Fundo de sua infância. Como tudo havia mudado. A Avenida Brasil, que em criança lhe parecia não poder existir outra mais larga no mundo, antigo escoadouro de rebeldes tropas de gado, agora resultava acanhada. Que dizer do colégio onde estudou? A caminho do 3.º do 8.º Regimento de Infantaria, passava pelo Ginásio Nossa Senhora da Conceição e mal reconhecia o pátio das peladas de futebol. Onde os parentes, os amigos de infância, a casa que o viu nascer? Além da paisagem natural, do recorte das altas coxilhas por trás das quais, em menino, imaginava reinos deslumbrantes, pouco restava para a reconstituição de seu passado. A tal ponto tudo se transformara que a cidade lhe pareceu estranha como qualquer outra que lhe fosse desconhecida. Como Juiz de Fora, por exemplo, para onde foi transferido com a promoção a major. Seis anos depois da experiência mineira do 12.º R. I., seguia para Natal, quase a bem da disciplina. Um sacrifício que sua ingênua e romântica rebeldia impunha a Elza, uma incógnita para o futuro de Alírio. Para seu próprio futuro. Nada de importante que havia acontecido no país, ao longo desses anos, tivera grande relevância para ele porque sempre manteve-se à margem de cogitações políticas e em nada precisou intervir; nem mesmo para integrar a Força Expedicionária Brasileira, em sua atuação na Itália durante a Guerra, fora cogitado. Por que, então, tomar partido a favor de Getúlio? foi questão de um simples movimento de pernas, na noite da decisão. Todos os oficiais reunidos no Gabinete do Comando, um ao lado do outro, depois de uma rápida preleção do Comandante, o momento fatal:

— Quem estiver com Getúlio, um passo à frente.

Até hoje estava para saber por que dera aquele passo, quando teria sido até mais cômodo ficar onde estava, imóvel e indiferente ao comando da Nação. Com a deposição do ditador, a transferência compulsória para Natal. Ao recordar estes fatos, não pôde deixar de dar um soco na amurada do convés.

— Que foi, querido? – assustou-se Elza.

— Nada, agora o barco vai tomar a esquerda e daqui a pouco as luzes de Copacabana desaparecem.

Foi em Copacabana que Alírio viu o mar pela primeira vez. Imobilizado sobre a calçada de desenhos sinuosos da Avenida Atlântica, olhou o mar aberto, a bela curva da praia, o maciço de cimento armado dos edifícios. Conhecia o mar estático das fotografias, dos quadros reproduzidos em livros de arte, no cinema. Nada poderia suplantar a visão que tinha diante dos olhos, a variação infinita das ondas, o estrondo com que rebentavam na praia, a multidão de reflexos que o sol despejava sobre as águas. O cinema não passava de uma janela aberta, limitando toda a grandeza que ali se oferecia plenamente, não admitindo sequer um adjetivo. O mar. O oceano amplo sem qualquer obstáculo, o horizonte....

A bordo do Itaimbé, via agora Copacabana ao contrário. Não se conformava com a transformação de toda a luminosidade do mar diurno naquele negrume batendo compassado no casco do navio. Nem o horizonte se salvara. Salvara-se apenas o renque de luzes ao longo da Avenida Atlântica, por pouco tempo: o pai acabava de dizer que sem demora elas iriam desaparecer.

Elza acariciou as mãos do marido e do filho, frias pelo vento correndo ao longo do convés, alvoroçando os cabelos de todos.

— Que bom, vamos conhecer mais um pedaço do Brasil.

Disse isto com a intenção de tranquilizar Vitório, aborrecido com a transferência para um lugar tão distante responsável pelo afastamento cada vez maior da terra natal, nova transformação nos estudos do filho. Pela primeira vez, Elza sentia um pouco de medo. O Nordeste, para ela, só lembrava fome, miséria, cangaceiros. Apesar do frio, acostumara-se com Passo Fundo e as bravatas dos gaúchos; em Juiz de Fora deu-se bem, fez boas relações com os vizinhos, a princípio desconfiados, depois tão gentis e atenciosos que parecia estar morando perto de sua gente, em Joinville. Alírio, na idade de querer conhecer e saber de tudo, aceitara a cidade sem muitos percalços.

Elza olhou o perfil do filho, a pele clara pouco iluminada pelas lâmpadas do barco, os cabelos negros confundindo-se com a escuridão do céu noturno. Em que estaria pensando o seu menino, quase um moço, como se daria em Natal, como seriam seus estudos por lá? Tudo incógnito no pensamento de Elza. Não teriam sido estas as preocupações ao deixar Passo Fundo para enfrentar o desconhecido em Minas Gerais? Talvez, mas agora havia por acréscimo o pavor que o Nordeste inspirava às pessoas do Sul, ilustradas pela literatura das secas, da pobreza, do banditismo pelo Sertão, que o cinema e as revistas tornavam mais contundentes.

A campainha de bordo chamou para o jantar, interrompendo o pensamento de todos.

Depois do jantar, enquanto os pais se recolhiam ao camarote, Alírio pediu para ficar pelo convés olhando a noite, detendo-se na observação de tudo aquilo que o envolvia de uma forma misteriosa, longe da segurança da terra firme. As poucas pessoas que, como ele, haviam permanecido acordadas, não se demoraram muito ao ar livre e frio e uma sensaçãode paz apossou-se de Alírio.

O painel inteiro das estrelas corria de um lado para outro, ao ritmo harmonioso do balanço do Itaimbé. Deitado num lugar tranquilo da proa com as mãos sob a cabeça, ele olhava o céu que nunca vira tão povoado de luzes. A monotonia do movimento estelar acompanhando o jogo da embarcação, quebrava-se vez por outra quando um rastro luminoso de breve duração fendia o conjunto suave. “Não aponta que nasce verruga no dedo”, diziam-lhe quando em menino assinalava uma estrela cadente. Imaginou-se com uma câmara fotográfica esperando o ângulo ideal, a acomodação perfeita no limitado campo visual da máquina para fixar o flagrante.

Nada, ninguém para perturbá-lo. Embora preso ao reduzido espaço de um pequeno navio solto na imensidão do oceano, sentia-se livre como nunca. Um sentimento contraditório de liberdade, pois nada poderia fazer para modificar o rumo nem o destino do barco. Dependente, impotente, porém livre por nada ter a decidir ou com que se envolver. Submisso. Aqueles dias que permanecesse confinado a bordo, inteiramente sujeito aos desígnios da rota, eram seus. Podia pensar o que quisesse, cumprindo o ritual da campainha anunciando as refeições, conversando com os pais o indispensável. Eles se ocupariam com leituras, jogos, planos de futuro, tudo isto para auxiliar a passagem do tempo, um doce tempo de disponibilidade, a disponibilidade obrigatória de todos os que estavam entregues ao compromisso daquela viagem.

As palavras refeições e pais ficaram girando na cabeça de Alírio. Eis duas coisas indispensáveis. Comer, pelo menos, seria um exercício a carregar até o fim; quanto aos pais, talvez um dia viesse a prescindir deles. Até aqui vinha dependendo dos pais em tudo, roupa, comida, educação... Com a chegada dos catorze anos deveria falar com o pai, conseguir um emprego qualquer, salvar pelo menos o dinheiro para o cinema, um sorvete, ir com os futuros amigos a algum pic-nic, como fizera em Juiz de Fora. A profissão do pai dispensava-o de qualquer auxílio, como colaborar no estudo de um tema tático, por exemplo, quando Vitório fechava-se no escritório com mapas, cartas de situação, ordens de operações, a fim de preparar alguma instrução no quartel. Só uma vez o pai lhe deu uma aula de interpretação das convenções cartográficas, rios em azul, estradas em vermelho, elevações em curva de nível esverdeadas ou marrons, pântanos, bosques e florestas, as convenções para pontes, igrejas, povoados, vilas, cidades... um mundo de símbolos jamais imaginados. Alírio interessou-se bastante e a lição prolongou-se por tanto tempo que Elza veio interromper.

— Está na hora de dormir, meu filho.

Ao deixar o pai, quando ia começar a saber o que é uma escala gráfica, escutou a voz da mãe um pouco irritada.

— Por acaso queres que teu filho siga esta carreira?

— Não precisa ser militar para se aprender topografia.

Ao quartel, nunca ia. Seu contato com militares resumia-se aos ordenanças de Vitório e às visitas que os pais recebiam de oficiais e suas famílias, sempre se detendo em conversas aborrecidas que o faziam, na primeira oportunidade, fugir para os deveres do colégio, os livros de arte ou seus desenhos. Concorria dessa forma para facilitar Vitório e Elza na decisão de evitarem que o filho se entusiasmasse por uma profissão que ambos detestavam.

Sentindo o vento frio a deslizar pelo rosto, Alírio levantou-se e caminhou em direção à popa.

Juiz de Fora pertencia a esse tipo de cidade que pouco ou nada nos marca, por muito tempo que se viva nela. Lembrava-se apenas de cenas isoladas. Uma vez subiu com o pai e a mãe ao Morro do Cristo para ver a cidade do alto. Elza dissera:

— Parece um presépio.

Vitório, abraçando os dois como a protegê-los de qualquer tentação, falou em voz contida:

— Sempre que vejo uma paisagem assim de cima lembro-me de Satanás dizendo a Cristo: “Se me adorares, dar-te-ei tudo isto”.

Outra recordação apareceu mais nítida, quando se debruçou na amurada e viu o caminho efêmero de espumas que o navio deixava à sua passagem. Saíram uma tarde pela Rua Halfeld, depois sentaram-se no Bar Salvaterra. Aproximou-se um senhor que o pai apresentou como major do Regimento. Alírio distraiu-se da conversa de ambos sobre problemas do quartel até que o pai chamou-lhe a atenção.

— O Major quer saber o que pretendes ser quando cresceres.

— Quero ser artista.

— Artista é coisa de veado, disse o Major.

Alírio sabia o que isto queria dizer. No colégio havia um companheiro que todos chamavam de Gazela, parecendo uma menina. A mãe lhe dera uma explicação tão complicada que ele achou melhor não levar adiante suas indagações:

— É um distúrbio glandular que deixa o rapaz afeminado.

Pois essa explicação apareceu nítida sobre a mesa do bar e Alírio usou-a com tal convicção que deixou os dois majores espantados:

— Veado é um distúrbio glandular que eu não tenho.

Em alto mar a temperatura continuava baixando. Era preciso recolher-se que o pai recomendara acordar bem cedo para ver o sol nascer das águas. Com o mesmo passo lento, começou a voltar, olhando o espaço negro que rodeava a embarcação. A terra estaria à esquerda, sem sinal algum de sua existência. Longe, muito longe, para a direita, haveria mais terra, as terras da África que ele deseja conhecer um dia, como há de conhecer o Brasil inteiro, a Europa, o mundo.

Muitos fins de tarde o Coronel sentava-se na pequena varanda dos fundos, junto à cozinha, onde havia uma mesinha e duas cadeiras de palha. Gostava de olhar as árvores contra o azul do céu, a goiabeira, os pés de araçá, a laranjeira, um coqueiro alto, o tufo das bananeiras; a grama verde cobrindo o terreno até aos limites da propriedade, um quadrado dando para a rua principal, uma servidão, dois muros que o separavam dos vizinhos. Da varanda ele via, à esquerda, o movimento dos carros, três altas casuarinas cantando suavemente ao vento, uma pitangueira que, uma vez por ano, cobria-se de pequenos frutos vermelhos, alegria dos meninos e meninas da vizinhança. O que ele mais gostava de ver era as bananeiras, uns vinte pés em touceira com as largas folhas dançando na brisa vinda do mar. Ele tinha o cuidado de manter as palmas verdes, cortando as que iam amarelando, secando, penduradas ao tronco como trapos esquecidos.

Na parte mais plana e limpa do terreno, uma pirâmide de hastes finas de alumínio. O Coronel comprou-a de um vendedor ambulante que falou maravilhas sobre o objeto: as lâminas de barbear, sob a pirâmide, não perdem o corte; o leite não coalha; a água fica energizada e cura males do estômago, dos rins e intestinos. Tinha mais: ele poderia meditar sob a pirâmide e fazer pedidos que, se não fossem absurdos, seriam atendidos. Para isto, não se podia ficar com nada de metal, nem mesmo o relógio de pulso. “Entrar pelo Sul, sentar-se no chão com as pernas cruzadas, olhando em direção ao Norte; o pedido dito três vezes em voz alta; sair pelo Leste”. Para ver-se livre do homem, comprou.

A fim de dar algum sentido ao dinheiro gasto, gastou mais. Contratou pedreiro, mandou construir uma base nivelada de dois metros de lado, orientada segundo os pontos cardeais, montou a base, levantou a armação leve e elegante.

Que coisa poderia pedir o velho coronel aposentado? Mulher e filhos para fazer-lhe companhia? Lembrou-se de Elza e Alírio. Que fazer para mantê-los sempre junto a si, que mágica estaria ao alcance da pirâmide para que esse voto se cumprisse? Esse, por certo, um dos pedidos impossíveis a que se referira o mascate. Ser feliz! Pediria simplesmente para ser feliz, assim de modo abstrato, sem especificar a espécie de felicidade, sem definir tempo nem preço dessa felicidade. Até a morte, naturalmente. Mas se ele tinha quase tudo e sentir-se incapaz de formular aquele pedido porque sentia que isto também ultrapassava os poderes da pirâmide, não significava que o Coronel já era feliz? Feliz, de acordo com o que havia estabelecido para si. Se, por egoísmo, estava só, nada mais poderia querer daquele instrumento de alumínio a não ser paz de espírito. Pediria paz de espírito, paz de espírito inclusive para levar a bom termo o seu livro.

Levantou-se da cadeira, tirou o relógio de pulso, as sandálias com fivela de ferro e dirigiu-se descalço para a face sul da pirâmide. Começava a anoitecer, o céu coberto de nuvens negras, ninguém passando pela rua. Abaixou-se para não tocar nos varais e sentou-se bem ao centro do quadrado de cimento, sob o vértice das emanações cósmicas. Precisava dizer três vezes em voz alta, “peço paz de espírito”. Olhou janelas e portas dos vizinhos, todas fechadas. Mas alguém poderia estar espiando através das cortinas ou pelas frestas das paredes de madeira. Só por vê-lo descalço, sentado no chão como um faquir, não seria suficiente para considerá-lo maluco? Imagina se começasse a gritar por paz de espírito, olhos fixos no infinito! Em poucos dias a notícia se espalharia por toda a pequena cidade e quando ele passasse uns cutucariam os outros, fazendo aquele gesto com a mão junto à cabeça. As crianças, então, que não têm papa na língua, haveriam de gritar Coronel maluco! e sair correndo com medo dele. Adeus paz de espírito. Mesmo Lila, que não entende seu recolhimento em Porto Belo e às vezes pergunta pela família obrigando-o a respostas vagas, poderia passar a temê-lo, acabando por deixá-lo sem seus serviços.

Um trovão ecoou pelo espaço e o Coronel olhou assustado para o céu escuro, a tempo de ver um corisco rasgar as nuvens. Levantou-se às pressas e correu para a cadeira da varanda. A pirâmide rebrilhava aos relâmpagos com reflexos ora dourados, ora azulados, até que a chuva desabou violenta, lavando o quadrado de cimento onde estivera sentado.

Plantaria margaridas ao redor da pirâmide e a bela forma geométrica permaneceria ali como uma escultura no jardim.

Elizeth chegou sem nome à casa do Coronel. Mestiça de pastores belga e alemão, o pelo só não era negro em pequena parte do peito, amarelando também na extremidade das patas. O Coronel ficou em dúvida se aceitaria o presente de César, seu sobrinho. Trabalho com o trato, alimentação, as estrepolias que o animal faria até ficar adulto, rasgando coisas, sujando tudo sem acostumar-se com os lugares certos para suas necessidades... Concluiu haver espaço bastante em torno da casa, com um terreno amplo nos fundos que o bicho poderia usar como quisesse.

O nome surgiu por uma dessas associações absurdas: os olhos negros da cachorrinha, ágeis e brilhantes, lembraram-lhe a cantora que ele mais apreciava. Ficou sendo Elizeth Cardoso, coisa que ela jamais saberia e se soubesse haveria de alegrar-se que alguém de tão longe lhe prestasse uma homenagem de presença constante.

Embora contasse na decisão do Coronel manter Elizeth pelo que significava de companhia e distração, o que mais pesou foi a estranha energia que fluiu do contato de sua mão com o pelo macio, subindo dos dedos ao braço, atingindo o pensamento e varando o tempo, trazendo Almofadinha, à sua lembrança.

— Uma vez ganhei um cachorrinho, aliás não sei se ganhei ou se apareceu lá em casa. O nome era Almofadinha.

— Almofadinha?

— Usava-se dizer “onde é que vais assim todo almofadinha”, quando uma pessoa aparecia bem vestida. O cachorro compenetrou-se do nome e avançava em quem passasse maltrapilho. Até que um dia atacou a empregada da vizinha e minha mãe resolveu mandá-lo embora. Pois ele voltou. Não sei como acertou o caminho. Imagine que foi posto dentro de um saco, levado para os confins do Boqueirão e solto no mato. No dia seguinte apareceu todo feliz, sacudindo o rabo, e enroscou-se em minhas pernas como um gato.

— Mandaram embora de novo?

— Quem teria coragem?

Em Natal fora diferente.

Alírio correu para atender a campainha da porta e o mensageiro entregou-lhe um telegrama. Abriu-o às pressas e leu “Feliz aniversário Vó Amélia Tia Alice”.

— Como é o nome dele?

O mensageiro acariciava um cachorrinho preto e branco de olhos muito vivos, a cara dividida ao meio por um traço negro que surgia do alto da cabeça e se confundia com o focinho escuro. Um olho, circundado por uma mancha negra, parecia mais claro do que o outro, envolvido pela brancura do pelo. Sem dar atenção às carícias do carteiro, permanecia sentado sobre as patas traseiras encarando Alírio como se esperasse um cumprimento.

— Não sei o nome, apareceu agora.

Abaixou-se também e o animal, ao sentir a mão do aniversariante sobre a cabeça, passou a abanar o rabo todo feliz e quando Alírio levantou-se, saltou-lhe nas pernas.

— Parece de casa, acho que veio para ficar.

— E se tiver dono?

— Converse com ele, dê comida, mostre a casa e deixe-o dormir fora esta noite. Se amanhã ainda estiver aqui, não tem dono.

Quando Alírio ia fechar a porta o animalzinho virou a cabeça de lado com um olhar tão triste que não houve outra alternativa senão convidá-lo a entrar.

Elza preparava o almoço, leu o telegrama e perguntou:

— E o cachorro, veio pelo telégrafo?

— Estava na porta. Posso dar leite para ele? O carteiro disse que se ele não for embora até amanhã é porque não tem dono.

— E tu vais querer ficar com ele?

— Deixa, mãe, a gente vive tão sozinho.

Na manhã seguinte, lá estava ele junto à escada da cozinha.

— Não saiu daí nem para comer, disse Elza.

— Vamos escolher um nome?

— Por que não botas aquele da história que teu pai contou ontem?

Alírio resolveu testar a sugestão da mãe.

— Almofadinha!

O cão empinou as orelhas e levantou-se.

— Vamos passear?

Almofadinha correu para perto do dono e acompanhou-o em direção ao pequeno quintal.

— Cuidado com a horta de teu pai, disse Elza.

O Coronel acariciou Elizeth que se deitou de barriga para cima e mordeu-lhe a mão de leve. Gorda e muito satisfeita, correu por toda as peças da casa e adonou-se de tudo.

O dia a dia da família Lima e Silva era bastante tranquilo, em Natal. Alírio às voltas com os estudos e seus desenhos, para Elza os serviços de casa, Vitório inconformado com os problemas do quartel. Como em outras cidades por onde andaram, uma horta mínima, com apenas dois canteiros, ocupava seus momentos vagos nas tardes de domingo. As visitas eram pouco comuns, apenas alguns oficiais com as esposas, outros à procura do Major para resolver casos imprevistos, de urgência. O mais assíduo era o Tenente Correntino. De vez em quando aparecia para almoçar aos domingos, ou de improviso para conversar e beber alguma coisa. Solteiro, a família em Minas Gerais, encontrava nos Lima e Silva um pouco de calor familiar que não poderia ter no quarto de pensão que dividia com outro tenente.

Alírio gostava da maneira cuidadosa como Correntino manuseava seus desenhos, detendo-se em cada um, revendo outros.

— Se você quer dar destaque ao Almofadinha, por que misturá-lo com este fundo tão complicado?

Tomava um gole de bebida e voltava a observar:

— Gosto destas árvores, mas você não acha que este verde está carregado demais em relação aos outros?

Correntino dava atenção ao trabalho de Alírio para receber dele condescendência para suas conversas sobre literatura. Lia muito, correspondia-se com alguns escritores do Rio, jovens como ele, e escrevia coisas que não se sentia com coragem para mostrar. “Qualquer dia trago para você ler”. Mas nunca trazia. Tanto quanto para Vitório, a vida militar lhe era um pesadelo e, também como Vitório, seguira a carreira para não descontentar o pai. No Regimento, enquanto Vitório comandava um Batalhão, Correntino era apenas subalterno de uma companhia de fuzileiros.

Uma noite chegou rindo à casa do Major.

Durante a tarde dera uma instrução de granadas de mão para seu pelotão atento, sentado à sombra dos coqueiros que circundam o pátio. Falou em granada ofensiva, defensiva, mostrou todas, inclusive a granada paulista, cheia de gomos e saliências como um abacaxi. Ao final, escolheu o soldado que lhe pareceu mais vivo.

— 111, o que é uma granada?

— É um abacaxi, seu tenente.

Outra noite veio contrariado e triste. Escalado para o serviço de oficial-de-dia, foi assistir à distribuição do almoço, servido num rancho coberto de palha de coqueiros porque um comandante, ao tempo da Segunda Guerra Mundial, havia transformado o pavilhão-refeitório em prisões, na tentativa de disciplinar a tropa exasperada com a ideia de seguir para a Itália. Os soldados faziam filas junto aos camburões de comida para receberem a ração, dirigindo-se depois para as mesas rústicas formadas de tábuas apoiadas em barrotes fincados na areia. Comiam de pé, sem ao menos tirarem os chapéus de lona verde-oliva.

A primeira providência de Correntino foi mandar os soldados se descobrirem. Comiam com tal sofreguidão que muitos deixavam o talher de lado, usando os dedos para fazerem um bolinho de feijão e farinha, jogado à boca num gesto rápido e certeiro. A pior impressão estava reservada para o final. Como sobrasse alguma comida no fundo dos panelões, os mais famintos ficaram rondando o sargento-rancheiro à espera da ordem para pegar a chepa.

A um grito do sargento, a turma avançou para as panelas aos atropelos, uns derrubando os outros, por um resto de feijão, farinha, algum nervo como notícia de carne.

— Mais de noventa por cento são analfabetos, dona Elza. Não têm noção alguma de boas maneiras.

Correntino passou a contar outro fato, acontecido com o Tenente Otacílio, seu companheiro de pensão.

— Ele levou o pelotão para uma instrução de patrulha, no campo, e explicou que o inimigo estava entrincheirado na orla do matagal em frente. A missão da patrulha era progredir pelo terreno o mais escondido possível e fazer o assalto, prendendo o inimigo.

Alírio ouvia interessado e ficou pasmo com a conclusão.

— Se o Otacílio não chegasse a tempo, haveria uma verdadeira chacina, tal a maneira como os soldados entenderam a palavra inimigo.

Vitório conhecia muito bem tudo isto, os homens despersonalizados com a troca do nome por um número, da roupa civil pelo uniforme, corte de cabelo a zero, ordem-unida para automatizá-los, ficavam em condições de cumprir qualquer ordem.

Lidando com homens desta natureza, não era de estranhar o comportamento do próprio comandante, um velho coronel apelidado de Boca de Bagre porque tinha a boca torta de tanto segurar um cigarro apagado no canto direito dos lábios. Não o tirava nem para falar.

De manhã cedo, todo o Regimento em uniforme de educação física, inclusive a banda de música com os velhos sargentos grisalhos e barrigudos, chegava Boca de Bagre a cavalo, também de calção e camiseta como toda a tropa. De cima da montaria, gritava:

— Bom dia, meu Regimento!

Não chegava ao cavalo do Comandante, nem seria possível identificar os que preferiam responder:

— Bom dia, filho da puta!

Havia razão para esse ódio e desprezo: o rigor das punições, a péssima comida, a falta de conforto nos alojamentos, a pobreza dos meios para a instrução da tropa. Nem tudo era culpa do comandante: depois da Guerra, o antigo Trampolim da Vitória que havia sido Natal; que recebera a visita de Getúlio e do Presidente Roosevelt; que mal dormira com as centenas de aviões americanos aterrissando e decolando em Parnamirim cheios de tropa e armamento para a Europa; Natal estava esquecida pelo centro político do país.

— Acho que ele pensa compensar o descaso das autoridades com a prepotência, dizia Vitório.

— Ou então é maluco, acrescentava Correntino.

E lembrou uma história de Boca de Bagre:

Quase ao fim de uma marcha de trinta quilômetros, os soldados mal suportando o peso da mochila e das armas, os pés feridos dentro das botinas pesadas para quem sempre andara descalço, as luzes do quartel aparecendo como uma esperança de descanso – ouve-se o toque de alto seguido do toque de rancho.

O comandante apelava para a única coisa que ainda poderia dar algum alento aos homens: o estômago. Os carros-cozinha passaram da retaguarda para a frente da coluna, todos se desequiparam às margens da estrada, entrando em fila para receber a comida. No meio de todo o cansaço e o desejo de chegar logo ao quartel para um banho frio, alguma alegria acordou entre a soldadesca que, aqui e ali, fazia ouvir um tímido arremedo de batucada do talher contra a marmita.

Ninguém podia esperar aquela ordem dada ao corneteiro por Boca de Bagre:

— Toque alarme aéreo.

Indiferente sobre o cavalo, o eterno cigarro apagado na boca torta, o comandante esperou que toda a tropa desaparecesse da estrada pra fugir ao bombardeio dos aviões imaginários, assinalados por longos monótonos toques de corneta.

Puxando as rédeas da montaria contra o peito, Boca de Bagre ordenou:

— Virem os camburões de comida.

O Coronel mexia com o dedo indicador as pedras de gelo submersas no amarelado da bebida. Elizeth dormia no chão da varanda, cansada de tanto correr ao redor da casa logo que foi solta do canil. Os olhos do Coronel iam da bebida à cachorra, percorriam as árvores, a pirâmide, o céu. Passara o dia sem conseguir escrever nada, sem prender-se à leitura, diversos livros começados. Quando isto acontecia, costumava folhear ao acaso livros de Drummond, Cecília Meirelles, Fernando Pessoa, admirando a concisão dos poetas. Nesse dia, nem os poetas conseguiram pacificá-lo.

O olhar inquieto fugia de fixar-se no portãozinho junto às bananeiras ao fim do pátio, por onde entravam as pessoas vindas pelos fundos. Por ali, a passos lentos e cuidadosos, entrava sua irmã Ester. Parecia ouvi-la dizendo, como da última vez, “Vim te saudar pelo Natal”. Sentava-se ao lado dele na mesma varanda onde se encontra agora, falava com voz pausada e clara sobre os filhos, netos, bisnetos e disse uma coisa que muito entristeceu o Coronel: “Todas as noites peço a Deus que me leve”.

Ester, em sua fraqueza de fim de vida, sabia-se pesada para as duas filhas que moravam em Porto Belo. Não podia mais ajudar em nada. Era quase uma sombra, incômoda e triste dentro de suas casas, passando tempos com uma, tempos com a outra, doendo-lhe o coração sensível e fraco a cerimônia da mudança. Arrumava a malinha de roupas e lá se ia perturbar a paz de uma das filhas.

No entanto, havia sido grande e forte. Depois de professora por muitos anos, de ter criado quatro filhos e sofrido a incompreensão do marido que acabou por abandoná-la, teve a coragem de deixar sua cidade para tentar a vida em outra, onde fazia programas de rádio, lia poesias suas e de outros poetas, dava conselhos de amor e compreensão, falava às crianças que tanto amou. Quando recolheu-se à solidão de Porto Belo, onde a calma do mar e as fracas ondas na praia aconselhavam-na a ter paciência, mais paciência, sempre paciência, conheceu breves momentos de revolta. Mas a beleza das flores, dos pássaros, do pôr-do-sol, a alegria das crianças que passavam para a escola e lhe pediam um verso, qualquer coisa assim lhe dava ânimo para prosseguir, para viver os doridos tempos da inutilidade.

Até que um dia o coração negou-se a ser cúmplice de Ester. Ela, que permaneceria nos filhos, nos netos e bisnetos, nos versos de amor que nunca havia sido doce e perfeito como imaginara, ela precisava outra vez mudar de cidade, não mais para tentar a vida mas aceitar a morte como dádiva final.

O Coronel foi vê-la no leito de morte, rodeada de flores e de crianças atemorizadas recitando seus versos. Impossível imaginar como oitenta anos haviam circulado pelo sangue agora petrificado. O brilho de seu pensamento era um cristal no escuro. Nunca mais um sorriso, extintas todas as possibilidades de ação, contas encerradas. A palavra, o riso, as lágrimas, todos os sentidos anulados na imobilidade de um corpo frio que nada mais podia decidir.

Olhando as pedras de gelo quase totalmente dissolvidas, o Coronel ficou na varanda até que as sombras da noite igualassem tudo.

Numa tarde em que voltava para casa na viatura do quartel, Vitório não conseguiu participar das brincadeiras dos colegas, animados ao fim do dia com a possibilidade de estarem novamente juntos à mulher e aos filhos ou, no caso dos solteiros, algum programa alegre que compensasse a lida sem muitos encantos com a tropa.

— Fico na esquina.

O Major respondeu às despedidas dos companheiros com uma continência e entrou pela rua Professor Zuza, no centro de Natal. Apalpou o telegrama no bolso da gandola verde-oliva. Como revelar a Elza? Ou contaria primeiro ao filho? Diminuiu o passo para retardar inutilmente o momento a que não poderia furtar-se. Culpava-se mais uma vez, por ter trazido a mulher para tão longe: mesmo que tivesse condições para mandá-la de avião, as conexões entre Rio e Curitiba, mais o percurso por terra até Joinville, impediriam Elza de chegar a tempo de ver a mãe morta. Poderia fazer um empréstimo, comprar a passagem em prestações, mesmo que fosse apenas para Elza consolar Alice, agora sozinha, necessitando de assistência e carinho. A decisão de ir ou ficar caberia a ela; dar a notícia dolorosa só a ele competia.

No portãozinho gradeado, Almofadinha recebeu-o alegre, como todos os dias. Vitório não lhe deu atenção e o animal encolheu-se ofendido, caminhando desconsolado para os fundos da casa.

Em vez de procurar a mulher, entrou no quarto do filho. Alírio estava debruçado sobre os livros de estudo e não percebeu a entrada do pai. Vitório deteve-se a olhá-lo. De camiseta olímpica, toda a força de seus braços estava à mostra nos músculos em repouso sob a pele queimada de sol. Uma coisa desagrada Vitório: aos dezesseis anos, Alírio insistia em ser artista, quando ele pensara que aquilo fosse coisa de criança. Gostaria de vê-lo formado em alguma opção mais objetiva, medicina, engenharia, direito, uma profissão definida que ajudasse a manutenção da casa.

A entrada de Almofadinha alertou Alírio.

— Que cara é esta pai?

Vitório tirou o telegrama do bolso e estendeu ao filho.

— Depois do jantar, começou Vitório. Tu voltas a teus livros, eu saio com ela e vou preparando o espírito, não sei como, na hora deve surgir uma ideia qualquer.

— O senhor não acha que é melhor eu ir junto?

— Talvez.

Ao ver-se só, Alírio tentou retomar o estudo, como se tudo pudesse continuar igual. A primeira dificuldade foi concentrar-se no texto. Distraidamente, pegou o compasso e começou a traçar círculos sobre uma folha em branco. A esse gesto de início leve e espontâneo, depois rápido e nervoso, correspondeu um som doce e prolongado, suave, renitente, que lhe foi trazendo à ideia uma porção de linhas de cor, logo reunidas em faixas a princípio soltas no espaço, dançando ao sabor do vento como serpentinas remanescentes do carnaval. Sem tentar explicação para aquela estranha sensação, percebeu que as faixas se concentravam em rodopio numa forma ovalada, zunindo no chão até concretizar-se num bojo de pião. O pião que Vó Amélia lhe levara de presente quando criança, em Passo Fundo. A cabeça pendida sobre o bloco foi-se inclinando até que os lábios tocaram o papel frio. Os músculos tensos dos braços foram-se relaxando à medida em que os círculos desenhados se embaralharam com a aproximação dos olhos, as cores e o som desapareceram para dar lugar a uma completa escuridão, as lágrimas começaram a brotar e escorriam sem controle possível.

Procurou dominar-se, levantou a cabeça, olhou firme para o teto e permaneceu assim até que as lágrimas estancaram. Foi ao banheiro lavar o rosto. Pretendia procurar a mãe, dizer alguma coisa, perguntar o que se ia comer no jantar, fazer-lhe um carinho... Impossível. Voltou ao quarto e sentou-se à beira da cama, cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça entre as mãos. Almofadinha aproximou-se com olhar preocupado e Alírio começou a alisar-lhe o pelo.

Vó Amélia tinha conversado com ele em Joinville, dias antes do Natal. Queixou-se da saúde, disse que o médico foi muito reticente mas não deixou de alertar que “o coração é muito mal educado, não costuma dar aviso”.

— De repente, a gente se vai, concluíra Vó Amélia.

Na hora do jantar, Elza perguntou de chofre:

— Que é que vocês estão me escondendo?

— Nada, disse Vitório. Depois do jantar vamos dar uma volta, nós três.

Quando saíram, Elza de braço entre o marido e filho, havia uma brisa tornando a noite agradável.

— Fazia um tempão que não andávamos assim.

A observação de Elza não recebeu comentário algum e ficou ressoando junto ao eco dos passos pela rua estreita e quieta que desembocava na Praça João Maria, soturna e silenciosa. As árvores se tocavam pelas copas, escurecendo tudo. No primeiro dia em que passaram por ali tinham parado no meio da pracinha, olhado o busto do Padre João Maria, o nome lido com alguma dificuldade na placa em latim falando em pobres enfermos. Depois souberam que o padre fora muito piedoso e amigo dos pobres a quem dava tudo, até a rede, e dormia no chão. Diziam que ele fazia milagres, por isto sempre havia velas acesas ao pé da estátua. O milagre mais comentado foi o da Lagoa Seca. Contavam que a lagoa secou, o padre rezou pela volta das águas, elas voltaram para sempre. Mas hoje, que tudo era conhecido de Vitório, Elza e Alírio, que fazer naquela praça silenciosa e escura senão aproveitar a escuridão e pedir auxílio ao Padre João Maria para que Elza não sofresse muito, que aceitasse o fato sem muita relutância.

Alírio não suportava mais o silêncio, aquele medo da verdade pela qual ele nem o pai eram responsáveis.

— Vamos para casa, pai, lá será melhor.

No trajeto de volta, Elza entendeu tudo. Pelo silêncio contido de ambos, o estremecimento que percorria de quando em quando o corpo do filho apoiado em seu braço, a maneira cuidadosa como Vitório olhava para o chão da rua mal iluminada a fim de evitar qualquer pequeno incidente do calçamento esburacado, num desvelo sem precedentes. Primeiro concluiu que o segredo ou a revelação não tinha a ver com Alírio, pois nada percebera de anormal até a chegada do marido; também não com Vitório porque a primeira pessoa a ser procurada seria ela, não o filho, como aconteceu nessa tarde. Súbito lembrou-se de Alice contando que fora ao médico às escondidas da mãe e sabia tudo sobre o seu estado. Sim, era isto. Mas não queria acreditar. E seria justo prolongar o sofrimento do marido e do filho, conivente com o inútil adiamento da comunicação?

Ao chegarem ao portão, Vitório tirou o telegrama do bolso e amassou-o na mão.

— Não, não é preciso dizer nada, só quero que me deixem ir chorar sozinha.

Aproximava-se o dia 27 de novembro, quando em todos os quartéis do Brasil são lembradas as vítimas da Intentona Comunista de 1935, com formatura geral e dissertação por um oficial de cada Unidade. O 16.º R. I. não poderia fugir à regra, ainda mais que Natal fora um dos focos do levante e Boca de Bagre encarava o comunismo como um fantasma. Por isso ninguém surpreendeu-se com a designação do Major Vitório para fazer a preleção.

Pouco afeito a envolver-se com política, principalmente depois da idiota tomada de posição a favor de Getúlio, o Major sentia-se incapaz de alinhar ideias a respeito do comunismo que, para ele, não se afigurava tão fantasmagórico como para muitos companheiros. Além disso, embora fosse um redator reconhecido por muitos comandantes, sempre fugia de falar em público, resumindo a poucas palavras o que tivesse de transmitir à tropa. Mas teria de cumprir a determinação do Comando, ainda que estranhasse sua designação, em geral feita a oficiais de menor posto.

Passou horas consultando manuais e livros em casa e no quartel, mas as informações eram vagas, incompletas, insuficientes. Desesperado com sua incapacidade de florear os fatos, dando-lhes as cores dramáticas necessárias à manutenção da ideia corrente sobre doutrinas exóticas, vislumbrou a salvação na Ordem do Dia publicada pelo Boletim da 7.ª Região Militar, a que o Regimento era subordinado. Alterou algumas frases, incluiu a participação do 16.º R. I. com informações retiradas do Livro Histórico da Unidade e deu por encerrado o trabalho.

Chegado o momento, Vitório leu o arrazoado com voz firme e mãos trêmulas perante todo o Regimento formado. Logo depois da cerimônia, o corneteiro espalha por todas as arcadas do quartel o toque de reunir oficiais. Quando todos haviam chegado ao gabinete do comandante, Boca de Bagre tossiu anunciando que ia falar, olhou para Vitório e foi direto ao assunto:

— Major Vitório de Lima e Silva, estou a par de suas alterações de oficial e acabo de reler sua Ficha de Informações a que falta apenas meu conceito. Pelos elogios que tem recebido ao longo de sua carreira, notei as excelências de seus dotes intelectuais. Foi por esse motivo que o escolhi para fazer a preleção de hoje, na esperança de que seu decantado talento estivesse a serviço da luta que travamos contra o comunismo. Em vez de uma brilhante peça de sua autoria, o senhor se limita, quase ipsis literis, a ler uma ordem do dia que é do conhecimento de todos. Para isto eu poderia ter designado qualquer sargento.

O comandante parou de falar, passou os olhos por todos os oficiais que formavam uma linha curva em torno da mesa, fixou um olhar severo na figura acabrunhada de Vitório, e esperou.

Alguns oficiais olhavam para o chão, outros reparavam o rosto duro do coronel que, nem para uma admoestação tão longa havia tirado o cigarro da boca torta. Correntino, como todos, aguardava uma explicação do Major que, tomado de surpresa, nada conseguiu dizer.

— Tomei a liberdade de reunir toda a oficialidade, independente de postos inferiores ao seu, Major Vitório de Lima e Silva, porque sua transgressão foi pública.

— Transgressão, meu coronel?

— Ou não será transgressão disciplinar cumprir com tanto descaso uma ordem de seu comandante, envolvendo matéria de tal importância?

— Mas, meu coronel...

— Minha justiça é clara como água. Acabo de lhe dar tempo para uma justificativa, que não veio. Considere-se repreendido verbalmente. Obrigado, senhores, podem voltar a seus afazeres.

A partir daí, Vitório, diminuído na presença de subordinados, poderia considerar-se no índex e a melhor coisa a fazer seria tratar da transferência, antes que Boca de Bagre o fizesse. Aliás, havia um perigo latente nas palavras do comandante quando se referiu ao conceito que escreveria do próprio punho na Ficha de Informações. Como precaver-se? O documento era confidencial, só o Secretário tinha acesso a ele e por força alguma haveria de revelar. Também, por uma questão de amor próprio, Vitório jamais pediria tal informação a um oficial de patente inferior à sua. Assim, Vitório de Lima e Silva, com todo o parentesco que o relacionasse ao Duque de Caxias, em tempo algum saberia o conceito de Boca de Bagre a seu respeito. Mas poderia imaginá-lo. Se não de todo negativo, seria suficientemente neutro para retardar-lhe a promoção a Tenente-Coronel.

Na noite desse mesmo dia, Alírio abriu a porta da sala para sair com Almofadinha no momento exato em que Correntino ia tocar a campainha. Ao contrário das outras vezes, o tenente chegou nervoso, sem conseguir disfarçar uma grande preocupação. Mal cumprimentou Elza e dirigiu-se apressado a Vitório:

— Major, precisamos conversar em particular. Desculpe dona Elza, é assunto de quartel.

Vitório imaginou alguma complicação que Correntino enfrentasse no Regimento, mas o que as sombras da Praça João Maria iriam revelar eram apreensões para ele próprio.

— Major, somos comunistas.

— Quem?

— Eu, o senhor, e até Alírio.

Sentou-se a um banco e, mais calmo, contou que o Tenente Otacílio soubera de uma conversa entre Boca de Bagre, o Sub-Comandante e o Major Fiscal. O comandante insinuara coisas...

— Que coisas?

Boca de Bagre começara criticando a reclusão da família Lima e Silva. Ao que ele soubesse, recebiam apenas Correntino. Não era estranho que, mesmo no quartel, andassem juntos discutindo livros que ninguém sabe do que tratam; não era estranha a intimidade do Major com um oficial de posto inferior; que o filho nunca aparece no quartel e a quem o Major Vitório livrou do serviço militar?

— Otacílio disse que Boca de Bagre concluiu: “São todos da mesma laia. A ligação dos três deve prender-se a certas ideologias encontradas em tais livros.”

— Absurdo!

— Tem mais, Major, a sua indicação para a preleção de hoje foi uma espécie de teste.

— Por que não me avisou?

— Só fiquei sabendo depois da reunião de oficiais. Otacílio nem queria que eu lhe falasse porque não pode revelar quem lhe contou tudo isto. Temos que agir como se não soubéssemos de nada.

Vitório não tinha mais dúvidas, era preciso apressar a transferência, iniciar o quanto antes a irritante correspondência com colegas em serviço na Diretoria do Pessoal, no Rio, antes que o Comandante tomasse a dianteira, o que lhe seria mais fácil pelos contatos importantes que teria no Ministério da Guerra.

— Vamos até lá em casa tomar um café, convidou.

Escondendo parte dos fatos, inclusive o envolvimento de Alírio na intriga, Vitório foi contando a Elza o que se passava.

— Ainda bem que Alírio está se formando no mês que vem, disse ela.

Sentou-se ao lado do marido e perguntou:

— Afinal, o que pode acontecer? Vocês podem ser presos?

— Não, nada de prisão, existem apenas desconfianças do Boca de Bagre. Mas bem sabemos como ele é, pode nos transferir para o diabo que o carregue.

A conversa foi bruscamente interrompida pela entrada de Alírio transtornado, manchas de sangue na camisa, olhos cheios de lágrimas.

— O que foi, meu filho?

— O Almofadinha... foi atropelado.

Todos saíram apressados atrás de Alírio, encontrando Almofadinha espichado no chão do jardim, olhos abertos e parados, alheios a qualquer aceno.

Elza benzeu-se. Era preciso sair de Natal antes que acontecesse coisa pior.

Vitório chegou em casa tão acabrunhado que nada poderia ser adiado ou escondido. Chamou Elza e Alírio.

— Fui transferido para Corumbá, no Mato Grosso. Deu hoje no noticiário da rádio do Ministério da Guerra.

Mais uma vez, por sua culpa, iriam para um lugar desconhecido que ele vagamente sabia ficar na fronteira com a Bolívia.

— Vocês não dizem nada?

Eles já sabiam. Para preparar o espírito da família Correntino havia antecipado a notícia.

Alírio foi ao quarto e voltou com o velho Dicionário Enciclopédico.

— Está aqui. “Corumbá, município e cidade do Estado do Mato Grosso; a cidade está situada à margem direita do Rio Paraguai. População, dezesseis mil habitantes”. No Atlas é uma rodinha preta no limite do Pantanal Mato-grossense com a Bolívia.

Alírio lia e falava muito rapidamente, quase aos gritos, como um narrador de futebol. Disse a palavra Bolívia alongando-a como se anunciasse um gol. O casal não pôde deixar de rir, o filho abraçou pai e mãe e tentou rodar com eles, forçando uma dança até findar-se o constrangimento.

Iria começar o difícil e cansativo problema de providenciar tudo para cumprir a transferência do Nordeste para o Oeste, milhares de quilômetros num país tão grande, encaixotar móveis, louça, material de cozinha, roupas, livros, quadros, um aborrecimento que cada qual disfarçaria da melhor forma possível.

Antes de iniciar o trabalho, Vitório reuniu-se com a mulher e o filho. Ficou decidido se desfazerem de todas as coisas dispensáveis, inclusive alguns móveis, roupas fora de uso, utensílios em mau estado, revistas, livros que nunca mais pretendessem ler nem servissem para consulta.

Mas como decidir entre o útil e o dispensável dessa tralha que se vai acumulando ao longo do tempo? Para Elza e Alírio, os dois caixotes com regulamentos, documentação de exercícios militares, polígrafos guardados desde o Curso de Aperfeiçoamento, pastas e mais pastas que faziam parte da bagagem de Vitório, eram coisas dispensáveis. Para o Major, dispensáveis seriam os volumes com a multidão de desenhos de Alírio, reunidos ciosamente por ele e a mãe, a começar com os primeiros rabiscos de Passo Fundo até a série do Almofadinha, tão elogiada por Correntino. Quem se atreveria a dizer que Elza queimasse as caixas de correspondência com a mãe e Alice, guardada como uma relíquia sem preço, ou o traje de casamento, desde a grinalda até o sapato branco de bico fino? Ela própria muitas vezes achava ridículo esse apego ao passado, principalmente pela vida nômade que, pelo jeito, jamais teria fim.

Nos momentos de decisão sobre o dispensável e o indispensável, houve uma tolerância muito grande entre Vitório, Elza e Alírio: cada qual precisava do apoio dos outros para salvar certos objetos totalmente idiotas para um, mas secretamente amados pelo outro, não pelos objetos em si, mas pela pessoa que os deram, pelo dia e lugar onde foram ganhos ou comprados, por esses imponderáveis que acrescentam de muitas quinquilharias a bagagem de quem se muda.

Nunca, na vida dos três, as palavras útil e inútil foram tão elásticas. Afinal, fosse onde fosse, no Norte, no Sul, em qualquer pétala que a rosa cardeal os levasse, cada um deles sentia a necessidade de ser mais amplo que o simples volume físico que ocupavam no espaço. Além disso, a própria dimensão interior se engrandecia com essa reverência ao útil-inútil, ao material-espiritual, como também facilitava a adaptação a novos ambientes onde, quando se sentissem perdidos poderiam reencontrar-se com a presença de uma velha poltrona, a costumeira xícara de café, um antigo quadro na parede. A vida, para eles, também se construía com essas pequenas coisas que, muitas vezes, valem por pessoas que já perdemos, que não pudemos amar ou conservar, ou que não podemos esquecer.

O mesmo Itaimbé, em outro janeiro, saiu do porto de Natal, passou pelo Forte dos Reis Magos, “o solitário e silente forte no seu pedestal de formoso monumento”, como escreveu um intelectual da terra, afastou-se das luzes da cidade e enfrentou a escuridão da noite.

Como não conheciam Corumbá, nem soubessem das dificuldades ou facilidades de moradia, ficou decidido que Vitório iria sozinho até que tudo estivesse em ordem, a mudança a cargo do Serviço de Embarque do Exército. Enquanto isto, Elza iria a Joinville, onde Alice a esperava para resolver o problema da herança ainda pendente na justiça, e Alírio, apesar de toda a relutância da mãe, ficaria no Rio para continuar os estudos.

Vitório estava com mais de vinte e cinco anos de serviço e poderia passar para a Reserva quando quisesse; só não o fazia para, mais tarde, deixar a família bem amparada, com novas promoções e montepio maior. Mas não descartava essa possibilidade:

— Se Corumbá for insuportável, assino o requerimento.

Elza concordou com tudo para não forçar o marido a repisar velhas mágoas, lamentar-se por estar forçando-a a essa nova e desagradável aventura. Quando ia para Natal, ela teve medo de cangaceiros; agora, o medo voltava-se para onças, cobras e jacarés.

Era preciso tirar as compras da sacola deixada no sofá da sala, soltar Elizeth que havia percebido a chegada do Coronel e começara a latir impaciente no canil, preparar a refeição noturna do animal.

Um saco de ração estava na sacola, junto a dois pacotes de adubo para plantas, queijo comprado no Mercado, os três pacotinhos coloridos que ele deixou sobre a geladeira. Quando tudo estivesse pronto, estudaria cuidadosamente as instruções para uso.

O Coronel soltou Elizeth que correu pelo jardim, deu voltas à casa, depois sentou-se na varanda, empinada nas patas dianteiras, orelhas em pé, aguardando a comida. A ração era misturada com polenta preparada por Lila numa grande panela para durar uns três dias, amornada com um pouco de leite e servida numa cumbuca de alumínio. Obediente, Elizeth esperava a palavra de ordem: “Vai”. Comia tudo com grande sofreguidão e, ao final, lambia a cumbuca até ficar totalmente vazia e limpa.

A cachorra estava grande e bonita, acompanhando o Coronel em seus passeios pela praia e adorando banhos de mar. Nadava ao lado dele, outras vezes entrava n’água sozinha para qualquer coisa lançada às ondas. Quando ele ia ao correio, precisava conduzi-la pela guia para evitar acidentes e outros aborrecimentos. Um dia, ela entrou por um terreno baldio e atacou uma galinha ciscando o terreiro. Uma nuvem de penas brancas subiu ao ar e se ele não acudisse rápido, seria uma vez uma galinha viva. Aos poucos, o Coronel foi desistindo de levá-la; com tanta força, a guia puxada para todos os lados, era Elizeth quem conduzia o patrão.

Que sentido poderia ter aquele animal na vida do Coronel? Foi nisso que ele pensou, vendo-a comer. Coisas, pessoas ou bichos que fazem parte de nossa vida, pensava, precisam ter um sentido maior além da simples presença. Só essa utilidade não o satisfazia, tentava encontrar algo relacionado com seu próprio universo. Como seria feita a ligação entre os universos individuais para que o conjunto tivesse lógica?

Quando morria alguém que tivesse legado uma obra, não lhe era difícil aceitar a condição humana; se a pessoa havia sido insignificante para os outros, ou inútil para si e para os outros, perguntava-se a razão daquela existência e recusava-se a justificá-la. O insignificante e o inútil davam voltas em seu pensamento, sentindo-se incapaz de concluir qual a dosagem necessária para reverter-se o valor desses conceitos. Seria possível dar razão a Raskolnikov que matou uma velha por considerá-la inútil?

E quanto a ele próprio? Como poderia o Coronel estabelecer seu grau de utilidade em relação a si e aos demais? Ter passado tantos anos dentro do Exército, ensinando o que foi convencionado ser útil e necessário, seria suficiente ou tornava-se imprescindível acrescentar algo mais para justificar-se? Escrever um livro. Ora, quantos milhões de livros foram escritos que não melhoraram ninguém. Talvez fosse necessário tentar, entrar na competição, fazer o melhor sem cogitar do valor da própria obra. Porque “muitos são convidados e poucos escolhidos”.

Em matéria de arte literária, questões específicas perturbavam o Coronel. Se queria saber o sentido de Elizeth em sua vida, por que não pensar, antes, na necessidade de incluir Almofadinha em seu livro? Simplesmente, porque houve um Almofadinha grato à sua infância? É certo que, no livro, o cão de Alírio foi útil porque serviu-lhe de modelo para seus desenhos. A dúvida era saber se isto ficou explícito no que escreveu ou se precisaria acrescentar novos incidentes. Lera uma vez em Tchekov que se aparecer uma espingarda num conto, ela tem que disparar. Nada deve ser gratuito, tudo deve ser costurado de tal forma que, no final, coisa alguma possa ser retirada ou acrescentada. Como num soneto. Mas as dimensões de um romance não concederão mais liberdade ao escritor? A partir dessas dúvidas, o Coronel desanimava ao tentar justificar a presença de Correntino, do Major Nepomuceno em Passo Fundo, da citação do Sargento Moisés e do Capitão Braga por sua atuação na Revolução de 30.

O Coronel corria em defesa de si próprio para não aceitar a exigência do escritor russo como regra geral. Poderia valer para A Morte de Ivam Yllitch, mas não valeria para Guerra e Paz; para o O jejuador, de Kafka, não para América; ajustava-se a todos os contos do autor da frase; serviria para A Rose for Emily, de Faulkner ou A morte em Veneza, de Thomas Mann, não para Luz de Agosto ou A Montanha Mágica.

A lembrança da ponte pênsil, em Florianópolis, deixou o Coronel perplexo. Com mais de oitocentos metros de extensão para ligar a Ilha de Santa Catarina ao Continente, uma ampla e elegante catenária no vão central ligando as duas torres, centenas de cruzetas de sustentação e equilíbrio na estrutura metálica, milhares de parafusos cuja existência nem se percebe – e tudo absolutamente necessário. O mais importante da ponte não foi o cálculo estrutural, embora indispensável. Também não reside na utilidade o significado de seu valor maior. O que faz dessa ponte o símbolo da cidade é a beleza de suas linhas; a ponte como obra de arte.

O Coronel voltou a dar razão a Tchekov, palavra por palavra, parafuso por parafuso.

Até que fossem resolvidos todos os problemas surgidos com a transferência do Rio Grande do Norte para o Mato Grosso, Vitório, Elza e Alírio puderam medir o amor que os ligava pela falta que sentiam uns dos outros. Quantos pequenos gestos recordavam a convivência de tantos anos. Em momentos diversos, quem sabe no mesmo instante, um pensamento comum os assaltava:

— Que estarão fazendo agora?

Vitório poderia imaginar a mulher na casa de Joinville, o filho no quarto de pensão do Catete, no Rio; Elza e Alírio conheciam os cenários um do outro, mas Corumbá não passava de uma nebulosa para ambos. As conversas imaginárias que mantinham com Vitório flutuavam num espaço indefinido.

Havia as cartas. Vitório datilografava-as no quartel, em dupla via para não escrever duas vezes a mesma coisa, deixando um espaço em branco para recados a cada um; Elza, com letra arredondada e vertical, talhada em tinta azul, refletia na escrita o mesmo desvelo consigo mesma, nos cabelos bem penteados, na roupa, mãos bem cuidadas. O colorido das cartas de Alírio era variado, de acordo com o lápis ou caneta que tivesse à mão, as palavras inclinadas para a direita com a pressa que havia aprendido nas aulas para anotar o que os professores diziam. A assinatura vinha sempre acompanhada de um desenho, quando não todo o texto envolvido por arabescos coloridos que Elza colecionava com o mesmo cuidado apenas reservado às cartas da mãe.

A primeira carta de Vitório dava esperanças: “em trinta dias no máximo tudo estará resolvido”. O Batalhão dispunha de algumas casas para oficiais e uma delas seria desocupada em breve. A mudança, vinda pela Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, ocupava um quarto da futura residência do casal. Como descrevê-la? Velha e mal dividida, paredes espessas, esquadrias de viga inteiriça, todo o madeiramento pintado de azul-marinho, paredes em amarelo, escura, soturna, aguardava restauração. Uma poeira branca entrava pelas janelas abertas, sem outro embaraço senão uma tela fina de arame contra a abundância de mosquitos. Sem referir nada disso, encontrou um enfoque agradável:

— Fica na Avenida General Rondon, cheia de palmeiras como aquela rua de Joinville. Na frente, uma praça inacabada, mais adiante o Rio Paraguai, a vasta amplidão do Pantanal cortada ao longe, no horizonte, por algumas elevações.

As referências à cidade também foram sumárias. Falou no cruzamento de duas longas ruas, a Frei Mariano e a João Pessoa, limitando os pontos cardeais da cidade branca ou o maior parque industrial de Mato Grosso, como dizia a estação de rádio. Quanto à população, que Alírio viu no dicionário como sendo de dezesseis mil habitantes, deveria ter o dobro, pelo menos.

— Há uma beleza latente nas ruas – escreveu Vitório. Os pés de flamboyants, quilômetros e quilômetros ao longo das casas. Deve ficar uma beleza quando florirem.

Vitório e Alírio ficaram sabendo da herança deixada por Vó Amélia pelas cartas de Elza. Os bens a partilhar igualmente por ela e Alice eram quatro casas em Joinville, mais um terreno na praia de Barra Velha e outro em Porto Belo, pequeno balneário mais ao sul, perto de Florianópolis.

O entusiasmo de Alírio estava presente em todas as cartas que escrevia aos pais, a convivência com os colegas de pensão, visita a museus e exposições, o conhecimento com alguns artistas, as aulas na Escola de Belas Artes onde tinha a possibilidade de comparação de seu trabalho e a emulação que a troca de impressões lhe trazia.

Nas cartas dos três, a preocupação comum de esconder as dificuldades por que passavam, cada qual ocultando da melhor maneira as saudades que sentiam.

Depois de oito quilômetros de estrada enlameada, na fronteira do Brasil com a Bolívia, o Posto Esdras sediava o contigente brasileiro à margem do Arroio Conceição. Do outro lado, o posto boliviano com a bandeira verde, vermelho e amarelo.

Major Vitório, em sua primeira visita de reconhecimento e inspeção, foi recebido pelo sargento comandante do destacamento:

— Aqui, a gente faz de tudo. Trato dos porcos, das galinhas, da plantação de milho e mandioca, dou instrução para os soldados, às vezes sou enfermeiro, vigio a estrada...

Enquanto falava, o sargento ia mostrando as instalações do posto de fronteira, o alojamento dos soldados, sua residência, refeitório, a Escola Barão do Rio Branco.

— O professor é um soldado que ensinou no interior de São Paulo. Um abnegado. Só tem esta sala e um quadro-negro para vinte e nove crianças da redondeza, distribuídas pelos três anos primários. A professora estadual nomeada, nunca apareceu.

Vitório perguntou:

— O Batalhão dá boa assistência ao Posto?

— Coitado do Batalhão! Mal pode dar assistência a ele mesmo. Pelo menos lá tem luz elétrica; aqui é na base do querosene. Falta milho e ração para os bichos, a água de beber vem de dois quilômetros de distância; o meio de comunicação com o Batalhão é o estafeta montado.

— E essa lenha empilhada na beira da estrada?

— Para o rancho e a padaria do quartel. Tiramos da mata aí de cima.

— E quando acabar?

O sargento riu.

— Muda-se o Posto.

Bastava um passo mais largo para transpor o Riacho Conceição e conhecer o Destacamento Boliviano. O sargento, único encarregado da vigilância da fronteira, apresentou-se de chinelos, camisa aberta ao peito, calça de brim cáqui e cinto com fivela metálica da Aeronáutica Brasileira.

O quartel do 17.º Batalhão de Caçadores, um quadrilátero a coisa de cem metros do Rio Paraguai, tinha boa aparência, um grande pátio interno limpo e em ordem. A decepção escondia-se nos alojamentos que um tenente mostrou a Vitório: beliches de ferro, lonas servindo de colchão, alguns só com a armação.

— Não há lonas para todos. Cada soldado que remenda uma fica sendo o seu dono. Mesmo assim, há disputas durante a noite. Alguns perdem o jantar para não perderem a cama.

— O comandante sabe disso?

— Sabe. Todos os comandantes que passaram por aqui sabem, o Comandante da Região sabe. Não é à toa que a 9.ª Região Militar é chamada de Anônima Região. Já fui Secretário e conheço os relatórios anuais. Nem precisa mudar as palavras, basta trocar a data.

Vitório também tomou conhecimento das condições do armamento da Unidade. Inspecionou um exercício de tiro real, alvos colocados lado a lado no talude de uma elevação. Terminada uma série de tiros, foi ver os impactos: as balas entravam de lado rasgando o papel em vez de furá-los, todos os mosquetões descalibrados.

Ao voltar para casa no fim do expediente, o Major repassou todas as impressões que lhe haviam ficado, pensando nas dificuldades que iria enfrentar no comando do Batalhão, pois o coronel ia entrar de licença e cabia-lhe assumir a função. Recordou as palavras do tenente que mostrara os alojamentos.

— Há lugares piores. Forte Coimbra, por exemplo. Tempos atrás o Tenente Osmir, nosso dentista, foi lá fazer visita dentária porque o Forte estava sem especialista. Eu quis saber que tal o gabinete dentário deles, porque o nosso é muito precário. Osmir me disse: “Lá eles comem as cascas”. Não entendi. Osmir me contou uma história: “Era uma vez um monge que desejava ir para o céu pela mortificação da carne. Comia uma maçã por dia, jogando as cascas num riacho. Pálido e fraco, aventurou-se um dia a visitar outro monge que também se mortificava, um pouco mais abaixo. Esse não comia maçãs, comia as cascas que desciam pelo ribeirão”.

Alírio fechou a porta do quarto-atelier alugado na Rua Aprazível, em Santa Teresa, saindo com a mala para esperar o bonde que o levaria ao Largo da Carioca.

A manhã estava esplêndida de sol e calor. Quando o bonde começou a transpor os Arcos da Lapa, pôde ver toda a extensão da paisagem até Niterói. Tons de verde e azul flutuavam no mar da Baía da Guanabara e ele, por antecipação, começou a sentir saudades do Rio.

O avião deixou a pista do Santos Dumont e Alírio tentou descobrir a casa onde alugava o quarto. Só distinguiu o Convento de Santa Teresa. Com o céu claro e aberto, olhou a curva suave de Copacabana, lembrando-se da viagem que fizera sete anos atrás, a bordo do Itaimbé, pai e mãe a seu lado olhando as luzes da Avenida Atlântica. Ia revê-los dali a poucas horas em Corumbá.

Duas poltronas à sua frente, no outro lado do corredor, um oficial do Exército lia jornal. Alírio espichou a cabeça para ver-lhe o posto: três estrelas gemadas, coronel. O pai, já promovido a Tenente-Coronel, usava duas douradas e uma azul. “Minha constelação é inoperante”, escreveu-lhe Vitório a propósito das deficiências do Batalhão. Olhando a pose do militar, atento às notícias mundiais da primeira página, imaginou o quanto inoperante seria também a constelação nos ombros do desconhecido. O aparelho fazia uma larga volta sobre São Paulo, antes de tomar a pista do Aeroporto de Congonhas. Alírio olhou a cidade que lhe pareceu maior e apavorante como não a sentiu em terra quando, em 1951, tinha vindo ver a I Bienal de Arte. As centenas de obras vindas de tantos países deixaram-no assustado e confuso, embora coincidissem com muita coisa que ele próprio gostaria de fazer. Sua desilusão com os métodos e mestres da Escola de Belas Artes fora tão grande que lá permaneceu apenas um ano, para tristeza de Elza e oculta satisfação de Vitório, esperançoso que o filho encontrasse profissão mais garantida. Alírio pensava se seria justo e honesto, quase aos vinte e um anos, continuar na dependência dos pais. A carreira de artista, para sobrevivência independente, dependia mais da aprovação alheia do que de suas próprias convicções; e para conseguir essa aprovação, quantas concessões precisaria fazer?

A paisagem, depois dos campos cultivados de São Paulo, esteve oculta pelas nuvens. Quando elas se abriram sobre Mato Grosso, só o imenso planalto verde semeado de bosques, alguns rios, nenhuma casa. De Campo Grande a Corumbá, a imponência e misteriosa grandeza do Pantanal Mato-grossense. Jamais poderia esquecer essa visão. Planura ilimitada coberta de plantas aquáticas que de repente se abriam em lagos e arremedos de rios, os tons de verde e azul relampeando reflexos que o sol jogava sobre as abertas das cores. Bandos de garças brancas pousadas em árvores isoladas ou voando em linha reta, como o avião, davam um toque de vida ao panorama soberbo e aparentemente adormecido, tão diverso do mar da Guanabara mas de uma beleza pungente onde todos os seres lendários dos livros de sua infância deveriam residir.

Ao tocar o solo, motores acelerados violentamente, tudo apagou-se na memória de Alírio. Não demorou a ver no parque de estacionamento seu pai, e a mãe acenando como se já o tivesse visto. Para ela, o avião inteiro era seu filho.

Vitório não se conteve. Antes mesmo de chegarem em casa, dentro do carro, contou a grande novidade: conseguira a transferência. Em poucos meses estariam novamente reunidos e, sonho dos três, no Rio de Janeiro. Elza queria saber tudo sobre os progressos do filho na pintura, se era mesmo aprazível a rua de Santa Teresa, os amigos, as namoradas. O pai interferia, mostrava pontos da cidade, a praça, o edifício mais alto, mas a mulher tinha sempre nova pergunta e o rapaz, confuso, não sabia como dividir a atenção pelos dois.

Quando o carro oficial chegou à casa, uma forte emoção estava reservada para Alírio: Elza havia arrumado seu quarto exatamente como havia sido em Natal.

Os rapazes de Porto Belo que visitavam o Coronel tinham de dezessete a vinte anos. Chegavam nas noites de sábado para beber conversar, dois, três, às vezes até seis. Era preciso abastecer a geladeira com cervejas e refrigerantes para misturá-los ao rum e à vodca. Também frutas, uma carne assada com batatas, bastante arroz, grande salada, coisas que já era hábito Lila preparar aos fins de semana.

De poucas luzes, alguns no Grupo Escolar, outros mal assinando o nome, os meninos de Porto Belo faziam aquelas visitas como preparação para as noitadas no Clube Vila Nova ou na Discoteca Sabbata. Embriagados e com o estômago forrado, não teriam grandes despesas que, aliás, seu dinheiro era curto. Quase todos pescadores, ganhavam pouco, ao sabor dos caprichos do mar e dos peixes que nem sempre estão dispostos a satisfazer os desejos e as necessidades dos homens, e do pouco que ganhavam era preciso deixar uma parte em casa para os irmãos pequenos, bocas a alimentar, prepará-los para a futura lida com remos, barcos, redes e espinhéis; de pai para filhos desde que os casais de açorianos fundaram Nova Ericeira, hoje Porto Belo.

Eles falavam pouco nas experiências do contato diário com o mar. Quase todos haviam feito, ou fariam em breve, uma viagem ao Porto de Santos, o desafio maior, a prova de fogo, o diploma de pescador. Lá, trabalhavam embarcados, juntavam algum dinheiro, os mais afoitos e imprevidentes gastando tudo na maior audácia de suas vidas: um telefonema para Porto Belo contratando o táxi de Clóvis para trazê-los de volta – quase setecentos quilômetros – para o único lugar onde sentiam-se felizes.

Um crime que abalara Porto Belo e Perequê ocupou o assunto por várias noites. Um velho ganhou na loteria e dividiu o prêmio: metade para si, dois terços da outra metade para o filho mais velho, um terço para o mais moço, que não se conformou com a disparidade. De noite, entrou no casebre onde dormia o pai sozinho, desfechou-lhe uma facada certeira no coração e fugiu com o dinheiro. Mas as manchas de sangue na camisa escondida nos fundos do quintal foram vistas pela cunhada, e a denúncia veio logo a seguir à descoberta do cadáver. Contado por um, alterado por outro, o Coronel acabou amedrontado, entregue aos perigos daquela convivência equívoca com desconhecidos. Procurou esquecer, comparando o crime com o drama de Caim e Abel: a inveja de um satisfez-se com a vingança sobre o irmão; no Perequê , a vingança no próprio pai, não no favorecido por suas graças.

O Coronel conhecia os moços no meio das ondas, na areia da praia – quando os corpos dourados e sadios excitavam sua imaginação; nos bares e restaurantes – quando a bebida favorecia a comunicação. Convidava-os a aparecer para um drinque sábado à noite. Uns levavam outros e a corrente cresceu tanto que ele não poderia saber o nome de todos, apelidos estranhos dificultando ainda mais a identificação. Não importava. Interessava ao Coronel, além de uma intenção oculta e cuidadosamente disfarçada, ter audiência para suas histórias de quartel, a revisão dos caminhos do mundo que conhecia e referia aos meninos deslumbrados, sonhando com portos longínquos que pareciam estar vendo nas palavras do Coronel: Lisboa, Barcelona, Gênova, Bordeaux, Saint-Nazaire, Roterdam, Hamburgo, Travemunde – nos confins do Mar Báltico de onde partiu uma vez para chegar a Copenhagen. Os mais interessados iam até ao quarto de hóspedes olhar o mapa-múndi que ocupava uma parede inteira. A exígua informação geográfica recebida no Grupo Escolar assumia dimensões espetaculares, mas eles se convenciam de que Porto Belo, omitido na carta entre Florianópolis e Itajaí, era o mais belo porto do mundo!

Muitos fatos adormecidos na memória do Coronel afloravam nestas noitadas. Sentia-se nos acampamentos sob barracas de lona iluminadas por lampiões e querosene, contando bravatas e ouvindo outras dos colegas, ou críticas a oficiais. “O Coronel Fulano era completamente maluco. Um dia ia entrando no quartel e o sentinela fez um apresentar-armas tão sem jeito que ele passou uma rasteira e derrubou o soldado”. Uma anedota puxava a outra. “E o Beltrano! Bebia tanto e era tão mulherengo que foi morar na zona, em Cruz Alta”.

Entre um copo e outro de bebida, um lance qualquer de sua vida voltava nítido, fosse em Juiz de Fora, Natal ou Corumbá. “Uma vez, quando eu era Aspirante, fiz uma besteira que podia ter-me levado à cadeia. Imaginem vocês que eu estava de Oficial de dia e me trouxeram um preso de guerra. Preso de guerra é desertor ou criminoso aguardando julgamento. Ele me pediu para sair por duas horas que não via mulher há muito tempo. Deixei. Pois não é que ele voltou?” Os rapazes se entreolhavam, acreditando ou não, e voltavam a encher os copos. Mentira por mentira, estavam acostumados a inventar pescas maravilhosas, sereias e monstros marinhos que lhes apareciam em alto mar, nas longas surtidas da pesca de camarões.

A presença dos rapazes renovava a vitalidade do Coronel. Estudava reações, comparava atitudes e gestos com os de Alírio, chegando a tratá-los por seu nome. Via neles um pouco de si, dos soldados que o acompanharam e serviram por anos e anos. Não poderia avaliar até que ponto havia sido útil a seus soldados com os ensinamentos que foi espalhando, não os ensinamentos próprios da carreira militar, mas aqueles objetos de preleções, conselhos e reprimendas. Em Porto Belo não seria o caso de ensinar a ninguém, nem havia compromisso algum da parte a parte. Ele usava os meninos um pouco para atiçar lembranças que usaria no livro, outro para aliviar a solidão e, conforme estava persuadido, o que se passava dentro daquela casa permanecia entre as quatro paredes. Em troca, os meninos saíam leves e alegres, no ponto certo para bolinar as mocinhas nos salões de festa ou na escuridão de vielas e jardins, nos recantos desertos da praia, ouvindo o marulho das ondas.

Às vezes o Coronel excedia-se na bebida. Percebia vagamente que os rapazes não mais o escutavam, preferindo a cozinha para esquentar a comida deixada por Lila, servindo-se com grande algazarra sem nada lhe oferecerem. Trocavam brincadeiras entre eles, riam de qualquer bobagem em que o Coronel não achava graça nenhuma, todos tão à vontade como talvez nunca ficassem em suas próprias casas. Ele os olhava com indiferença, ia dormir, deixando tudo por conta dos visitantes.

Havia sábados em que algum menino também passava dos limites, ou fingia que isso acontecera, adormecendo no sofá da sala ou na cama do quarto de hóspedes.

A inspeção a um Destacamento de Fronteira ficaria na memória de Alírio. Vitório chegou em casa com o convite:

— Queres conhecer Porto Esperança? Vamos sair amanhã cedo.

Ele raramente via o pai sair para o quartel, sempre de madrugada, o escuro da noite ainda preso às paredes, exigência militar que lhe parecia desnecessária em vista de tão pouco a fazer no Batalhão. Naquele dia, a alvorada antecipou-se porque o Coronel queria chegar o mais cedo possível ao Destacamento, mantido para guarda e vigilância da ponte Barão do Rio Branco, sobre o Rio Paraguai.

Às cinco e meia, os dois chegaram à estação da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, um grande galpão que servia também de armazém, e o auto-de-linha já os esperava, inclusive o Capitão Aníbal, Sub-Comandante. Quadrado, verde por fora, o interior pintado de cinza e amarelo, o carro-de-linha destinado a inspeções da estrada, tinha um aspecto curioso. Janelas envidraçadas, dois pequenos bancos para duas pessoas se defrontavam com o motor a gasolina, colocado no centro do veículo. Na frente, outro banco duplo para o condutor e o ajudante, ambos bolivianos, estranha presença para a visita a um posto de fronteira. No mesmo galpão começava a Estrada de Ferro Brasil-Bolívia e as duas nacionalidades se misturavam cordialmente, no maior entendimento.

Para se distraírem durante o trajeto de oitenta quilômetros, os passageiros contavam com a paisagem correndo através das janelas. Aos saltos, o carrinho balançava como um barco sobre trilhos irregulares, presos a dormentes à flor da terra em leito de cascalho.

Vitório indicava ao filho pontos interessantes: o morro Tromba dos Macacos; mais além, assinalando a fronteira com a Bolívia, as elevações de Jacadigo. Para o sul, planuras sem fim, perturbadas repentinamente por alturas isoladas na direção do Forte de Coimbra.

O Capitão Aníbal informou:

— Quando o dia é claro, vê-se Coimbra; hoje tem muita bruma.

Vitório retomou a palavra:

— Olha o maciço de Urucum. Tem 750 metros de altura e muito manganês.

Alírio foi acompanhando a montanha e as explicações do pai:

— Uma grossa fatia negra de uns três a cinco metros de espessura, comprimida entre minério de ferro em toda a extensão do morro.

— Sanduíche de ferro e manganês, brinca o capitão.

A exploração do manganês era feita por escavação de túneis, formando galerias em completa escuridão.

— Como é que os mineiros trabalham?

— Na base da picareta com lampiões a querosene.

O transporte do minério é feito por caminhões a partir de uma esplanada de onde descem em direção ao porto de Corumbá, em busca do Oceano.

— De lá, para nosso amigo Tio Sam, arrematou Aníbal.

O tom irônico do capitão levou Vitório a mais um dado:

— Existe um consórcio com a United States Steel Corporation.

Depois de trechos onde a estrada transpôs altos taludes cavados na rocha avermelhada, vencidos penosamente pelo carrinho ao solavancos, uma parada imprevista: desimpedimento da linha para a passagem de um trem de passageiros. Também no desvio, um trem-de-lastro destinado à conservação da ferrovia começava a acordar-se. O cozinheiro fazia café e ofereceu a todos, servido em canecos esmaltados. Enquanto passava o esperado trem de passageiros, duas galinhas ciscando a terra com os pintinhos à volta delas, dois cachorros coçando-se indiferentes ao barulho das máquinas.

Deixando para trás as elevações do Urucum, os viajantes se reanimaram com o ar fresco da manhã e a amplidão do Pantanal com regiões inundadas, outras secas, espraiando-se sem limites de um lado e outro do aterro por onde corre a ferrovia. Retas enormes, de vez em quando uma pequena estação com um grupo de casas para o pessoal da Estrada, gado espalhado pelo campo, uma ema.

O capitão Aníbal:

— Fazendeiro não deixa matar as emas; elas comem as cobras e salvam o gado.

Alírio preocupou-se com a espessura irregular dos trilhos, uns largos outros estreitos engolidos pelo veículo em disparada. Assentados sobre um aterro frouxo, pareciam prontos a deslizar pelos barrancos. Para maior espanto, percebeu o motorista gesticulando com as duas mãos; não havia volante, os trilhos direcionavam o pequeno automóvel.

Pela abertura entre dois bosques ralos e baixos, uma visão branca intrometeu-se entre o verde da paisagem: cinco belos e grandiosos arcos definiram a ponte Barão do Rio Branco, comentada pelos dois oficiais:

— Dois mil e nove metros de extensão.

— Vinte de altura.

— Dez anos para a construção.

— De 1940 a 1950.

— Toda de cimento armado.

Uma pequena lancha a vapor pilotada pelo sargento comandante do Destacamento esperava os visitantes num velho trapiche às margens do Paraguai. O povoado ficava a uns dois quilômetros dali. Uma linha de casebres de madeira foi definindo a povoação ao longo do rio.

Aníbal apressou-se a explicar:

— Quando vem a enchente, eles fazem um jirau dentro de casa para não dormir dentro d’água.

Vitório completa:

— Gente muito pobre, se a cheia for muito grande, arrumam os trastes e vão tentar a vida noutro lugar.

No extremo do povoado, qualquer coisa semelhante a uma torre de petróleo. Novamente a disputa entre o Coronel e o Capitão:

— Coisa dos americanos. Quando iam começar a perfurar o poço, o governo proibiu.

— Deixaram tudo: torre, canos, motor, peças avulsas.

— Aos poucos o material foi sumindo.

— Cada qual levou sua telha, um pedaço de cano, madeira para o barraco.

Finalmente, o Destacamento, uma casa oferecida ao Exército pela Estrada de Ferro. O sargento telegrafista, um cabo, uns dez soldados em forma para receberem o Comandante do Batalhão. Em amarelo e verde na fachada, uma placa de madeira com as Armas da República e a indicação 17.º B. C. Com um gesto amplo de boas vindas, o comandante do Destacamento indicou os dez degraus da escada que conduzia ao interior da sede.

A pedido de Vitório, o sargento foi mostrando tudo para Alírio enquanto os oficiais examinavam a escrituração ou conversavam com o telegrafista e os soldados.

— Neste quarto moro eu com minha mulher e minha filha; neste aqui, o sargento telegrafista com a mulher e dois meninos.

Depois do corredor, uma sala maior com seis beliches e uma grande mesa.

— O alojamento dos soldados e a sala de refeições; lá para os fundos, a cozinha e as instalações sanitárias comuns a todos.

Alírio nada comentava. Perguntou ao soldado de plantão:

— Há quanto tempo está aqui?

— Dois ano e treis meis.

— E quando der baixa?

— Vô trabaiá.

— Trabalhar em quê?

— Quarqué coisa.

O sargento telegrafista ia passando.

— Servir aqui dá ponto para promoção.

Irônico, o comandante do Posto acrescentou:

— E ganha-se muito mais... eu recebo cinco por cento acima do pessoal que serve no Rio de Janeiro.

Arroz, feijão, carne ensopada com batatas foi o almoço servido na grande mesa pela mulher do sargento-comandante. Os soldados comeriam depois, na mesma mesa.

O número 1278 pintado num marco à beira da estrada, indicava a distância de Porto Esperança a Bauru, São Paulo, onde começava a numeração quilométrica. Na volta, o carrinho de linha sacudia-se ainda mais, como se o condutor tivesse pressa de afastar-se daquele lugar tão desolado. Alírio, sem conseguir conformar-se com a promiscuidade dos habitantes do Destacamento, fixou o olhar na margem do aterro à espera de outros marcos. Ninguém falava. O capitão tentou escrever alguma coisa num caderno de anotações mas desistiu: o carro dava verdadeiros pinotes. De olhos fechados, Vitório fingia dormir, talvez para fugir a perguntas do filho.

A tonalidade do verde variava de grupo para grupo de árvores, de árvore para árvore, e quando o carro atravessava um bosque, as copas se embaralhavam, as folhas se desfaziam numa mancha compacta, meio pardacenta pela combinação de troncos e caules. Alírio concentrou o pensamento na série de guaches que preparava desde a chegada a Corumbá, depois olhou para o pai que dormia com uma expressão desamparada no rosto envelhecido. Teve pena dele, mas em seguida irritou-se: seria justo sacrificar alguém a seu conformismo como ele fazia com sua mãe?

Não sendo possível resolver os grandes problemas do 17.º B. C. pela sempre alegada falta de verbas, o Ten. Cel. Vitório decidiu-se por um caminho humilde cujos resultados atenderiama dois objetivos: suprimento parcial do rancho do quartel e ocupação dos soldados com trabalho que eles sabiam e gostavam de fazer.

As terras do Batalhão na margem alta e calcárea do Rio Paraguai não se prestavam à agricultura. Vitório aceitou o desafio com adubo e irrigação de uma faixa de terreno próximo ao rio. Organizou um pelotão de soldados niseis e pela formatura da manhã o armamento deles eram pás, enxadas e picaretas. Os pequenos soldados de olhos enviesados nunca tinham ido para a lavoura em coluna de três e passo certo, sob o comando de um sargento; no mais, era a mesma luta com o chão de Marília, São Paulo, de onde tinham vindo. Com amor e persistência, produziram o milagre: canteiros de couve, alface, repolho, cenouras, beterraba.

A horta do Coronel, como ficou sendo conhecida, seria o legado de Vitório a Corumbá. A produção atendia não só às necessidades do Batalhão como às famílias de oficiais e praças casados.

— Quis provar aos corumbaenses que a terra é boa, disse Vitório a Alírio.

O pai, não sossegou enquanto o filho não foi ver o viço das hortaliças.

— Antes vinha tudo de São Paulo.

Alírio ficou comovido com o entusiasmo do pai.

Ao voltar para casa de jipe, ao lado de Vitório, não conseguia superpor sua figura em uniforme engomado, espada perfilada nos desfiles, rosto contraído e voz poderosa no comando da tropa, com a imagem singela e meiga que se abaixava para limpar a terra ao redor de um pé de alface. Não saberia dizer qual dos dois momentos seria mais nobre. Concluiu pela nobreza de ambos, por mais absurda que a comparação parecesse. Qual das duas seria mais autêntica em relação a seu pai? Alírio não entendia como Vitório aceitava tudo tão passivamente; transferência de Juiz de Fora por vagos motivos políticos, de Natal a Corumbá sem saber que razões teria inventado Boca de Bagre; agora a submissão a uma Unidade onde nada melhor do que uma horta poderia realizar. Talvez, no Rio de Janeiro, Vitório de Lima e Silva encontrasse algum elemento de glória para incorporar a uma biografia tão modesta.

De repente, as considerações de Alírio voltaram-se para si próprio. Estava completando a maioridade sem qualquer fruto maduro na pretendida carreira de artista. Até agora, além de alguns desenhos que vendia aqui e ali para aliviar as despesas dos pais, apenas o trabalho num grande mural como auxiliar de Alaor, amigo dos tempos de Escola de Belas Artes. Confiava nessa experiência e no prestígio de Alaor para ver a abertura de caminhos que ele aguardava com ansiedade.

Nas conversas entre Elza e Alírio, em Corumbá, o filho falava em suas preocupações e esperanças. Ela o incentivava com a carreira que queria ver vitoriosa e o tranquilizava quanto às despesas, cobertas com os aluguéis das casas herdadas em Joinville. Nas férias do ano anterior, Alírio conhecera estas casas. Também fora a Porto Belo com tia Alice para localizarem o terreno de Elza. Não ficava junto do mar, precisava-se percorrer uns cem metros para chegar à praia. O mais bonito foi ver a curva da enseada, a ilha fechando quase todo o horizonte. Mais para a esquerda, as montanhas encobriam os caminhos para o Norte, o Rio de Janeiro, o atelier de Alírio na rua Aprazível.

Quando foi forçado a usar óculos aos quarenta anos, o Coronel percebeu que seus sentidos não estavam dispostos a acompanhá-los intatos até o fim. Culpou o excesso de leitura e a fraca iluminação dos quartéis, desde os tempos de cadete quando lia na semiescuridão dos alojamentos, em horas do serviço de plantão noturno.

A audição foi-se enfraquecendo bem mais tarde, perto dos sessenta, mas como não queria admitir a velhice, pôs a culpa nos tiros de canhão morteiro, nas rajadas de metralhadoras e explosões de granadas que o acompanharam por toda a vida militar.

Quanto ao olfato e paladar, o abuso do cigarro e das bebidas fortes havia reduzido bastante o prazer de perfumes e sabores, perfumes e sabores que, conforme imaginara, tinham aguçado a curiosidade de Alírio desde o ventre de Elza.

Sobre o tato, nada a reclamar. Que seria dele se não sentisse mais a caneta na mão para escrever o livro? Tinha certeza de que o tato era responsável pela condução do pensamento à ponta dos dedos. Sozinho no quarto, debruçado sobre a mesa mineira onde trabalhava, realizava-se o mistério da comunicação pensamento-escrita. Ele exercia completo domínio sobre a formação das palavras, letra por letra, mesmo mal percebendo o valor de cada letra na palavra que escrevia; de que maneira a ideia completa do pensamento consolidava-se no papel, palavra após palavra, seria o início da insondável confidência sentimental. E quando a solução verbal de uma ideia resultava truncada, qual o sentido que lhe dava o aviso? Mais difícil ainda descobrir onde se formavam imagens insuspeitadas que, de repente, abriam-se a seus olhos com uma propriedade jamais imaginada por si. Havia, portanto, um sentido maior dirigindo os demais, um sentido superior à soma dos outros, ou resumo de todos.

Enquanto essa função permanecesse ativa, o pensamento bombeado por esse fluxo maravilhoso que o sangue transportava até os dedos, só lhe restava agradecer e bendizer a vida, mesmo quando antigas forças se negavam a obedecê-lo no manejo de um serrote ou martelo, na mudança de um móvel para outro local, o transporte de um objeto pesado demais. Era penoso recorrer a pessoas que nunca faziam as coisas tão bem como ele. Irritava-se, reclamava, não havia outro remédio senão conformar-se.

Foi o que aconteceu com os canteiros. Entre a pirâmide e o muro do vizinho, tendo por fundo as bananeiras, um pedaço do terreno excitava-lhe a ideia de aproveitá-lo para uma pequena plantação. Seria reviver a alegria de outros tempos, quando o coração exultava ao aparecimento dos primeiros sinais de germinação. Era preciso demarcar o trecho, capinar, revolver a terra, conduzir valetas para escoamento das águas e – o mais trabalhoso – montar uma cerca de arame ao redor, um portãozinho, evitando a entrada de Elizeth. O Coronel sentiu falta dos soldados japoneses de Corumbá; contratou os serviços de um velho lavrador que levou duas semanas inteiras para completar o trabalho.

Para tudo o mais que faltasse, o Coronel não queria auxílio. De manhã bem cedo procurou o adubo que comprara em Florianópolis e tratou de fortalecer a gleba para uma boa colheita, salpicando o farelo esbranquiçado sobre a terra. Esperar de vinte a trinta dias, diziam as instruções. Olhou para o céu plenamente azul e limpo de nuvens. Se não chovesse, regaria os canteiros todas as tardes.

Com trinta anos de serviço e cinquenta de idade, o Ten. Cel. Vitório de Lima e Silva viu realizado o sonho de morar no Rio.

O apartamento, alugado próximo ao atelier de Alírio, em Santa Teresa, facilitava a ida ao Ministério da Guerra, onde Vitório fora classificado. Bastava tomar o bondinho que descia a Francisco Muratori e tomar outra condução na rua do Riachuelo; ou descer a pé a Ladeira de Santa Teresa e chegar à Lapa, que também poderia ser alcançada pela ladeira que começa na Hermenegildo de Barros.

Vitório chefiava uma Divisão da Diretoria de Armamento onde trabalhava na parte da tarde. Cabia-lhe controlar viaturas, equipamentos e arreamento de todas as Unidades do Exército. O armamento competia a outra Divisão. Por suas mãos passavam pedidos de suprimento e grande quantidade de termos para descarga de peças imprestáveis. Outros oficiais menos graduados auxiliavam-no a manter em dia um fichário distribuído por pequenas prateleiras metálicas, contendo o levantamento de guarnição por guarnição. Muitas vezes deparou-se com documentos vindos de Joinville, Passo Fundo, Juiz de Fora, Natal e Corumbá. Corria os olhos para a assinatura dos termos na esperança de ler o nome de algum antigo companheiro. Todos desconhecidos, até mesmo de Corumbá. Se, por um lado, a constante renovação de comandos dava lugar a oficiais mais jovens, por outro Vitório começava a envelhecer. Apesar disso, cidades e quartéis voltavam nítidos à sua lembrança e não raro distraía-se do serviço rememorando marchas e acampamentos, às voltas com muares e carroças coloniais.

A Diretoria ficava no décimo quarto andar do torreão central do Ministério, na Avenida Presidente Vargas. Das janelas da fachada via o belo arvoredo da Praça da República, tendo por fundo a torre vermelha do Corpo de Bombeiros. Alongando o olhar, Santa Teresa. Impossível ver o prédio onde morava. Pelas janelas do fundo, o posto de gasolina no meio do pátio quadrado, militares cruzando-se em todas as direções a tarde inteira. No pavilhão dos fundos, a Biblioteca do Exército, fonte para as leituras de Elza e Vitório que tirava um tempo para ler jornais e escolher livros para ele e a mulher.

Ao atravessar o pátio, uma expressão ouvida de passagem ou algum militar parecido com outro em cenário diferente, traziam-lhe pedaços do passado; demorava-se na recordação, se lhe era grata, ou fugia dela para que não estragasse o resto do dia. Somadas as esperanças, alegrias, aborrecimentos e desilusões de toda a carreira, qual seria o resultado do balanço? Desde que chegara de Corumbá, a ideia insidiosa da revisão geral do tempo passado nos quartéis batia-lhe no peito, de repente, na presença da mulher e ante os sonhos de glória do filho, ao ler a biografia de um grande homem, ou simplesmente numa curva que o bonde fazia.

Dava conforto à mulher, educara o filho, tinha economias guardadas, nunca pensou em exigir reparações pelos sobressaltos com transferências injustas... Acomodado, submisso, contentara- se com o mínimo, o comum a todos os homens sem ideal. Além da segurança financeira conquistada, sobrava-lhe tão pouco nas mãos que ele passou a considerar-se logrado. A carreira estava no fim. E a vida? Quem sabe ao deixar o Exército ainda teria tempo para realizar alguma coisa de notável, escrever uma grande obra, dirigir uma empresa, dedicar-se à política, se nada aprendeu sobre ela a não ser através de leituras, análises e conclusões pessoais. Deveria, então, contentar-se com o possível sucesso do filho? Também sobre isto Vitório era bastante incrédulo; nunca aceitara a ideia de Alírio ser artista, como aprová-la agora que o via enchendo vitrinas com futilidades de mulher ou pintando quadros e painéis cheios de incógnitas para ele?

Nesses momentos de reflexão o Tenente-Coronel ficava tenso, derramando sobre o filho e a mulher todo o rancor que nutria por sua própria incapacidade de grandeza. Chegava em casa aborrecido, falando pouco, esperando que Elza o instigasse a qualquer explicação. Acostumada aos humores do marido, ela nada perguntava, irritando-o ainda mais. Gostaria de discutir, culpá-la pela carreira do filho, mas outra vez verificava que, como em sua carreira, sempre fora cordato com as decisões da mulher. Bastava ela falar-lhe com voz meiga, trazer-lhe os chinelos e um cafezinho quente para que toda a revolta se evaporasse num beijo.

O que muito desgostava Vitório, além do serviço ridículo de alterar fichas, era o atraso material do nosso Exército. Sabia da existência de Unidades equipadas com armamento e equipamentos modernos, que a Cavalaria trocava cavalos por tanques de guerra, que sua Infantaria motorizava-se, mas chegavam tantos pedidos de peças para carroças coloniais, cozinhas a lenha e arreamentos para animais que ele se revoltava com o disparate. Aliás, bastava recordar os quartéis onde servira: em todos ainda permaneciam as metralhadoras Hotkiss e Madsen transportadas em lombo de burros, os velhos e descalibrados fuzis Modelo 1908. Ao assistir as paradas de Sete de Setembro, no Rio, a divergência ficava mais patente. Enquanto o chamado Exército do Asfalto exibia o último tipo de armas de guerra, o interior continuava a lutar com arreios podres, amarrados com arame, arrebentados pela violência dos muares, os aros de ferro soltando-se da rodagem de madeira das carroças cobertas de lona, como nos tempos da Guerra do Paraguai.

Depois de dois anos de usar borracha e lápis para alterar o fichário, cada vez mais desgostoso e humilhado com um trabalho banal que poderia ser feito por qualquer cabo ou sargento, Vitório de Lima e Silva assinou o pedido de transferência para a reserva. Não foi prejudicado em nada. Com três licenças-prêmio não gozadas, valendo três anos de serviço, mais os trinta e dois efetivos, completava o necessário para uma velhice tranquila. O sonho de ser general, comandar exércitos e vencer batalhas, que tanto o impulsionara nos tempos de Aspirante, diluía-se junto a seu nome ao pé de um requerimento. Seira general, sem dúvida, pois tinha as leis que lhe garantiam promoções ao passar para a reserva, mas um general sem tambor e sem corneta, sem bandas de música nem marcha-batida. Um general de pijama, como seria chamado pelo pessoal irreverente da ativa. Decidiu não aceitar que o chamassem de general; seria Coronel até o resto de seus dias.

Elza recebeu a notícia com naturalidade. Acostumara-se com a vida no Rio de Janeiro muito mais rapidamente do que imaginara. Os serviços do apartamento eram poucos, em relação aos que tinha a fazer nas diversas casas que habitaram; nada de terreiros a varrer nem hortas para cuidar. Quanto às plantas de que sempre gostou, viam-se reduzidas à pequena área de serviço onde as cultivava em vasos, como os vizinhos. Debruçada à varanda dos fundos, gozava a tranquilidade do bairro, olhando os edifícios de Laranjeiras. Muito mais gostoso do que morar em Copacabana, como Alírio andava querendo. Quando se aborrecia no apartamento, convidava Vitório para descerem até a cidade, ou ia mesmo sozinha comprar coisas que não encontrava no bairro, lãs e linhas para tricô e bordado que nunca deixou de fazer. No verão, contava com Alice que passara a vir ao Rio todos os anos.

O afastamento de Vitório do Exército trouxe outras vantagens para Elza: não ficaria tão só em casa e estava livre para sempre de compromissos protocolares, visita de oficiais e suas mulheres, um relacionamento formal que nunca resultou em amizade duradoura. Nem mesmo a de Correntino. Quando falavam nele e nas longas conversas de Natal, Vitório também sentia sua falta.

— Estranho o Exército, dizia ele. Enquanto servem juntos, os oficiais se tornam amigos, companheiros para tudo; depois que se separam, poucas vezes se cruzam e quando isto acontece nada mais existe entre eles.

Se quisesse refazer um círculo de amizades com os antigos companheiros, jamais conseguiria. Elas tinham sido temporárias como a permanência em cada cidade; amizades de circunstância que nem poderia contar para uma emergência. A última vez que estivera reunido com os colegas de Escola Militar fora no Curso de Aperfeiçoamento, anos e anos atrás, e só servira para aborrecer-se com o espírito estudantil que dominara os ex-cadetes. Outra oportunidade teria sido a Escola de Estado Maior; ao desistir de cursá-la, anulou a última possibilidade de reencontro.

O Coronel estava tão irritado naquela manhã que não soltou Elizeth e mal respondeu ao cumprimento de Lila. Acordara-se antes das cinco, noite ainda, e sentara-se à mesa de trabalho tentando concentrar-se no livro.

Precisava contar que Alírio havia se mudado para Copacabana, apesar de toda a oposição de Elza, e considerava-se em condições de fazer a primeira exposição individual de pintura. O filho passara das vitrinas à decoração de interiores onde colocava seus quadros, divulgando a própria obra e libertando-se da tutela dos pais.

Repercussão insignificante pela imprensa, quase ninguém na abertura da exposição, apenas dois quadros vendidos. Ao fim da festa, quando casal e filho saíam para jantar, Vitório disse:

— Pensei que fosses vender tudo. É tão difícil assim?

Alírio não se conteve e alteou a voz:

— Pai, o teu generalato não levou mais de trinta anos?

Nesse ponto, o Coronel parou de escrever.

Elza, prevendo uma discussão desagradável, teria apressado a saída, justificando o insucesso pela falta de divulgação e que, apesar disso, o filho tinha independência financeira garantida.

O objetivo final seria essa independência?

Na mesma noite Alírio apresentou ao pai uma moça chamada Ponciana que ele tratava por Pônci.

— Então o senhor é general!

— Por favor, me chame de Coronel.

— Deixe-me chamá-lo de general, por favor, nunca conversei com um general. O senhor esteve na guerra?

— Não.

— Não tomou parte em nenhuma batalha?

Se tivesse feito o curso de Estado Maior e chegado a general com todas as honras; se uma guerra entre o Brasil e a Argentina tivesse estourado e ele vencesse batalhas, conquistasse mais terras para este imenso país, teria sido este o objetivo final de sua vida? Lembrou-se de antigos comandantes, agora generais; de outros que haviam atingido todos os postos e, por força da lei, estavam tão esquecidos como ele, entrando anonimamente na fila do pagamento ao fim do mês, ao lado de inválidos com quem se comparava.

O diálogo com Pônci deixou-o mais exasperado. Largou a caneta e levantou-se da mesa. Andou às escuras, acendeu luzes, olhou atentamente os livros nas estantes como se procurasse algum em particular, voltou ao quarto e sentiu profundo desgosto por tudo o que havia escrito.

Durante os momentos em que escrevia sobre as profissões de pai e filho, foi-se formando um pensamento nunca ocorrido antes. Há profissões que terminam antes que a vida se encerre, outras prolongam-se até a morte e, as mais nobres, permanecem depois dela. Os grandes músicos, pintores, escritores... Era preciso ser grande. Napoleão havia sido grande, mas onde estaria o termo de comparação com da Vinci, Bach, Shakespeare? Com a carreira militar encerrada, Vitório não havia sabido ou podido ser grande, mas Alírio, como pintor, poderia chegar lá.

A partir dessa madrugada, o Coronel passou a nutrir certa antipatia por Alírio. Recusava-se a admitir que fosse inveja, mas não deixava de ser um sentimento menor e incômodo. Como aceitar que um ser criado por si o suplantasse? E por que não sonhar com a glória para quem nasceu dele, se o criador não conseguira alcançá-la? A contradição aninhou-se no coração do Coronel. Precisava aceitar a glória de Alírio como compensação à sua falta de valor. Como alguns escritores que emprestam os próprios sonhos a seus heróis, virtudes inalcançadas, misérias dissimuladas, o amor de que foram incapazes de confessar ou retribuir.

O Coronel ficou parado ante a janela do quarto sem coragem para abri-la. Pareceu-lhe que, em vez do dia amanhecendo, iria ver-se emoldurado num espelho, cabelos acinzentados em lugar das nuvens, cada ruga substituindo a ramagem difusa das árvores.

Nas madrugadas de domingo, quando os mais densos efeitos do álcool haviam-se dissipado, o Coronel acordava-se ainda vestido sobre a cama. Nenhum ruído na casa. De raro em raro, o rumor abafado do motor de um carro pela rua. Sob o pretexto de tomar um copo de água gelada, ia à cozinha. Às vezes, a pretendida viagem terminava antes do destino. Ele nem sempre resistia à beleza incandescente e disponível do corpo adormecido no quarto de hóspedes ou no sofá da sala sem tocá-lo na palpitação das cordas mais secretas, uma relação sonâmbula e sem palavras, o rapaz fingindo um sono que não impedia a manifestação de todos os músculos envolvidos naquele exercício ambíguo de prazer.

Depois da visita de Bernardo, a última frase do bilhete picotava fundo o sentimento do Coronel, perfurando-lhe a satisfação com o travo do desgosto. Mesmo sem a frase, esse desgosto estava presente ao final desses jogos aliciantes desde os primeiros estremecimentos escusos com os companheiros da adolescência. Em todo o tempo da carreira militar, algumas vezes rompia-se a vigilância que mantinha sobre si e a continência forçada arrebentava qualquer barreira. A dissimulação fendia-se, obrigando-o a desfazer-se de todos os disfarces que fantasiavam sua personalidade ao ponto de nem sempre reconhecer-se neles. Saía pela noite, trocando de cidades ou buscando ambientes cuja sordidez só se revelava quando a audácia sentia-se recompensada.

Mesmo longe dos quartéis, livre da observação contínua dos militares e da perseguição pressentida em todos os olhares, prosseguiu no fazer de conta com que se vestia, o hábito da simulação tão arraigado que confundia-se na busca de sua verdadeira natureza. A reação de Bernardo, com o flagrante não revelado, fora uma evidência mínima daquilo que o esperava, caso não tivesse sabido camuflar-se tão bem para evitar o escândalo espreitando-o em todas as horas do dia. Ao lembrar as palavras deixadas pelo amigo, estremecia, imaginando a amplidão do desprezo à sua espera se falhasse no acobertamento dos impulsos que não conseguia anular.

Depois de ter feito o rapaz sair, o Coronel ia conferir seus pertences. Liberados pelo álcool, os meninos – pobres desde a ascendência migrada dos Açores – abusavam da confiança e da liberdade que recebiam. Alguns objetos e roupas não eram mais encontrados. Dinheiro, o Coronel passou a escondê-lo, deixando no bolso da calça alguma coisa a ser levada para a continuação da farra pelos bares, ou para recompensar melhor os que se deixavam ficar para a extravagante e falsa surpresa das vésperas do amanhecer. Jamais poderia saber quem levou isto ou aquilo porque, na disputa do melhor quinhão, um não denunciaria o outro.

Os meninos de Porto Belo eram amigos entre si; nenhum era amigo do Coronel. A conivência assegurava o preço pago por ele pelo desamor daquela cumplicidade.

Como se o quartel ainda o esperasse, Vitório continuou acordando cedo em Santa Teresa. Deixava a cama no maior silêncio para não acordar Elza que fingia dormir para não decepcioná-lo. Entre dormindo e acordada, acompanhava os movimentos do marido na cozinha, água fervendo, o cheiro do café recém-passado chegando até o quarto. Imaginava-o tomando uma xicrinha com pouco açúcar, antes do primeiro cigarro, velho hábito desde os tempos de tenente.

Da varanda dos fundos, Vitório olhava a paisagem, as formas clareando e se definindo aos poucos. A vegetação compacta das encostas diferia de todas que conhecera. Nada tinha a ver com as coxilhas do Rio Grande do Sul, ondulando até o infinito, bosques esparsos pelo campo, pinheiros pontuando as alturas; muito menos com as dunas de Natal, suas palmeiras, o mato ralo dos cajueiros, alguma mangueira frondosa; ou a amplidão do Pantanal Mato-grossense, léguas e léguas planas de flora baixa, o Rio Paraguai carregando lerdo as flores azuis dos camalotes.

Repensou todas as paisagens para concluir que a floresta das montanhas cariocas, apesar de tão próximas do mar, era a mais fechada.

Mesmo com o céu claro, não sabia nomear plantas, árvores, arbustos, trepadeiras, cipós enleados uns nos outros em teias espessas. Reconhecia algumas samambaias e bromélias, incapaz de definir espécies. Quanta coisa a aprender, se quisesse dar nome às árvores como identificou sentimentos que o atingiram ao atravessar matas e banhados, durante exercícios militares que lhe enrijeceram os músculos sem alterar sua sensibilidade.

O ruído de louças e talheres anunciou a presença de Elza na cozinha. Vitório continuou imóvel, esperando que ela chegasse devagar, lhe tocasse os cabelos já embranquecendo nas têmporas e dissesse baixinho: “O dia está começando de novo”, ou falasse no filho, nos bordados, nas plantas.

— Estás olhando o trabalho de Deus?

Vitório abraçou a mulher e ficaram um instante acompanhando o jogo de luzes que o sol lançava sobre as folhas.

— Deus está em cada folha que cai, disse ele.

— E em todos os fios de nosso cabelo.

Durante o café, a conversa girou em torno de Alírio, Alice, o pequeno mundo do casal.

— Alírio precisa pensar em casamento. Não gosto de vê-lo levar essa vida, sozinho em Copacabana, trabalhando noite e dia.

— Ele sabe o que faz, disse Vitório.

— Tu nem tinhas vinte e sete quando casaste comigo.

— Os tempos são outros.

Elza lembrou que o filho ia fazer vinte e oito anos e os dois já passavam dos cinquenta.

— Ninguém mais é criança, disse com uma ponta de tristeza. Tão bom quando eu brincava de tempo-será em Joinville.

Vitório foi ver se o jornal havia chegado, junto à porta de entrada. Não queria retomar assuntos de idade que cobravam dele uma solução, desde que deixara o Exército. Se a rotina do quartel sempre o aborreceu, o que mais o incomodava agora era a passividade que se instalava cada vez mais penetrante em seu cotidiano. A proposta de construir uma casa no terreno de Elza, em Porto Belo, fora rechaçada violentamente.

— Eu, me enterrar naquele fim de mundo, longe de meu filho?

— Alírio tem a vida dele, vai ter a família dele...

— Não, Vitório, por favor não me obrigues a isto. Somos só nós três e devemos ficar juntos até o fim.

Vitório não se lembrava de ter visto Elza tão exaltada, com tanta determinação. E a palavra fim ressoou a seus ouvidos como um dobre de finados. Ele estava convencido de que o fim estava muito longe, sentia-se forte, desejoso de produzir alguma coisa, tornar os dias menos penosos e inúteis. A mulher contentava-se em sonhar com o sucesso do filho artista, passear pelo Rio de Janeiro quando Alice vinha visitá-la, passar tardes inteiras lendo romances ou tecendo infindáveis colchas, bordando toalhas e blusas. Quanto a si, ampliou a coleção de livros sobre História, distraía-se com a procura do valor de pessoas e terras distantes, povoava-se de panoramas e acontecimentos que, no fim de contas, passaram a deixá-lo acabrunhado porque não tivera participação em nada daquilo, convencendo-se da morbidez dessa busca de conhecimentos sem objetivo pessoal algum.

Em Porto Belo, longe de todos esses fantasmas que só faziam destacar sua insignificância, poderia dedicar-se ao trato da terra, mesmo que fosse em humildes canteiros de hortaliças. E se cultivasse orquídeas? Ou criar coelhos, porcos, galinhas, algo vivo cuja existência pudesse acompanhar, vendo-os nascer, crescer, interferindo pessoalmente na formação de um mundo ativo, por mais irracional que fosse. Via-se cercado pela criação, dando ração aos animais, limpando poleiros e pocilgas, ou sujando as mãos de terra no cuidado com plantas viçosas, o rendilhado da folhagem das cenouras, as folhas rajadas de roxo da beterraba, o vermelho brilhante dos rabanetes, o verde claro das alfaces... um arco-íris para diverti-lo.

Jornal caído sobre as pernas, olhar perdido num objeto qualquer da sala, Elza sabia que o marido sonhava com Porto Belo. Mas não iria ceder. Por amor a Vitório havia abandonado mãe e irmã, seguido por terras estranhas dividindo-se entre ele e o filho. Docilmente deixara-se levar de um lugar a outro, pela dedicação devida a um e a necessidade de educar Alírio. Se a carreira de Vitório havia terminado, a do filho estava começando e ela não abriria mão de seguir os passos de quem nasceu de si e foi formado por seus desvelos.

Alírio conhecia os planos do pai; chegou a argumentar a favor dele, penalizado com o alheamento a que o via submetido, mas a negativa da mãe foi tão veemente que deixou de interferir. Como nunca pudera impedir as transferências de Vitório que obrigava a família a mudanças imprevistas e às contínuas modificações em seus estudos, não poderia contrariar a mãe, agora que tinha realizado o desejo sempre acalentado de morar no Rio.

Havia três entre os meninos de Porto Belo que se tratavam por Lalo, Macaco e Lazinho. Vinham sempre juntos à casa o Coronel e, se aparecessem outros, iam logo embora. Bebiam pouco, eram menos confiados que os demais e gostavam de ouvir as histórias do ex-militar, rindo com o imprevisto dos desfechos, contados com ironia e bom humor, principalmente ao longo dos primeiros drinques. Até certo ponto, difícil de prever e determinar, o quase monólogo apenas interrompido pelas gargalhadas ou pequenas interferências dos rapazes, era brilhante, cheio de vida, o velho reanimado pelos olhares atentos na expectativa de um lance cujo efeito sobrepujasse o anterior enão arrefecesse o entusiasmo da noitada. Depois desse ponto,a voz perdia um pouco da clareza, quando não aconteciam coisas piores: a desatenção dos ouvintes ou mesmo algum tropeço ou desvio na narrativa.

A cena desenvolvia-se na sala de visitas, o Coronel sentado a uma poltrona de couro, dois meninos no largo sofá, o outro numa cadeira de palha com braços. Mal chegados, acomodavam-se nos mesmos lugares e só deixavam os assentos para servir-se de mais bebida ou ir ao banheiro. Como atores que repetem um cena nunca aprovada, ou extras para darem um pouco de movimento à câmara que, sem este recurso, ficaria estática na figura do Coronel. Pouco lhes restava além de ouvir e rir, mas ouviam e riam com prazer, inclusive pedindo a repetição de anedotas para verem como eram renovadas na palavra ágil do contador de histórias.

Os três moços, filhos de comerciantes, seguiriam a profissão dos pais; estudavam contabilidade no Grupo Escolar, salvo Lalo que não desejava ficar parado atrás de um balcão e preferia mexer com motores de motocicletas e correr em alta disparada pela avenida principal, em direção a Itapema ou Camboriú. O Coronel, oculto pelos ramos da cerca-viva de hibiscos, esperava a passagem de Lalo, um meteoro brilhando entre os raios de sol que iluminavam a moto, músculos dos braços retesados, o corpo inteiro entregue ao prazer da velocidade, dominando a máquina com a segurança de uma conquista amorosa. Mas, na casa do Coronel, seus nervos se relaxavam e ele ficava quieto, a vivacidade dos gestos refletida na maneira como se remexia no assento, as mãos comprimindo e afrouxando os braços da cadeira como se manejasse os punhos do guidom.

Macaco, de braços longos e mãos compridas, uma careta sempre pronta a aprovar ou desaprovar o que era contado, permanecia aceso, servia os copos, procurava nova garrafa ou gelo, cortava queijo e completava o pratinho sobre a mesa do centro, à altura da mão de todos. Para satisfação de Lazinho que mal se mexia no sofá, os olhos presos na figura falante do Coronel, admirando a fluência da palavra, para ele tão difícil. Difícil como sobrepor a exaltação e o entusiasmo varonil do velho oficial à figura submissa e lânguida que, sorrateira, apossou-se dos segredos de sua excitação na noite em que adormeceu no sofá da sala. Uma noite sem testemunhas, diferente daquela que levou Bernardo a escrever no bilhete “tenho nojo de você”.

Para estes três, o Coronel falava também sobre o livro, chegando a ler alguns trechos antes do terceiro copo. A leitura, feita de lápis na mão, servia para a revisão de uma palavra ou frase inteira, corta daqui, corta dali, e ele chegava a esquecer-se dos visitantes, trancando-se no quarto para rever aquela passagem. Quando voltava, ou os meninos tinham ido embora ou estavam numa conversa tão animada que o Coronel sentia a noite perdida para seu monólogo.

Tanto Lazinho como Lalo e Macaco eram de poucas leituras. Além dos livros escolares, nada mais que histórias em quadrinhos e folhetos pornográficos, passados às escondidas de banco em banco, na sala de aula. Em consideração à bebida que o Coronel servia com tanta prodigalidade, mostravam-se atentos à leitura, embora preferissem as anedotas, e fingiam interesse perguntando por Alírio e dona Elza. As respostas nem sempre eram claras: a casa onde estavam conversando ora havia sido construída no terreno de Elza, ora pertencia a Ruth, uma irmã que ele dizia ter no Rio; Alírio ia receber um grande prêmio de pintura, outras vezes já havia recebido. A verdade é que Vitório de Lima e Silva não estava muito convicto sobre o talento do filho e duvidava que ele conquistasse o prêmio; mas antes que Alírio casasse com Pônci, comprometendo a carreira, ele estava disposto a pagar-lhe passagem e os estudos na Europa durante um ou dois anos. Quando voltasse, poderia competir vantajosamente com os outros artistas e casar com quem quisesse para dar-lhe netos e alegria à Elza.

Se os três rapazes pouco entendiam de literatura, muito menos de artes plásticas. Lazinho, imóvel em seu canto, duvidava que uma pintura pudesse dar um prêmio de viagem ao estrangeiro, tudo pago para estudar em Paris. Pois o Coronel não só garantia isto como povoava a noite com estranhos personagens que entravam na sala obscura de Porto Belo com os nomes de Cézanne, Matisse e Picasso. Os meninos achavam que ele havia bebido demais e começava a delirar. Macaco foi além e arrematou na saída:

— Acho que o Coronel está ficando biruta.

Havia passado o tempo necessário ao fortalecimento da terra pelo adubo. Aproveitando a fresca da manhã, o Coronel completou o que faltava: afofar a terra com o rastelo, desfazendo torrões com as mãos e jogando fora os que resistiam à pressão dos dedos. Com uma pequena pá de jardim, aprontou três fileiras de covas, a do centro deslocada das outras para dar mais espaço às futuras plantas.

Os pacotinhos sobre a mesa da cozinha esperavam ser abertos. Fotos coloridas de hortaliças viçosas e brilhantes antecipavam ao Coronel o prazer de manuseá-las, como faria dentro de um mês com os rabanetes, dois meses para a beterraba, pouco mais com as cenouras. Bom que houvesse essa defasagem na colheita porque ele estaria ocupado por mais tempo, acompanhando o desenvolvimento das folhas e raízes.

No verso das embalagens, todas as instruções sobre semeadura, desbaste ou transplante, tempo de germinação e colheita, o nome das plantas repetido em italiano e alemão: ravanello e radieschen, carota e mohrrübe, barbabietola e rote rübe. Havia preparado caixotes especiais para a beterraba, que exigia transplante; cuidaria de sua germinação com mais desvelo e quando as plantinhas apontassem duas ou três folhinhas, faria a muda para o espaço maior dos canteiros.

Sobre uma folha de papel em branco, despejou um pouco de cada semente, lado a lado. Como admitir que aqueles grãozinhos aparentemente mortos contivessem a exuberância da folhagem e a variedade de cor, forma e sabor? Diferiam bastante entre si, mas quem não tivesse o hábito de manuseá-la poderia confundi-las. Os rabanetes nasceriam das sementes lisas e arredondadas de coloração variando do rosa ao bege; a beterraba, da granulação castanha em formato irregular como grãos de areia; a forma alongada das cenouras viria de sementes ainda menores, acinzentadas.

O Coronel passou o dedo indicador pelas sementes, sentindo a diferenciação pelo tato. Mais agressiva, pontas aguçadas, a beterraba não permitia adivinhar sua doçura nem a forma arredondada, quando estivesse madura; escura, menor que as outras, fina e alongada, a semente da cenoura talvez denunciasse o rendilhado das folhas; gentil e suave ao toque, a mais bela compensava o sabor picante do rabanete. Ficariam assim até que a terra as envolvesse para o início do processo da germinação.

Sobre o quadrado branco do papel, as sementes transformaram-se em pólvora e chumbo de caça com que o irmão mais velho do Coronel socava os cartuchos para a espingarda matar perdizes, em Passo Fundo. Criança, sua missão era recolher as aves que os cães traziam, pondo-as num embornal. Às vezes, depois de um voo desorientado, o baque do corpo sobre o mato, elas chegavam ainda palpitando de vida, o sangue quente manchando as mãos do menino. Não havia limite para a caçada; quanto mais perdizes melhor, preparadas à escabeche e guardadas em latas, cobertas de banha para durar o inverno inteiro. O rapaz lamentava, para si, a morte das perdizes, principalmente quando chegavam com o coração pulsando, asas se debatendo, olhos assustados. Aos poucos foi negaceando, se escondendo, negando-se acompanhar o irmão pelas coxilhas gaúchas. No entanto, depois de adulto, foi militar. Preparou-se para matar, exercitando-se no tiro contra silhuetas humanas. Nunca chegou o tempo de pôr em prática esses ensinamentos que ele não saberia como enfrentar. Mais tarde, ao verificar que as guerras e os inimigos eram fictícios, ficou-lhe apenas o desgosto de ter-se preparado docilmente para os rudes misteres da morte que não lhe cabia determinar. Jamais utilizar pólvora e chumbo, invenção dos homens para o próprio extermínio, mas o misterioso granulado que tinha sob seus olhos, invenção de Deus como origem e manutenção da vida.

Com as pontas dos dedos o Coronel repôs cada tipo de grão em seus envelopes e foi distribuí-los pelas pequenas covas dos canteiros e caixotes, cobrindo-os com uma leve camada de terra.

Voltou à varanda e sentou-se satisfeito para admirar a tarefa que havia concluído. “Ao homem cabe apenas semear”, pensou, “à terra cabe germinar”.

O Coronel nunca sentiu tanta falta de Elza e Alírio como naquele momento de sorrateira tristeza.

Com duas rodas de ruge bem acentuadas nas maçãs do rosto, lábios de amora arroxeada e sombra azul sob os olhos, Lila chegou de vestido verde tão justo que o Coronel não conseguia imaginá-la caminhando pela rua.

— Quem morreu foi o Lalo.

Assim direto, como se continuasse uma conversa ou soubesse que o rapaz frequentava aquela casa. Aliás, o Coronel não sabia até que ponto as visitas noturnas eram do conhecimento de Lila, ou da cidade. O pandemônio da cozinha nas manhãs de domingo era pacientemente posto em ordem por ele, lavando copos, pratos, talheres e, pior de tudo, as panelas, por achar que Lila nada tinha a ver com a balbúrdia que os meninos faziam. Quanto ao povo, talvez de nada suspeitasse. Os moços tinham o cuidado de chegar quando todas as luzes da vizinhança estivessem apagadas e, os que ficassem, saíam antes do amanhecer, acordados pelo Coronel. Na rua, só Lalo parava para falar com ele; os outros mal o cumprimentavam, quando não havia oportunidade de atravessar a rua ou entrar em algum lugar. Sem se ressentir com esse procedimento, de início um tanto doloroso, concluiu que a discrição era favorável a todos e pactuou com ela, embora ficasse feliz quando Lalo o parava para perguntar risonho: “Como vai o livro, Coronel?”

Fingindo indiferença, perguntou a Lila:

— Como foi?

Sem se dar conta de que a pergunta revelava que ele o conhecia, ao ouvir a resposta o meteoro brilhou entre o vermelho dos hibiscos:

— A moto.

Tinha sido de noite, quando ele voltava de Itajaí. Os faróis de um carro em sentido contrário ofuscaram-lhe a visão e ele, sem tempo de manobrar, entrou sob a carroceria de uma caçamba estacionada junto ao meio-fio.

O Coronel julgou ouvir suas próprias palavras ao escutar Lila dizer:

— Que pena, tão moço...

O corpo estava na igreja antiga, junto ao cemitério que o iria abrigar, como guarda os que fizeram a história da cidade. Aos dezoito anos, sem ter ao menos feito o teste de Santos – que não era pescador – qual teria sido a contribuição de Lalo? Era o que ficava mais tempo olhando o mapa-múndi do quarto de hóspedes, imaginando viagens – “Ainda hei de conhecer tudo isto!” – anuladas pelo amor da velocidade. O Coronel revia o riso desajeitado do moço ao apontar a imensidão da Rússia, do Báltico ao Mar de Bering. “É muito chão pra minha moto”. Voltava para a sala, brincava com Lazinho e Macaco, rematava os gestos com um último gole e convidava para irem embora – “Amanhã é dia de ver a mina ” – sem nunca ter-se deixado dominar pelo sono.

Deitado num caixão simples, coberto de margaridas e raminhos verdes, não se podia ver o rosto de Lalo, coberto por um véu branco.

— Ficou todo decomposto, dissera Lila.

O Coronel benzeu-se e não teve coragem de aproximar-se. O discreto lamento da mãe, junto aos destroços do filho, era o único som ecoando pela igreja silenciosa e vazia. Nada perturbava a chama estática das velas na temperatura morna do templo. A lamparina vermelha junto ao sacrário não chegava a iluminar a grande figura crucificada no topo do altar-mor, fundida com as sombras como a escuridão imposta aos olhos de Lalo.

Ao sair da igreja para a luz do dia, ouviu o sino dar o primeiro dobre para o enterro. O mar estava aceso de reflexões na espuma das ondas e o horizonte limitava o caminho das águas para pátrias desconhecidas. O Coronel baixou os olhos da paisagem para a areia em que pisava. “A contribuição de Lalo havia sido o sonho.”

Entre as manias adquiridas pelo Coronel, em Porto Belo, constava a leitura do obituário publicado pelos jornais. Não que esperasse surpreender-se com a morte de amigos, que não os tinha; nem de parentes que o avisariam por outros meios. Interessava-se pela idade dos mortos, como se a estatística resultante pudesse dar a probabilidade de sua própria morte.

Os dados variavam muito nas listas diárias, alternando-se a quantidade dos defuntos abaixo ou acima dos sessenta e cinco anos, sua idade atual. Não se preocupava com os desaparecidos em tempo inferior a esse; pelo contrário, reprimia certa satisfação por saber que os ultrapassava. O maior contentamento do Coronel consistia em analisar os dados de quem transpunha os setenta, chegava aos oitenta, ou ia além deles. A beleza de uma vida como esta! “Aos 80 anos, o pescador aposentado Antônio Mariano Filho faleceu em seu domicílio, na Serraria, às 14 horas do dia 9, de morte natural”. O corpo havia atingido o limite de resistência e a alma despedia-se em busca de outro abrigo. Ou findava-se com o corpo?

Nos tempos de mocidade, lera filósofos e estudara a história das religiões à procura de uma resposta; como tudo não passasse de hipóteses e divagações, conformou-se com a incógnita, oscilando entre uma ou outra solução. Fosse qual fosse, a não participação consciente nos mistérios da vida futura, se houvesse, deixava-o frustrado.

A inaceitável sensação de envelhecimento atingiu o Coronel na rua, quando tinha apenas quarenta anos. Um rapaz de uns dezoito anos abordou-o em Copacabana: “Coroa, me dá um cigarro?” Bem mais tarde estranhou que Clarice Lispector tratasse por ancião um homem de sessenta anos, personagem de um de seus contos. O choque maior recebeu num ônibus onde viajava de pé: uma bela estudante ofereceu-lhe o lugar, que ele recusou risonho mas ofendido. Seu olhar distante e preocupado teria motivado a gentileza, pensou o Coronel, sem aceitar que poderia ter sido sua cabeleira grisalha, ou a lembrança do avô, que comovera a mocinha.

Ele próprio era contraditório a respeito de sua idade. Conforme a situação e as conveniências dizia “estou velho demais para isto”, como afirmava com voz firme “ainda sou capaz de fazer isto, obrigado”. Depois que ouviu de muitas pessoas mais idosas do que ele dizerem “quando eu ficar velho...” – concluiu que a idade só conta para quem nos vê por fora.

Depois destas considerações, não demorou a julgar mórbido não só estar bisbilhotando a morte alheia, como tentar deduções improváveis sobre seu tempo restante. Evitou a seção necrológica, mesmo porque sentia-se forte, rijo, e pensamentos dessa ordem poderiam ficar para mais tarde, “quando ficasse velho”.

Além disso, tinha um grande projeto: depois de escrever vários livros, sem contar com o que estava concluindo, havia de assistir a entrada do século XXI, mesmo que fosse de cadeira de rodas, na Quinta Avenida, em Nova York, ou nos Champs Elysées de Paris.

Vitório de Lima e Silva, habitante da terra desde 1902, não veria despontar o novo século; o Coronel, com vinte anos a menos, poderia manter essa esperança, mesmo sem as figuras fictícias de mulher e filho que lhe povoavam a imaginação. “Ainda que sozinho...” – pensou. Essa constatação entristeceu o Coronel, no momento em que Lila chamou-o para o almoço e Elizeth deitou-se a seus pés sob a mesa. Quem sabe – imaginou entre a resplandecência dos fogos de artifício, a estridência de milhares de buzinas de automóveis, risos, gritos e abraços da multidão enchendo todas as grandes avenidas do mundo para saudar os novos tempos, quem sabe se nesse instante de nervosa exaltação não poderia ver Alírio surgir no meio do povaréu, procurando-o aflito. Chegaria ofegante e diria sorrindo:

— Vamos, pai. Pensei que não o encontrasse mais.