Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA

A poesia de Os sertões, de Guilherme de Almeida


Edição de referência:

ALMEIDA, Guilherme de. “A poesia de Os Sertões”. Academia Brasileira de Letras.

Disponível em http://www.academia.org.br/abl/media/memoria3.pdf.

Acesso em 01/10/2017.

Peregrino de primeira romagem, com a natural timidez do devoto novato, neste ano trigésimo sétimo da póstuma euclidiana, venho trazer o meu “ex-voto” singelo, mas convicto, a esta Meca espiritual.

Humilde oferenda, a minha, que, por si e para mim, tem apenas um valor: ser breve e ser minha.

Num dos mais propalados contos da propalada literatura francesa do século XIX, narra Anatole o caso insinuante de um inocente pelotiqueiro surpreendido, ante o altar da Virgem, a executar um jogo esperto, difícil e brilhante das suas mais elásticas e preciosas habilidades. Era a sua maneira – toda sua e só sua – de render à Senhora Puríssima o seu culto simplório, mas legítimo. E, doirada e azul, do seu nicho místico a Mãe Divina sorriu aos esgares prestímanos do “Jongleur de Notre Dame”...

Possa também sorrir do seu alto nimbo de glória o grande Euclides ao pequeno poeta, que lhe vem dizer a única prece de que é capaz: que lhe vem falar de poesia, da miraculosa poesia de Os sertões.

Bem analisada a minha intenção, talvez não seja ela, no fundo, senão mera vaidade: o gosto de descobrir num forte prosador um forte poeta, para me sentir orgulhoso do longínquo parentesco literário. Mas, perdoável vaidade, pelo tão pouco que é o devoto.

* * *

A vasta e autorizada bibliografia euclidiana parece haver já verrumado de todas as sondas todos os estratos e substratos da multiforme e coesa personalidade do mestre máximo do nosso nacionalismo. Já se estudaram, em Euclides, o homem, o militar, o matemático, o engenheiro, o explorador, o geógrafo, o historiador, o repórter, o sociólogo, o escritor, o estilista. Faltou o poeta. Não o poeta das Ondas, o caderno escolar das “primeiras poesias” daquela imperfeita florada dos quatorze anos: a idade crítica do espírito, a ingrata quadra que o próprio autor, em nota espontânea e consciente, aposta no frontispício do manuscrito, considera “fundamental para explicar a série de absurdos, que há nestas páginas”. Não esse poeta infante, que todos nós, brasileiros, o somos nesse dúbio momento de dupla puberdade; mas o poeta de Os sertões: o artista da poesia pura, não intencional, não resolvida, não premeditada, mas imposta ao homem por uma insuspeita consciência lírica do universo, por essa imprevista substância poética que há nos seres e nas coisas e que, imperativa, reclama urgente expressão.

Dessa poesia legítima – obra de artista e não de artífice – está todo sublinhado e sublimado o grande livro, a que deveríamos chamar apenas “O Livro” com maiúscula, porque é ele, para o brasileiro, uma Bíblia, um Corão, um Talmud.

Não se diga ser essa uma poesia meramente casual. Foi no ápice da sua maturidade, quando já vingada, florida e frutificada a dura lavra de Os sertões, um ano antes da morte trágica, que Euclides da Cunha, em letra de fôrma, se confessou poeta. Foi, precisamente, a 30 de setembro de 1908, quando, prefaciando os imortais Poemas e canções, de Vicente de Carvalho, num misto de dúvida modesta e desconfiada antecipação, escreveu primeiro: “Aos que se surpreenderem de ver a prosa do engenheiro antes dos versos do poeta, direi que nem tudo é golpeantemente decisivo nesta profissão de números e diagramas”... E, corajosamente, revelou adiante: “... Quando nos vamos pelos sertões em fora, num reconhecimento penoso, verificamos, encantados, que só podemos caminhar na terra como os sonhadores e os iluminados: olhos postos nos céus, contrafazendo a lira, que eles já não usam, com o sextante, que nos transmite a harmonia silenciosa das esferas, e seguindo no deserto, como os poetas seguem na existência... a ouvir estrelas”...

Mas era uma lira de poeta o sextante do engenheiro. Assim, nesse alheado encantamento, caminhou Euclides com o passo melódico dos párias musicais do Sonho. E essa marcha cantante fez cantar de poesia o chão bruto, brutamente trilhado, de Os sertões.

Toda a verdadeira poesia, de quaisquer escolas e credos, em todas as suas muitas modalidades e com todos os seus muitíssimos fatores, está nitidamente fixada n’Os sertões que já de si são uma epopeia. Versos regulares de todos os matizes; todos os gêneros poéticos: o heroico, o lírico, o descritivo, o bucólico, o satírico, o epigramático; não importa que filigranas da ourivesaria poética, desde o capricho da onomatopeia simplesmente auditiva, ou os rebuscados arabescos das aliterações, até os mais sutis desenhos do ritmo e da ideia e os mais inéditos achados da “imagerie” – versos, puros versos, poesia, pura poesia, é o que sempre salta, vivo, das páginas vívidas d’Os sertões. E isso, sem necessidade de acuradas pesquisas: mas a olhos vistos, à mais rudimentar observação.

“Res, non verba.” Pelo incisivo roteiro euclidiano, vou colhendo, página a página de “A Terra” e de “O Homem”, as flores de alvura que de passagem fez abotoar em milagre o luminoso viajor.

Alguns exemplos, primeiro, de verso regular, de métrica rigorosa.

Logo à página 4[1], na firme descrição do fácies geográfico do “hinterland” baiano, emerge este decassílabo de mestre:

“num ondear longínquo de chapadas”...

Propositadamente, o poeta evitou o ditongo no verbo “ondear”, contando três em vez de duas sílabas, recurso técnico para alongar o verso e, consequentemente, a perspectiva que ele descreve.

Na página seguinte, outro de igual medida:

“os recessos das matas opulentas”;

e este alexandrino ternário, rigorosamente cortado em três versos de quatro sílabas engrenados, sem elisões:

“o antagonismo permanente das montanhas”,

e que não se serve, para o corte, do fácil recurso das agudas divisórias, como o clássico ternário de Baudelaire:

“tu fais l’effet d’un beau vaisseau qui prend le large.”

ou o de Guerra Junqueiro:

“bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.”

Mais dois decassílabos de alto quilate, à página 8:

“da antiga cordilheira desabada”,

e este outro:

“a sociedade rude dos vaqueiros”...

Note-se um detalhe importante: – Todos esses versos citados são terminais de parágrafos: o que sugere, no autor, uma subconsciente vontade de versificador empenhado sempre em criar o valorizante “coup de théâtre” do fecho grandíloquo.

À página 10, descrevendo a “Terra ignota”, um decassílabo e um alexandrino seguidos imediatamente:

“o rabisco de um rio problemático

ou idealização de uma corda de serras”...

E, na página fronteira, este outro verso de dez sílabas:

“das camadas cretáceas, decompostas”.

Mais uma página voltada – e mais dois versos de métrica idêntica, separadas apenas por umas vinte linhas:

“a ossatura partida das montanhas”;

“a paragem sinistra e desolada”...

Mais dez linhas passadas, eis dois setissílabos seguidos, fechando um período:

“esparçando a tênue capa das areias que o revestem”...

E, outras dez linhas abaixo, este decassílabo do mais rico e sugestivo colorido:

“o pardo requeimado das caatingas”...

É notável a preferência de Euclides pelo verso decassilábico. Há nisso, certo, uma imposição atávica, pois que essa de dez silabas, é a medida nobre do verso português: a pauta uniforme d’Os lusíadas.

Facilmente, sem nenhum esforçado trabalho de pescador de pérolas, eis, surpreendidos, num folhear, apenas atento, d’Os sertões, perfeitos versos de métrica vária, que invejaria qualquer lapidário da nossa maior e melhor poesia:

“O aspecto atormentado da paisagem” (p. 15);

“numa trama vibrátil de centelhas” (p. 28);

“no expandir das colunas aquecidas” (p. 28);

“de tiros espaçados e soturnos” (p. 29);

“a imprimadura negra da tormenta” (p. 45);

“barbaramente estéreis, maravilhosamente exuberantes” (p. 50);

“O sertanejo é antes de tudo um forte” (p. 114);

“a fealdade típica dos fracos” (p. 114);

“os meandros das trilhas sertanejas” (p. 114);

“o de guerreiro antigo, exausto da refrega” (p. 118);

“visando-o pelo cano da espingarda” (p. 121);

“oculto no sombreado das tocaias” (p. 121);]

“melancolicamente as notas do aboiado” (p. 127);

“e pelo passo tardo do profeta” (p. 181).

Na dantesca descrição do inferno de Canudos – toda ela um poema – surge esta estupenda parelha de decassílabos, como fecho propositado:

“gandaleiros de todos os matizes,

recidivos de todos os delitos (p. 200).

Tão dominante é em Euclides, como em todo grande poeta, essa necessidade técnica da chave de oiro, que a derradeira linha d’Os sertões, a última de “A Luta”, contém, na macabra descrição do cadáver do Conselheiro, um dos mais belos alexandrinos, jamais compostos em nossas letras, pela profundeza do fundo e pela formosura da forma. Este verso magistral:

“as linhas essenciais do crime e da loucura” (p. 613).

Mas, poesia não é apenas verso. Antes e acima da medida está o Ritmo, que é, como Deus, primeiro. Poesia é, essencialmente, Ritmo no sentir, no pensar e no dizer. Nem só de metro vive ela, como nem só de pão vive o homem. Vive, principalmente, de imagens, como, principalmente, vivemos de sonhos. A imagem é a luz que projeta o verso.

Pródigo de “imagerie” é o grande livro de Euclides. Vou juntar ao acaso, num ramilhete de estrelas, algumas das suas cintilantes imagens poéticas.

Descrevendo o clima cruel do sertão, o poeta arranca da esterilidade ambiente esta imagem fértil: “A terra irradia como um sol escuro” (p. 28).

No prodigioso desenho do sertanejo, definindo o vaqueiro identificado com seu cavalo, escreve: “Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco” (p. 116).

Fala do gibão do vaqueiro. E comenta: “Esta armadura, porém, de um vermelho pardo, como se fosse de bronze flexível, não tem cintilações, não rebrilha ferida pelo sol. É fosca e poenta. Envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias” (p. 119). Na descrição do vulto do Conselheiro, esta fúlgida fagulha de imaginação: “Era truanesco e pavoroso. Imagine-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalipse” (p. 169).

Outra, satírica, uma página adiante: “Nunca mais olhou para uma mulher. Falava de costas mesmo às beatas velhas, feitas para amansarem sátiros” (p. 170).

Pintando Canudos: “A Tróia de taipa dos jagunços” (p. 183).

E concluindo o capítulo III de “A Luta”: “A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o como Anteu, indomável. É um titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos” (p. 244).

* * *

Muito falam os chamados “novos” da velha coisa que é o “verso livre”. Mas tão poucos o sabem praticar!

Ora, nesta prática do difícil verso livre – o verso que só existe enquanto a ideia existe, indo apenas até onde vai ela –, nessa prática perigosa, Euclides é mestre. Se certas passagens d’Os sertões, em vez de compostas tipograficamente em forma de prosa, o fossem em forma de versos livres, muito pasmaria o compilador de uma antologia da moderna poesia brasileira, topando com poemas autênticos, muito mais legítimos que os de muitos catalogados modernistas.

É tal trabalho tipográfico convidativa experiência a que não me sei furtar.

Eis, por exemplo, o fragmento de um poema que se intitularia:

A vaquejada

De repente estruge ao lado

um estrídulo tropel de cascos sobre pedras,

um estrépito de galhos estalando,

um estalar de chifres embatendo;

tufa nos ares, em novelos,

uma nuvem de pó;

 rompe, a súbitas, na clareira,

embolada, uma ponta de gado;

e, logo após,

sobre o cavalo que estaca esbarrado,

o vaqueiro, teso nos estribos... (p. 126).

A essa espécie poética serve, como elemento plástico preponderante, o virtuosismo do “som imitativo”. Mas é, sobretudo, duas páginas adiante da que acabo de citar, que a onomatopeia e a aliteração atingem o seu máximo de força expressiva. É na monumental descrição do estouro da boiada:

Entrebatem-se, enredam-se, trançam-se e alteiam-se

riscando vivamente o espaço,

e inclinam-se, e embaralham-se milhares de chifres.

Vibra uma trepidação no solo: e a boiada “estoura”...

............................................................................................................

E lá se vão;

não há mais contê-los ou alcançá-los.

Acamam-se as caatingas,

árvores dobradas, partidas, estalando em lascas e gravetos;

desbordam de repente as baixadas num marulho de chifres;

estrepitam, britando e esfarelando as pedras;

torrentes de cascos pelos tombadores;

rola surdamente pelos tabuleiros

ruído soturno e longo de trovão longínquo...

Este último verso nada fica a dever à citada e recitada onomatopeia virgiliana:

“Insonuere cavae, gemitumque dedere cavernae”...

Menos sensorial do que essa orquestração audível, a fina onomatopeia do pensamento, comum nas páginas d’Os sertões, chega ao seu clímax nesta maravilhosa descrição física do asceta do sertão – o Conselheiro:

Vinha do tirocínio brutal da fome,

da sede, das fadigas, das angústias recalcadas

e das misérias fundas.

Não tinha dores desconhecidas.

A epiderme seca rugava-se-lhe como uma coiraça

amolgada e rota sobre a carne morta.

Anestesiara-a com a própria dor;

macerara-a e sarara-a de cilícios mais duros que os buréis de esparto;

trouxera-a, de rojo, pelas pedras dos caminhos;

esturrara-a nos rescaldos das secas;

inteiriçara-a nos relentos frios;

adormecera-a nos transitórios repousos,

nos leitos dilacerantes das caatingas... (p. 166).

* * *

Mas... basta!

Já prestou o “jongleur” energúmeno o seu preito ingênuo e singular.

Simples anotador, nesta minha modesta profissão de fé na mística euclidiana, penso haver sublinhado, quanto baste à minha tímida iniciação, a transbordante e completa poesia d’Os sertões. Poesia tão abundante e contagiosa, que se extravasa sempre e se insinua ainda por toda esta santificada cidade paulista de São José do Rio Pardo. Cidade predestinada, que ficará, na História, como um símbolo da nossa História.

Nesta providencial encruzilhada encontram-se São Paulo e Euclides, para a perpetração do milagre. Só em terra paulista podia ser escrito Os sertões, porque de terra paulista partiram os magnos sertanistas. Simples e fatal fenômeno de devolução. Na lógica irredutível do “nihil in intellectu quod non primus in sensu”, foram os bandeirantes o sentimento do sertão, para que fosse Euclides a consciência do sertão. Fizeram os sertanistas enorme o Brasil, para que viesse, todo ele, resumir-se e caber, um dia, na paupérrima cabana de zinco e sarrafos, onde, como no presépio de Belém, foi o humilde Natal do livro excelso, vindo à luz do nosso sol enquanto duas margens de rio se davam as mãos, pela ponte de aço e pedra que o engenheiro armou, como dois oceanos se deram as mãos pelo continente de oiro e esmeralda que as “bandeiras” conquistaram.



[1] Os números de páginas, citados no presente trabalho, reportam-se à páginação da 17ª edição corrigida (1944), da Livraria Francisco Alves.