Fonte: Portal Catarina: Biblioteca Digital da Literatura Catarinense

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

O Brasil social e outros estudos sociológicos, de Sílvio Romero


Edição de base:
Edições do Senado Federal

SUMÁRIO

1 – O SR. ARTUR GUIMARÃES E SEU NOVO LIVRO (MARÇO, 1904)

2 – A ESCOLA DE LE PLAY NO BRASIL (1906)

3 – AS ZONAS SOCIAIS E A SITUAÇÃO DO POVO (1906)

4 – EDMOND DEMOLINS (1907)

5 – BRASIL SOCIAL (1907)

6 – O BRASIL NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX (1910-1911)

7 – O REMÉDIO (1913)

ÍNDICE ONOMÁSTICO

 

1 – O SR. ARTUR GUIMARÃES E SEU NOVO LIVRO (MARÇO, 1904)*

I

Durante os anos de 1896, 97 e 98, tive por discípulo, em curso particular, o autor deste volume.

Coincidia isto com o aparecimento de tremendas descomposturas que, de vez em quando, se desencadeiam sobre mim. Era época climatérica, verdadeira crise de assanhamento ofídico a investir-me por todos os lados. Como tivesse tomado a resolução de não mais entreter polêmicas pela imprensa, por haver descoberto não passarem quase todas elas de provocações propositais da parte de indivíduos sequiosos de notoriedade à minha custa, tive o necessário lazer para, além dos cursos públicos do Ginásio Nacional, da Faculdade Livre de Direito, da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais, dar as lições pedidas pelo Sr. Artur Guimarães.

Homem de comércio, educado na severidade do viver prático e trabalhoso, a sede de saber denota ser a vocação fundamental de seu espírito para as letras, vocação torcida noutro rumo, por influências de educação e de família.

A instrução literária não lhe passava então do estudo de alguns preparatórios; mas era suprida pelo traquejo da vida, tráfego dos negócios, meneio dos homens, aturadas leituras e proveitosas viagens.

Em leito assim preparado as minhas lições, que procurava tornar o mais possível substanciais, não caíram em terreno sáfaro e a prova tem-na o público neste livro, e noutros escritos pelo moço brasileiro.

Num país, é certo, onde a mais elevada prova de talento consiste em dizer a maior cópia de tolices nas mais retumbantes frases, e onde os grupos literários constituem verdadeiros clãs, em torno de alguns chefes, que se guerreiam uns aos outros e dão o santo e a senha para as exclusões dos que lhes não agradam, em um país assim os trabalhos de um Artur Guimarães, escritos no mais singelo dos estilos e que saem da pena de um homem não pertencente a nenhum dos agrupamentos em evidência, não podem deixar de achar, naquele meio, um quase geral desagrado.

Digo naquele meio, porque é preciso lembrar ainda, e sempre, não ser constituído o mundo legente só de tais indivíduos, em que pese à terrível presunção de todos eles.

É para os que estão de fora e constituem a grande maioria da gente de bom senso que escrevo estas linhas.

Dou-lhes aqui o programa da espécie de propedêutica das ciências, organizado para as lições dadas ao jovem negociante.

Poderá ele servir a outros que desejam aprender, e, em todo caso, é um documento da intuição de um professor brasileiro nos últimos anos do século XIX.

Ei-lo aqui:

PROGRAMA DE UM CURSO ELEMENTAR DE PROPEDÊUTICA DAS CIÊNCIAS

I. Noção do conhecimento. Conceito da ciência. Ciência geral e ciências particulares. Classificação das ciências.

II. Idéia do método. Seus elementos e várias modalidades. Noções de Lógica.

III. Uma ciência geral do Universo: Naturologia ou Cosmologia. Ciências particulares em que se decompõe.

IV. As ciências matemáticas. As físico-químicas. As biológicas. Noções de todas elas.

V. A termodinâmica ou monismo fisico-químico. O transformismo ou monismo biológico.

VI. Principais sistemas filosóficos. Estado atual da filosofia.

VII. A ciência não é a criação única da humanidade. Outras criações fundamentais.

VIII. Uma ciência geral da humanidade: Sociologia. Ciências particulares em que se decompõe. Classificação dos fenômenos sociológicos. De Greef, Le Play, Tourville, Romero.

IX. Escolas principais de Sociologia: naturalística ou mecânica, biológica, psicológica, etnográfica, histórica. Comte, Spencer, Le Play, Tourville, De Greef, Tarde, Giddings, René Worms, Durkheim, Novicow, Gumplowicz, Lilienfeld, Schäfile e outros.

X. Idéias gerais de Pré-história, Etnografia, Antropologia, e Lingüística.

XI. Evolução em geral. Sua aplicação à Sociologia. Idéia do progresso humano. Evolucionismo de Spencer.

XII. As Produções Econômicas; Indústrias. Sua classificação. Forças produtoras. Natureza, trabalho, capital. Troca, preço, valor, moeda.

XIII. Questões e problemas fundamentais da economia política. O Socialismo. Escolas.

XIV. A Arte. Idéias dirigentes da estética. Classificação das Artes. Doutrinas diversas.

XV. A Crítica. Sua evolução. Seus princípios fundamentais. Que posição ocupa na estética.

XVI. Principais escolas literárias. Lance de vista sobre a evolução literária e artística.

XVII. Como se deve escrever a história literária e artística de um povo. Métodos vários. Exemplificação com o Brasil.

XVIII. Fases diversas da literatura brasileira. Seus principais tipos representativos.

XIX. Idéia do Direito. Escolas diversas. Crítica das principais.

XX. Principais institutos do Direito. Explanação das questões fundamentais. Idéia da evolução dos vários institutos ou criações jurídicas.

XXI. Idéia da moral. Escolas a respeito. A moral evolucionista. O egoaltruísmo. O fundamento da moral.

XXII. A Religião. Seu conceito fundamental. Mitologia Comparada. Suas idéias capitais. Religiões comparadas. Escolas principais da moderna crítica religiosa.

XXIII. A Política. Seu conceito básico. Suas relações com as criações anteriores e seu valor entre elas. Fases principais da política humana. Política antiga, política medieval, política moderna, política contemporânea. Conceitos falsíssimos dos brasileiros, em geral, em relação à política e ao Estado. A Política alimentária ou política-profissão e ganha-pão.

XXIV. A História. Filosofia da História. Sistemas principais. Apreciação dos grandes mestres não só no modo de escrever senão no de interpretar a História.

XXV. Idéia da Civilização. Elementos principais da civilização moderna no Ocidente e no Oriente.

XXVI. Fases principais da história da civilização. Estado social do mundo moderno. Os novos processos econômicos, a nova política, o novo viver das nações. O futuro provável.

Levamos, mestre e discípulo, três longos anos a deslindar este programa e ainda hoje, quando nos encontramos, o que mui comumente acontece, versamos algum ponto do extenso questionário; extenso porque não se deve ignorar que cada um daqueles pontos se subdivide em dez ou doze teses do maior alcance.

Foi no decorrer das lições a esse discípulo querido que a dificuldade da exposição, ainda que perfunctória, do complexo do saber humano, me levou a formular a classificação didática das ciências, que tem servido de base, de então em diante, a todos os meus cursos. Ei-la aqui, porque pode vir a aproveitar a alguém:

Classificação Orgânico-Didática das Ciências

Filosofia                      História

Propedêutica                Lógica, ou formas do mundo subjetivo

                                 Matemática, ou formas do mundo objetivo

Naturalística                 Mecânica

                                 Física

                                 Astronomia ou Física Celeste

                                 Química

                                 Biologia

                                 Psicologia

Transição                    Antropologia

                                 Lingüística

                                 Etnografia

Socialística                   Indústria e ciência das indústrias, ou economia Política

                                 Arte e ciência das artes, ou estética

                                 Religião e ciência das religiões, ou crítica religiosa

                                 Direito e ciência do Direito, ou Jurisprudência

                                 Política e ciência da Política e da Administração do Estado

                                 Moral e ciência da moral, ou ética

A explicação deste quadro didático da classificação das ciências é fácil. Predomina o princípio da complexidade crescente, base de toda classificação racional. Inicia-se a série pelo que pode haver de mais geral e simples: as formas e relações, quer do mundo subjetivo quer do objetivo.

As idéias aí reinantes de co-existência e sucessão, simbolizadas nos conceitos de espaço e tempo, dão lugar à Lógica e à Matemática, que constituem uma espécie de propedêutica geral do estudo das ciências.

Após esta propedêutica destacam-se os dois grandes objetos de conhecimento: a Natureza, o Mundo, o Universo, como lhe queiram chamar, e o Homem, a Humanidade, a Sociedade.

Pode-se considerar a Natureza em seu conjunto como suscetível de ser o objeto de uma ciência geral, sob a denominação de Naturalística ou Naturologia, ou, se quiserem, Cosmológica ou Cosmologia, da qual se destacam as diversas ciências particulares que têm por objeto os fenômenos naturais, desde a Mecânica, que se ocupa do fenômeno que pode haver mais geral no mundo, o movimento no espaço e no tempo, até à Psicologia, que trata da vida espiritual do homem individual, que, nesta qualidade, é um objeto da natureza, como outro qualquer.

Entre a Mecânica e a Psicologia figuram sucessivamente: a Física, a Astronomia ou Física Celeste, após a Física geral, de conformidade com a correção irrefutável de Spencer à seriação de Comte, a Química e a Biologia.

Devem seguir-se a ciência que trata da Sociedade e suas várias ramificações; existem, porém, pelo menos, três ciências de grande mérito, três formações modernas, que constituem a transição entre o mundo físico e o mundo social, entre as ciências do universo e as da sociedade humana, e são: a Antropologia, a Lingüística, a Etnografia. Após estas surgem, então, as ciências da Humanidade ou Sociedade.

Pode-se considerar, sob a denominação de Socialística ou Sociologia, o complexo dos fenômenos sociais, constituindo uma ciência geral.

Dela se destacam as ciências que estudam as grandes criações humanas, a saber: a Indústria e a ciência das Indústrias ou Economia Política, a Arte e a Ciência das Artes ou Estética, a Religião e a Ciência das Religiões ou Crítica Religiosa, o Direito e a Ciência do Direito ou Jurisprudência, a Política e a Ciência da Política e da Administração do Estado, a Moral e a Ciência da Moral ou Ética.

E como todos estes assuntos podem ser tratados filosoficamente, isto é, sob um aspecto geral e sintético de unificação do saber no seu estado atual, ou historicamente, isto é, no seu desenvolvimento e evolução no tempo e no espaço, temos duas outras ciências: Filosofia e História.

Pode ser que me iluda: mas o quadro parece-me completo e perfeito, como disposição orgânica e didática das ciências e presta bons serviços na prática. Habilita o espírito mais rebelde a ter uma vista de conjunto de toda a vastíssima área das idéias e do saber humano.

II

Algumas palavras agora acerca do presente livro.

Compõe-se ele de dez estudos de extensão e valor desiguais e vêm a ser: O Brasil econômico e financeiro, Subsídio para o estudo das causas da Crise Comercial Brasileira – (1889-99), Notas e reflexões acerca da crise bancária de setembro de 1900, As classes produtoras e a representação nacional, Crise econômica no Brasil, Uma das faces do problema comercial, Outra face do problema comercial, Da vantagem de criar-se a história comercial no Brasil, O comissariado de café no Brasil, Síntese histórica do Comércio Nacional e Notícia de seus principais representantes no Rio de Janeiro.

Os melhores são os que se referem às crises comercial, bancária e econômica, e os que se ocupam do conjunto do Brasil econômico e financeiro (o 1º) e das classes produtoras e a representação nacional (o 4º).

Estes dois últimos foram por mim recomendados ao meu prezado amigo para servirem de subsídio e documentação ao quadro do Brasil como ele é de fato, estudado pelos processos da escola de Le Play e Tourville, que ando a preparar.

Que escola é esta? Perguntará a maioria dos leitores, até os que se julgam melhor informados.

Para responder a esta pergunta, reproduzo aqui, em resumo, palavras já emitidas na parte escrita do aludido quadro.

Duas especiais circunstâncias me puseram no encalço das idéias que vão ser expostas: a observação atenta dos fatos passados no período republicano que se vai atravessando e o conhecimento mais íntimo das doutrinas e ensinamentos da chamada Escola da Ciência Social de Le Play, H. de Tourville, Ed. Demolins, P. Rousiers, A. de Preville, P. Bureau e tantos outros, aos quais se devem os melhores trabalhos existentes sobre a índole das nações.

A República teve a vantagem de revelar este querido povo brasileiro tal qual é, entregue a si próprio ou a seus naturais diretores, o que vem a ser a mesma coisa.

Os vícios e defeitos de sua estrutura social tornaram-se patentes aos observadores imparciais e cultos.

Até à Independência este amado Brasil tinha aparecido sempre sob a tutela da realeza portuguesa que o havia dirigido, guiado, afeiçoado, por assim dizer, ao sabor de seus planos e desígnios, até onde governos podem influir na estrutura das massas populares sobre que lhes cumpre velar. No regime passado igual tutela tinha sido exercida pela monarquia nacional que se poderia considerar, em mais de um sentido, uma continuação, um prolongamento da realeza mãe. Poder-se-ia dizer que havia uma força estranha a estorvar o povo no seu andar normal e próprio.

Hoje este obstáculo jaz desfeito: não existe mais tal embaraço ou tal desculpa. O observador não encontra um astro estranho a desviar- lhe os instrumentos de análise; não encontra tropeços no caminho.

As doutrinas do evolucionismo spenceriano tinham-me posto na pista do desdobramento natural dos vários ramos da atividade humana; tinham-me despertado a atenção para as formações díspares dos povos mestiçados, nomeadamente os da América do Sul, e, por esse caminho, havia sido conduzido às conclusões a que cheguei em todos os escritos acerca da minha pátria. As doutrinas da escola de Le Play, posteriormente, fizeram-me penetrar mais fundo na trama interna das formações sociais e completar as observações exteriores do ensino spenceriano.

É uma confirmação, em última instância, de conclusões obtidas por outros meios e estradas.

A história destes quinze anos de República tem servido aos espíritos sem preocupações mesquinhas para aclarar toda a história colonial, regencial e imperial do Brasil. O período da Regência sobretudo esclarece-se com uma intensa luz nova. A coesão, a unidade, a estabilidade constitucional do país, a íntima organização da nação eram em grande parte puramente ilusórias! O manto da realeza, puxado e repuxado em todos os sentidos pelos politicões de ofício, encobria muita coisa que se não deixava ver.

A República manifestou o Brasil tal qual é; e, por isso, exatamente, é o governo que mais lhe convém, porque o não ilude; mas com a condição de ser vazado em moldes conservadores ou de um apertado federalismo contido sempre por um forte governo central. É o que se vai ver na luz do sistema de Le Play e Henri de Tourville.

Claro é que de tal doutrina, cujas produções recomendo, não tenho a fazer neste lugar uma exposição esmiuçada: apenas as linhas principais para compreensão do leitor.

Os homens cultos dentre os nossos médicos, engenheiros, magistrados, advogados, oficiais de curso de terra e mar, que são os verdadeiros intelectuais do Brasil, têm quase geralmente andado ao par de outras doutrinas, as do positivismo, do evolucionismo, do socialismo, por exemplo, e não têm lançado as vistas sobre os belos trabalhos da escola de Le Play, cujo nome uma ou outra vez há sido citado, com evidente desconhecimento de seu ensino. Que eu saiba, só nos meus cursos de poucos anos, a esta parte, e agora nestas linhas, é que se faz um apelo mais sério a esse sistema e seus processos.

Não é que lhe aceite todas as idéias. Sobre o conceito de raça, verbi gratia, a célebre escola, suponho, confunde o sentido antropológico com o sociológico; porque parece não ligar importância ao primeiro e só admite o segundo. Figura-se-me isto uma simples ilusão francesa.

Também lhe não aceito a classificação dos fenômenos sociais, que se me antolha antes uma nomenclatura de problemas e questões a estudar, do que rigorosa classificação.

Como quer que seja, porém, os méritos da doutrina, a despeito destas e doutras divergências, deparam-se preciosos para quem quer conhecer a fundo um país qualquer e a gente que o habita. Em primeiro lugar, lança mão, para tal fim, de processos de acurada observação local, estudando com monografias especiais cada região do país sob as mais variadas faces, conforme uma enumeração de questões, que são outros tantos aspectos fundamentais da vida social.

Só depois de reunida grande massa de documentos do gênero é que os mestres do sistema se atrevem a formular quadros gerais desta ou daquela nacionalidade e a estabelecer as leis de seu desenvolvimento.

Neste gênero são dignos de detida leitura os livros de Edmond Demolins, – A quoi tient la supériorité des Anglo-Saxons, Les Grandes Routes des Peuples (Les Routes de l’Antiquité e Les Routes du Monde Moderne); Les Français d’aujourd’hui (Les Types Sociaux du Midi et du Centre e Les Types Sociaux du Nord); de Paul de Rousiers, – La Question Ouvrière en Angleterre, La vie Americaine; de A. de Préville, – Les Sociétés Africaines; de Paul Boreau, – Le Homestead ou L’Insaisissabilité de la petite propriété foncière; de Henri Tourville, – Histoire de la Formation Particulariste.[1] A enumeração ou classificação dos problemas sociais deve partir dos fatos mais íntimos e indispensáveis à vida, sem os quais nem a própria subsistência da gente a estudar seria possível. Tais são os meios de existência, que se denominam – lugar, trabalho, propriedade imóvel, bens móveis, salário, economia ou poupança. Entre estes seis grupos de meios de existência, que dão lugar a variadíssimas questões, como se pode ver em Henri de Tourville, – La Nomenclature Sociale, ou em Maurice Vignes, – La Sciencie Sociale d’après les principes de Le Play, entre esses meios, dizia, e o modo de existência (alimentação, habitação, vestuário, higiene, recreações), que vem após, coloca-se o assunto dos assuntos, a questão das questões, a Família. Esta é a base de tudo na sociedade humana; porque, além da função insubstituível e essencial de garantir a continuidade das gerações sucessivas, forma o grupo próprio para a prática do modo de existência, o núcleo legítimo da maneira normal de empregar os recursos criados pelos meios de viver. Em seguida sucedem- se: as fases da existência, o patronato, o comércio, as culturas intelectuais, a religião, a vizinhança, as corporações, a comuna ou conselho ou município, as reuniões de comunas ou conselhos, a cidade, a comarca, a província, o estado, a expansão da raça, o estrangeiro, a história da raça, a posição ou jerarquia da raça. Ao todo vinte e cinco grupos de fatos e problemas sociais da maior importância e do mais sério alcance. O estudo destes assuntos, no tempo e no espaço, tem dado lugar a algumas conclusões notáveis.

Destarte, a humanidade, mais ou menos em conjunto, tem atravessado três grandes idades sociais: a idade das produções espontâneas e dos aparelhos ou instrumentos manejados pelo braço; a idade das máquinas movidas pelos animais, pelos ventos, pelas águas correntes; a idade do carvão de pedra, do vapor e da eletricidade, aplicados à produção das subsistências e ao serviço dos transportes.

As revoluções operadas na vida social por essas várias alterações introduzidas no regímen do trabalho são da mais considerável importância.

Por outro lado, a família, estudada quer historicamente, quer na atualidade, apresenta quatro modalidades, do maior valor para quem quiser compreender a índole das sociedades a que servem de base fundamental.

Uma sociedade vale pelo que vale nela a família.

Os quatro tipos são: família patriarcal, família quase particular, família-tronco (SOUCHE), família instável, aceitando as modificações feitas nas idéias de Le Play por seus discípulos. O velho mestre só tinha classificado três tipos e acertadamente foi corrigido neste ponto.

Eis as definições das quatro modalidades, conforme Maurice Vignes: A família patriarcal é aquela na qual os pais não pensam em preparar seus filhos para que eles venham a criar uma posição livre: porque a extensão do solo disponível, o fraco crescimento da população e das necessidades permitem aos filhos ficarem na indivisão.

Quando estas circunstâncias, que facilitam a vida em comum nos domínios paternos, vêm a desaparecer, quando o número dos casos reunidos em um mesmo sítio fora de proporção com a produtividade das terras ou da oficina de trabalho, quando o equilíbrio entre as subsistências que estas produzem e a população que nelas reside é roto, faz-se mister destacarem-se algumas famílias. Limita-se assim a família patriarcal a cinco ou a quatro ou a três casais e seus filhos.

Um dia, sob o impulso das mesmas causas, a família reduz-se a dois casos, o do pai e do herdeiro escolhido para continuador.

Estamos, neste caso, em face da família quase patriarcal.

A transmissão integral da oficina de trabalho a um só filho é, neste caso, com efeito, um vestígio da transmissão integral em proveito de todos; a transmissão individual substituiu a transmissão integral coletiva. Os filhos que não herdam em espécie recebem sua quota em dinheiro; mas como não foram criados com o pensamento de deixar a terra natal, nada os prepara no sentido de vencerem na luta pela vida.

Saídos de uma comunidade, continuam a contar com ela, a apelar para ele em seus embaraços e em seus desânimos.

A família-tronco (SOUCHE) não é, como a precedente, uma redução da família patriarcal. As sociedades que possuem este gênero de família por base, as sociedades de formação particularista, originaram-se nas costas da Escandinávia em conseqüência da invenção da barca a velas e das condições de iniciativa e isolamento, impostas, a essas gentes, enérgicas, pela pesca marítima.

Tal família funda-se na educação individualista dada aos filhos.

Esta educação leva-os às vezes a abandonar o pai para melhor trabalhar, empregar melhor as próprias forças. Às vezes um filho consente em ficar, com a promessa de lhe ser integralmente transmitida a oficina de trabalho.

Outras vezes recusa; porém, até neste caso, a família não perde o seu caráter fundamental, porque o isolamento dos pais e a saída de todos os filhos originam-se do desenvolvimento particular das qualidades de iniciativa e de coragem dos últimos, e tendem ao progresso da atividade geral e das virtudes cívicas.

Na família-tronco os filhos, colocados entre dois deveres, o de piedade filial e o de labor social, sacrificam o primeiro, em conseqüência, aliás, dos incitamentos dos próprios pais, que renunciam a guardar perto de si seus descendentes reclamados pela pátria e pelo trabalho.

E, pois, se o indivíduo voluntariamente se desprende da família, é para consagrar mais intensamente sua atividade ao aumento das riquezas e das forças gerais. Os hábitos, oriundos do espírito de família, cedem o passo aos costumes impostos pelo devotamento à sociedade.

Não é em tão boas razões que se funda a família instável: Nesta faltam dois característicos essenciais, existentes na família precedente: falta a educação viril dada aos filhos; e, além disso, se não existe a transmissão hereditária integral, não é porque os filhos recusem prestar-se a ela por trazerem em si as largas esperanças e os vastos pensares, cuja realização é incompatível com o apego à profissão paterna, não; é porque a transmissão integral se tornou ou inútil pelo retalhamento da propriedade, ou impossível em conseqüência do influxo dissolvente da legislação e do princípio da partilha igual em espécie.

Se os filhos não ficam junto aos pais, é que temem perder a liberdade, porque esse dever lhes pesa e não porque os pais lhes aconselhem a procura ou lhes tenham ensinado a achar fora uma posição independente; é, ainda, porque nenhum filho pode contar com a transmissão integral em seu favor, em razão do estado de desmembramento excessivo das propriedades ou da má legislação. A família instável deriva, portanto, da falta de espírito familial, da falta de domínios aglomerados e do princípio da igualdade hereditária imposta por uma legislação retrógrada.[2] Estas quatro classes de famílias, oriundas de certas e determinadas particularidades étnicas e históricas e, muito de perto, de condições especiais de lugar, trabalho e propriedade, dão origem a duas categorias de sociedades humanas: as sociedades de formação comunária (communautaire) e as sociedades de formação particularista.[3] As sociedades de formação comunária, expressão esta, como digo em nota, que se não deve confundir com o termo comunista no sentido que hoje lhe dá certa ramificação do moderno socialismo, compreendem as diversas variedades de gentes que procuram resolver o problema da existência, apoiando-se na coletividade, na comunhão, no grupo, quer da família, quer da tribo, quer do clã, quer dos poderes públicos, do município, da província, do estado.

As de formação particularista encerram as diversas variedades que buscam solver o problema da vida, firmando-se unicamente na energia individual, na iniciativa privada, e tiram o nome do fato de conservar nelas o particular toda a independência em relação ao grupo.[4] Pondo de parte as sociedades simples dos caçadores e pescadores selvagens, cujo característico principal é não ter família, as sociedades complexas, em cujo número, abrindo a lista, devem ser contadas as gentes pastoris do Oriente e os pescadores progressivos da Escandinávia, pertencem a uma ou a outra das duas categorias citadas.

As comunárias, em muito maior número do que as particularistas, apresentam três modalidades típicas, conforme a espécie de família que lhes serve de apoio: comunária de família, tendo por fundamento a família patriarcal; comunária de família e de estado, tendo por base a família quase patriarcal; comunária de estado, firmada na família instável. As duas primeiras predominam no Oriente asiático e europeu; a última no Meio-Dia ocidental da Europa e na América do Sul.[5] As sociedades de formação particularista apresentam duas modalidades: ou dá-se a escolha de um continuador do patrimônio e da oficina de trabalho, o que, além da forte educação moral e do grande espírito de iniciativa, faz a sociedade revestir-se de um belo aspecto patriarcal do largo sentido; ou, com a plena liberdade de testar da parte dos pais, os filhos nem sequer pensam em lhes suceder, contentando-se com as qualidades de caráter que herdaram. A primeira modalidade é corrente na Europa escandinava, na Inglaterra, na Holanda, na planície saxônica; a segunda nos Estados Unidos.

Sob o ponto de vista específico do trabalho, que vem a ser a grande mola que move e afeiçoa as sociedades humanas, cumpre não perder de vista que várias têm sido as fases atravessadas pela espécie; partindo ela do simples apanhamento de substâncias que se prestam ao alimento e dos produtos espontâneos da caça e da pesca, que demandam rudimentar esforço, passando pela recolta ou coleta da arte do pastoreio e das produções frutíferas arborecentes, seguindo pela cultura maior ou menor, até chegar à cultura intensa e vastíssima e às indústrias complicadas dos tempos hodiernos.

Cada um destes gêneros de trabalho, cada uma destas oficinas de produção, cada uma destas maneiras de agenciar os meios de subsistência trazia e traz conseqüências especiais indeléveis, dificílimas de apagar; porque elas constituem o substratum íntimo das sociedades.

Claro é, por outro lado, que a humanidade, tomada em seu todo ou considerada em seu conjunto, não atravessou toda ela ao mesmo tempo e de parceria cada uma das fases dessa gradação.

As situações recíprocas dos povos divergem.

A posição do Brasil, seu verdadeiro estado social, esclarecido com o critério íntimo dos elementos primários e essenciais da vida, é que me proponho a elucidar.

Infelizmente só em traços largos e em linhas gerais; porque um estudo regular e completo do país, sob tal método, exigirá três ou quatro volumes, firmados em duzentas ou trezentas monografias, que não existem, que estão por fazer.

Seria preciso apreciar acuradamente, sob múltiplos aspectos, cada um dos povos que entraram na formação da nação atual; dividir o país em zonas de produção, zonas sociais; em cada zona analisar uma a uma todas as classes da população e um a um todos os ramos da indústria, todos os elementos da educação, as tendências especiais, os costumes, o modo de viver das famílias de diversas categorias, as condições de vizinhança, de patronagem, de grupos, de partidos; apreciar especialmente a vida das povoações, vilas e cidades, as condições do operariado em cada uma delas e nas roças, nos engenhos, nas fazendas, nas estâncias de criar, os recursos dos patrões, e cem outros problemas, dos quais, nesta parte da América, à retórica dos bandos partidários que vivem política alimentária que os nutre, devorando a pátria, jamais ocorreu cogitar...

E, todavia, a despeito das dificuldades, levarei, se tiver vida e saúde, ao cabo a empresa.

Como um dos muitos elementos de análise indispensáveis, foi que encarreguei o ex-discípulo e dileto amigo, autor deste livro, de traçar um esboço do Brasil, econômico, especialmente no que se refere ao déficit de subsistência, que é uma das chagas mais cruéis que nos fazem definhar.

Ele galhardamente o cumpriu no sugestivo estudo que abre o volume.

Só me resta de público agradecer-lhe o serviço e recomendar os presentes ensaios a todos aqueles que em publicações impressas preferem verdades e fatos às delinqüências, arrebiques e fitalhadas falsas de todas as prosas vãs, tão do gosto de certos charlatães, que dançam no jornalismo como as ciganas nas feiras, para gáudio de babaques e desocupados...

Março de 1904.

 

2 – A ESCOLA DE LE PLAY NO BRASIL (1906)* [6]

(Carta ao Il.mo Sr. Dr. José Oiticica)

Grande satisfação tive com o recebimento de sua carta, na qual me sugere a idéia de encarregar-me da descrição de Sergipe, minha pátria, pelo método da doutrina de Le Play.

O estudo sugerido teria o intuito de contribuir para a Enquête sociale, aberta pela revista La Science sociale, em o seu nº de janeiro deste ano.

Se é verdade, porém, que causa prazer ver que o meu nobre patrício se vai deixando influir pelas idéias da severa escola, de que sou adepto fervoroso, não menos verdade é que o distinto confrade ainda, ao que parece, não está assaz inteirado das doutrinas, dos processos, dos métodos da escola e da valorosa literatura, já existente, por ela inspirada.

A enquête projetada versa sobre a circunscrição regional elementar, que os franceses chamam de Le Pays, e nós poderemos chamar a região, a zona local.

“La Science Sociale”, doutrina Ed. Demolins, no citado fascículo da revista de janeiro, em que vêm as bases do inquérito, “La Science sociale designe, sous le nom de Pays, de petites circonscriptions régionales presentant des caracteres communs et des conditions de vie uniformes, determinés par la nature du Lieu et du Travail e parfois aussi par les origines de la population. Ces Pays forment partout les subdivisions naturelles de la Contrée ou de la Province.”

Ora, o novo processo aplicado a Sergipe, que não é um pays, senão uma província, ou estado, como hoje se chama, sendo, portanto, uma reunião de vinte ou trinta pays, na acepção francesa, levar-me-ia, ainda que procedesse por grandes divisões, a dez ou doze zonas ou regiões diversas, todas merecedoras de estudos separados e dificílimos atentas certas condições locais.

As mais notáveis seriam: ribeira do S. Francisco, terra principalmente do arroz e da pesca; vale do Japaratuba, dando este lugar a várias subdivisões, terra principalmente da cana-de-açúcar; Itabaiana, região de antigas, famosas matas, hoje quase extintas, terra do algodão e da mandioca preponderantemente; o Palmar e a zona do noroeste da província, onde a criação do gado predomina; Lagarto, zona variadíssima que, em pequeno circuito, oferece ao trabalho – algodão; mandioca, tabaco, criação de gados e cana-de-açúcar; Itabaianinha, tabaco, gados, mandioca; Campos, mutatis mutandis, nas mesmas condições; Estância – cana-de-açúcar, algodão, mandioca, cereais, existentes, aliás, também em todas as outras zonas; Cotinguiba – cana, sal, pesca; Vaza-Barris, na região de Itaporanga e S. Cristóvão, – cana, sal, pesca, como na região antecedente, mas modalidades dignas de apreço; Simão Dias e Coité – gado, algodão, café.

Claro é que não basta ter nascido em Sergipe para se fazer com rigor e verdade qualquer das monografias que essas várias zonas exigem, máxime quando se deixou a terra natal há mais de trinta anos.

Já se vê que me refiro a estudos rigorosamente científicos, como alguns que têm aparecido nas páginas de La Science.

Supor o contrário é andar alheio à disciplina e à severidade de método da escola.

E é o caso geral no Brasil.

Por muito mais de vinte anos a doutrina floresceu, produzindo os trabalhos mais belos e profundos, sem que lhe prestassem, entre nós, a mais leve atenção.

Foi preciso que Ed. Demolins escrevesse o seu vibrante livro – À quoi tient la supériorité des Anglo-saxons? para que os nossos descuidosos lhe dessem escassos ouvidos. Mas o tomaram, evidentemente, por uma espécie de touriste, que tivesse estado na Inglaterra e houvesse ali encontrado algumas cousas dignas de ser imitadas.

Não quiseram ver que atrás de tudo aquilo estava toda uma doutrina que importava conhecer. Mais tarde o mesmo preclaro Ed. Demolins escreveu o belo volume L’Éducation Nouvelle (L’École des Roches) e, desta vez, muitos dos que entre nós vivem de se entreter com as cousas do ensino, que é um ramo de negócios como qualquer outro, vieram a pensar que podiam contar com mais um pedagogo, a ser imitado superficialmente, como é hábito fazer com muitos outros que a Europa nos exporta. O grande discípulo de Le Play passou a ser considerado um pedagogo, adicionado a um touriste.

Era e é a crença geral.

Não se quis ver que o novo processo de educação é a conseqüência de uma especial doutrina de filosofia e de ciência social e tem apenas por fim arrancar as gentes francesas, e, com elas, as espanholas, italianas, portuguesas, latino-americanas e outras congêneres – de sua detestável formação comunária e fazê-las adquirir o caráter dos povos de formação particularista. Não se quis ver, repito, que a nova educação não passa da aplicação de uma doutrina, que é indispensável conhecer.

O meu caro confrade, desculpe a franqueza indispensável entre homens sérios, já pelos anúncios de seu Colégio Latino-Americano, já pela carta que dirigiu ao Ilustre Ed. Demolins, inserta na revista do nº de setembro do ano passado,[7] vê-se claro que laborava ainda no erro geral, corrente no Brasil.

O nosso grande mestre, com sua natural perspicácia, foi dos primeiros a reconhecê-lo, tanto que na resposta que lhe dirigiu não perdeu o ensejo de dizer-lhe que a nova educação é um resultado da Ciência Social, sem a qual perde seu caráter original: – “Je vous engage à faire partie de notre Société de Science Sociale et à recevoir, à ce titre, notre Revue mensuelle – La Science Sociale, afin de vous tenir au courant de nos travaux. Vous savez en effet que l’École des Roches est un produit de la Science Sociale q’uelle est soutenue par elle. Si nous perdions cette base le caractére original de notre École disparaitrait peu à peu”.

Entretanto, desde princípios de 1904 tinha eu, no prefácio das Questões Econômicas Nacionais, de Artur Guimarães, dado ampla exposição das doutrinas básicas da nova escola, doutrinas nos anos anteriores por mim comunicadas a esse eminente discípulo que as aceitou e nas quais se inspira hoje.

Disso é testemunha o aludido volume das Questões Econômicas Nacionais.

No citado prefácio anuncio o livro, que ando a escrever, sob o título de O Brasil Social à luz das Idéias e do Método de Le Play.

A revista, órgão da grande escola, em seu nº de dezembro de 1904, traz circunstanciada notícia do fato, conhecido pelos nossos consócios.

Em todos os meus novos escritos, em jornais, revistas, folhetos ou livros, venho sempre insistindo na grande doutrina. Disso são exemplos, além d’A Pátria Portuguesa (análise do livro de igual título de T. Braga) e d’América Latina (análise do livro do mesmo título de M.

Bonfim), os Outros Estudos de Literatura Contemporânea e O Alemanismo no Sul do Brasil, que tenho o prazer de lhe enviar conjuntamente com as Questões Econômicas, de Artur Guimarães.

Quando, pois, foi feita a sua apresentação para membro da Sociedade Internacional de Ciência Social, como consta do nº da revista de fevereiro recente, já havia dois anos que eu e meu discípulo Artur Guimarães estávamos, em relação com o preclaro Ed. Demolins e tínhamos constituído no Rio de Janeiro um grupo, em cujo número temos hoje o prazer de o contar.

Revela apenas ponderar que antes do Grupo do Rio, existia o de S. Paulo, sob a direção do Dr. Silveira Cintra.

Não me consta, porém, que este distinto cavalheiro ou qualquer de seus colegas tenha dado a lume escritos acerca das doutrinas da escola.

Creio que não existem, salvo erro da minha parte.

Julguei de meu dever fazer-lhe as confissões que aí ficam; porque neste país, onde é costume inveterado desprezar os esforços dos que estudam e trabalham, confissões tais são indispensáveis.

Pelo que toca à enquête, digo-lhe em conclusão, que, abarbado como ando com o Brasil Social, não poderei concorrer para ela por modo direto.

Limitar-me-ei a enviar à Sociedade um esboço de classificação das zonas sociais do Brasil.

4-5-906.

 

3 – AS ZONAS SOCIAIS E A SITUAÇÃO DO POVO (1906)*

 (Trecho duma carta a M. Ed. Demolins)

Pode-se dizer que o Brasil contém as seguintes zonas geográficas, perfeitamente caracterizadas, que são sedes de outras tantas zonas sociais, atendendo-se à natureza do trabalho a que dão origem.

1ª O planalto da Guiana no alto norte dos Estados do Amazonas e do Pará, especialmente na região em que corre o rio Branco. É zona de criação de gados, indústria, porém, incipiente, quase toda por conta do Governo Federal, tudo desorganizado e mal dirigido.

2ª As terras mais baixas, que imediatamente se seguem e vão a entestar com a margem norte do rio Amazonas. É região de matas e da cueillette de produtos espontâneos da natureza: borracha, castanha, salsaparrilha, copaíba, cravo, piaçava, urucu, etc. A família aí nas classes populares é assaz desorganizada, havendo quase inteira promiscuidade em mais de um sítio.

Existe uma pequena lavoura rudimentar, em alguns pontos, de cacau, mandioca, cana-de-açúcar e tabaco. Os dois primeiros daqueles produtos são quase de simples cueillette.

3ª As terras marginais do norte e do sul do grande rio, compreendendo também a parte inferior do curso de seus afluentes.

É o vale do Amazonas no seu sentido mais estrito. É região de pesca fluvial. Os que se ocupam nela estão no grau mais inferior das gentes que viviam dessa espécie de indústria.

4ª A zona das matas da região ocidental onde se acham os cursos dos rios Madeira, Purus, Acre, Juruá, constituindo o núcleo principal do território do Acre, que com toda razão aspira organizar-se em estado.

É também região da borracha e indústrias extrativas congêneres.

5ª O planalto central-norte, compreendido entre o Madeira, o Tocantins e o divisor das águas do sistema fluvial sul-americano. É zona ainda quase completamente inaproveitada.

Contém bons campos para a criação de gados.

6ª O planalto do interior desde o divisor das águas até à região serrana do Rio Grande do Sul.

Contém diversas variedades de terras e de culturas, como sejam: campos de criar, terras de mineração, terras de lavoura de café, tabaco, etc.

Deve esta imensa região ser dividida pelo menos em quatro zonas diferentes: a dos campos de criar do norte de Minas, Goiás e terras altas de Mato Grosso; a de mineração, um pouco espalhada por esses três Estados; a do café, principalmente no sul de Minas, S. Paulo, terras altas do Rio de Janeiro; a de criação de gados no Paraná e em Santa Catarina.

Por toda essa imensa região o tipo da família é instável, por causa da transmissão parcelada das heranças, o que equivale dizer por causa de imposições retrógradas da legislação.

7ª A região dos vales dos rios Paraguai e Guaporé, compreendendo as terras baixas e médias de Mato Grosso. Predominam ali a cueillette da erva-mate, alguma mineração e criação de gados em campos intercalados nas terras médias.

8ª Região entre os rios Gurupi e o Parnaíba, compreendendo o Estado do Maranhão e terras próximas. Arroz nos terrenos mais baixos, cana-de-açúcar na região das matas e alguma criação de gado, nos sertões do oeste.

9ª Os sertões do norte, denominados – os Cariris – na sua região central, limitados pelo citado Parnaíba ao norte e o Itapicuru, ou melhor, o Paraguaçu no Estado da Bahia. É uma faixa de terreno que fica a leste do Brasil, entre os dois rios citados que lhes formam os limites de norte e sul, a região das matas que se prolongam através da costa marítima pelo lado oriental e o alto planalto do interior pelo ocidental.

É a clássica zona das secas que a flagelam periodicamente.

Criação de gados, sujeita porém a grandes perdas nos períodos de secas, cereais nas regiões mais frescas à beira de serras, etc., são as indústrias e o regímen do trabalho.

10ª As terras da costa marítima, compreendendo a citada faixa de matas, desde o Maranhão até o Espírito Santo. É a famosa região dos engenhos de açúcar.

As melhores famílias constituíram a patronagem natural das populações; mas a sua riqueza, que repousava no braço escravo, está quase de todo aniquilada, por causa da extinção da escravidão e da concorrência da beterraba nos mercados mundiais.

Aí nesta zona em sítios adequados se cultiva também a mandioca, o tabaco e cereais.

11ª A região da costa do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul. É faixa estreita, por causa da aproximação da Serra do Mar.

Arroz, mandioca, cereais em pontos vários.

12ª As terras que formam a descida do planalto para o lado do rio Paraná onde se acha o célebre território das Missões. É zona de mata inaproveitada em grande parte, mas se faz ali alguma extração da erva-mate em vários sítios.

13ª Os campos, pampas e cochilhas do Rio Grande do Sul; é a zona extrema do Brasil.

A criação de gados por um sistema que lembra em parte o das estepes pobres d’Ásia e África, produz ali um tipo social, que tem afinidades com os daquelas zonas.

Recapitulando, posso dizer que existem as seguintes zonas sociais mais notáveis no Brasil: região do gado no alto Norte; região da borracha no vale do Amazonas; região da pesca fluvial nesse grande rio e seus afluentes; região do gado nos sertões secos do Norte; região do gado nos campos e tabuleiros de Minas, Goiás e Mato Grosso; região do açúcar na chamada Zona da Mata, desde o Maranhão até o norte do Estado do Rio de Janeiro (faixas intermédias desta região existem próprias para o algodão, o fumo, a banana); região da mineração em Minas, Goiás e Mato Grosso; região do mate das matas do Paraná e Santa Catarina e parte de Mato Grosso; região do gado no planalto destes dois últimos estados; região dos cereais na zona serrana de Santa Catarina e Rio Grande do Sul; região do gado nos campos deste último estado.

Pela simples inspeção deste quadro, bem vedes, caro mestre, que no Brasil o trabalho, como base social, é cheio de grandes lacunas.

Predominam os produtos de mera cueillette, já de plantas puramente extrativas, já de frutos arborescentes, etc. A própria cultura do café é algum tanto análoga à da castanha e das nozes na Europa; pois que, uma vez plantada, a árvore vive de vinte e cinco a trinta anos dando bons resultados, quase sem esforço da parte do homem.

A cultura mais difícil da cana-de-açúcar repousou durante perto de quatro séculos no braço escravo. Os engenhos eram grosseiras explorações de caráter comercial, como as fazendas que ainda hoje os portugueses mantêm na África. Logo que cessou o braço escravo, a produção do açúcar se alterou consideravelmente com as despesas acrescidas, etc.

Quando o açúcar da beterraba começou a inundar os mercados do mundo, a cultura da cana no Brasil entrou em crise franca.

Os trabalhos da mineração prosperaram algum tanto no regímen colonial com o braço escravo e quando os minérios estavam à flor da terra.

Logo que foram precisas obras de arte, dificultosas e caras, a mineração cessou quase por completo, existindo apenas hoje algumas companhias inglesas, com capitais desta origem.

É esta a base econômica que justifica as conclusões a que cheguei a respeito do estado atual do povo brasileiro, conclusões que passo a deduzir.

O povo brasileiro, considerado em seu conjunto, oferece o espetáculo d’une société à formation communautaire ébranlée. A velha família portuguesa, que de patriarcale-absolutiste – já se tinha transformado em verdadeira família patriarcale désorganisée, em conseqüência da quase geral transmissão parcelada das heranças e domínios, ainda mais se tem desorganizado no Brasil, chegando ao ponto de verdadeira família instável, sob o influxo, cada vez mais rigoroso, do aludido sistema de transmissão hereditária parcelada e da desorganização crescente do trabalho com a extinção da escravidão e inexistência de colonização geral sistematizada, nacional e estrangeira.

O trabalho, desde os começos do povoamento no século XVI, teve, como sabeis, a base falsa da escravidão, pretendendo o português forçar dois povos que desconheciam por completo a cultura (índios e negros) a serem agricultores; quando ele português não o era também em rigor, por não ter passado verdadeiramente da cueillette de frutos aborescentes, hortaliças, alguns cereais e da leve cultura da vinha. A verdade é que nem o colono português nem os seus escravos, índios e negros, estavam preparados para os duros trabalhos da cultura americana. A emancipação rápida perturbou ainda mais tudo isto.

Com semelhante base de família e de trabalho –, o regímen comunário abalado ou de estado domina de alto a baixo em toda a nação, de norte a sul, de leste a oeste. A família aqui se poderia chamar patriarcal desorganizada em os tempos coloniais.

Hoje tem os caracteres de família completamente instável.

Perdeu todas as vantagens do regímen patriarcal, ao contato do negro e do índio, que não tinha família, e mais com o sistema da escravidão como base do trabalho, e mais com o modo parcelado da transmissão hereditária e mais, finalmente, com a queda súbita da falsa base do aludido trabalho escravo.

Perdeu todas as vantagens do regímen patriarcal, repito, sem ter até agora obtido as do regímen de formação particularista, a que não chegará senão ou por uma assimilação hábil de elementos provindos das raças particularistas, ou por um sistema de educação severíssima de alto a baixo, como esse que preconizais em La Nouvelle Éducation. Nós os brasileiros sofremos em larga escala de todos os achaques dos povos comunários de estado que vós tendes descrito tão acuradamente em vossas obras.

Nós os brasileiros do extremo norte ao extremo sul, desde as fronteiras das Guianas e da Venezuela e Colômbia até os limites com o Estado Oriental do Uruguai, formamos, em rigor, uma coleção de verdadeiros clãs de espécies várias, nos quais o indivíduo não possui a mais leve sombra de iniciativa e espírito organicamente empreendedor.

As tendências comunárias dos povos que nos formaram agravaram- se consideravelmente na estrutura na nova sociedade.

Pode-se até dizer que algumas boas qualidades de que eram portadores os colonos europeus se dissolveram ao contato de índios e negros e do novo meio tropical, que obraram como uma espécie de reagente químico de índole destruidora.

As gentes brasileiras por toda a vastidão do interior do país, e até nas próprias cidades nas camadas populares, vivem de ordinário todas em torno dum chefe, dum patrão, dum protetor, dum guia; todos têm o seu homem.

Os fazendeiros, quer nas fazendas de café quer nas de criação de gados, os senhores de engenho, os chefes de partido, as influências locais, os negociantes abastados das vilas e cidades; em vários pontos os vigários das freguesias, os juízes de direito, os advogados de renome, os médicos espertos, todos, todos esses e muitos mais são como chefes de grupos, de clãs, em torno dos quais vivem as populações por esse Brasil afora.

A política nos estados gira em torno dum chefe, um oligarca; na União em torno dum mandão geral, o guia e senhor do bloco. Neste fato se prendem muitos fenômenos sociais, como o de famílias inteiras que nos centros se bateram sempre até ao extermínio, e o aparecimento repetido de bandidos, chefes de grupos nômades, que devastam o interior do país.

Os trabalhos da cultura agrícola, da criação, da mineração, das indústrias, da navegação são muito pouco desenvolvidos.

A maior parte da população brasileira moureja desequilibrada e consumida por um acentuado pauperismo.

Um terço, se não menos, trabalha mal para alimentar os outros dois terços.

O recurso geral é a política, sob todos os aspectos grosseiros de que se costuma revestir, a verdadeira politique alimentaire, tão cruamente descrita pela escola social de Le Play e seus eminentes discípulos. Os partidos, as associações ou agrupamentos quaisquer nas freguesias, nos municípios, nas comarcas, nas províncias, hoje estados, na União, todas as instituições, todos os cargos públicos, em número incalculável, não têm outro destino, não têm outra função: seu fim é fornecer meios de vida a uma clientela infinita. O estado não tem por fim próprio a manutenção da ordem, a garantia da justiça, ou, se quiserem, a ajuda de certos empreendimentos elevados; seu papel preponderante, e quase exclusivo, é alimentar a maior parte da população à custa dos poucos que trabalham e isso por todos os meios, como sejam as malhas dum funcionalismo inumerável.

Quando não são os empregos diretos nas repartições públicas, muitos deles inúteis, são as comissões para os influentes, as pensões, as gratificações sob títulos vários, as obras públicas de toda a casta e milhares de outras propinas.

Nestas condições, não é de estranhar que a política preocupe muito os brasileiros, mas é a política que consiste em fazer eleições para ver quem vai acima e ficará em condições de fazer favores.

O grau de corrupção e abastardamento a que chegaram os costumes eleitorais não é suscetível de descrição por pena do homem.

O geral do povo detesta a vida do campo, e, mesmo no interior, acumula-se nas povoações: – cidades, vilas, aldeias, arraiais, etc. É à cata do chefe para o arrimo, à cata do emprego público, do arranjo político sob qualquer forma.

A propensão que têm os moços para se graduarem, para receberem títulos acadêmicos é notória. É para seguirem a vida das cidades nas profissões liberais, no jornalismo, na literatura, nos empregos da administração.

Nas classes inferiores os que não conseguem arranjo nos empregos compatíveis com sua falta de cultura, ou nas obras públicas, têm um derivativo nas fileiras do exército que se recruta pelo voluntariado, ou nos corpos policiais e milícias urbanas que são numerosos na capital e nos estados.

É esse o retrato social dos brasileiros de hoje em traços rápidos.

A comprovação completa resultará do estudo miúdo de todas as regiões do país.

Maio de 1906.

 

4 – EDMOND DEMOLINS (1907)*

A notícia do falecimento do grande sociólogo francês Edmond Demolins encheu de pesar o pequeno número de seus adeptos do Rio de Janeiro.

A coisa se justifica plenamente por si mesma.

Para ignorância ossificada da maior parte da literatada brasileira, Edmond Demolins era vagamente conhecido como um touriste que havia escrito um livro de viagem sobre a Inglaterra, livro no qual cumulara de elogios o grande povo, reconhecendo-lhe certas superioridades sobre celtas, eslavos, latinos, não falando de mestiços, amarelos, negros, existentes pelo mundo afora.

Alguns, dos que se supõem mais atilados, supunham, por demais, ser Demolins um mestre-escola, um pedagogo, que escrevera um livro acerca da educação da mocidade francesa. – Era isto e mais nada.

Preocupados com exotismos literários, com tudo quanto tem ressaibos de extravagância, de desequilíbrio, de moléstia, de desordem espiritual; abismados nas boutades de Tolstoi à conta de Shakespeare, com as bizarras invenções de Ibsen, cujos enérgicos caracteres, a um I tempo sutis e grandiosos, os atordoam; enleados em esquisitices ortográficas ou presos no visco do esperanto; alheados da realidade a seguir as fantasias de Nietzsche; embasbacados diante das novelas romanescas de Ferrero sobre Tibério e Júlia, Antônio e Cleópatra, Nero e Agripina, o tempo não lhes chega para acompanhar os graves problemas que preocupam o mundo e tomar conhecimento dos estudos de economia, de política, de ciência social, de assuntos industriais, de direito aplicado, de educação e outros que visam diretamente a preparar o homem para a grande luta da vida moderna.

Pois não vimos, ainda há poucos dias, um desses magnos pontífices da ignorância sentenciar da sua cátedra de bonzo inconsciente mediocridade do livro de Demolins acerca dos Anglo-Saxões?

O que vale é que aquele remendão de coisas alheias, escrevendo para ser agradável a Ferrero, que proclamara a superioridade dos latinos, nem sequer se lembrou de aprender a grafia exata do nome de Demolins, por ele sempre transformado em Demoulin!...

Nem sequer o nome! É significativo.

Nem era de esperar outra coisa de certa classe de espíritos.

Tipos cépticos, sem ideal, incapazes de se bater por uma causa com sacrifício de seus cômodos pessoais; temperamentos de pândegos, de pilhéricos, de divertidos; pesquisadores de gozos, inventores de distrações, amolentadores do viver, ei-los que deitam a máscara do riso e levantam a tenda da pagodeira...

Para eles tudo tem feições de festa e deve ser saudado em estilo de brinde: estamos no melhor dos mundos; não é preciso tentar nada, tudo vai em mar de rosas.

Força, riqueza, bem-estar, liberdade, cultura, ciência, arte, literatura, indústria, comércio; tudo... tudo... como num sonho.

Ora, pois; ousamos dizer que este otimismo fácil e barato para quem o exerce, caríssimo para quem o paga, é a pior forma do pessimismo; é um pessimismo às avessas que mata lentamente as nações, fascinando-as com mentiras, tirando-lhes a consciência de seus grandes deveres, cortando-lhes os estímulos para as grandes ousadias.

Mil vezes o pessimismo propulsivo de Cristo que vergastava ladrões com os olhos num ideal superior.

Mil vezes o pessimismo aparente de um Edmond Demolins, que ousou arcar, em nome dum patriotismo superior, com o chauvinismo francês.

A gente de bom senso compreendeu, sem esforço, o alvo impessoal e nobilíssimo que inspirara a pena do escritor intrépido e tanto que numerosos chefes de famílias francesas se lhe dirigiram para tomar conselhos sobre a educação de seus filhos e levaram-no, por último, a fundar a famosa – École des Roches.

Mas não antecipemos.

O ilustre sociólogo, recentemente extinto, deve ser estudado na complexidade de sua vida, no conjunto de seus escritos, não esporádica e destacadamente num artigo.

Tinha um sistema, uma doutrina que é indispensável conhecer para que seja com justiça apreciado.

Não é mais do que pegar um sujeito qualquer em À qui tient la supériorité des Anglo-Saxons?... – e, ignorando em absoluto tudo o mais, entender de dizer sandices ao público...

Edmond Demolins era filho de Marselha, onde nascera em 1852.

Feitos os primeiros estudos em sua terra natal, partiu para Paris em 1873, com o tríplice fim de conhecer pessoalmente Fred. Le Play, cujas idéias o tinham seduzido, de documentar um livro que escrevera acerca d’O Movimento Comunal na Idade Média, e, finalmente, dilatar seus conhecimentos científicos e sociais.

Essa primeira fase de sua vida, no que toca a labores de escritor, foi consagrada aos estudos históricos.

O aparecimento d’O Movimento Comunal na Idade Média, em 1874, foi seguido da publicação duma excelente História de França, em 1879.

Esta obra, em quatro volumes, é já um livro de primeira ordem.

O autor, muito engenhosamente, procurou consorciar as largas sínteses de Guizot, segundo as quais grupava os acontecimentos pelo encadeamento dialético de causas e efeitos, com o método narrativo e pinturesco de Agostinho Thierry.

Destarte, a concepção científica, filosófica e moderna não faltava, mas ficava apenas na concepção geral, na intuição e no encadea- mento dos fatos, sem que o autor, com suas vistas de homem de hoje, se substituísse aos homens das passadas eras, defeito capital de muitos historiadores, nomeadamente Guilherme Ferrero.

E o que preservou o jovem autor de vinte e sete anos de tão considerável defeito foi a habilíssima aliança que fez das teses gerais, ocultas, por assim dizer, como método do grande mestre das Narrativas Merovíngias, o método de deixar as crônicas falar por si mesmas.

Dizendo dessa História de França, escreveu o lucidíssimo Paul de Rousiers: “Foi concebida por um plano dos mais felizes e o vigoroso escritor que era Demolins já se revela nessa obra da mocidade.

“O índice das matérias apresenta em escorço um completo sistema de filosofia da história de França. O autor quis de fato, e tomou o cuidado de o advertir aos leitores, grupar os acontecimentos conforme o método filosófico, tornando claras as relações de causa e efeito que os ligam entre si.

“Dispostos por essa cadeia lógica, tratava ele de escolher os mais característicos e significativos em cada época e os narrava com largas minudências, seguindo o mais possível as fontes antigas, no intuito de conservar-lhes a fisionomia própria e exata.

“Juntava engenhosamente as vantagens da escola filosófica de Guizot às da escola narrativa de Agostinho Thierry. Fazia mais ainda, é justo dizê-lo, porque a narração dos fatos tirada dos velhos cronistas ou das memórias e documentos contemporâneos era, já por si, uma garantia da classificação filosófica proposta.

“Nada existe tão fácil como achar nos acontecimentos históricos argumentos em prol duma tese, se, em vez de apresentar os fatos conforme os testemunhos contemporâneos, dá-se deles apenas um resumo, e se escreve um discurso sobre a História. Se ao revés, o historiador deixar a palavra às testemunhas do passado, será obrigado a tomar por base de suas teses as interpretações fornecidas por essas testemunhas e a julgar dos fatos pelas impressões dos contemporâneos e não pelas suas particulares.

“Tais impressões contêm em si próprias uma superior verdade histórica: marca a ação dos acontecimentos naqueles mesmos que os viveram, por assim dizer.

 “Não padece dúvida que todo sistema de interpretação da História que logra dispor os fatos, dando conta das impressões que eles realmente causaram na época em que se deram, é menos exposto a erro do que os sistemas inspirados pelas teorias pessoais dos historiadores.

“Deste ponto de vista a História de França de Demolins tem o alto valor didático e o mérito raríssimo de não sobrecarregar a memória, de interessar prodigiosamente os leitores por os fazer apreender, por imagens vivas, as diferenças essenciais que afastam um rei merovíngio dum rei do antigo regímen, a vida de um senhor feudal da de um grande potentado do século XVII, a guerra da Idade Média da guerra moderna, etc. Este tríplice resultado é obtido pelo citado processo da representação concreta animada, colorido das minudências caraterísticas.”

São, repetimos, palavras de P. de Rousiers, famoso autor de La Vie Americaine e de tantos livros de grande mérito.

Muitos outros gabos faz ele à obra histórica de Demolins, só por si suficientes para tapar a boca ao criticastro brasileiro que teve o desplante de censurar o autor de Les Français d’aujourd’hui – sem ao menos o haver lido...

II A vida espiritual do autor de Les Grandes Routes de Peuples pode ser dividida em quatro grandes períodos, grandes pelos esforços neles empregados e não por sua duração mesma, pois que o intrépido escritor teve vida curta.

A primeira fase desse perene labutar pode-se dizer que vai de 1872 a 1879 e foi absorvida pelos estudos históricos.

Não foi sem vantagem para a evolução do pensamento do notável marselhês na esfera dos estudos sociológicos, porque o valor das achegas históricas nesse terreno é incontestável. O Movimento Comunal na Idade Média e a História de França, já citados, são os frutos desses primeiros labores da sociedade.

O segundo período, todo consagrado à propaganda das idéias de Le Play quanto à reforma da sociedade moderna, distende-se de 1880 a 1886.

Dentre todos os discípulos e amigos do velho reformador – este escolhera a Demolins para diretor da revista Reforma Sociale, ainda hoje existente.

O brilho daquela revista durante o período da direção do jovem escritor é atestado por quantos lhe acompanharam os passos.

Entretanto, Henri de Tourville, achando ainda imperfeitos os processos de Le Play para a análise das sociedades, e inoportunas ou inadequadas algumas de suas idéias de reforma, abriu cisão na escola, não só com o alargar-lhe o método com a sua nomenclatura dos fenômenos sociais, como ainda com o abandono das pretensões de reforma, contentando-se com o simples estudo dos fatos sociológicos pelos processos rigorosos de observação.

Era isto em 1886 e Demolins foi encarregado da fundação e direção da revista Science Sociale.

Aí durante vinte e um anos deu ele a medida de todo o seu merecimento.

São inumeráveis os valentes artigos que escreveu, alargando o círculo da ciência social de que também dava um curso público na Sociedade Geográfica, de Paris.

É a terceira fase de sua vida, nos últimos anos da qual, a partir de 1899, teve de juntar aos árduos labores da revista os ainda mais extraordinários da organização e direção da École des Roches, admirável instituto de ensino que larga influência vai exercendo na educação da mocidade francesa.

Foi neste ponto que a morte o surpreendeu.

Os derradeiros oito anos, pois, constituem um quarto período especial e altamente curioso.

Não pretendemos fazer uma biografia, senão dar uma idéia geral do valor mental do homem.

No seio da escola da ciência social, que se não deve confundir com a da reforma social, Demolins é contado como o seu terceiro fundador.

A Le Play deve-se o método de observação pelas monografias de famílias e os primeiros esboços de classificação destas; a Henri de Tourville o alargamento do método com a nomenclatura dos elementos sociais e com o sistema das viagens e a observação variada em sítios vários; a Demolins somos devedores do curioso processo das repercussões sociais e de uma mais perfeita classificação dos tipos de sociedades.

Aqueles que não conhecem nem assinam a Science Sociale e desejarem ficar a par das idéias pelas quais devorou Demolins, com invejável denodo, sua nobre existência, aconselhamos a leitura de seus livros na ordem seguinte: I – Les grandes Routes des Peuples (Essai de geographia sociale), Les Routes de L’antiquité.

II – Les grandes Routes des Peuples (Essai de geographia sociale).

Les Routes du Monde Moderne.

III – Les Français d’aujourd’hui (Les types Sociaux du midi et du centre).

IV – A quoi tient la superiorité des Anglo-Saxons?

V – A-t-on interêt à s’emparer du Pouvoir?

VI – L’Education Nouvelle (L’École des Roches).

VII – L’Avenir de l’Education Nouvelle.

VIII – L’Etat actuel de la science sociale.

IX – La necessité d’un programme sociale et d’un nouveau classement des partis.

Só com estas bases é que se poderá ter um conhecimento de conjunto das doutrinas da escola, das idéias peculiares do autor e se poderá ter noção clara do posto por ele ocupado entre seus companheiros.

Só com tais elementos é que se pode bem compreender o sentido e o alvo visado por um livro como o A quoi tient la superiorité des Anglo-Saxons?

Fora disso são impotentes as rabulices de certos críticos atrasadíssimos.

Claro é para aqueles a quem são familiares as idéias da escola da ciência social, na ramificação em que se tinha filiado Ed. Demolins, que as obras deste escritor são de duas categorias.

Numas ele expõe, por assim dizer teoricamente, os ensinamentos da doutrina; noutras faz aplicações práticas. Da última espécie são A quoi tient la superiorité des Anglo-Saxons? – A-t-on l’interêt de s’emparer du Pouvoir?

Diante destas nos deteremos um instante.

Feitas rigorosas observações no mundo inteiro no estudo dos diferentes povos, observações em que foram apreciadas as condições de lugar, trabalho, propriedade, família, modos de existência, patronagem, comércio, culturas intelectuais, religião, vizinhança, corporações, comunas, cidades, província, estado, expansão da raça, o estrangeiro em relação a ela, a sua história, o seu papel e posição mundial, trabalhos estes em que primaram Rousiers, Préville, Poinsard, Bureau, Tourville, Pinot, e o próprio Demolins, de que é atestado seu extraordinário livro – Les Français d’aujourd’hui, foi possível uma classificação dos diferentes tipos sociais.

Possível também foi conhecer quais os povos que estão à frente do movimento mundial moderno, e, implicitamente, os melhores aparelhados para as lutas da vida hodierna.

Foi com tais e tantos esforços que o sistema de Le Play ficou modificado no método, na classificação dos fenômenos sociais, na dos tipos de família, na dos tipos de sociedades.

Neste último ponto convém ouvir o próprio Demolins.

Escrevia ele em 1898: “Há oito anos apenas conseguimos determinar com exatidão o erro fundamental de Le Play, e podemos por esse modo retificar a sua obra que ficou além de singularmente desenvolvida, completamente renovada.

“Estes resultados que se tornaram para a ciência social o início duma verdadeira transformação foram a conseqüência de viagens comparativas levadas a efeito pelos colaboradores de La Science Sociale e por nossos discípulos – na Noruega, na Alemanha, na Suíça, no Sul da Algéria, no Saara, na Rússia, nos Pirineus, na Inglaterra, nos Estados Unidos, etc.

“Estes resultados foram comprovados, verificados, desenvolvidos por longa série de estudos prosseguidos sem interrupção pelos nossos mais eminentes colaboradores, estudos reiterados acerca das mais variadas sociedades do presente e do passado.

 “Em conclusão de análises tão consideravelmente acumuladas, acreditei poder reduzir a duas grandes divisões as sociedades humanas. O primeiro grupo compreende as diversas variedades que buscam resolver o problema da existência, apoiando-se na coletividade, a comunhão, quer da família, quer da tribo, seja do clã, seja do estado: são as Sociedades de formação comunária.

“O segundo grupo compreende as diversas variedades que procuram resolver o problema da existência, apoiando-se unicamente na energia individual, na iniciativa, na atividade, no esforço privado: são as Sociedades de formação particularista.

“Têm este nome porque nelas o particular conserva toda a independência diante do grupo. Faltava dispor em cada um desses dois grupos as sociedades que constituem os tipos conhecidos da inumerável série de variedades sociais. Para isto houve mister escolher, como ponto de partida, a variedade social que apresentasse o tipo comunário mais exclusivo, e, ao mesmo tempo, mais simples. Deparou-se-nos essa variedade inicial nas populações de pastores nômades das grandes estepes da Ásia central, dos quais são os tártaros-khalkhas os espécimens mais completos.

“Em França, onde este tipo não existe, tomamos como ponto de partida as populações semipastoris das zonas montanhosas que deles mais se aproximam.

“Estabelecido esse ponto inicial, faltava distribuir gradativamente as outras variedades na ordem em que se vão cada vez mais afastando daquela, isto é, na ordem em que a ação da comunidade familial se vai progressivamente enfraquecendo.

“Chega-se, destarte, a uma derradeira variedade na qual a comunidade de família é de todo quebrada e substituída por formas comunárias mais complicadas.

“Chega-se então a esgotar a série inteira das variedades conhecidas do primeiro grupo e passa-se ao segundo, o grupo das Sociedades de formação particularista.

“Neste, segundo o mesmo processo empregado precedente, toma-se por ponto inicial a variedade social que apresenta o tipo particularista com o maior caráter de simplicidade.

 “Este ponto inicial é fornecido pelas populações da Noruega que se entregam simultaneamente à pesca nos fjords e à cultura agrícola.

“Seguindo dali, procede-se com o segundo grupo como se fez com o precedente, distribuindo as diversas variedades na ordem em que se vão complicando cada vez mais.

“Chega-se, assim, à variedade que apresenta o tipo mais complicado e mais definido da iniciativa individual, isto é, aquela que está colocada no pólo oposto à formação comunária.

“Obtém-se por este modo uma cadeia ininterrupta de sociedades que vão da formação comunária mais intensa à formação particularista mais extremada.

“Dispostas as sociedades humanas por esta forma sistemática, percebe-se que a formação comunária reina quase exclusivamente no Oriente asiático e europeu; que predomina, algum tanto atenuada, em todo o meio-dia ocidental da Europa e na América do Sul; pode-se dizer que o tipo característico dos povos do Oriente e do Meio-Dia.

“E inversamente predomina a formação particularista no norte ocidental da Europa e na América do Norte, sendo o espécimen mais completo e mais intenso desta formação social fornecido pela raça anglo-saxônica.

“Digo intencionalmente a raça anglo-saxônica, porque, entre as populações que se acham mais ou menos mescladas com esta raça, algumas existem que, em conseqüência de causas várias, pertencem à formação comunitária: deste número são os grupos de populações célticas, como os escoceses, os highlands, os irlandeses, os habitantes do País de Gales.

“Esta estrita justaposição de elementos essencialmente diversos, explica facilmente, na ciência social, as tendências opostas, as lutas e certas divisões políticas da Inglaterra atual.”

Já daqui se vai percebendo porque foi que Ed. Demolins escreveu oA quoi tient... e no sentido porque fez.

Os crichanás da crítica brasileira têm muito que estudar para compreender certas doutrinas e certos homens, que saem inteiramente fora de seus moldes, jeitos, sestros e estreitezas espirituais.

Há mister, na empresa, duma completa transformação psicológica, operação que os crichanás, como bons primitivos que são, não agüentam...

III Nós, depois de haver indicado a ordem em que devem ser lidos os livros de Demolins, dissemos que nos deteríamos rapidamente diante de A quoi tient la superiorité des Anglo-saxons? e A-t-on, interêt à s’emparer du gouvernement?

A primeira destas obras é um excelente trabalho de aplicação das idéias da escola da ciência social da Inglaterra.

O livro se divide em três partes: O francês e o anglo-saxão na escola; o francês e o anglo-saxão na vida privada; o francês e o anglo-saxão na vida pública.

Quem o lê com o espírito aberto à aquisição de idéias e não a ouvir frases sonoras, sente-se verdadeiramente transportado a um mundo novo.

Surpreende-se o genuíno inglês na sua vida real, no desabrochar de seu caráter ativo e empreendedor.

O analista toma o pequeno filho de Albion desde a infância, desde a escola. Logo, às primeiras páginas, compreende-se que a superioridade de que vai falar o autor não é literária, artística, filosófica, ou outra qualquer deste gênero: trata-se apenas de superioridade moderna.

É isto que certos mestiços brasileiros, arrotando latinismos, não querem ver.

De fato, Demolins faz um quadro vivaz, um desses que não se apagam mais de imaginação de quem os lê, do professor inglês na pessoa de Mr. Cecil Reddie e das modernas escolas britânicas nas instituições de Abbotsholme e Bedales.

Eis o professor; comparemo-lo com os Veríssimos de cá e aprendamos a conhecer donde partem os mais remotos fios de nossas desgraças. Vai na língua admirável do escritor: “II y a, chez nous, un type classique du directeur de college, du professeur; tenue correcte, vêtement sombre, longue redingote noire, air plus ou moins d’un homme convaincu qu’il exerce un sacerdote et qui le laisse voir; la demarche lente, l’attitude réservée, la conversation remplie de sentences propres à former l’esprit et le coer de la jeunesse.

“Surtout de la dignité, extraordinairement de dignité.

“L’homme qui me serrait vigouresement la main était tout différent.

“Avez-vous quelques fois essayé de vous représenter un pionnier, un squaltter, dans le Far-West?

“Quant à moi, je ne me le figure pas autrement que le docteur Cecil Reddie. Grand, mince, solidemente musclé, remarquablement tailé pour tous les sports qui exigent de l’agilité, de la souplese, de l’energie, et avec tout cela, un costume qui compléte bien la physionomie, le costume du touriste anglais: blouse en drap gris avec ceinture dessinante la taile, culottes courtes, gros bas de laine repliés au-dessous des genoux, solide paire de chaussures, enfin, sur la tête, un béret.

“Je donne ces détails, parce que ce type de directeur ne semble être l’image vivante du type d’école que je vais vous décrire: l’homme est bien la représentation exacte de l’oeuvre.”

Acompanhado desse original tipo de mestre, inteiramente fora dos moldes dos educadores franceses e brasileiros, Demolins visitou a escola de Abbotsholme.

De caminho, Mr. Reddie ia-lhe expondo os seus métodos e idéias: “Nosso alvo é chegar a um desenvolvimento harmonioso de todas as faculdades humanas. O menino deve tornar-se um homem completo, a fim de ficar apto a preencher todos os fins da vida.

“Para tanto, a escola não deve ser um meio artificial no qual não se esteja senão pelos livros em contacto com a vida; deve ao contrário, ser um pequeno mundo real, prático, que ponha o menino o mais perto possível da natureza e da realidade das cousas. Não se deve ensinar somente a teoria dos fenômenos, senão a sua prática também, e esses dois elementos devem andar intimamente juntos na escola, como andam em torno de nós, no intuito de evitar que, entrando na vida, o jovem entre num mundo desconhecido, para o qual não estava preparado e onde vai ficar desorientado. O homem não é uma pura inteligência, e sim uma inteligência unida a um corpo e deve-se também formar a energia, a vontade, a força física, a habilidade manual, a agilidade...”

São idéias repetidas agora entre nós pelos papagaios que discorrem a rédeas soltas acerca de reformas de ensino, sem lhes compreender o sentido. E tanto não o compreendem que andam às tontas no assunto e disparatam nele.

Indicaremos aqui, entre parênteses e de relance, as bernardices cometidas pelos famosos reformadores, que berram agora mesmo no Congresso, não dizemos já sobre a solução do problema, cousa grave, mas pura e unicamente no simples modo de o compreender e formular: 1º Laboram ainda no grosseiríssimo erro de tomar a questão do ensino em abstrato, separando-a da enorme cadeia dos problemas brasileiros, de que é apenas um elo; 2º Incapazes de sondar as causas gerais e eficientes de nossas misérias, fazem do caso do ensino bode expiatório das mazelas do presente; 3º Fingindo independência e capacidade que não têm, nem sequer reparam que ainda e sempre, consciente ou inconscientemente, não fazem mais do que fortalecer o degradante sistema dos governos de povos comunários, segundo o qual o ensino é um organismo de partido e um instrumento de combate como tudo mais; 4º Daí a desorientação dos discutidores, cada um puxando para seu lado, fonte donde resultam as mais curiosas contradições.

O mal tem sido atribuído, ao mesmo tempo, a ser o ensino, oficial ou livre, leigo ou religioso e também aos programas, aos exames parcelados, aos exames de madureza, aos internatos, aos externatos, aos colégios equiparados, às academias livres, à bonomia dos fiscais, aos parcos ordenados dos professores, à má distribuição da competência oficial de prover as várias categorias do ensino, segundo a Constituição, à indiferença dos governos dos estados... O diabo!

Só de uma cousa não se lembram: que a questão é de educação e não de instrução. Não vêem que é preciso seguir os passos deste sorites ascendente: reformar a educação dos discípulos, e, com estes, os pais, e, com estes, a família, e, com esta, o caráter do povo.

Se queremos continuar a ser uma gente de comunários, vivendo da política alimentária, o ideal em matéria de ensino é exatamente o que temos; se queremos, porém, mudar de rumo, no sentido das grandes iniciativas, é seguir o que fazem os ingleses e aconselha Demolins.

Não há meio-termo. Tornemos às escolas descritas pelo saudoso sociólogo.

O tipo de Abbotsholme e Bedales é o mesmo que foi inaugurado em França pelo grande escritor na École des Roches, que vai exercendo enorme influência na pedagogia francesa.

De um jato fica dirimida a vexata quaestio dos internatos e dos externatos.

Rui por terra o colégio instalado no enorme casarão, com aparência de caserna, hospício, quartel ou hospital.

Evitam-se as desvantagens dos internatos, cujos vícios, safadezas e infâmias são assaz conhecidos; mas evitam-se também os inconvenientes dos externatos nas grandes cidades, cujas ruas têm de ser percorridas pelos alunos, com o grande perigo de aprenderem vícios de toda a casta.

A escola inglesa é colocada no campo, em sítios adrede escolhidos, em trechos do país, com as suas verduras, suas várzeas, suas árvores, suas águas correntes ou em aprazíveis lagos.

O fim é pôr a criança em contato com a natureza e suas cenas mais aptas a lhe fortalecer a saúde, despertando, ao mesmo tempo, o interesse pelas cousas práticas.

Por isso as excursões, os passeios e brincos ao ar livre, os exercícios de natação, de remar e outros congêneres entram em larga escala na educação física.

Os estudantes são distribuídos, aos quinze ou vinte no máximo, por edifícios dispostos separadamente e habitam neles com as famílias do diretor e dos professores.

Facilita-se-lhes, destarte, o convívio em sociedade, como se estivessem no centro de suas próprias famílias. A educação moral é assim ressalvada.

As classes são organizadas com o fim de evitar as enormes aglomerações em que o ensino se torna improdutível.

Este é dirigido com o plano de interessar o mais possível a iniciativa individual do aluno.

Desenvolve-lhe principalmente o espírito de observação, a prática dos aparelhos científicos, a verificação pessoal dos fatos, a desco- berta da verdade, como se fosse uma aquisição nova, devida ao esforço direto do estudante.

Conhecido em França esse estupendo sistema de organização escolar, muitas famílias enviaram seus filhos para a Inglaterra.

Demolins mesmo dera o exemplo, mandando o seu.

Mais tarde, fundou a École des Roches, escrita em livro especial.

O plano de estudos é nela o mesmo de seus modelos ingleses.

A educação física e a educação do caráter combinam-se de modo a ajudar a boa cultura espiritual.

IV De quanto já havemos afirmado do grande sociólogo francês está mais que evidente não ser o seu belo livro dos Anglo-saxões uma dessas máquinas de comparação ao gosto do livro detestável de Colajani ou duma estapafúrdia conferência de Ferrero, publicada no Jornal do Comércio.

Pertencente a uma escola de ciência que aplica escrupulosamente o método de observação aos fenômenos sociais, Demolins e seus companheiros não procedem a essas negativas medições do gosto de medíocres pretensiosos ou enfastiados.

São estudos objetivos, firmados nos fatos mais graves, nos documentos mais sérios, nas observações mais iniludíveis.

O Sr. José Veríssimo, que só de nome conhece raríssimos dos próceres da escola de Demolins (escreve sempre – Demoulin, com dois erros); o Sr. José Veríssimo, que nem de nome conhece outros e dos mais notáveis, só pela mais ignara ignorância poderia chamar medíocre um livro, nutrido de ensinamentos e idéias, que teve larga repercussão e enorme influência em França.

Os capítulos, cheios de fatos e não de frases da paixão de todos os Veríssimos havidos e por haver, em que o forte escritor demonstra como a educação francesa reduz a natalidade naquele país e compromete a sua situação financeira; aqueles em que mostra como a educação anglo- saxônica prepara para a luta pela vida e como o seu modo de viver no lar contribui para as vantagens sérias na existência; sobretudo, aqueles em que estuda o pessoal político em os dois países, demonstrando o modo por que as profissões práticas e fundamentais da agricultura, das indústrias, do comércio têm a maioria na representação inglesa, ao passo que na francesa têm-na os empregados públicos e os parasitas das chamadas profissões liberais, são verdadeiramente superiores.

Esse mesmo fenômeno foi estudado por G. de Greef na sua excelente obra – A Constituinte e o Regímen Representativo, na qual se bateu pela representação das funções sociais.

Aspiração esta praticamente realizada na Inglaterra, país de iniciativa e autonomia particularista, aspiração irrealizável nas famosas terras latinas, nas quais a parlapatice de todas as formas e feitios e a funcionarada de todos os matizes, vivendo todos da política alimentária, vedam-na em absoluto.

Já uma vez nos batemos por esse ideal na imprensa e no Congesso e vimos que a cousa causava o mesmo horror de um terremoto...

Tanto é irredutível a superioridade que Ferrero descobre nos seus queridos latinos.

Este digno êmulo de Dumas pai no arquitetar emaranhados romances históricos, em conversa com um amigo nosso, chamou os ingleses – um tas d’inbeciles...

Boa tese para os fazedores de conferências: – Como um agregado de imbecis se acha à frente das nações modernas nas cinco partes do mundo e achou jeito de produzir: – Bacon e Shakespeare, Milton e Newton, Locke e Herschell, Hume e Berckeley, Darwin e Dickens, Spencer e Tennyson, Mill e Ruskin, Shelley e Byron, Buckle e Lyell...

Curiosa cousa, em verdade.

Fica aí o assunto: a eles os discursadores.

Duas palavras, para concluir, sobre: A-t-on intere à s’emparer du gouvernement?

O livro é, com razão, considerado pelo autor um complemento natural do consagrado aos anglo-saxões.

A análise da mania politicante e das aspirações malsãs ao governo e ao mando, especialmente entre os erroneamente chamados povos latinos, é feita com mão de mestre.

O grande escritor mostra como em um povo, no seio de uma nação existem funções muito mais úteis, mais dignas, mais honrosas, mais aptas a atrair o emprego das altas e nobres aptidões do homem em prol do progresso e bem-estar gerado que as meras funções de governar, especialmente quando os que se encarregam do exercício do mando procuram adrede exagerar o seu papel e viver à custa dele.

Destarte, mostra como o abuso do poder produziu a decadência da Grécia, de Roma, da Espanha, da França, cujas superioridades e grandezas foram devidas, nos áureos tempos, à iniciativa privada.

O que escreve dos romanos é acima de tudo digno de reparo, porque, em quatro ou cinco páginas, completadas por outras tantas existentes no seu livro – Les Routes de l’Antiquité –, fica-se conhecendo melhor o caráter do grande povo do que em seis ou oito volumes de Ferrero.

Ali é que se aprende o que se deve pensar da famosa antinomia que ainda hoje reina entre os caracteristas dos dois ramos arianos nomeadamente rivais – Latinos e Teutões –, a ponto de uns, exempli gratia – Guizot, considerarem os últimos como essencialmente individualistas, e outros, caso de Ihering em larga parte, darem essa qualidade aos primeiros.

Demolins, com os profundos ensinamentos da ciência social, distingue o individualismo negativo do selvagem do particularismo orgânico e progressivo do nobre ramo teutônico, particularismo que os romanos possuíram a princípio pelas condições especiais de sua formação e vieram perdendo gradativamente nos quatro séculos do Império.

“Se se quisesse”, escreve Demolins, “à luz da ciência social, caracterizar, em uma só frase, a causa fundamental da grandeza romana, poder-se-ia dizer: Os romanos representam, na Antigüidade, o maior esforço dos comunários para sair da comunidade. Nos modernos tempos, certos povos do Ocidente têm podido realizar completamente esta evolução, e isto lhes têm bastado para assegurar-lhes a preeminência. Os romanos só em parte preencheram a tarefa e seu poder afirmou-se exatamente na medida em que a preencheram.”

É como o sábio sociólogo inicia o estudo do Tipo Romano. A demonstração da tese não vem para aqui.

Recomendamos aos brasileiros, libertos das literatices baratas dos desocupados, que leiam, dizemos mal, que estudem os livros do autor de que damos agora pálida notícia e peculiarmente em Les Routes de l’Antiquité – as páginas relativas ao chamado Povo-Rei.

Limitamo-nos a dar neste lugar as conclusões do mestre ilustre.

Depois de estabelecer peça a peça a formação quase particularista dos romanos, chega a estas conclusões: “Esta superioridade tinha, todavia, muitos pontos fracos, muitas lacunas graves.

“O primeiro ponto fraco deste quase – particularismo – foi a incapacidade dos romanos para se destacarem completamente da forma patriarcal da família. Reduziram, é certo, esta forma mais do que qualquer povo da Antigüidade, não passaram, porém, ao tipo da família particularista, que criou o predomínio de alguns povos modernos do Ocidente.

“A instituição da gens, grupo de famílias descendentes do mesmo tronco, limitava, em parte, a ação e a independência de cada família.

“Depois, e isto foi mais grave, o desenvolvimento sem limites da ação paterna teve por conseqüência cortar a iniciativa dos filhos. Roma libertou o pai, e não o filho, queremos dizer o filho feito homem e chefe também de família. Por isso o tipo ficou ainda em parte voltado para o passado, para o Oriente, em vez de andar deliberada e completamente para o futuro, para o Ocidente.

“Foi superior aos outros povos da Antigüidade, mas inferior aos povos modernos que triunfam hoje.

“O segundo ponto fraco foi o agrupamento exclusivamente urbano.

Por este lado o tipo romano se afasta claramente da genuína formação particularista.

“Desde que Roma foi cercada de muralhas, o camponês romano abandonou o campo para morar na cidade, ou em grandes aldeias, tal qual faz hoje o compônio italiano.

“Pela manhã se dirigia para os campos; de tarde voltava para a aglomeração urbana. A idéia de isolamento em sua terra acabrunhava-o.

Nisto ficou, como os outros Pelasgos, um urbano e comunário.

“Não se apoderou jamais complemetamene dos campos, nem completamente de si mesmo. Não produziu o tipo esplêndido do colono completo, firmemente estabelecido em sítio fixo no meio de seu domínio, numa independência um pouco selvagem, talvez, mas singularmente poderosa.

“Pôde colonizar por grupos e nunca individualmente pelo modo particularista, que se apodera atualmente do mundo.

“Finalmente, o último ponto que afastou os romanos do tipo particularista foi a centralização do poder público em Roma.

“Era em Roma que os cidadãos, antigos ou novos, os povos vencidos deviam vir exercer seus direitos políticos.

“Esta medida era a conseqüência lógica da idéia urbana e comunária da Civitas.

“É o contrário do processo particularista que cria fora grupos autônomos que têm vida própria e se administram a si mesmos.

“Na sociedade romana, como mais tarde nos regímens criados por Carlos V, Filipe II, Luís XIV, a Convenção, Bonaparte, toda a vida social e política estava concentrada na capital; os membros anemiados tinham apenas uma exitência fictícia.

“Destarte, à medida que estas sociedades cresciam em poder e em extensão, a província se enfraquecia, porque se tornava cada vez mais difícil fazer circular a vida até as extremidades mais longíquas. Foi o que aconteceu em Roma, quando seu império se estendeu ao largo.

Seu regímen, criado para uma só cidade e seus subúrbios, não se pode estender a um território tão vasto.

“Era impossível, de Roma e por meio de Roma, governar o mundo. Tomou-se então o partido de nomear procônsules, que em nome de Roma iam governar as províncias.

“Sabe-se demasiado o que aconteceu.

“Estes procônsules serviram-se do poder para levantar exércitos compostos de bárbaros e marchar sobre Roma.

“Vieram, eles também, exercer em Roma seus direitos de cidadãos, mas, como tinha a força, o exerceram tão bem, que se apoderaram do poder e o guardaram...

“Foi o Império. Este não foi outra cousa senão a reconquista de Roma pelos povos extramediterrâneos, isto é, pelos bárbaros.

 “Assim, Roma, que tinha devido a sua grandeza inicial ao seu quase particularismo, deveu sua queda ao que nela tinha ficado da velha formação comunária, e, mais diretamente, ao regímen centralizador do Estado.”

Os romanos, é claro, não chegaram à idéia do estado à moderna, nem pelo lado da descentralização, nem pelo lado do sistema representativo.

A unidade política da humanidade, que Ferrero diz ter sido por eles realizada, era puramente ilusória e instável.

A unidade econômica, industrial e comercial, que o mesmo fantasista ousa atribuir-lhes, não passa de sonho e miragem...

Outubro de 1907.

 

5 – BRASIL SOCIAL*

Estado Social do povo brasileiro

(Extrato do discurso recitado na Academia Brasileira no dia 18 de dezembro de 1906)

É preciso generalizar e concluir.

Que lição poderemos tirar do discurso, dos artigos, dos estudos, do livro do Sr. Dr. Euclides da Cunha, eu digo lição que possa aproveitar ao povo, que já anda cansado de frases e promessas, desiludido de engodos e miragens, sequioso de justiça, de paz, de sossego, de bem-estar que lhe fogem, esse amado povo brasileiro, paupérrimo no meio das incalculáveis riquezas de sua terra?

É a terceira tentação, a que não posso fugir, e não me furtarei a dizer meia dúzia de palavras.

Já andamos fartos de discussões políticas e literárias. O Brasil social é que deve atrair todos os esforços de seus pensadores, de seus homens de coração e boa vontade, todos os que têm um pouco de alma para devotar à pátria.

É onde pulsa a maior intensidade dos problemas nacionais, que exigem solução, sob pena, senão de morte, de retardamento indefinido no aspirar ao progresso, no avançar para o futuro.

Vós, Sr. Euclides da Cunha, em vosso discurso, aludindo, célere, de raspão, aos nossos desvarios e aos nossos desengonçados e tumultuários esforços e planos de reforma, dizeis que sofremos de vesânia de reformar pelas cimalhas... É a verdade. Mas por quê? Reformar pelas cimalhas e não pela base, pelo alicerce... Por quê? Donde provém esse perpétuo desatino de tantos homens inteligentes?

Em vosso livro, logo nas primeiras páginas, estabeleceis que a nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social; estamos condenados à civilização: ou progredimos ou desapareceremos...

Logo, é que não nos julgais no todo civilizados, e, a despeito de tantas aparências enganadoras, corremos perigo... Por quê?

Claro, existe aí um problema a resolver, uma antinomia a explicar.

Noutro lanço de vosso livro, como uma síntese dele, como a lição que brota de vossas meditações, chegastes a este resultado acerca das populações sertanejas do Brasil: “A sua instabilidade de complexos de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tornam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento, ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra... Retardatárias hoje, amanhã se extinguirão de todo. Além disto, mal unidos àqueles patrícios pelo solo, em parte desconhecido deles, de todo nos separa uma coordenada histórica – o tempo.”

Logo, temos aqui a mais singular das situações sociais, alguma coisa de gravemente inquietante que há mister esclarecer para afastar, para corrigir, para conjurar, se possível, como que duas nações que se desconhecem, separadas no espaço e ainda mais no tempo, e uma delas voltada ao desaparecimento, no pensar dum dos maiores talentos da nossa atualidade, um dos mais completos conhecedores de nosso povo!...

Mas essa parte das nossas gentes, destinada, a seu ver, a apagar- se da vida e da história, é a maior parte da nação e é aquela que fundou as nossas riquezas, e é aquela que tem mantido a nossa independência, porque é aquela que sempre trabalhou e ainda trabalha, sempre se bateu e ainda se bate...

Não há nisso uma anomalia, uma raríssima extravagância da evolução histórica? Evidentemente. E por quê? Eis o problema.

Responder a ele cabalmente não é coisa para ser feita nas quatro palavras do final dum discurso acadêmico. Uma vista completa do assunto exigiria, por assim dizer, o desmontar das diversas peças que formaram e vão formando o nosso povo; o serem elas estudadas, uma a uma, na sua constituição íntima e na grande alteração que têm sofrido, pela fusão, neste clima, neste meio.

Seria indispensável estudar o país, zona por zona, porque existem diferenciações várias a notar aqui e ali, exigidoras de diagnósticos divergentes e terapêuticas especiais. Não é aqui, claro, o lugar de o tentar.

Basta-me consignar que o nosso estremecido povo brasileiro apresenta a sintomatologia geral das nações a cujo grupo pertence esse grande número de povos de índole e formação comunária, especialmente os latino-americanos, que têm de suportar a nova concorrência das nações de formação particularista, colocadas atualmente à frente da civilização industrial do nosso tempo: ingleses, alemães, americanos, canadenses, australianos, flamengos, holandeses, franceses do norte, povos que retêm em suas mãos os capitais movimentadores do mundo moderno.

Mas apresenta essa sintomatologia, ao lado de caracteres que lhe são próprios e o individualizam mais de perto.

Indicar estes últimos, mesmo de relance, é ter uma resposta à pergunta formulada. Apontarei, por brevidade, minhas observações em proposições sinóticas.

A crise universal hodierna entre a velha e a nova educação, entre a cansada intuição comunária, que procura resolver o problema da existência, apoiando-se na coletividade, na comunhão, no grupo, quer da família, quer da tribo, quer do clã, quer dos poderes públicos, do município, da província, do estado, dos partidos, jogando como arma principal das classes ditas dirigentes a política alimentária, o emprego público, as fáceis profissões liberais, o mero comércio e a intuição particularista, que encara aquele problema, principalmente, como coisa a ser solvida pela ener- gia individual, a autonomia criadora da vontade, a força propulsora do caráter, a iniciativa particular no trabalho, as ousadias produtoras do esforço, essa crise universal acha-se no Brasil complicada por causas e circunstâncias especiais de seu desenvolvimento etnológico e histórico.

Entre nós, a raça colonizadora, acostumada geralmente ao comércio e, em várias zonas do Sul e das montanhas de sua terra, a vida dum fácil pastoreio, e, no resto do país, à cultura doce, que é quase uma jardinagem, da vinha, dos frutos arborescentes, como as castanhas, as nozes, os figos, as oliveiras, e, em muito menor escala, do centeio e do trigo, foi obrigada a uma cultura rude e penosa. Recorreu, pela força, ao cativeiro de índios e negros, gentes selvagens, alheias quase de todo ao trabalho agrícola.

Os mestiços das três raças eram, por via de regra, pela maior parte incorporados entre os escravos. Os colonos reinóis, de gradações e categorias várias, se encarregavam do suavíssimo ofício de... mandar...

E como não, se eram os senhores dos outros e os donos da terra?

Mas todo o mundo não podia ser no campo senhor de engenho, fazendeiro de gado ou de café, proprietário de datas auríferas ou diamantinas, o que importa dizer que grande parte, a maior parte da população, o grosso proletariado rural – não escravo – não possuía um palmo de terra; porque esta foi desde o começo ficando açambarcada em enormes latifúndios pelos concessionários das sesmarias intérminas.

O aludido proletário teve fatalmente de acostar-se como agregado à patronagem dos grandes proprietários. É a origem dos doze milhões de brasileiros que habitam todo o interior do país: matas, sertões, campos gerais, chapadas, chapadões e planaltos, fora das restritas gentes das grandes vilas e cidades, da costa ou mesmo do centro. Nestas, os habitantes das vilas e cidades, os mandões, diretamente vindos da Europa ou já nascidos no país, apoderavam-se dos cargos públicos ou exerciam o comércio, a mercancia, que teve, no correr de séculos, entre nós todos os caracteres duma pirataria em grosso.

O resto da população livre, o maior número dividia-se nos povoados ainda em dois grupos, o dos que mourejavam na prática duns ofícios reles que lhes garantiam uma existência penosíssima, e o dos que resvalavam numa pobreza abjeta, repulsiva. Ainda hoje, por essas terras além o Brasil é fundamentalmente isto mesmo, sendo apenas a grande novidade moderna a incorporação dos ex-escravos nessa enorme massa de população proletária, quer dos campos, quer das grandes povoações.

Originaram-se dessa anomalia inicial antinomias que ainda hoje nos atropelam e fazem manquejar. A primeira delas é a disparidade entre uma pequena elite de possuidores e proprietários e o avultadíssimo número dos que nada têm, nada possuem, principalmente nas populações rurais.

Segunda estravagância do gênero é a antinomia entre outra elite, a dos intelectuais, eivada de estrangeirices de toda a casta, especialmente na capital e nas grandes cidades, e o imensíssimo número de analfabetos ou incultos que constituem a nação por toda a parte. Esta última extravagância agrava-se dum peculiar despropósito que, repetido, a toda hora, nos jornais, nos discursos e nos escritos dos que entre nós dirigem a opinião, tem produzido soma incalculável de males, desviando os governos e todos os que disso podiam curar de cumprir o seu dever para com a maioria da população nacional.

Quero falar da singularíssima teima dos intelectuais de toda a casta de dizerem mal das gentes da roça, sertanejas ou não, sem se lembrarem que, há quatro séculos, elas é que trabalham e produzem, elas é que se batem. Isto é, sem se lembrarem que elas e que têm sustentado o Brasil, como povo que vive e como nação que se defende.

Aos fazendeiros e senhores de engenho tratam como adversários e maus sujeitos.

Magnatas, senhores feudais, déspotas, insaciáveis parasitas – são as gentilezas com que os brindam.

Aos homens do trabalho no campo consideram uma turba amorfa que vai desaparecer, bandos de sertanejos, de jagunços, caipiras, matutos, tabaréus, cablocos, sem a menor valia.

E não lhes ocorre, repito, que essas gentes é que com os ex-escravos, nelas hoje incorporados, criaram, com todas as falhas, a fortuna, a riqueza existente no país.

O fazendeiro exerceu, e exerce ainda, a natural patronagem, própria do regime agrícola ou pastoril dos países como o nosso; os sertanejos e matutos, os tabaréus e caipiras, gaúchos e roceiros de todas as graduações – são os únicos operários rurais, pastoris ou agrícolas, com que temos contado, não metendo em linha alguns milhares de colonos que só recentemente foram introduzidos e em raras zonas do território vastíssimo.

A força de resistência, em que pese aos fantasistas, da população brasileira está precisamente nessas gentes do interior, nos doze milhões de sertanejos, matutos, tabaréus, caipiras, jagunços, caboclos, gaúchos...

O problema brasileiro por excelência consiste exatamente em compreender este fato tão simples e tratar de fazer tudo que for possível em prol de tais populações, educando-as, ligando-as ao solo, interessando- as nos destinos desta pátria.

O maior obstáculo a isto têm sido as literatices dos escritores e políticos que se julgam, eles, esses desfrutadores de empregos públicos, posições e profissões liberais, os genuínos e únicos brasileiros, a alma e o braço do povo. Por isso é que se arvoram em nossos diretores...

Outra singularidade latino-americana agravada no Brasil, e oriunda das precedentes, é que não conseguimos formar ainda um povo devidamente organizado de alto a baixo.

Faltam-nos a hierarquização social, o encadeamento das classes, a solidariedade geral, a integração consensual, a disciplina consciente dum ideal comum, a homogeneidade íntima.

Falta-nos a radicação à terra pela propriedade espalhada largamente, pelo cultivo, pela produção autônoma da riqueza nacional.

O nosso povo está em regra desenraizado do solo ou nele subsiste como uma vegetação estranha. Faltam-nos o aferro ao trabalho, a base econômica, livre, ampla e segura, e, mais, a masculinidade da vontade, o espírito de iniciativa, a audácia do esforço, do empreendimento, da luta pelo progresso e bem-estar.

Notam-se de sobra a indisciplina, o espírito de clã, a divisão, a desarmonia, a falta de solidariedade, de consciência coletiva popular.

Destarte, se por um lado não temos o operariado rural, organizado, afeito ao trabalho regular e seguido; nem uma classe numerosa, por toda a parte espalhada, de pequenos proprietários agrícolas; nem a dos médios proprietários da mesma espécie, porque as terras são devolutas, de héreos, ou estão nas mãos dos grandes latifundiários, hoje geralmente de- cadentes, não possuímos, por outro lado, o vasto operariado urbano brasileiro, patrício, organizado pelo país afora; nem a pequena burguesia proprietária, farta e abastada; nem tampouco, a grande burguesia, comparável à das fortes nações particularistas, opulentas, poderosas, progressivas, e, menos ainda a vasta aristocracia do dinheiro, o grupo dos milionários, dos banqueiros, dos capitalistas nacionais empreendedores. Não possuímos os grandes mineradores, os grandes criadores, os grandes agricultores, os grandes industriais à moderna. Esta geral falta de base econômica estável e independente, que repercute na família e na índole do povo, pela incerteza dos meios e modos de viver, leva-nos a não ter nem, como os povos orientais, a estabilidade patriarcal, duma parte, e nem doutra, a iniciativa, a coragem e espírito empreendedor particularista.

É também uma antinomia, e das mais sérias de nossas gentes.

Este mal provém, como se viu, das origens, da matéria-prima humana empregada no povoamento, na formação da nação e também da natureza do meio, áspero, em grande parte do país, e ao mesmo tempo enganoso, pelas facilidades outorgadas à vadiagem, com a abundância de produtos espontâneos, aproveitáveis sem labor, duro para a grande e a intensa cultura, doce para a vida imprevidente dos improgressivos.

A estes dois fatores fundamentais juntam-se, neste particular, efeitos que estão desde o começo atuando como causas maléficas: os vícios, acumulados por quatrocentos anos, da escravidão, da política-meio de vida, da empregomania, do horror pela vida afanosa do campo no meneio de indústrias produtoras, da atração para os folgados afazeres dos cargos oficiais, das profissões letradas e da mercancia nas cidades.

Outra grande singularidade da evolução brasileira é o fato originalíssimo, que não tem sido notado e menos apreciado na sua genuína significação, e é explicável pelos fenômenos sociais e políticos já aduzidos.

Refiro-me à negação pelo Brasil dada à lei histórica, observada na milenária evolução do Ocidente, quando se deu a transformação dos escravos e servos em homens livres. Em todo o Ocidente, a maior porção daqueles transmudou-se nessa massa de pequenos proprietários agrícolas, presos ao solo pelos mais sólidos interesses, e que veio a constituir o cerne, o âmago, o nervo das nações modernas; a outra porção transformou-se nesse corpo de operários rurais também ligados à terra e que é também uma das bases firmes das nações fortes e futurosas.

No Brasil nada disto.

Tivemos, por duas vezes, a solene abolição em massa.

A primeira vez na última base do século XVIII, quando foram libertados os escravos índios e mestiços de índios. Fugiram quase todos para os matos e os que ficaram em aldeamentos não se transformaram em proprietários de terras e nem se entregaram à cultura.

Prolongaram uma vida de misérias, servindo ofícios inferiores, até se obliterarem quase inteiramente na massa do proletariado anônimo das vizinhanças.

A outra vez foi ontem, em nossos dias, quando se libertaram os escravos de origem africana e mestiços, na penúltima década do século XIX.

A debandada foi ainda mais geral.

O ex-escravo, que não tinha sido preparado pelo colonato, nem pela descrição ao solo, devido à solene incapacidade da famosa elite de bacharéis palreiros que têm sido sempre governo nesta terra e têm tido nas mãos os destinos do Brasil, o ex-escravo deu em geral na calaçaria e emigrou para os povoados... Aí vive aos trambolhões nuns empregos reles. Aí, nas cidades, como nesta capital, nenhuma aspiração elevada e nobre lhes despontou n’alma.

Aumentaram apenas a nota cômica que nos cerca por todas as faces da existência. Uma das mais características dos dois últimos decênios é o sério com que distintas e grandes damas de cor imitam os trajes, os gestos, os cacoetes das mais finas arianas européias ou fluminenses, ou a doce ternura com que se tratam – de Excelências...

V. Exª para aqui, V. Exª para acolá. É um regalo.

Mas não era disto que havíamos mister.

A politicagem, entretida, no desfrutar das pingues posições, estupidificada pela dupla miragem dos capitais e dos braços estrangeiros, como se estes tivessem sido criados para estar à nossa disposição e nos serem ofertados de mão beijada, nada viu, de nada curou e nem sabia curar... Pois poder-se-ia lá pensar que avessados cultores da advocacia administrativa, insignes inventores de malabarescas concessões, elas e seus aliados dos governos, dos ministérios, dos parlamentos, do jornalismo, espreitadores de lucros, favores e vantagens, interrompessem seus graves afazeres para pensar no povo, na plebe, nos matutos, nos sertanejos, nos ex-escravos, na lavoura!...

Que loucura!

Afear o estilo, aleijar a frase, esquecer, por instantes que fosse, os embevecimentos idiomáticos, a colocação dos pronomes, com esses plebeísmos rebarbativos, especialmente agora que tudo deve ser chique, como as avenidas da moda e os palacetes dos arquitetos de fama...

Que loucura!

Mas eu insisto; não era disto que havíamos mister. O que precisávamos, e teria sido duma vantagem máxima, incalculável, era que não tivéssemos desmentido a lei histórica; era que no século XVIII e mais ainda no século XIX a massa enorme de três milhões de escravos, ou mais, levando em conta as libertações parciais operadas em todo o correr dos dois séculos, tivesse sido transformada num corpo sólido de proprietários e operários agrícolas.

Havia meios de o conseguir se o governo em nossa terra tivesse sido sempre uma função dos mais capazes e não essa seleção inominada, essa floração ineclassificável que tem sido constantemente o espanto das almas dignas.

E eis por que perdeu-se, em duas ocasiões solenes, o ensejo de se irem enchendo os quadros da população livre com a sua natural hierarquização.

E eis por que, é mais uma das nossas peculiares originalidades, no Brasil são só facilmente realizáveis, sem intervenção estrangeira, os fatos políticos e até sociais, que podem espontaneamente ser transformados em temas literários, em assuntos de escritos e discursos, que deixam larga margem a frases bonitas, a períodos elegantes, a meneios retóricos, eloqüentes.

Iludem a todos com os belos e sonoros palavriados, apontam os díscolos como retardatários, senão inimigos da pátria. E o povo, o pobre João Sem terra, na frase de Proudhon, que é no Brasil amaríssima realidade, tem chegado a perder até a consciência de seus destinos e não sabe mais para onde o levam.

Eis por que, quando aporta em nossas plagas o estrangeiro inteligente, ilustrado, sabedor, como esse Luiz Couty, cujo livro – O Brasil em 1884, deveria andar em todas as mãos e estar traduzido e espalhado por todas as escolas, apenas lança os olhos para a nossa população, não essa que flana na Rua do Ouvidor, julgando-se digna rival da que percorre o Bois de Boulogne, ou Unter den Linden, senão a outra a que produz os pesados milhões com que se pagam os encargos e os esbanjamentos da lista civil, do funcionalismo público, das loucuras de uma administração tumultuária e imbecil; senão essa que trabalha, porque é ela que suporta os ásperos afazeres dos seringais, da cana-de-açúcar, do café, da mineração, dos criatórios e pastoreiros, das charqueadas e de todos os duros misteres da produção nacional, lá fora nos campos e nos recessos do país, ou nas cidades, nas fábricas e nos mais grosseiros ofícios; essa que trabalha e se bate, porque é também ela que na generalidade enche os quadros do exército e da armada, e, quando chega a hora do perigo, deixa, na frase do poeta, a página da vida dobrada e parte para morrer... Eis por que o estrangeiro, que tem olhos para ver, logo que os lança sobre o nosso tão querido e tão mal dirigido Brasil, é para ter frases como estas verdadeiras, que nos fustigam como flamas: “Tomemos a questão do alto, estudemos o conjunto da população. O estado funcional das gentes brasileiras pode-se resumir numa palavra: o Brasil não tem povo! Dos seus doze milhões de habitantes (hoje serão talvez quinze, o que não altera o raciocínio) um milhão é de índios inúteis ou quase, um milhão é de escravos (hoje os ex-escravos e seus descendentes andam quase inúteis, esparsos nos povoados e raros nas antigas fazendas e engenhos).

Ficam nove milhões (serão talvez agora doze) mais ou menos.

Destes, 500 mil pertencem a famílias proprietárias de escravos; são fazendeiros, advogados, médicos, engenheiros, empregados, administradores, negociantes. Acontece, porém, que o largo espaço compreendido entre a alta classe dirigente e os escravos (agora criados e empregados de toda ordem) por ela utilizados não se acha suficientemente preenchido.

Seis milhões (atualmente mais) de habitantes, pelo menos, nascem, vegetam e morrem sem ter quase servido à sua pátria. No campo serão agregados de fazendas, caipiras, matutos, caboclos; nas cidades serão capangas, capoeiras, ou simplesmente vadios e ébrios.

Capazes todos eles muitas vezes de labores pesados, como os da desbravação das matas e arroteamento das terras, ou da criação de gados, não terão nenhuma idéia da economia nem do trabalho seguido e perseverante. Os mais inteligentes, os mais ativos, dois milhões talvez, serão negociantes, empregados, operários ou criados. Em parte alguma, porém, se encontrarão, nem as massas fortemente organizadas dos livres produtores agrícolas ou industriais, que, nos povos civilizados, são a base da ordem e da riqueza, nem tampouco as massas de eleitores conscientes, sabendo votar e pensar, capazes de imporem aos governos uma direção definida.

É forçoso acrescentar que, com todos esses defeitos e lacunas, trabalham muito mais do que a faustosa elite dirigente, cujos esforços negativos têm sido quase sempre em pura perda do país.

São os agentes da política alimentária, cujas vantagens práticas para a nação são puramente ilusórias. E ainda não está terminada a lista das nossas antinomias, latino-americanas e nomeadamente nacionais. Uma delas, e das mais graves, é que não tivemos nunca, durante quatro séculos, senão revoluções e movimentos políticos, que longe de facilitarem a constituição social do povo, embaraçam-na ao invés consideravelmente.

O começo de falha revolução social, que se devia iniciar com a emancipação dos escravos, foi logo entravado e desviado de seu curso pela revolução política da proclamação da República. O movimento social que devia prosseguir no intuito de criar um povo de pequenos proprietários agrícolas e de trabalhadores livres, todos ligados à terra, já com elementos alienígenas, já com elementos nacionais, remodelando a propriedade territorial, parou de súbito e tudo atordoou-se com inesperada e intensa reviravolta política, que atraiu todas as atenções. Veio à tona, um momento ao menos, o militarismo cercado de abusos. Surgiu de todos os lados o espírito de revolta e desordem.

Reapareceu a velha tendência oligárquica, mais ou menos apagada pela adoção do Império e retomou posição em todos os estados.

Desencadeou-se febrilmente o ânimo de ganância e fortuna fácil ou a loucura do ensilhamento; parou a colonização; surgiram as crises do trabalho e da produção.

Ensilhamentos, revoltas; das quais a de Canudos tão vigorosamente descrita pelo nosso consócio foi apenas um rápido episódio, trouxeram a bancarrota, a moratória, o funding loan, a desordem econômica geral.

E como era preciso que nos iludíssemos, fascinando-nos com vistosas miragens, decretam-se avenidas e bulevardes, multiplicando os empréstimos, avolumando as dívidas a um ponto inacreditável e gravemente perigoso.

O capital estrangeiro, sempre sôfrego por empregar-se, canalizou- se para cá, mas com a segurança de garantias definidas na hipoteca das rendas aduaneiras e, em vários pontos, com agentes seus nas repartições fiscais...

A escravidão foi abolida e com ela a realeza: mas, com as nossas loucuras políticas todas feitas pelas admiráveis classes dirigentes, não curamos de educar as populações no trabalho remunerador e autônomo, não cuidamos de preparar o operariado livre nacional nem da colonização habilmente encaminhada nem da exploração da terra pela indústria magna – a cultura. Chegamos, destarte, à suprema degradação de retrogradar, dando, de novo, um sentido histórico às oligarquias locais e outorgando- lhes nova função política e social, que estão a exercer nos estados com o mais afoito desembaraço; e essa nova função vem a ser a consciência geralmente espalhada da impossibilidade de deitar por terra uma oligarquia sem que se levante outra, porque – ou oligarquia ou anarquia!...

E mais, digo-o com dor, chegamos ao ponto de não poder botar abaixo qualquer um desses governichos criminosos e asfixiadores senão pela traição ou pelo assassinato!

Com estas nefastas preocupações políticas, cujo principal móvel é fazer uma parte da população trabalhar para sustentar a outra, não admira que seja detestável o estado social da nação e peculiarmente instável e embaraçosa sua posição econômica. Não admira que se levantem constantemente clamores de todos os lados. Inteligente, a seu modo, a afanosa elite sonha reformas aptas a calarem os brados das populações e mais aptas ainda a conservá-la na direção dos negócios.

É então que surge o negativo esforço de reformar pelas cimalhas, na vossa frase, Sr. Euclides da Cunha.

No principal, o estado social do povo, que deve ser remodelado por uma educação adequada à vida moderna e pelo aproveitamento hábil da colonização estrangeira e nacional, não se cogita.

Nas suas reformas começam pelo fim. Julgam que com o alargamento de ruas podem resolver os tremendamente inquietadores problemas brasileiros. A nação chegou ao século XX, o século em que se vai resolver o seu destino, inteiramente desapercebida para a luta.

A crise de nossa transformação para o moderno viver, tivemos a infelicidade que viesse a coincidir com o surto assombroso de força e riqueza dos grandes povos progressivos de formação particularista.

Assaz temos já sentido a garra do leão em nossas carnes. As forças vivas da economia do povo estão passando ou já estão quase todas nas mãos deles: o grande comércio bancário, o farto jogo dos câmbios, o alto comércio importador e exportador, as melhores empresas de mineração, de viação, de transportes, de navegação, de obras de toda a casta, acham-se nesse número.

Classes inteiras da antiga mercancia nacional desapareceram na miséria ou debatem-se nos paroxismos de um morrer inglório, como essa dos comissários de café. A curiosa rubiácea, incrível fato!... dá hoje para enriquecer com milhões as casas importadoras do Havre, Hamburgo, Londres, New York e as filiais exportadoras que aqui montaram além dos grandes torradores estrangeiros, e só não chega para enriquecer quem a produz: o fazendeiro nacional, reduzido à miséria com a gravação dos impostos, e o operário assalariado que vence mínimas pagas por seu trabalho.

Só falta que os milionários alienígenas, blindados pelos trustes, se apoderem diretamente das fontes de produção, das fazendas.

Caminhamos para lá, porque esta evolução já está iniciada.

Destarte, claro, não é de reformar pelas cimalhas que havemos mister.

Não estamos no caso de ter academias de luxo, quando o povo não sabe ler; de ter palácios de Monroe, quando a maior parte da gente mora em estalagens e cortiços e as casas de pensão proliferam; de ter avenidas à beira-mar e teatros monumentais, que vão ficar fechados, quando não temos fartas fontes de renda, quando a miséria é geral e quase todas as cidades e todas as vilas do Brasil são verdadeiras taperas; de ter cá a reunião do Congresso Pan-Americano para dar-lhe, como ilustração, as trucidações de Mato Grosso e o assassinato de deputados e senadores em pleno dia, nos desregramentos duma política feroz! Não estamos no caso de contrair empréstimos loucamente avultados e ruinosos para os aplicar em obras suntuárias, quando os serviços mais simples estão por organizar por todo o país; quando temos enorme déficit, não falo do orçamentário, o déficit da União, dos Estados, das Municipalidades, falo do déficit do povo, aquele que os economistas chamam déficit de subsistências, porque possuindo o país talvez mais fértil do mundo, precisamos comprar fora a maior parte das coisas indispensáveis à vida... É dizer tudo!...

Os governos, os chefes políticos, os diretores dos partidos, os grandes, os poderosos, todos os que formam essa classe dirigente, que nada dirige, não têm querido cumprir o seu mais elementar dever para com as populações nacionais, inquirindo de seus inquietantes males, de suas mais urgentes necessidades.

A literatura não o tem também cumprido, estudando-as, dizendo- lhes a verdade, educando-as, estimulando-as, corrigindo-as...

Entretanto, é urgentíssimo que nos aparelhemos.

A situação é esta: O grande proprietário e produtor de toda a ordem das roças perdeu o escravo, nervo do trabalho, e, não sendo possível reduzir o colono estrangeiro nos pontos onde ele existe, à condição do antigo trabalhador, não tem tido a plasticidade exigida para a transformação imposta pelo novo estado social.

E como não tem capacidade por si para o trabalho nem a encontra ampla na população rural ambiente, nem lhe ocorre dividir os enormes latifúndios e tentar a criação da pequena exploração agrícola, deblatera-se e decai.

Perdeu o Brasil o quase monopólio do açúcar, do ouro, dos brilhantes, está muito abalado no café, e, pelo sistema seguido no Amazonas, não admira que venha a ficar abalado também no da borracha, e que fará ele?

Isto nos seus eminentes e culminantes ramos econômicos, nas suas mais pingues fontes de riqueza.

O grosso da população é paupérrimo e desarticulado.

Nos campos, nas roças, nos sertões, no interior, produz mas produz pouco e sem sistema; nas vilas e cidades, quase nada produz em pequenos e mal organizados ofícios e, um pouco mais, nas modernas fábricas instaladas em vários pontos, onde o operariado geme, porém, nas garras dum capitalismo que se poderia chamar quebrado porque nós não temos grandes fortunas, fartas somas acumuladas.

Releva, porém, ponderar que esse operariado nacional, de tempos a esta parte, anda fortemente transviado por maléficos elementos estrangeiros e de vez em quando põe em cerco o quebrado capitalismo da terra.

É mais uma singular anomalia brasileira a dupla corrente contraditória de imigrantes, que hodiernamente demandam com mais freqüência as nossas plagas: frades e anarquistas.

Já nos têm feito passar amargos momentos e ainda piores farão passar em futuro próximo, se não tomarmos as precisas precauções.

Dos dois curiosos bandos de frades e anarquistas, expulsos de toda a parte e aceitos de braços abertos pelos nossos imprevidentíssimos governos, resultam duas extravagâncias que campeiam aí a olhos vistos: o aumento do fanatismo e da superstição, sob todas as formas, de um lado, e é a obra dos frades, e andarmos quase diariamente a ter as greves, antes de termos as indústrias, por outro lado, e é a obra dos anarquistas.

Um funcionamento incontável vai se encarregando de encher o vácuo. É o caso de concluir convosco, Sr. Dr. Euclides da Cunha: ou nos transformamos pela base ou sucumbiremos: Vós vos referistes aos esquecidos e desavisados sertanejos de entre o Itapicuru da Bahia e o Parnaíba do Piauí.

Não vejo motivo para essa seleção da morte, essa escolha dos que vão desaparecer! Desapareceremos todos, porque sofremos fundamentalmente dos mesmos vícios e defeitos.

Mas há alguma coisa a tentar para resistir.

Olhemos para o Japão: transformemo-nos como ele.

Nesta ordem de assuntos, dizia-me, não há muito, um inteligente viajante estrangeiro: “Vós brasileiros entrastes agora numa grande febre de melhoramentos nesta cidade e creio que noutras pelo país afora.”

– Sim, é fato.

Mas, obtemperou ele, tendes tido idéia de iniciar a colonização e povoamentos das admiráveis terras do Rio Branco, reserva providente, que será a única base que tereis para manter a posse do vale amazônico? Não.

Tendes tido o cuidado de sistematizar os trabalhos dos seringais, vedando o estrago das plantas, e, principalmente, tendes procurado prender ali, em pontos vários, a população ao solo pela agricultura e indústria estáveis? Não.

Tendes providenciado para que renasça nas vossas extensíssimas zonas pastoris do Norte até as fronteiras do Rio Grande, a grande indústria da criação em todas as suas múltiplas variedades? Não.

Tendes com o sistema das barragens romanas, corrigido as condições dos solos de vosso país na famosa região das secas? Não.

Haveis cogitado do renascimento da indústria do açúcar, fonte outrora de vossa riqueza e que, por cuidados especiais, pode levar de vencida a beterraba, atenta à superioridade incalculável da cana? Não.

E o da magnífica indústria da mineração noutro tempo tão florescente? Não.

E haveis, sem dúvida, já vos preocupado com o florescimento das culturas do algodão brasileiro, que não tem superior no mundo, e peculiarmente com o tabaco, que rivaliza com o de Cuba? Não.

Com certeza, porém, tendes atendido, com peculiar carinho, a produção dos cereais nas regiões aptas do norte e do sul, para que não andeis a comprar fora os meios de subsistência? Não.

Sem a menor dúvida, andais preocupados com os meios práticos do povoamento da terra, aproveitando o que se pode chamar a colonização nacional, atraindo para o trabalho rural as populações desterradas, esses esforçados cearenses, por exemplo, fazendo-lhes concessões, dando-lhes terras, meios de trabalho? Não.

Haveis, em compensação, envidado hercúleos esforços para a difusão dos colonos estrangeiros para todas as boas zonas brasileiras, no intuito de irdes reforçando as gentes existentes? Não.

E, nomeadamente, estais preparando a assimilação dos núcleos germânicos que subsistem em terras vossas? Não.

Mas não vos deve ter escapado a necessidade urgentíssima de articular o País com vias férreas de norte a sul e de leste a oeste, vias férreas que levam sempre consigo o povoamento da terra, não falando já nas estradas vicinais? Não.

Afinal, porém, haveis acabado com os velhos abusos, com a famosa moleza meridional, estais por uma educação rija, segura, forte, enérgica, adequada, transformando o caráter nacional e preparando-o pela disposição de coragem, espírito de progresso, de atividade, de iniciativa, de ardor pelo trabalho produtivo, para dispersar os hábitos comunitários, a tutela do Estado e outros achaques latinos que têm sido a praga de nossas gentes? Não.

Então, meu caro senhor, não tendes feito nada!...

Tendes sido apenas o joguete do capital estrangeiro, ávido por emprego e bom juro, e de certas corporações ou indivíduos postos por ele a seu serviço e que precisavam de apanhar grossas somas numa espécie de novo encilhamento.

Não consta em todo o correr da história de mais de dez mil anos, que alargamentos de ruas e aberturas de avenidas numa cidade qualquer, mero luxo a que as nações se entregam quando, cansadas da riqueza, entram a caducar, tivessem sido meio de solver os fundos males sociais, as gravíssimas inquietações de um povo! Despediu-se e deixou-me triste.

Tinha-se desmoronado a meus olhos o prestígio da Avenida Beira-mar, por onde eu já andava a ver desfilar todo o Brasil glorioso e próspero, dando leis ao mundo...

E mais ainda, essa fantástica raridade do Canal do Mangue, que devia ofuscar todas as Venezas existentes e por existir...1 E, todavia, o programa esboçado a correr meia dúzia de palavras por meu interlocutor estrangeiro é o que temos a fazer, especialmente na sua última parte.

Senão, cairemos na vossa alternativa, Sr. Dr. Euclides da Cunha. O Brasil progredirá, é certo, porque ele tem de ser arrastado 1 Em relação aos tão gabados melhoramentos do Rio de Janeiro, à famosa obra do tumultuário e despótico Dr. Passos, meu interlocutor usou destas frases que eu não quis reproduzir no texto do discurso: – Mesmo pelo que toca a esta cidade, ouso perguntar-vos: pensou-se em expungi-los dos terríveis cortiços e estalagens que a enchem e afetam pestilencialmente quase por todos os lados? Não.

Pensou-se em tirar de seu centro tantas cocheiras e estábulos, e de seus arrabaldes tantos capinzais que a deturpam e corrompem-lhe o ar? Não.

Cuidou-se de retificar e canalizar os lôbregos e nojentos riachos que a danificam, do Rio Comprido, da Joana, do Trapicheiro, da Banana Podre, Maracanã e outros que a inundam na época das chuvas? Não.

Elevaram o solo de zonas inteiras urbanas no intuito de impedir essas desastrosas inundações? Não.

Tratou-se de melhorar o sistema de esgotos, o abastecimento d’água, a não ser no papel? Não.

Então, mesmo por esse lado, quase nada tendes feito, a não ser obra para inglês ver, segundo vossa característica expressão.

E é verdade, em que pese aos basbaques de encomenda, que fazem o ofício de elogiar a todo transe, à troca de dinheiro ou de empregos...

pela enorme reserva de força, poder e riqueza que está nas mãos das três ou quatro grandes nações que se acham à frente do imperialismo moderno. Progredirá quase exclusivamente com os braços, os capitais, os esforços, idéias, as iniciativas, as audácias, as criações dos estrangeiros, já que não queremos ou não podemos entrar diretamente na faina, ocupando o primeiro lugar como colaboradores.

Progredirá, certo; porque, afeiçoado o país pouco a pouco a seu jeito, eles de posse das grandes forças produtoras, de todas as fontes de riquezas, virão chegando oportunamente e tomando posição seleta entre os habitantes da terra, e, se não estivermos aparelhados, apercebidos, couraçados por todos os recursos da energia do caráter para a concorrência, iremos nós os latino-americanos, insensivelmente e fatalmente, para o segundo plano...

Assistiremos, como ilotas, o banquetear dos poderosos: ficaremos, os da elite de hoje, na mesma posição a que temos condenado, mais ou menos em geral, os africanos e índios e seus descendentes mais próximos, que trabalham para nós...

Triste vingança da História!

E sabe Deus a mágoa com que o digo...

Portanto, excelsior, excelsior...Sursum corda!

Trabalhemos, eduquemo-nos, reformemo-nos para viver...

(Dezembro de 1906).

 

6 – O BRASIL NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX (1910-1911)*

I

O caso é para estudo e não para vitupério

Escrevo sob a impressão do bombardeio da ilha das Cobras.

Estamos aos 14 de dezembro do ano da graça de 1910. Nada seria mais fácil do que indagar dos principais culpados do estado horroroso a que chegaram as causas políticas no Brasil e descansar sobre eles os golpes irritados da crítica. Nada seria mais fácil... Não o farei, entretanto.

Coitados!

Títeres aos impulsos das forças latentes que dirigem os grupos sociais, julgam-se senhores e guias dos acontecimentos, quando não passam de servos submissos das tendências das massas, das correntes preponderantes no momento histórico...

No seu terrível alheamento da ciência social, os Pinheiros Machados e outros truculentos caudilhos, chefes dos clãs em que anda dividida a gentalha politicante do país, arrumadores de negócios, que vivem de manipular nossa política alimentária, todos eles expoentes da desorientação intrínseca que nos devora, na sua surdez aos ensinamentos das sãs doutrinas, julgam-se chefes de diretores desta pobre terra e deste desventurado povo!

E são-no inconscientemente de fato; mas por modo diverso do que pensam.

Na sua ingênua ignorância, as massas, por outro lado, procuram sempre uma cabeça de turco, uma espécie de bode expiatório, a quem culpem de todas as suas desgraças.

Cada período histórico tem, neste sentido, suas vítimas prediletas.

As grandes perturbações, os graves abalos, oriundos de vícios profundos da índole da raça e do travamento da vida social, são sempre atribuídos aos Pinheiros Machados do tempo.

Foi assim no regímen colonial, nos dias do Primeiro Reinado, nos anos da Regência, na fase, a tantos respeitos memoráveis, do governo de D. Pedro II.

É assim ainda hoje e sê-lo-á por todo o sempre, enquanto por seguros meios de seleção sociológica, de educação moral e, até certo ponto, de instrução científica, devidamente generalizados, se não modificar – para melhor – a índole, o caráter intrínseco de nossas gentes.

Já por diversas vezes tenho chamado a atenção para este fato de fundamental alcance no estudo de nossos destemperos políticos, no intuito de mostrar onde se encontrava a verdadeira raiz do mal.

E como não escrevo pelo gosto de escrever, senão com o sentido prático de ser útil à minha pátria, espalhando idéias que se me antolham de alcance positivo, não trepido em repetir aqui palavras proferidas em 1904 e que ainda agora têm completa atualidade.

É um fato positivo, claro, evidentíssimo, por todos reconhecido e proclamado, que as três classes que têm mais de perto dirigido a vida mental e pública do povo brasileiro – os políticos, os jornalistas e os literatos, levaram-na a um tal grau de confusão, pessimismo e desânimo, que nem eles mesmos tomam mais pé no meio dos desatinos que acumularam[8].

Só se ouvem pragas e esconjuros; apontam-se panacéias capazes de curar as fundas chagas da nação; surgem de todos os lados profetas e guias, com suas bandeirolas de improvisados estadistas e salvadores de povos.

Nunca se viu tanta desordem forrada de tanta filáucia.

Causas financeiras e políticas, estas incomparavelmente mais amiúde, são invocadas para a explicação dos nossos males, que avultam cada vez mais.

O câmbio, a hiperprodução do café, as especulações dos bancos estrangeiros, a queda da Monarquia, o militarismo, o regímen presidencial, os despotismos oligárquicos dos estados, os gastos supérfluos dos governos, os desfalques nas repartições públicas, a pluralidade das magistraturas, os impostos interestaduais, a falsidade das eleições, os defeituosos programas e métodos do ensino público, a falta de confiança em o novo regímen, a revolta da Armada, a do Rio Grande, a de Canudos... todas estas coisas, e outras muitas, têm sido invocadas como causas de nossos males.

Mas é evidente, para quem sabe enxergar, que não passam de sintomas e efeitos de uma causa superior que se não tem querido ver ou se não tem tido a precisa coragem para assinalar ao povo, ao seu governo, às suas classes dirigentes, para que mudem de rumo e tratem resolutamente, se for possível, de arrancar as raízes do mal.

Se a lista das falsas causas é enorme, a dos falsos remédios não é menor.

Bolsa do café ou monopólio das vendas pelo estado, criação de bancos de crédito agrícola, supressão dos impostos interestaduais, unificação da magistratura, reforma do ensino, reforma da Constituição Federal (aqui variam imensamente as opiniões acerca das bases a propor), restauração da monarquia e até a ditadura militar, reclamada em altas vozes das colunas de vários jornais e até da tribuna do Congresso Federal... todas estas coisas têm sido simultânea ou sucessivamente invocadas como antídoto à enfermidade que nos devora.

Houve até político, literato, jornalista, tido na conta de grande sabedor, que, com todo o desembaraço, nos aconselhou a renúncia da independência e a submissão ao protetorado dos Estados Unidos...

Tão profunda é a incapacidade desses levianos diretores da opinião brasileira!

Entretanto, se algumas dessas medidas são razoáveis, não passam todas elas de paliativos mais ou menos ineficazes para solver as dificuldades do presente e preparar o caminho do futuro.

Algumas são manifestos erros, passos em falso por estreitos atalhos.

Urge enfrentar a situação nacional como ela é, em si mesma, no seu caráter, na sua índole, na sua estrutura interna, na substância íntima de seu ser, na trama fundamental da sua organização, nos seus elementos formativos, na essência intrínseca que a constitui.

Quem o fizer terá a plena vidência da raiz de todos os sofismas, de todos os enganos, de todos os ilusórios engodos, de todos os cálculos falhos, de todas as decepções amargas que aí andam a encher d’alto a baixo a história brasileira, nomeadamente a do século próximo findo e começos do atual.

Esse é o ponto a esclarecer, o estudo que deve ser feito.

Dessa falha inicial, do desconhecimento da índole exata de nosso povo, originam-se nele, especialmente na classe que se diz dirigente e nada de fato dirige, as seguintes conseqüências, fontes de grandes males e de cruéis desenganos para a Nação inteira: 1ª não se ver a antinomia profunda entre o estado real do país, quase todo ainda inculto e mergulhado no maior atraso, e o tempo presente, época do carvão de pedra, do vapor, da eletricidade, da grande agricultura, da grande indústria, da concorrência universal, da grande oficina de trabalho e produção mecânica por aparelhos de todo gênero; época de vertiginoso movimento que não espera pelos retardatários; – 2ª não se reparar em a não menor antinomia que lavra entre o povo quase inteiro e uma pequena elite de intelectuais, como eles próprios se apelidam, cheios de todas as vacuidades, de todas as fumaças e pretensões de grandeza, que a semicultura sói sempre inspirar; – 3ª não se levar em conta a ainda menos iniludível antinomia existente entre essa mesma elite de nossos diretores, políticos, jornalistas e literatos, e os seus colegas entre os povos verdadeiramente cultos; por que estes tais são realmente a floração de velhas e aperfeiçoadas civilizações e os nossos não passam de superfetações, de arremedos do estrangeiro, sem base séria no meio que os cerca; – 4ª a ilusão, oriunda das três falhas notadas, de possuirmos as mesmas qualidades, os mesmos predicados dos povos que supomos poder imitar e que, para os igualar ou sobrepujar, não é mais preciso que copiar-lhes as leis, as constituições, os planos de governo e está tudo feito; – 5ª o amargo pessi- mismo, a turbulenta gritaria de que se apoderam todos, quando, falhos os seus cálculos, e não poderiam deixar de falhar, vêem que não adiantaram um passo e a desordem moral é cada vez maior; – 6ª finalmente, a pior conseqüência de tudo isto, a teima de julgar política, e sanável por meios políticos, uma questão orgânica, étnica, de psicologia popular, uma questão profundamente, essencialmente, unicamente da estrutura social do povo.

É desmontando, em todas as peças, a sociedade brasileira que se há de achar a chave do enigma: a razão por que a nação marca passo num eterno messianismo que se não realiza; o motivo por que as panacéias dos políticos de nada valem, senão para aumentar a confusão.

Não são de hoje as duras desilusões do nosso povo, após o fracasso das promessas fantásticas de quantos o têm dirigido ou explorado sem ensinar-lhe o caminho da própria regeneração.

Todos os planos sonhados pelos que hão tido nas mãos os seus destinos, uns úteis, outros de valor contestável, têm sido levados a efeito sem que a era das venturas prometidas se tenha traduzido em realidade.

O país tem avançado no andar de cágado, pela força do tempo, das coisas, das circunstâncias e por um pouco de boas qualidades que repousam no fundo das camadas populares, raramente por impulso emitido por seus chefes. É que estes, até nas medidas mais acertadas, andam quase sempre às cegas.

A presunção os traz iludidos.

Não é inútil lembrar aqui alguns dos mais famosos passos do que se poderia chamar o grande processo de desilusão que vem desabusando as gentes brasileiras desde os fins do século XVIII. Por eles se verá que até algumas reformas sociais e econômicas não produziram os resultados prometidos, por causa do predomínio que em tudo quanto é nosso tem sempre exercido a política, melhor fora dizer a politiquice, da pior qualidade.

“O que nos falta”, dizia-se nos fins do século aludido, “é revogar as leis que nos fecharam as fábricas de tecidos e obras de metal.”

O desideratum cumpriu-se e tais indústrias não prosperavam!...

“O que nos vai salvar”, disse-se nos primeiros anos do século XIX, “é a abertura dos nossos portos aos navios de todas as nações.”

O desejo cumpriu-se e ainda hoje não temos marinha mercante de longo curso, nem quase a de cabotagem; não possuímos um comércio nosso, nacional, não passando o país, sob tal aspecto, de uma feitoria estrangeira, na qual um dos problemas mais difíceis (tenho disto duras provas) é empregar um rapaz brasileiro... “Não, tudo isto é secundário; o que é mister fazer é a independência política do país”, proclamou-se na década seguinte.

A independência fez-se; aqui a desilusão começou logo no ano imediato.

Os agitadores de profissão sonhavam com farta mesa à custa do orçamento.

Grupos inteiros, verdadeiros clãs políticos se preparavam para viver à sopa dos orçamentos municipais, provinciais, ou gerais.

Era dificílimo achar lugar para tanta gente.

A indústria política cresceu a olhos vistos, o funcionalismo triplicou; era, porém, impossível contentar a todos, apesar da espoliação em larga escala feita, no interior das províncias, das fortunas dos reinóis.

A bancarrota das ilusões foi geral. “Mas sabemos onde está a raiz dos males”, bradava o troço de patrioteiros do tempo, “é no imperador que não é de cá – Urge pô-lo fora”...

E a coisa foi por diante. Pedro I demandou as plagas do seu país natal e deixou-nos, pode-se dizer, entregues a nós mesmos.

Abre-se o famoso período regencial, de que se pode dizer algum bem, atendendo ao quase milagre histórico, devido a raros homens meritórios, de termos escapado a tantas loucuras, sempre renascentes, neste período de nove anos.

O que então se passou, o que se praticou em todo o país no decurso de trinta e tantas revoltas não anda escrito; nem o será jamais.

É preciso ter propositalmente conversado com homens sisudos de todas as províncias, testemunhas diretas dos fatos, como ainda se encontravam entre 1860 e 70, para se ter idéia, mais ou menos adequada, do que foi a quadra distendida de 1830 a 40 e anos próximos.

Não podia, assim, ser mais esmagadora a decepção.

Não parou ela, antes cresceu, com as descentralizações do Ato Adicional; nem cessou com a reação de 1837-40.

O atropelo causado pelas facções, o parco prestígio dos chefes de bando mais em evidência, o desengano de todos na própria força – levarem-nos a pedir um rei, um monarca, um ditador na pessoa dum menino de 14 anos!

Sempre a politicagem, curando de complexos interesses sociais que escapam ao grosseiro empirismo dos mais hábeis e às malversações dos menos escrupulosos...

O novo reinado não foi mais feliz, nem no seu período do arrocho que se estendeu até 1857-8; nem nas fases liberalizantes posteriores; não foi mais feliz, nem podia sê-lo, na tarefa impossível de solver graves questões íntimas, da essência mesma, da constituição social do povo, com récipes políticos de terceira ou quarta ordem, sem atender a tendências ingênitas nacionais que cumpria corrigir pela prolongada ação educativa, grandemente difícil aliás.

Reformas sobre reformas de vários abusos e achaques políticos foram tentadas e levadas a efeito em quase todas as ordens dos serviços públicos, ensino, eleições, magistratura, regímen judiciário, etc. O resultado negativo de todas elas, como cópias servis de instituições estrangeiras metidas no reativo dissolvente do caráter brasileiro, não se fazia muito esperar e cada vez mais se avolumava a descrença nacional. Ninguém compreendia como era que um dos povos mais eminentes, mais cheios de altas qualidades, de prestimosos predicados, segundo a crença geral ainda hoje muito corrente, de posse, além disso, do país mais rico e mais fértil de todo o Planeta, consoante ainda com a crença geral, andava mergulhado em tamanha pobreza, em tal atraso, que até o mais ossificado otimismo não ousava contestar... Como sói acontecer em casos tais e entre gentes de tal índole, não poderia existir senão um culpado: o governo; e nele acima de todos o Imperador, com o seu poder pessoal incontrastável e o seu terrível sistema de corromper os caracteres...

Políticos, literatos e jornalistas, durante cinqüenta anos, não tiveram outra linguagem, não se pejaram de repetir essa frioleira, esse pleonasmo demagógico dos ineptos gritadores de todos os tempos.

Sempre o processo simplista de arranjar um bode expiatório para os erros e fraquezas de uma nação inteira...

Afinal, quase todos acordaram em atribuir à existência da escravidão nas plagas brasílicas os desastres gerais de todo o nosso viver.

O Imperador foi dos mais solícitos em dar ouvidos a esses rumores e em ajudar a extirpar do seio da nação o cancro secular que a corroía, na frase dos declamadores da época.

Coincidia a abolição total da escravidão com a crise do açúcar, principal fonte da riqueza de todo o norte do país, desde o Espírito Santo até o Maranhão, batido na concorrência do mercado do mundo pelo assombroso desenvolvimento da produção da beterraba.

O desbarato da velha açucarocracia do norte do Brasil, fenômeno singularmente curioso e de extraordinário alcance para toda a população daquela extensíssima zona, não tem sido devidamente estudado, porque, entre nós, a arrogante filáucia dos politiqueiros não deixa margem alguma para coisas sérias. Vociferações, tendentes todas a aplainar os seus arranjos, é quase tudo o que se lhes ouve.

O aludido desbarato, sobre o qual se há de tornar nestas páginas, foi ainda mais intenso do que o da aristocracia agrícola dos estados do Sul da União americana, após a Guerra da Secessão.

O abalo produzido pelo fechamento de quase todos os mercados europeus, devido à causa citada, ainda mais agravado se tornou com a supressão repentina dos braços em lavoura tão dura e áspera, como é essa, predominante na região referida.

A decadência ressalta de toda parte.

Acafeocracia do Sul tinha de passar por quase iguais perturbações.

Achou, é certo, um quase sucedâneo do escravo no colono; mas essa situação nova estava e está muito longe de se equiparar à primitiva.

Despesas extraordinárias, dificuldades práticas, criadas pelo novo operariado agrícola, levaram e estão levando à liquidação crescido número de fazendas; o número das famílias prósperas da aristocracia cafeeira do Sul viu-se grandemente reduzido.

Quase igual à decadência dos senhores de engenho nortistas, principalmente nos estados de Minas e Rio de Janeiro.

É evidente que a abolição do cativeiro não poderia aparecer, depois de tais provanças, a esses que se supunham vítimas dessa medida, senão como um ato maléfico, um fito prejudicial.

Foi mais um elo na cadeia das desilusões nacionais. Naturalmente a culpa de tantos contratempos estava principalmente nas instituições políticas: na monarquia.

Era mister, era urgente pô-la abaixo.

Dito e feito; porque nestes povos, nos quais a classe agitadora, que vive principalmente do estado, sob todas as formas imagináveis, é numerosíssima e medra na razão da intensidade das perturbações políticas, basta interessar-se por uma questão, para que esta triunfe.

Politicões e literateiros, troço que dirige as avançadas da imprensa, levantam tal berreiro que o grosso do povo, alheio a quase tudo que mais o devia intimamente interessar, cede, sem saber mesmo do que se trata.

A nação tinha adormecido monárquica e na bela manhã de 15 de novembro de 1889 acordou republicana. Era muito rápido para ser sério, era único em todo o mundo para não inspirar desconfianças ao observador imparcial dos fatos sociais.

A bestialização, na frase gráfica do mais sincero republicano do dia, porque tinha a sinceridade da loucura, a bestialização foi geral.

Ninguém se moveu, ninguém lutou, ninguém se bateu por uma instituição que era a irmã gêmea de nossa independência, que tinha tantos anos de vida, quantos temos nós de povo livre. Setenta anos de regímen autônomo, em quatrocentos quase de tutela desde os primeiros passos que demos no caminho de destino que conduz os povos, desfizeram- se, como a névoa rápida nas manhãs estivais, ou a leve poeira cedo apagada de sob os pés do viandante ignorado do sertão...

Um tal fenômeno, singularmente estranho aos olhos do historiador, demanda, para o explicar, ou um povo em tão alto grau de cultura que conscientemente resolva, com segurança, acerto e firmeza, os mais complicados problemas de seu viver; ou uma multidão quase amorfa, sem um caráter firme, intransigente, definido, dos que não tercem à mercê dos caprichos dos especuladores, uma espécie daquele povo rebanho sem aprisco e sem pastor, de que falava o poeta, fácil de ser guiado, ilu- dido pelos grupos de politicões que o devoram. Conta-se – e Deus queira que não tenha sido verdade – que, quando foi de 15 de novembro de 1889, um oficial chileno, do navio de guerra daquela nação surto naquela data no porto do Rio de Janeiro, dissera, ao assistir à indiferença da população diante do que se passava e da facilidade com que se depusera a monarquia: não é ainda um povo...

Palavras duras, que encerram mais verdade do que a interessada cegueira dos vivedores da política alimentícia mantida no Brasil pode parecer.

Como quer que seja, a república é agora e por enquanto a última ilusão do povo brasileiro. Sua constituição espúria, copiada servilmente da constituição dos Estados Unidos, erro que nos tem custado caro; sua loucura financeira por ocasião do famoso encilhamento; suas revoltas da armada, do Rio Grande, de Canudos, e outras e outras acarretando tremendas despesas ao Tesouro, e dando lugar às mais repugnantes cenas de cruel ferocidade; seus câmbios sempre baixos, revelando a extraordinária depreciação da moeda; sua bancarrota, que trouxe a moratória do funding loan; seus pesadíssimos impostos de todo o gênero a vexarem o povo; o despotismo das oligarquias estaduais, oprimindo todas as classes; a desorganização de todos os serviços administrativos; as roubalheiras nas repartições fiscais, denunciadas quase diariamente pela imprensa; todas estas chagas visíveis a olhos nus, que andam a afear o corpo da república, têm levantado um tão formidável coro de imprecações, como se não tinha ainda ouvido outro igual em toda a existência da nação.

Por cima de tudo isto – a queda completa do crédito agrícola, o retraimento do capital, a desordem econômica de todas as classes, agravada na dos agricultores do café – pela hiperprodução e subseqüente baixa dos preços desse principal ramo de nossa exportação, tem levado o país às bordas do desespero.

As maldições ecoam por todos os lados, e, para agravar mais a aflição geral, as populações de cinco estados do Norte, ainda há pouco morriam à mingua, ou expatriavam-se, acossadas por uma das mais terríveis secas que em quatro séculos têm açoitado aquela desventurada zona.[9]

Grita-se, por isso, agora, por socorro de todas as bandas e em todos os tons; levantam-se planos; procuram-se remédios; buscam-se soluções para os graves problemas que nos ameaçam tragar.

Na ossificada teima de supor uma simples e passageira crise política, que nos está a afligir, esse estado crônico de agitação da alma brasileira, os politicões que nos dirigem andam, em ebulição intensa, a ofertar à nação as costumadas drogas que lhe dão sempre a ingerir.

A restauração monárquica é a solução de alguns; a revisão da Constituição é a receita de outros.

E como se me antolha evidente não ser político o problema brasileiro da atualidade, julgo de todo desastrada a aventura da restauração, que virá perturbar ainda mais o nosso detestável estado geral.

A monarquia, como forma autoritária, leva certas vantagens na direção dos povos mal constituídos organicamente; mas é preciso, mesmo entre eles, que ela encontre certas bases que de todo nos faltam.

A reforma da constituição pode e deve ser feita no sentido especial de restabelecer a unidade do país tornar possível a série de medidas sociais, capazes de trazer, não a cura dos nossos males, porque vários deles são incuráveis, mas sim a extirpação de alguns e a melhora de outros.

Eis ali. Não basta entre nós culpar Pinheiro Machado, o mais antipatizado hoje, o mais detestável politicão, por certo, que o Brasil tem tido o infortúnio de contar, não basta malsinar esse José Luciano de Castro nacional, para que tudo esteja feito.

Não basta desfiar as tragicômicas cataduras dos chefões do Senado, não falando já nas diabólicas figuras dos régulos oligarcas que asfixiam os estados, para que se tenham dado mate à dor do povo.

É o mesmo processo simplório dos que em Portugal vivem agora a encontrar a fórmula explicativa dos erros da monarquia e dos desastres políticos, ali ocorridos nas reações de João Franco e nas raposices do aludido José Luciano.

A coisa é muito mais séria; demanda estudo; requer diuturna e dilatada ação de enérgicos fatores, para ser debelada, tanto lá como cá.

II

De Diogo Feijó a Pinheiro Machado

Passamos nos últimos vinte dias por uma das crises mais indignas e aviltantes de nosso existir de nacionalidade.[10] Foi ela, além de singularmente perigosa para a paz pública, o mais eloquënte atestado que se pudera imaginar de quão falazes são os grosseiríssimos expedientes do indecoroso empirismo governativo que tem sido a prática geral dos apregoados chefes, diretores da nossa política.

Quando todos descansavam confiantes nas inauditas prosperidades e fabulosos progressos de nossas riquezas, de nossos inigualáveis avanços econômicos, políticos, intelectuais e morais, apregoados pelas mil trompas da mentira oficial, convenientemente montadas no país e no estrangeiro, desde as magicaturas, mais ou menos engenhosas, dos reinados de Rodrigues Alves e Afonso Pena, até esse primor de sistematização da sem-vergonhice governativa, que se poderá chamar o procopismo dentuça que aviltou o desventurado Brasil por perto de dois anos, quando toda a gente, contaminada dessa megalomania, que é hoje uma das características mais perigosas do brasileiro, dormitava nas doçuras do melhor dos mundos possíveis, eis que de repente as guarnições das mais possantes máquinas de guerra do mundo, consoante com o nosso falar de incuráveis gabarolas, se revoltam, trucidam oficiais, dão disparos contra a cidade, fazem exigências e ameaçam o governo de um bombardeio em regra...

Aqui é que se patenteia a completa nudez dos que nos dirigem, a absoluta fragilidade da engrenagem com que nos andam a corromper e iludir.

Tomados de inaudito pânico, perdem a cabeça e entram a implorar aos rebeldes que, além de atendidos nas suas reclamações, lhes aceitem a anistia, votada no Senado no dia seguinte ao do levante, com aprovação unânime.

Já no dia anterior, o mesmo da revolta (23 de novembro), e nesse da anistia do Senado (24) tinha o Sr. Pinheiro Machado, como se fora ele o Presidente da República, por loucamente se considerar árbitro supremo de nossos destinos, como senhor irrecusável desta sua fazenda, tinha aos rebeldes deputado um emissário para apresentar e garantir as promessas que entendera mandar fazer em nome de todos...

A 25 passava na Câmara e era sancionado o ato anistiatório!

Nunca se tinha visto tanta azáfama em aviltar um povo.

E tudo isto no meio de condenações daninhas aos oficiais da Armada que não tinham sido bastante paternais em tratar a pobre marinhagem, levada à chibata...

A cousa ecoou desastradamente no mundo inteiro.

Apareceram então mal encobertos sinais de arrependimento e por isto procurou-se acobertá-lo com fato, que se dizia idêntico, acontecido na esquadra inglesa em 1797.

Tal fato, porém, aliás desconhecido na ocasião da votação da anistia, longe de a justificar, estava pedindo procedimento inverso.

Rui Barbosa que, no momento da angústia, tinha, ele o chefe da oposição, posto generosamente seu talento e seu prestígio em prol do Executivo apavorado; ele, que dera um sentido aos trôpegos desejos da maioria, teve – mais tarde quando notou o mal disfarçado arrependimento daqueles que haviam solicitado o seu apoio – de justificar o passo mais ou menos renegado pelos pretensos chefes.

Com todo acatamento me separo de sua opinião.

A maruja inglesa, note-se bem, tinha feito primeiramente em honestas comunicações anônimas saber ao seu Almirante a justiça de lhe serem aumentados os soldos.

Depois o fizera por duas petições em regra ao Almirantado e à Câmara dos Comuns.

“Ambas eram”, reza o documento entre nós divulgado, “redigidas com a maior propriedade e acatamento na linguagem.”

Não é só: a maruja não tomou armas e não se atreveu a tocar sequer e muito menos a trucidar um só oficial da Armada; apenas se recusou a levantar ferro, enquanto lhe não deferissem as petições.

Por isso acrescenta o documento: “Bem que inibido de se fazer ao mar, o Almirante manteve o comando da esquadra a todos os outros respeitos; continuou-se a guardar a mais estreita disciplina, e os delegados da maruja expediram as ordens mais severas de respeito aos oficiais, cominando rigorosa punição aos infratores.”

Compare-se este proceder com um levante armado em que, desenfreada, a marinhagem inopinadamente agride e mata seu comandante e vários oficiais, sem antes, por forma alguma, ter formulado a mais leve queixa e levado ao conhecimento dos poderes competentes qualquer pretensão.

Isto da parte da marinhagem.

Quanto ao aperto do governo, as condições em 1797 na Inglaterra eram absolutamente muito mais críticas do que entre nós aos 23 e 24 novembro de 1910.

O governo não estava ali em período de completa paz; estava, ao invés, a braços com formidável guerra estrangeira, que o forçava a ser prudente e a condescender.

Ali, era toda a esquadra da Mancha e do Canal que lhe dirigia reclamação justíssima, digna de ser atendida, tanto mais quanto as forças navais coligadas da França, Holanda e Espanha estavam na vizinhança e, à menor suspeita de desavenças na frota inglesa, não tardariam a cair sobre ela.

Ali, a maruja não pediu anistia, ditando a lei ao proceder jurídico do Governo e do Parlamento.

Os poderes do estado é que, de moto proprio, lhe concederam o perdão, reconhecendo a culpa e relevando-a. Cá não: tomaram os amotinados as armas, agrediram e trucidaram oficiais, forçando outros a fugir a nado, acenderam fogos em atitude ameaçadora de bombardeio à cidade, e deram-se depois ao luxo de dirigir radiogramas ao chefe da nação, reclamando a redução dos serviços, a abolição da chibata e o prévio perdão para o delito que mostravam reconhecer.

A gente do Congresso e da governança é que entendeu transformar o perdão no ato político da anistia, como se não foram crimes comuns, agravados pela condição militar, dos assassinatos do comandante capitão-de-mar-e-guerra João Batista das Neves, dos capitães- tenentes Mário Carlos Lameyer e José Cláudio da Silva Júnior, dos primeiros-tenentes Américo Sales de Carvalho e Mário Alves de Sousa e os graves ferimentos do tenente Álvaro Alberto da Silva...

Como se não foram crimes os constantes disparos sobre a cidade, causando mortes e ferimentos por todos os lados.

Tudo estava a indicar que algumas centenas de marinheiros boçais, quase todos negros, sem chefes hábeis, sem um ideal desses que eletrizam homens, sem tino, sem direção, sem o calor das grandes causas, não prolongariam a luta por muitos dias.

O dever, pois, do Governo, que tinha por si toda a esquadra, menos os quatro navios revoltados, todas as forças do exército, da polícia, dos bombeiros, da guarda nacional, dos corpos de atiradores populares, todas as fortalezas, pareceria ser, ato contínuo, declarar dissolvidas as guarnições rebeladas, intimar-lhes a rendição e dispor-se a atacá-las.

Aquela casta de gente apavora-se facilmente diante dos que representam, com resolução, o direito e a lei; não se abalançaria a uma luta aberta contra a nação inteira.

Se o tentasse, na sua cara estupidez, em poucos dias estaria entre si dividida e a trucidar-se mutuamente.

As munições de guerra presto se lhes acabariam e as de boca também.

A rendição era fatal.

Não consta, em toda a história da humanidade, que três ou quatro centenas de marinheiros, negros, ou quase, na maior parte, tenham derrotado um povo constituído, ainda mal guiado como nós.

Deixemo-nos de paralelos infantis com a Inglaterra; deixemos de ser fátuos uma vez na vida.

A anistia foi um erro.

Bastava só a consideração das condições em que ia ficar toda a nossa oficialidade da Armada diante da marinhagem insubordinada, vitoriosa pela anistia.

A posição tristíssima que lhe foi criada pelos poderes públicos não podia ser mais humilhante.

A situação era insustentável.

A insubordinação, a indisciplina lavraram por todos os navios.

Os fatos ocorridos a bordo desses Minas Gerais e S. Paulo depois da anistia e os da noite de 9 para 10 de dezembro no scout Rio Grande do Sul, onde foi assassinado o tenente Carneiro da Cunha, a revolta do batalhão de fuzileiros-navais na fortaleza da ilha das Cobras – constituem irrecusáveis testemunhos.

Não é assim que se deve tratar o que melhor possuímos na marinha – os seus oficiais.

O exemplo de impunidade proliferou.

Como em 1831, em circunstâncias muito mais graves, diante do fato da dissolução de vários corpos do exército, os oficiais se juntaram e constituíram o que se veio a chamar o batalhão dos oficiais soldados, os nossos oficiais de marinha unidos num só corpo seriam mais que suficientes para, combinados com as forças do exército, reduzir a marinhagem inconsciente.

E eles chegaram a oferecer-se com esse desígnio.

Mas não devo antecipar.

O paralelo com a Inglaterra desperta-me o estudo que devo fazer, antes de passar adiante, da causa eficiente do levante da maruja Armada e de todos os movimentos congêneres que se desenrolaram mais tarde.

Essa causa é o estado de real desordem social em que se debatem nossas populações, incultas, analfabetas, paupérrimas, sem iniciativa, sem autonomia de ação, sem audácia de empreendimentos elevados, sem espírito e ousadia de produzir a riqueza própria, de emancipar-se da tutela da política alimentária manipulada por chefes, partidos, governos, assembléias, congressos, oligarquias rapaces e mil outros tentáculos que nos asfixiam por este extenso país em fora, reduzindo-se a um rebanho corveável pelos astutos sujeitos que nos movem, oprimem, escravizam a seu talante.

Se esse não fora o estado real do travamento social, não se compreenderia a resignada submissão bestial com que dezoito milhões de brasileiros por todas as zonas, por todos os estados, por esse país além, se submetem, numa docilidade de inquietar o observador, ao cnute das oligarquias, a começar pela oligarquia das oligarquias – a oligarquia da União, sob o mando despótico de Pinheiro Machado, que de seu palacete da Rua Guanabara, cercado de certo grupete de apaniguados, não só traz pelo cabresto as oligarquias estaduais, como traz pela gola o presidente da República, o Senado, a Câmara dos Deputados, os ministros, o prefeito federal, etc., etc.

Ele é quem indica à nação os presidentes a eleger para a República e decide quem deve ser reconhecido deputado ou senador ao Congresso Nacional.

Essa hedionda centralização de fato, que não está na lei, que é mais dura do que a exercida pelos césares romanos, estriba-se na geral deliqüescência do caráter nacional, moldado pelas péssimas condições sociais indicadas, por um lado; e, por outro, num especialíssimo regímen de mentira, de ilusionismo, de falta de seriedade, tendo por alvo principal, além dos criminosos arranjos pessoais dos grandes figurões, o passarmos pelo que não somos, com o duplo fim de lançar poeira nos olhos do estrangeiro, na caça dos empréstimos, e nos dos nacionais, hipnotizando- os, fazendo-os acreditar em grandezas e maravilhas que de fato não possuímos, para trazê-los mansos e sossegados.

Neste último afã entra de velha data a suposição de que basta pretender imitar o que fazem as grandes potências para que de fato nos revelemos opulentos e poderosos.

Lisonjeia-se a vaidade do povo, garantindo-lhe que exerce a hegemonia na América do Sul e que somos agora uma das mais potentes, ricas e formidáveis nações do globo.

Para tanto, basta, pensam eles, apenas mandar buscar à Europa os terríveis dreadnougts, montar lá a propaganda das maravilhas, contratar sereias que espalham aos quatro cantos do horizonte os nossos portentos.

Será mister mostrar que a loucura do imperialismo nos não assenta nem nos convém?

Será preciso lembrar que as nossas condições não são as mesmas da Alemanha, Inglaterra, França, Estados Unidos, Japão, Áustria, Itália, para que nos demos ao luxo das temerosas esquadras e enormes armamentos?

Será necessário apontar que nestas cousas o elemento humano é a força principal?

Que essas terríveis esquadras, com os análogos exércitos em terra, pressupõem grande população, cultura largamente difundida, riqueza, bem-estar geral, vida econômica e industrial intensa e vasta, disciplina, ordem e liberdade nas relações políticas, verdade e folgaça nos orçamentos e mil outros requisitos que todos nos falham?

Pois não chegaram ainda a ver que um carrancudo dreadnougt é uma máquina perigosa nas mãos de marujos brutíssimos, sem a mais leve educação?

Não lograram perceber que, antes de os mandar construir, deviam preliminarmente estudar as condições reais de nossas populações barbarizadas embaixo, tendo apenas por cima, além de certa crosta levíssima de retóricos e faladores, enorme enxame de parasitas que nos depauperam?

Não lhes ocorreu a esses chefes de nosso espúrio imperialismo que, antes dos temerosos couraçados, deveriam fundar os arsenais, as oficinas elétricas, os diques, os cursos práticos – estes sobretudo – para a formação da maruja? Contratar mestres para a adestrarem? Constituir, em suma, esse elemento primordial das forças navais?

Não viram que o mesmo deveriam ter praticado com referência à oficialidade?

Que, sem o fator humano, não passa de loucura gastar milhões na aquisição de navios, para deixá-los inutilizar-se entregues à nossa imperícia?

Falou-se, é verdade, mas post factum, e isto mesmo só nas páginas dos jornais, em olhar para esse lado.

Mas nada se realizou.

E agora, depois dos últimos acontecimentos, nos encontramos ainda em piores condições.

As guarnições, com todos os seus defeitos, estão praticamente extintas, e esse batalhão naval, que era uma das cousas melhores que possuíamos, chegando até a inspirar versos à musa popular, aniquilada!...

É preciso fazer tudo de novo.

Eis o ponto a que chega a viciosa direção política de régulos incapazes, como esse Pinheiro Machado, inegavelmente um dos maiores culpados da maior porção dos nossos desatinos políticos de quinze anos a esta parte.

É admirável a ingênua leviandade com que ele, numa de suas últimas arengas no Senado, em resposta ao Deputado Barbosa Lima, declarou estas cousas: “Estamos atravessando um período em que a confusão, a anarquia, a desordem vão perturbando a sociedade de modo tal que é preciso grande vigor de ânimo para não nos deixarmos saturar pelos perniciosos fluidos deste ambiente perigoso que todos respiramos.

“O boato, a intriga e a maledicência procuram, por todos os meios, avassalar a verdade, deturpando fatos incontestáveis, que, passando sob nossas vistas, são, no dia seguinte, com ousadia e petulância, desfigurados, adulterados com tal habilidade que até testemunhas presenciais dos acontecimentos são também levadas na onda, e – fenômeno digno de registro – às vezes chegam a fazer causa comum com aqueles que tomaram a si a inglória missão de perturbar a sociedade, adulterando fatos, com o fito único de lançar suspeitas sobre homens de reputação ou imputar-lhes a responsabilidade de acontecimentos que eles repudiaram ou condenaram.

“Deste modo, as relações políticas, governamentais e sociais estão diariamente sob a pressão dessa aluvião de espíritos trêfegos, verdadeiros díscolos que grande mal fazem não só à estabilidade das instituições, como ao respeito e ao acatamento que todos devemos aos poderes constituídos.”

Este aranzel vale por uma estranha confissão: dá conta do estado deplorável a que chegou a alma nacional, após tantos anos de submissão ao látego de Pinheiro e seus colegas de oligarquia.

Como eles, nos momentos de angústia, vêm revelar a falsidade dos calorosos ditirambos com que nos têm andado sempre a imbair!...

É singular.

Tomam conta deste desgraçado país, dirigem-no, submetem- no, asfixiam-no, como lhes praz, por dilatados anos...

Quando se lhes mostra que vão caminho errado – só falta enforcarem a gente; e, depois, na hora do perigo, vêm eles próprios confessar o verdadeiro deplorável estado de tudo...

Que fizestes então, senão gozar do mando e descurar de todas as cousas sérias? Digno de meditação é o estado de psicologia de um povo, no qual se dão reviravoltas destas.

Digna de tristíssima meditação é a psicologia de um povo no qual se torna possível que um indivíduo vulgaríssimo, sem talentos, sem cultura, sem prestígio de família e tradições, sem riqueza, que só mais tarde adquiriu, sem dotes de espírito ou de palavra, sem qualquer quali- dade brilhante das que inspiram o mando, chegue, só por manhas e traças da mais falaciosa arrogância, a sobrepor-se a uma nação inteira, trazendo- a pela rédea, como se fora um animal chotão.

É mister que profundíssima seja a intrínseca apatia desse povo.

É fato porém que a anistia de 25 de novembro não amainou os desordeiros.

Na noite de 9 para 10 de dezembro revoltaram-se a guarnição do scout Rio Grande do Sul e o batalhão de fuzileiros-navais, aquartelado na fortaleza da ilha das Cobras.

Agora é que se vai patentear quanto moralmente temos decaído.

No ardor infantil de ostentar valentia, evidentemente para se desforrarem da figura rata dos dias do primeiro levante, os próceres e pró-homens do estado deliberaram dar ao mundo e ao país o espetáculo duma sanha feroz.

Desde às onze horas da noite de 9 começou o enorme rebuliço.

Batalhões e batalhões de linha das três armas foram postos a guarnecer as praias e cais da cidade.

Como se eles não bastassem, foram movimentados e postos em linha de combate os corpos da polícia e dos bombeiros, que têm ambos dura organização militar.

Parques e parques de artilharia ocuparam as posições mais adequadas ao bombardeio da ilha, nos morros do Castelo, Conceição, S.

Bento e nos cais Pharoux e dos Mineiros.

Todos os navios da esquadra, em número de mais de vinte unidades, tiveram severas ordens para formar o cerco da fortaleza rebelada.

Combinação foi feita para não se esperar pela ação da parte dos revoltosos, não se lhes dar quartel.

De certo, de positivo, sabia-se da revolta do batalhão apenas pelo fato de terem os soldados enviado para terra o seu comandante, Marques da Rocha. Quedos, depois disto, se conservaram; não despejaram as armas contra a cidade. De cá é que, às cinco horas e meia precisas, rompeu o fogo, tremendo, cruel, implacável.

Era claro o empenho de ostentar jactância de força e poder.

Não se fez, como é de praxe em casos tais, a menor intimação prévia à rendição.

Ao mesmo passo que assim se procedia na parte material da luta, o Executivo pedia ao Congresso Nacional meios enérgicos de ação, combinando-se, entre os magnatas, a concessão do estado de sítio.

Era a fúria da desforra.

Lê-se num dos jornais do dia 10: “Às quatro e meia da manhã um automóvel parou na esquina da Assembléia. Dele saltou um dos ministros que acudiu a um sinal de um deputado.

“ – Então, pergunta-lhe esse: quando começa?

“ – O bombardeio?

“ – Sim.

“ – Às cinco e meia em ponto. Esta é a ordem do governo.”

E, efetivamente, as forças que guarneciam o cais Pharoux romperam fogo cerrado contra a ilha das Cobras. Começou pelas ruas uma correria louca; senhoras, que viajavam em bondes, choravam aterrorizadas.

“Os revoltosos estavam como que esperando este ataque e responderam vivamente.”

Não se tentou sequer a intimação à rendição, provável diante das formidáveis forças acumuladas contra a ilha. O que se queria era um desforço, sem se lembrarem, esses fanfarrões de valentia, que esta demasiado se reduzia em face da insignificância da gente revoltada e das armas de que dispunha.

O bombardeio foi atordoante e aniquilador.

Nem mesmo diante da bandeira de paz, içada pelos revoltados, ele se calou. Eis o depoimento da uma testemunha ocular, nestas palavras da Gazeta de Notícias, referindo os acontecimentos de 10: “2 e 50 da tarde – os disparos foram cerradíssimos. Por todos os pontos do litoral artilhado e de quase todos os navios de esquadra atirava-se, numa loucura de morte, sobre a ilha sublevada. Nesta ocasião os revoltosos perderam a transmontana e começaram a sentir-se perdidos.

 “Dez minutos depois desse pavoroso bombardeio, flutuou uma bandeira branca num mastro, perto da capela da ilha.

“Os atacantes não cessaram porém o fogo que cada vez era mais cerrado.

“O scout Rio Grande do Sul, os cruzadores-torpedeiros Tamoio, Timbira, o Barroso, a fortaleza de Villegaignon, as baterias do Pharoux, os morros de S. Bento e da Conceição atiravam todos ao mesmo tempo.

“Os destróieres, circundando a iha, faziam fogo também sobre os revoltosos que nessa ocasião, pediram armistício para embarcar os doentes.”

Já não davam mais um só disparo, tentavam esconder-se nos subterrâneos da ilha e dispunham-se a fugir, se pudessem, em ocasião azada.

A sanha de repressão lembra o canibalismo de Canudos.

Tanto é verdade que a selvageria da raça espreita sempre os momentos em que pode explodir os seus atavismos.

Não; nós não estamos educados nem o ficaremos absolutamente sob o cnute dos Pinheiros Machados, dos Borges de Medeiros, dos Aciólis e de tantos outros guapos cavaleiros dessa espúria idade média feudal, que é o nosso viver político.

De tudo isto, a nota mais triste da ocasião foi o deslavado projeto que teve a maioria da Câmara, na persuasão de lhe não dar a maioria número para a votação do estado de sítio de dissolver-se, deixando o terreno livre ao governo para implantar o terror.

Era um verdadeiro suicídio moral.

Quando todos deviam ficar no seu posto, servindo com hombridade o país, é que se dispunham a desertar! É incrível.

Tanto mais incrível quanto se sabe ser a maioria composta de cento e cinqüenta e quatro deputados, contra uma minoria de cinqüenta e oito, tendo, aquela, gente de sobra para dar casa e fazer as votações.

Não o fez, porque é relapsa, porque não cumpre os seus deveres, porque lhe não importa o bem da pátria...

Veja-se agora a lição de outros tempos, quando ainda não nos engrossava o Ferrero, nem possuíamos os dreadnougts, nem a embaixada de ouro, nem a Exposição do Calmon, nem as alicantinas do Nilo, nem os quadros vivos do Alcibíades, nem as habilidades do L. Müller ou do Francisco Sá, nem a incomparável sabedorrência de estadista de Pinheiro...

No dia 8 de abril de 1831 amanheceu a nação brasileira sem governo, sem chefe, sem ministros, sem representante algum da direção suprema do estado!

Na véspera tinha-se desmoronado o trono de D. Pedro I.

Os partidos e facções tinham atingido o grau supremo de uma agitação, que se teria de revelar nos nove anos da Regência por perto de quarenta sedições, revoltas e revoluções, algumas das quais haveriam de se prolongar por dilatados períodos.

Só ao ano de 1831 desde os primeiros dias da nova ordem de cousas, couberam não menos de dezoito, seis das quais tocaram à cidade do Rio de Janeiro.

A atmosfera andava demasiado carregada, a ordem social subvertida por todos os lados.

O velho banditismo, que era a vida normal do interior, lançava rebentos que explodiam nas cidades e capitais da costa.

Que fez então o corpo legislativo, o único que poderia dar algum sinal de vida, apesar de espalhados os seus representantes, na maior parte, pelas províncias?

Abateu-se?

Apagou-se, anulou-se, julgando-se também dissolvido?

Esperou que um simulacro qualquer de Poder Executivo o convidasse a postos?

Não. Os vinte e seis senadores e trinta e seis deputados que, por acaso, estavam no Rio, apesar de não formarem número legal, investiram- se de poderes extraordinários, reuniram-se no paço do Senado e elegeram uma regência provisória.

Esta organizou sem tardança um Ministério.

Estava o governo constituído.

Iniciavam-se os seus trabalhos, que tinham de ser tremendos.

O partido exaltado não perdeu, desde então, em guerrear por todos os modos o poder.

Logo, aos 26 do mesmo abril, o nativismo mais fervente, pelo fato do assassínio dum moço brasileiro por um caixeiro português, pôs-se em grita.

Numerosos grupos de nacionais, filiados no partido federalista e republicano, os exaltados do tempo, armados em clamores de vingança, saíram à rua, em ameaça aos europeus, sendo muitos destes espancados e feridos.

Enorme foi o alarido.

Assustou-se a cidade, fecharam-se as casas, interrompeu-se o trânsito, paralisou-se o comércio.

Não sem custo foi restabelecida a ordem.

Um mês depois, em maio, repetiu-se, com maior intensidade, a sanha perseguidora do elemento português, aos gritos de morram os pés-de chumbo!

Apedrejaram-se casas, espancaram-se indivíduos.

Que fez, então, o corpo legislativo já reunido nas condições costumeiras?

Procurou adiar-se para deixar ao governo carta branca?

Não. Em sessão tomou várias providências para a administração da justiça.

Tudo com essa energia serena e composta que não excluía a dignidade: sem alvoroços de valentia, sem esgares de loucura.

Não se pense que só os populares exaltados eram os perturbadores da ordem e os fautores de anarquia.

Esses eram os mais inocentes.

O perigo maior estava na tropa de linha e na polícia, que se revelaram os mais encarniçados inimigos da governação.

Não era como em dias de agora, em que todas as forças armadas, exceto os poucos revoltados da marinhagem, cerraram fileiras em torno do poder público.

“Indisciplinado, arrogante”, escreve o Dr. Moreira de Azevedo, “tendo a espada como cetro da lei, crendo que tudo devia decidir-se pelas armas, pela vontade dos soldados, orgulhosa por ver que desde 1821 satisfizera todas as exigências, deixara a força militar de ser a depositária da ordem, da tranqüilidade pública.

“Debelava os cidadãos em vez de garanti-los, não era elemento de paz nem sustentáculo da lei; mas um corpo anárquico, que alçava a cabeça, logo que havia um motim, quando não era a primeira a atear o facho da rebelião.”

É por isso que se encontra revoltado, aos 12 de julho, o Batalhão 25, aquartelado no morro de S. Bento.

A rebelião comunica-se imediatamente ao corpo de polícia, aquartelado ali perto, na Rua Nova de S. Bento, e seguidamente a outros corpos da guarnição.

Toda essa tropa insubordinada de polícia e linha, ensina aquele historiador, perpetrou desatinos, disparou tiros, cometeu assassínios, praticou roubos, espalhou o terror, obrigando muitas famílias a fugirem para os arrabaldes.

De pavor foram os dias dos meados de julho.

É então que Diogo Feijó vai entrar em ação e dar a medida de sua energia sóbria e serena.

Com quem contava ele?

Disposto a dissolver, como fez, quase todos os corpos do exército, apelou para o patriotismo dos bons cidadãos, que se organizaram em batalhões.

O mesmo fizeram os mais ardorosos oficiais que constituíram esse famoso batalhão de oficiais-soldados, que tantos serviços prestou.

Com esses exíguos recursos – e mais um corpo de guardas municipais – fizeram-se maravilhas contra os desordeiros e quase toda a força pública amotinada.

Logo que esses revoltosos de julho souberam que o comandante Lima e Silva se aprestava a dar-lhes combate, correram, deixando os quartéis, para a Praça da Constituição.

Grande massa popular se reuniu ali à polícia e aos batalhões amotinados, ecoando por toda a parte gritos de desordem.

Seguiram imediatamente para o Campo da Aclamação, reclamando aos brados a queda da Regência, a dissolução da Assembléia Geral e a convocação de uma Constituinte.

Enviaram uma representação ao governo, impondo a deportação de oitenta e nove cidadãos, dos quais sete eram senadores, a decretação de reformas constitucionais, a suspensão, por dez anos, da imigração portuguesa.

Remetida pela regência a representação ao corpo legislativo, que fez ele?

Não se dispersou: ao contrário.

Tendo-se constituído em sessão permanente no paço da cidade, cercando o imperador menor, devolveu a representação sediciosa, por absurda e inconstitucional.

As medidas do governo contra a geral anarquia não foram o bombardeio implacável, nem o vil estado de sítio.

Ao entrar para o Ministério, desde 4 de julho, tinha dito Feijó: “Persuadido de que em todo o tempo, e principalmente nos convulsivos, só a firmeza de conduta, a energia e a justiça podem sustentar o governo, fazê-lo amado e respeitado; certo de que a prevaricação e, mais que tudo, a inação dos empregados é a causa do justo queixume dos povos, serei rigoroso e inflexível em mandá-los responsabilizar.

“As leis são, a meu ver, ineficazes e o processo incapaz de por ele conseguir-se o fim desejado; mas a experiência desenganará os legisladores, salvará o governo da responsabilidade moral e o habilitará para propor medidas salutares que removam todos os embaraços.”

Deste digno e nobre roteiro não se desquitou o ministro nos lutuosos dias de meados de julho.

Sem estardalhaços, sem sítio, sem bombarda, agiu, como se normais fossem as condições.

Nomeou o Deputado Sebastião do Rego Barros, conhecido por seu ânimo enérgico, comandante geral dos guardas municipais.

Fez substituir dois ministros, tíbios na ação contra os amotinados, por homens de energia, como Bernardo de Vasconcelos e Manuel da Fonseca Lima e Silva.

Fez embarcar para as fortalezas de Villegaignon e S. João o corpo de polícia sublevado, que declarou extinto, sendo, mais tarde, as praças espalhadas por várias províncias.

Fez, sem tardança, manejando os parcos recursos de que dispunha, prender nas fortalezas os indivíduos mais comprometidos na rebelião; mandou lavrar as baixas da maior parte dos soldados, reformando ou demitindo os oficiais.

Mandou que os empregados da alfândega, ameaçada de incêndio, permanecessem em armas.

Tornou responsáveis, como cúmplices, os juízes que não perseguissem os rebeldes.

Mandou o corregedor do crime que processasse, na forma da lei, as pessoas que deram gritos sediciosos, no mote de 14 de julho e subseqüentes.

Fez fornecer armas aos negociantes que tivessem suas casas nas ruas mais desertas e arrabaldes da cidade; mandou distribuí- las também, com o respectivo cartuchame, a três mil cidadãos eleitores.

Proibiu ajuntamento de populares nas vizinhanças das guardas e quartéis; fez avisar ao ministro da Guerra que prestasse imediatamente qualquer força requisitada pelo ministro da Justiça.

Mais tarde, propôs a criação, com presteza levada a efeito, do corpo de municípios permanentes, que veio, pelos anos posteriores, prestando à ordem importantes serviços.

Era um homem.

Apesar de tanta firmeza de tais atos, alguns dos quais, foi notória a inspiração de Bernardo de Vasconcelos, a anarquia não estava de todo extinta.

Em uma noite de setembro estalou formidável motim, originado pela briga de dois oficiais no Teatro Constitucional.

Afluíram populares armados, chegaram as rondas municipais, deu-se largo tiroteio, não sendo fácil a aquietação dos ânimos e o dispersar da multidão.

Poucos dias após, e este era o ponto a que eu almejava chegar, para mostrar melhor a diferença que vai de um Diogo Feijó ou de um Bernardo de Vasconcelos a qualquer dessas figurinhas da tragicomédia de agora, poucos dias após rebentava a revolta do Corpo de Artilharia de Marinha, aquartelado na fortaleza da ilha das Cobras.

Neste passo se veio a sentir a ação de largo plano político.

Já desde dias antes circulavam boatos de revolta, não atendidos pelo ministro da Marinha, que não tinha resolução de ânimo de Feijó e Bernardo.

Não tomou as precisas providências.

Só tarde e a más horas pretendeu fazer sair do Rio um capitão daquele corpo e distribuir pelos navios de guerra diversas praças do aludido batalhão.

Amotinou-se a soldadesca, reclamando o seu oficial, que lhe foi devolvido, por fraqueza desse ministro da Marinha.

Mais cresceu a ousadia da gente rebelada, que despejou para a cidade o fogo dos seus fuzis.

Soldados de alguns navios tinham-se ido juntar aos revoltosos.

Era noite de 6 para 7 de outubro de 1831.

– Tocou-se a rebate na cidade.

Dizia-se que os rebeldes iam desembarcar.

O bravo Capitão-Tenente J. J. Faustino, à frente de alguns guardas municipais e de um punhado de cidadãos, corre ao Arsenal de Marinha, faz rápidas fuziladas contra a ilha, e, movendo seus trinta homens, de um lado para o outro, dando vivas e disparando as armas, chega a fazer crer aos rebeldes que comandava grandes forças. Os revoltados não tentam o desembarque.

Durante a noite fez o governo guarnecer as ruas e cais próximos com os guardas municipais e com o batalhão dos oficiais-soldados, colocando seis peças de artilharia no morro de S. Bento.

Vai amanhecer o dia 7.

Irá o governo ordenar o bombardeio implacável desde as cinco horas e meia da manhã?

Não. Dispunha das peças de S. Bento e dos canhões dos navios de guerra, ao mando do bravo chefe da divisão Taylor.

Poderia fazê-lo; não o fez, porém.

Três vezes, advertem as crônicas do tempo, mandou o governo emissários aos revoltosos, intimando-lhes a rendição, e que, depostas as armas, aguardassem indulgência ou castigo, conforme a decisão do poder legal.

Recusaram.

Só então foi resolvido o recurso supremo do canhão.

A bateria de S. Bento e os navios da esquadra romperam o bombardeio.

Logo após procedeu-se ao assalto da ilha.

O Marechal J. M. Pinto Peixoto dividiu as parcas forças de seu comando em três colunas, uma delas sob as ordens do Coronel João Paulo dos Santos Barreto, outra sob as do Tenente-Coronel Jacinto Pinto d’Araújo Correia e a terceira às ordens do Major Luís Alves de Lima e Silva.

A primeira a investir foi a do Tenente-Coronel Araújo Correia que, não podendo arrombar o portão, galgou a muralha, firmando-se nas asperidades e saliências da rocha.

Outros por igual modo ou por escadas treparam ao parapeito e entraram a praça.

Intimada a rendição, foi então aceita.

Entrava pelo lado oposto a coluna de Luís Alves de Lima e Silva.

Nota-se aqui coragem, valentia – sim; mas com a decisão serena e calma que não esquece a dignidade e a justiça.

Como conseqüência de sua irresolução, foi demitido o ministro da Marinha e substituído por outro de melhor envergadura.

Bela lição de nossas tradições.

Para solver a tremenda herança deixada pelo governo de Nilo Peçanha e seu auxiliar Alexandrino de Alencar, nas cousas da Marinha, não eram indispensáveis o feroz bombardeio da ilha das Cobras e o estado de sítio, especialmente obtido e decretado, quando já estavam vencidas todas as resistências.[11]

III

Aspectos sociais

Quando se fala em cousas econômicas do Brasil, nomeadamente quando se sugere alguma dúvida acerca do progresso de suas riquezas e do desenvolvimento de seus recursos, é infalível ouvir a alegação do excesso do seu saldo na balança do comércio internacional.

Os mais inconscientemente ousados lembram também o crescimento de suas rendas e de suas despesas.

Estes dois argumentos são duas falácias grosseiríssimas, como indicarei um pouco além, bastando lembrar, desde já, que o primeiro se esboroa diante dos terríveis serviços de nossos encargos no estrangeiro e dos medonhos impostos que reduzem os lucros da exportação e aumentam as despesas da importação; e o segundo se esfarela em face do déficit constante que nos devora.

Mas não é este o maior defeito do falso argumentar dos interessados em trazer o povo brasileiro iludido, para sugá-lo o melhor e mais desassombradamente.

O mais grave absurdo da lógica desses sofistas está no modo simplista com que pretendem escamotear um problema extraordinariamente complexo e complicado.

Trepam, por assim dizer, na cumiada das finanças do estado e da produção nacional, tomada em globo, e, sem verificar a amarga realidade que lá embaixo se esconde, enfileiram enormes algarismos que deixam boquiaberta toda a gente... A fascinação é infalível: não há quem resista à vertigem dos milhões, mesmo no papel...

A multidão inculta que lê ou ouve e até os semicultos, que são o resto, ficam a dizer: há muito dinheiro no país, se não está em nossas mãos é que está nas de outros mais felizes; mas ele existe. E basta; está a conquista feita; a lenda pode correr mundo.

Entretanto, o viver real e positivo das populações de um enorme país como este não é cousa para se determinar, compreender e explicar pelas parolagens dos órgãos oficiais no Parlamento, nas mensagens dos ministros ou nos artigos de encomenda dos escrivinhadores a soldo.

Em vez desse processo de vir do alto para baixo, espécie de método dedutivo, muito cômodo a quem pretende iludir, dialética de cunho escolástico, que acorrentou o pensamento humano durante o milênio inteiro da Idade Média, deve-se, ao contrário, partir de baixo para cima, do povo para o estado, das classes mais duramente tratadas pelas asperezas mais prementes da vida, classes que são a enorme maioria da nação, para os grupos privilegiados do grande comércio e da alta finança, até chegar ao lauto banquete do estado, que desperdiça os frutos do suor de todos, devorando-os, e achando ainda jeito de ficar encalacrado em milhões...

Nesse complicado assunto existem pelo menos quatro faces, cada uma delas divisível em vários aspectos.

O quádruplo problema é social, econômico, político e financeiro.

O problema social tem que estudar as populações mais mesquinhamente aquinhoadas, aquelas que labutam diurnamente nos mais rigorosos meios de viver, em todas as zonas agrestes do país, e tem que apreciar também as gentes mais folgadas destas mesmas regiões. Tem de praticar o mesmo – nas povoações de segunda, terceira e quarta ordem do interior; tem que fazê-lo também nas maiores cidades, nas mais prósperas, como Manaus, Belém, Rio, Santos, São Paulo, e nas imediatas, como São Luís, Fortaleza, Recife, Bahia, Porto Alegre. É um estudo de classes, indispensável ao conhecimento real da existência brasileira.

O caso econômico tem que multiplicar-se por idênticos caminhos, por se acostar sempre ao social, de que é um dos aspectos mais notáveis.

O problema político, menos considerável, é, ainda assim, muito complexo, porque tem de atender, para ter algum préstimo, aos fatores precedentes – sociais e econômicos.

A essa luz, a questão financeira assume outra aparência, deixa de ser uma aventura ao acaso, um calcular a olho, para se transformar na simples gestão da fazenda que o povo adianta ao estado, para que pague os serviços públicos.

É claro que desse enorme programa só darei aqui rapidíssimos toques, como que a correr; seria assunto para vários volumes.

Sob o aspecto social, direi, de modo geral, pelo que toca às nossas classes puramente populares, no restrito sentido que impropriamente se costuma dar a este qualificativo, que elas, nas zonas rurais, quase por toda a parte, se distinguem pelo analfabetismo, atraso, pobreza vizinha da miséria em grandíssimo número de casos, caráter dispersivo, falta completa de iniciativa, marasmo radical.

Isto afirmo eu, já por estudo direto de várias zonas do país, em Sergipe, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Rio de Janeiro, Minas, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, já por informações de pessoas fidedignas que tenho propositalmente inquirido, já também por leitura de escritos de observadores competentes.

Disseminados nas praias do oceano próximas às povoações; ou, nas chamadas regiões das matas, ao longo das estradas, nas cercanias ou dentro dos engenhos e fazendas, nas vizinhanças dos lugarejos, vilas ou pequenas cidades; ou nas zonas dos sertões do Planalto Central, nas proximidades das fazendas de criar ou dentro delas; ou nas terras de minerações; ou ao longo dos rios, próximos ou mais ou menos arredados deles, nas paragens amazônicas, mato-grossenses, goianas, os indivíduos e as famílias que constituem essas classes, na regra absolutamente geral, apresentam aqueles caracteres.

O trabalho não anda entre eles regularmente organizado, não existe a patronagem inteligente, senão em limitadíssimos, raríssimos casos.

Praieiros, mulatos, tabaréus, caipiras, sertanejos formam um imenso proletariado rural, disseminado, amorfo, mal dirigido, pessimamente encaminhado.

Raros possuem qualquer parcela de terra, porque esta anda quase toda, desde o pernicioso regímen das antigas doações por sesmarias a olho, nas mãos de grandes proprietários, constituindo enormes latifúndios.

Só em uma ou outra região se vão lentamente retalhando esses imensos ducados feudais de nova espécie, dando lugar a pequenas propriedades, por enquanto pouco avultadas em número e em geral mal cuidadas e improgressivas.

Se dos campos passarmos às vilas e cidades, não é melhor nem mais prometedor o estado das classes meramente populares. São apenas um pouco mais iludidas e vilipendiadas pelos engodos dos politiqueiros de ofício.

Mas ainda aqui é mister dividir.

Nas vilas e pequenas cidades que não passam de grandes aldeias, o proletariado é, pela mesma forma, inculto e atrasado, vivendo em crassa pobreza e duro abandono.

Os mais felizes são os que exercem os pequenos ofícios de pedreiros, carapinas, ferreiros, alfaiates, sapateiros, sempre atrasados, vivendo com enormes dificuldades.

Nas raras grandes cidades, especialmente no Rio e São Paulo, uma parte do proletariado começa agora a achar a patronagem mais regular em algumas fábricas que vivem do protecionismo da tarifa, tendo a outra parte, a dos mais incultos, o engodo da politiquice que a vai arrumando nos corpos de polícia e de bombeiros, nos arsenais, nas estradas de ferro, nas obras públicas...

Pequena porção, a dos que sabem um pouquinho mais do que ler e escrever, luta por atulhar as repartições dos correios, dos telégrafos, da imprensa nacional, das secretarias do estado, etc.

Quer tudo isto dizer que, mesmo nas camadas mais baixas das cidades, além da pobreza, medra a mania do emprego público, praga que lastra e consome as classes mais altas, com desprezo das carreiras diretamente produtoras.

E se nessas rodas, chamadas altas, prolifera a politicagem como meio de viver, alojada à empregomania, espécie de caçada ao Erário público, não admira que nas zonas sertanejas das oligocracias fechadas dos estados, surja, entre as populações miseráveis e barbarizadas, esse espantalho do banditismo, caçada franca aos haveres de quem por ali os possui.

Se das classes puramente populares se pode, sob o aspecto social, sintetizar os defeitos nos caracteres que ficaram apontados, das classes ditas dirigentes manda a verdade afirmar que os vícios mais salientes, sob tal ponto de vista, são: afrouxamento do caráter, queda para o ilusionismo propício às conveniências, megalomania, que vai incutindo a jeito no espírito do povo, tendências imperialistas e despotizantes.

Rápidos traços ilustrativos são mais que suficientes para esclarecer esses meandros da psicologia social das famosíssimas classes, supostas dirigentes nesta terra.

O afrouxamento do caráter está patente no modo como se tem abastardado a justiça, o Congresso Federal, os congressos estaduais, a administração pública, o ensino, o júri, as câmaras municipais; no modo como se praticam as eleições, se constituem as assembléias, se fazem os presidentes da União e dos estados, se obtêm as concessões para empresas; nos multiplicados desfalques, nos descarados contrabandos em que entra muita gente de alta posição.

A tendência ilusionista, a que já uma vez dei o nome de argentinização, está, por exemplo, nas grossas petas mandadas editar no estrangeiro; na montagem de vasta máquina de vistosas propagandas lá fora; no contrato de estrangeiros para cantar lá e cá douradas loas ao nosso fantástico progresso, às nossas grandezas sem par.

A megalomania manifesta-se nas avenidas, nos teatros a dez mil contos de custo, nos palácios para as repartições, ou para banquetes como o Monroe, etc. As tendências imperialistas, nos grandes exércitos com que se sonha, na formidável esquadra, nos terríveis dreadnougts, nos arreganhos despotizantes dos mandões, cujos tipos mais perfeitos são os dessa espécie nova, própria da fauna política brasileira – a Species Julia Castillicensis, os Pinheiros Machados, os Joões Franciscos, os Borges de Medeiros, moldes que servem para todos os demais oligarcas e caudilhos que nos degradam.

Esta nota vai penetrando na psicologia do povo em geral, pelo menos nas cidades.

Sabe-se que o brasileiro sempre amou muito os tribunos, os oradores, os retóricos de belas frases. Pois bem: ainda hoje ele os aprecia assaz, com a condição, porém, de não entrarem em concorrência aos homens da força, os homens da espada, os possíveis déspotas; porque, neste caso, os últimos são os preferidos.

Já são bastante numerosos os casos que provam este asserto.

A José Mariano e Martins Júnior, com toda a sua popularidade, preferiu Barbosa Lima, em tempo, em Pernambuco, a Gaspar Martins – Júlio de Castilhos, no Rio Grande; a Rui Barbosa – Floriano Peixoto, nos dias de revolta da Armada, e, depois, Hermes da Fonseca, na última luta presidencial; a Lopes Trovão – Lauro Sodré, para figurar no Senado, a Assis Brasil – Borges de Medeiros, Pinheiro Machado, ou, até, João Francisco...

Para mostrar o nosso detestável estado social, basta, dentre centenas de questões que poderiam ser agitadas, destacar o caso do ensino.

Não existe assunto que melhor defina a nossa geral fatuidade a encobrir um desgraçado estado de real penúria.

Desde velhas datas, desde os dias do Império, andou sempre em debate esta questão, sem que tivéssemos melhorado um passo.

Nos vinte anos da República tivemos já seis reformas gerais: a de Benjamim Constant, a remodelação desta por João Barbalho, a de Epitácio Pessoa, uma da Câmara dos Deputados, inteira transformação dela pelo Senado, a de Esmeraldino Bandeira, a recente autorização do Congresso Nacional para se fazer obra nova.[12] A realidade é que o ensino público, entre nós, está completamente desorganizado e não haverá reforma que o endireite, enquanto perdurar o desmantelo geral de nossa educação, a crise moral de nosso caráter.

O maior defeito de nossa psicologia nacional, tenho-o dito milhares de vezes e não canso de o repetir, é não querermos ir ao fundo das questões políticas e sociais em que nos debatemos, não queremos ter a coragem de reconhecer que a raiz do mal está em nós mesmos, na inconsistência de nossa índole, na nossa, pelo menos atual, incapacidade para as grandes organizações, as conquistas reais e duradouras.

Julgamo-nos aptos para tudo, sem o preliminar preparo de nós mesmos.

Pensamos que basta copiar as instituições alheias.

A Alemanha, a Inglaterra, a França, os Estados Unidos, possuem belas instituições políticas e sociais...

Por que não havemos de tê-las também?

É copiar as leis desses países e basta.

Tem-se visto o resultado a que chegaram todas essas transplantações? o parlamentarismo, o presidencialismo, o júri, o sistema eleitoral, o Supremo Tribunal, etc.

Aqueles países têm fortes armas e grandes exércitos?

Por que não havemos também de tê-los?

É copiar as respectivas leis e regulamentos e basta.

De quão falaz é este sistema, não há mister senão ter em vista a formidável desilusão que deve ter produzido em todos a revolta da marinhagem nos últimos dias.

Quisemos caminhar às pressas, imaginamos que bastaria fazer construir os navios, sem a preliminar educação do pessoal, e eis o resultado: estamos em piores condições do que dantes.

Não é só: em nossos cálculos de megalomania e imperialismo criamos um Brasil de fantasia que de fato não existe, imaginamos um Brasil, que só será real, talvez no século XXIV, e supomos que, desde já, possuímos numerosa gente válida para tudo...

Julgamos ser facílimo arranjar vinte ou trinta mil homens de escol, para a marinha de guerra, e mais de oitenta ou cem mil, iguais aos granadeiros prussianos, para o exército.

Aonde ir buscá-los fora das classes que têm sido até aqui o viveiro de nossas forças armadas?

Ninguém sabe.

A mesma cousa, mutatis mutandis, se dá em todas as relações de nossa vida nacional; o mesmíssimo acontece ao ensino.

Julgamos que se ele tem manquejado é por vícios extrínsecos a nós mesmos, é por alguma causa externa, vinda de fora.

Temos, então, andado a quebrar a cabeça à procura do bode expiatório neste ponto.

O ensino ia mal, dizia-se, porque era demasiado oficial, não havia nele a precisa liberdade de doutrinas.

D. Pedro II permitiu, durante cinqüenta anos, a mais completa independência de opiniões, e o ensino não melhorou.

O ensino ia mal, porque os programas eram apertados, não eram bastante amplos e adiantados.

Passou-se a copiar os mais famosos programas das escolas estrangeiras, e tudo na mesma...

O ensino ia mal porque não havia cursos livres, faculdades extraoficiais.

Criaram-se umas poucas e tudo piorou...

O ensino ia mal, porque não tínhamos os exames de madureza.

Foram eles imediatamente estabelecidos, e tudo foi a pior...

O ensino ia mal, porque não existiam os colegiais, livres, equiparados ao modelo oficial.

Concedeu-se a equiparação às dúzias, e a gritaria aumentou, denunciando verdadeiros desastres...

O ensino ia mal, porque não tínhamos olhado para os métodos, os processos da pedagogia moderna, o ensino realista separado do clássico.

Tem-se feito isto e nada!...

Ora, sejamos sinceros; deixemos, pelo menos neste assunto, de ser fátuos.

O ensino vai mal, porque o defeito é nosso; porque não estamos preparados para tê-lo melhor.

Neste ponto – falta-nos tudo: o pai de família, o aluno, o mestre.

Por não termos lançado as vistas para o íntimo da alma nacional, absolutamente mal educada, é que laboramos nas panacéias inúteis de macaquear o estrangeiro, de andar fantasiando uma espécie de ensino genérico, universal, tipo abstrato, aplicável a todos os povos, a começar por nós mesmos.

Por isso é que andamos patinhando na patetice de copiar pomposos programas e encher a boca de palavrões sonorosos: modernos processos, pedagogia nova, e quejandos.

Por isso é que os tais programas são admiráveis, como tipos abstratos, mas não saem do papel, não se cumprem e são até irrealizáveis...

Já Agassiz, quando nos visitou, vendo alguns desses programas, tinha dito; “Se os realizam, são o primeiro povo do mundo em instrução”!

O ilustre sábio via bem que era o contrário.

Nada mais cômico do que a seriedade com que os discutidores desta matéria, ministros, fiscais do governo, professores, deputados, sena- dores, fazendo coro, bradam: é indispensável acabar com o madureza: provou mal; é urgentíssimo acabar com os equiparados: provaram mal...

Ainda ontem gritavam pela instituição dessas cousas; agora já não prestam; porque foram mal aplicadas...

Só não vêem que o argumento prova demais.

O presidencialismo também tem funcionado mal, dando lugar a duplicatas de assembléias de governadores e outros desarranjos por aí além: acabe-se com ele.

A Federação esbarrou nas oligarquias, isto é, na mais hedionda forma da escravidão política: acabe-se com ela.

O Congresso Nacional, além do terceiro escrutínio dirigido pelos Pinheiros Machados, tem aberto mão de suas prerrogativas, por um lado, e, por outro, tem sido anárquico, quando é simples chancela do Executivo: acabe-se com ele.

A presidência da República não é filha da eleição, não passando de mera designação dos Pinheiros: acabe-se com ela.

As eleições nada valem, porque são feitas a bico de pena: acabe-se com elas.

As municipalidades, as intendências, o júri, os tribunais, as assembléias dos estados, a magistratura, tudo isto tem desandado: acabe- se com tudo...

E muito mais extensa poderia ser esta lista, é claro.

É que não queremos confessar a verdade: certa incapacidade orgânica, oriunda de vícios étnicos, falta de educação ou seleção, apta a extirpá-los nuns casos, a minorá-los noutros.

Eu disse que na vexata quaestio do ensino tudo nos falta; o pai de família, o aluno e o mestre.

É a verdade.

Falta-nos, nessa esfera, o pai de família, porque, com raríssimas exceções, sendo ele um comunário de estado, segundo a excelente classificação da ciência social, vivendo acostado ao grupo, pedindo-lhe tudo, não tem para transmitir ao filho o largo espírito de iniciativa, a sua capacidade de autonomia da vontade, capaz de sair de embaraços.

Não compreende o ensino desinteressado, como cultura, nem o ensino força, como abroquelamento do caráter para a luta; visa o emprego público para a sua descendência, ou, pelo menos, as profissões liberais.

O que mais o tenta é a aprovação de seus pimpolhos nos exames: antigamente limitava-se, neste ponto, a pedir a aprovação, agora não se contenta com ela – quer a nota de distinção.

Tudo aparências: o alvo principal não é o saber, é a aprovação nos exames, para obter a carta, para chegar ao emprego, ou para figurar na política.

Por isso é que afirmo que, na questão do ensino, nos falta o pai de família; porque desde a casa não educou a sua progênie, senão num péssimo espírito de subserviência ao empreguinho público, de caçada às profissões pelo empenho, formando-lhe o ânimo, desde a meninice e a juventude, num acentuado caráter de precoce funcionarismo, de gente que se destina à vida rotineira de equívocas pieguices e pândegas das cidades.

Por isso nos falha também o aluno.

Não temos uma mocidade estuante de vastas aspirações na luta pela existência, mocidade que deseje atirar-se por este Brasil em fora no trabalho, nas indústrias, na lavoura, na mineração, no criatório, na navegação, nas empresas de viação, nos mil empreendimentos que o talento inventivo dos homens de iniciativa lhe haveria de inspirar.

Não sente a necessidade, o aguilhão de fecundar o espírito, de se apoderar de uma cultura viva, reconfortadora da alma, espécie de arma de guerra contra os despotismos da sorte.

Não.

Basta-lhe a ornamentação da memória, a receita de pontos para os exames, e, quando muito, para os mais ousados, douraduras literárias que os levam a forgicar versalhadas, contos espúrios, declamações politicantes, filosofices reles, que lhes devem abrir as portas do jornalismo, os postos nas fileiras dos sustentadores das oligarquias, os lugares no formidável exército do funcionalismo.

E o pior, em tudo isto, é que não pode ser por enquanto por outra forma. Laboramos num verdadeiro círculo vicioso: não nos ati- ramos às profissões usuais, de preferência às liberais, não imitamos neste particular – ingleses, americanos e a alemães, porque não as possuímos nossas, estando quase todas elas nas mãos dos estrangeiros; e não as possuímos porque não nos atiramos a elas!...

Atualmente é esta a nossa posição.

Neste país, no geral, sem indústrias suas, sem vida econômica intensa e própria, neste país, que vive, larga escala, do simples apanhamento de alguns dos seus produtos principais, como a borracha, o mate, as madeiras; ou da mera colheita de outros, cujas árvores produtoras duram trinta, quarenta e mais anos, como o café e o cacau, habitado por uma população formada das gentes mais apáticas do mundo – índios, negros e portugueses, ainda senão abriram largos horizontes à atividade nacional, nem esta teve a escola precisa que a estimulasse e desenvolvesse.

Ainda hoje, por esta razão, o funcionalismo, forma mais larga da política alimentária, é o nosso melhor e mais atraente meio de vida.

Por todos esses motivos, no ensino, nos falta também o mestre, quer dizer o mestre que faça do magistério um sacerdócio, e não seja forçado a fazer dele, principalmente, um meio de vida, um emprego como qualquer outro.

O professor dá uma lição com o mesmo entusiasmo com que o tabelião tira uma pública forma, ou o seu escrevente ajuramentado copia um formal de partilha.

Não é que falte a muitos de nossos professores o talento, como não falta a muitos dos nossos estudantes.

Falta-nos a emulação, a consciência de estarmos a colaborar numa grande obra nacional ou humana, o entusiasmo do sacrifício às nobres causas.

Por isto é apático, o nosso ensino; por isto manqueja ele e está d’alto a baixo desorganizado.

Não são os programas que nos faltam.

Temo-los de sobra.

Falha-nos a paixão, o devotamento, a alma.

A primeira reforma a fazer é em nós mesmos.

Deixemos as pedagogias arrevesadas de José Veríssimo e outros tantos pregoeiros de vacuidade.

São formas abstratas, roupas talhadas para gentes estranhas, receitas e manipulações para os habitantes da Lua.

Não servem para o matuto, o tabaréu, o caipira, o sertanejo brasileiro, desde o Rio Grande ao Pará.

Não prestam para as populações das vilas e pequenas cidades que se espalham pelo Brasil inteiro. Não convêm nem mesmo à mocidade das maiores, Recife, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro.

E não me despeço do assunto, sem lançar aqui uma nota mais.

Uma prova absoluta de que o magistério entrou francamente na categoria de mero meio de vida, sem mais alvo nenhum, prova, ao mesmo tempo, de nossa pobreza geral, do penoso estado econômico da maior parte de nossas famílias, está nessa terrível concorrência, nesse atual desespero das nossas jovens patrícias para tomar parte nele.

Nesta cidade o fenômeno assume proporções assustadoras.

A Escola Normal está dividida em dois cursos, ambos atulhados.

Diversos cursos livres acham-se nas mesmas condições.

Todos os anos apresentam-se à matrícula da E. Normal de oitocentas a mil candidatas.

É tal a quantidade de professoras diplomadas, que os poderes municipais se têm visto na necessidade de aumentar o número dos lugares a preencher.

O professorado feminino triplicou, senão quadruplicou de vinte anos a esta pate, sem a mínima vantagem.

Existem professoras catedráticas, provisionadas, estagiárias, adjuntas, adjuntas de catedráticas, de estagiárias e, até, adjuntas de adjuntas...

Mas nem por isto o ensino tem melhorado.

Possuo provas irrecusáveis do fato.

As nefastas propagandas que por aí correm só têm servido para aumentar esse desvio do espírito público, por mais que se ouse pensar o contrário.

Fala-se em contratar instrutores para o exército e marinha.

Julgo que devem também ser contratados para todo o ensino civil, a começar pelas primeiras letras.

Não só devemos mandá-los vir, como devemos enviar algumas dúzias de moços, dos mais inteligentes, aos países cultos, para que estudem as disciplinas dos vários cursos e aprendam a ensinar.

IV

Aspectos econômicos

Urge passar ao lado econômico deste rápido e despretensioso estudo. Ainda mais do que, sob o aspecto social, é mister na questão econômica seguir método divergente do geralmente praticado pelos mandões de ofício que manipulam isso que, a escola de Le Play, se chama a política alimentária.

Deve-se olhar para o povo, inquirir de seus meios e modos de viver, das condições de seu trabalho, antes de olhar para as grossas e enormes cifras dos orçamentos e as questões bizantinas de quebra de padrão, caixa de conversão, alta ou baixa de câmbio e outros graves problemas da metafísica econômica das gentes governamentais.

Com esses expedientes empíricos e com as sofisticarias com que os mascaram, têm durante cem anos, deixado o povo na miséria e o Estado no regímen crônico dos déficits. Nas discussões desses doutores da politicagem encontram-se teses para todos os paladares.

Só de uma coisa se não lembram: de olhar para a situação real das populações nacionais e estudá-las.

Usam sempre de um singular processo de enganosa magicatura, que ilude e mascara a verdade.

Tomam em globo a cifra da produção, confrontam-na com a da importação e dão-se por muito contentes e vitoriosos.

Mas em que condições se verifica essa produção?

Qual o estado do operariado agrícola pelo país afora?

Qual o estado das classes produtoras em geral?

É o que não dizem.

Tentemos um escorço desse negro lado de nosso viver econômico, ainda em teses gerais.

É olhar para o povo nas diversas zonas sociais, indagar de seus recursos, inquirindo sempre do quinhão que cabe ao produtor.

Pode-se chegar a formar uma idéia, mais ou menos aproximada, do estado de geral pobreza da maioria das populações nacionais, por métodos diversos.

Acompanhar a dispersão da população pelo corpo do país, verificando o real estado de seus recursos, de suas fontes de renda, será um desses processos.

Deixando as gentes de lado, por alguns momentos, lançar vistas para o país por toda a sua extensão e descobrir quais as regiões prósperas ou não, será um segundo método.

Analisar a natureza de nossas principais indústrias, e nossas fontes de renda, as mais amplas e as menos abundantes, relacionadas com o estado positivo das gentes em cujo meio se desenvolvem, será um terceiro.

Nas linhas, consagradas acima ao lado social de nossas populações, já algumas verdades ficaram esboçadas.

Mister é ampliar o quadro, no que se refere ao lado puramente econômico, infalível conseqüência que brota daquelas premissas.

Lançando vistas inquiridoras sobre as populações brasileiras, apreciando-as sob o aspecto das relações econômicas, se reconhecerá por toda parte, como expoente principal de seu estado, uma pobreza generalizada que se distende por todas as camadas com reduzidas exceções, fenômeno este que acompanha pari passu outra singular anomalia nossa: a ausência da verdadeira hierarquia social.

Destarte não possuímos nem a grande burguesia farta, nem dos campos nem das cidades.

Não possuímos também a grande aristocracia opulenta, a aristocracia do dinheiro, a nobre elite das enormes fortunas.

O que aqui, saindo do grande número amorfo e indistinto da pobreza geral, se poderia chamar a burguesia do comércio puramente brasileiro, das profissões liberais e do funcionalismo público, não se eleva em geral de parca mediania que vive muitas vezes au jour le jour, na quase totalidade dos casos.

Efetivamente, considerem os habitantes das cidades e os dos campos, de norte a sul ou de leste a oeste, como quiserem.

Nas cidades, como já deixei ponderado, preciso é fazer distinção entre as quatro ou cinco merecedoras deste nome e as seis ou oito de ordem secundária, e, mais ainda, entre elas e as povoações menores esparsas por todos os estados, que no geral não passam de vilas e até de aldeias, ao rigor da expressão, a despeito de se arrogarem aquele pomposo título.

As primeiras, à sombra do terrível protecionismo da pauta, verdadeiramente proibitivo, ensaiam agora as indústrias fabris e manufatureiras, mas estão infinitamente longe de se poderem comparar aos grandes centros congêneres da Europa ou dos Estados Unidos.

Em rigor, não passam de meros núcleos comerciais, não mui consideráveis, aliás colocados entre o mundo exterior e as populações nacionais: importam e exportam a produção alheia.

As indústrias nelas estabelecidas de tecidos, papel, vidros, calçados, mobílias, medicamentos, ferragens, e poucas outras, quase todas movimentadas por capitais estrangeiros, estão muito longe de ser perfeitas nos seus produtos e de poderem competir com a produção de fora, o que só conseguem graças aos rigores da tarifa.

Nas mais consideráveis destas cidades, Rio, São Paulo, em parte em Santos, a população divide-se, pouco mais ou menos, nas seguintes classes: Alguns capitalistas e banqueiros em reduzido número, que se poderá contar nos dedos, aos quais caberia o qualificativo de ricos.

Logo abaixo certa porção de grandes negociantes, importadores e exportadores, bem colocados, possuidores de algumas fortunas, que nos parecem, a nós pobretões, consideráveis, porém, em verdade, de pequeno vulto, comparadas às dos Estados Unidos, Europa ou Argentina.

Grandíssima parte deles é de estrangeiros.

Seu número não é crescido e representa pequeníssima proporção, se o compararmos à população total do país.

Em terceira linha, aparecem os médios negociantes, em número muito mais crescido, que juntam alguns lucros, mas ninguém se lembraria de os comparar aos burgueses ricos dos países abastados.

Em seguida, ou, bem melhor, acima destes, convirá colocar, principalmente no Rio de Janeiro, longa caterva de altos políticos de profissão, que exercem a mágica advocacia administrativa, ou os gordos empregos de chefes de partido ou de influência neles; certos senadores e deputados, crônicos jornalistas poderosos, ministros e ex-ministros de Estado, determinados figurões arranjadores de empresas, onde fazem guapa figura alguns nomes que todos conhecem e não quero citar.

Após, segue-se reduzido número de felizes cultores das profissões liberais: médicos, advogados, engenheiros de fama, aos quais se podem ligar os mais altos funcionários do Supremo Tribunal, Tesouro, Alfândega, secretarias de estado, etc., etc.

Surge, em seguida, o pequeno comércio a varejo que, a despeito de verdadeiras extorsões que costuma cometer, não se pode considerar grandemente próspero.

Ao lado deste, ou talvez um grau acima, distende-se o grupo dos diretores de fábricas e com eles os empreiteiros, os corretores, os empregados superiores do comércio, os despachantes das alfândegas.

Ninguém dirá, porém, que todos esses, nesta terra, sejam felizes cultores do mamonismo.

Em apagada linha veja-se desfilar essa curiosíssima e desarticulada classe que alguns fantasistas ousam chamar a nossa aristocracia literária e administrativa, mas que, no fundo, constitui um tristonho viveiro de pauperismo, de mendicidade envergonhada, porque é diplomada e veste fraque e sobrecasaca: é o mundo dos médicos sem clínica, dos advogados sem clientela, dos padres sem vigararias, dos engenheiros sem empresas e sem obras, dos professores sem discípulos, dos escritores, dos literatos, dos jornalistas sem leitores, dos artistas sem público, dos magistrados sem juizados ou até com eles, dos empregados públicos mal remunerados, gente toda essa obrigada a guardar aparências e a fingir que possui...

Em indistinto grupo surgem os operários propriamente ditos, os trabalhadores braçais dos ofícios: alfaiates, sapateiros, caldeireiros, carpinteiros, pedreiros, marceneiros, ferreiros, calceteiros, tipógrafos, encadernadores, pequenos empregados, do comércio médio e inferior.

Vivem em apertada mediania ou perfeita pobreza em muitíssimos casos.

O mesmo se dá com os cocheiros, carroceiros, empregados dos bondes, carregadores, engraxadores, quitandeiros, que formam outra categoria.

Segue-se depois a turbamulta indistinta, viciosa, que possuímos em larga escala, de vadios, capoeiras, capangas, jogadores de profissão, que vivem ao deus-dará, ou de suas agências, como eles mesmos dizem.

Dessa classe espúria é que, desgraçadamente, saem na maior parte os criados que empregamos no seio de nossas famílias.

Eis aí: de alto a baixo, com as indispensáveis exceções que constituem as cinco primeiras classes, reina em nossa terra, mesmo nas grandes cidades, de que tanto nos orgulhamos, a mais crassa pobreza, em grande número de casos, completa miséria.

Não é tudo.

Nas cidades de segunda ordem, que nem são grandes focos políticos, nem verdadeiras praças comerciais, reproduzem-se as mesmas séries de classes na população, menos as mais eminentes.

Nas pequenas povoações do interior reproduzem-se só as últimas e inferiores séries, dando-nos o espetáculo de quase geral mendicidade.

Chega-se a não saber de que vive o grosso da população, que, fugindo dos ásperos trabalhos do campo, se aglomera nas aldeias, povoados e vilas por todo este Brasil afora.

Tirados o padre, o mestre-escola, os funcionários da justiça, onde os há, alguns vendeiros e lojistas que exercem um reles comércio, alguns oficiais e ofícios braçais, não se percebe bem de que vive o resto, que é a maior parte da população.

Tive repetidos ensejos de observar este fato em povoações do centro de Minas, Sergipe, Pernambuco, Santa Catarina, Bahia, Alagoas e Estado do Rio de Janeiro. E para que não se tenha a leviandade de supor que, sequer de longe, exagero, aqui vou dar testemunho de primeira ordem, o de um grande espírito, emérito observador.

Escolho de propósito atestado referente a um dos mais ricos termos da zona agrícola mais próspera de Pernambuco e nos mais belos tempos em que o açúcar estava ainda na pujança.

Há trinta e quatro anos dizia Tobias Barreto, no seu famoso Discurso em mangas de camisa: “Alto e bom som se diz que a Escada é riquíssima, que é dos mais ricos municípios da província.

“Quero crer que assim seja. Não é, porém, estranhável, que, sendo o município tão abastado, ofereçam os habitantes da cidade, por este lado, aspecto pouco lisonjeiro?

“Para as vinte mil cabeças da população do termo, esta cidade, contribui com três mil, pouco mais ou menos.

“Sobre estas três mil almas, ou melhor, sobre estes três mil ventres, é probabilíssimo o seguinte cálculo: 90% de necessitados, quase indigentes, 8% dos que vivem sofrivelmente, 1½ dos que vivem bem, ½ de ricos em relação.

100 “Semelhante quadro, que pode pecar por excesso de cor-de-rosa, não é todavia apto para dar de nosso estado econômico outra idéia, senão a de um pauperismo medonho, quando muito moderado pela esperança de uma sorte de loteria.

“Nesta triste conjuntura que faz o estado, que faz a província, que faz o município em favor da população, para diminuir-lhe os obstáculos e facilitar-lhe o trabalho?

“Nada mais nem menos do que sobre o costado da besta, já caída de fadiga, arrumar mais alguns quilos, a fim de ajudá-la a erguer-se.

“O estado e a província sugam anualmente deste município, sem falar de outros canais, e só do que corre pelas duas coletorias, de 25 a 30 contos de réis. Eis o que vai no refluxo.

 “Vejamos agora o que vem no fluxo: 10% dessa quantia, que se gasta com a magra instrução pública; 15% com a justiça e seus apêndices; 20% com a polícia...

“O resto, a saber, mais de metade, vai perder-se em outras plagas, sendo ainda para notar que as despesas com a polícia local são as únicas que trazem um resultado prático e sensível, pois que o cidadão em muitas ocasiões recebe no lombo a benéfica pancada do refle.

“Por sua vez, a municipalidade exercita, com o mesmo zelo, suas funções exaurientes e não se sabe, em última análise, em que emprega a sua receita.

“Por toda parte, pois, e sob todos os pontos de vista, os mesmos sintomas mórbidos, as mesmas ânsias, a mesma angústia.

“As consciências como que perderam o centro de gravidade moral e balançam-se inquietas em busca de um apoio.

“A instrução é quase nula, à medida que também é nulo o gosto de instruir-se.

“Viu-se que o despêndio feito com as escolas desta cidade é muito inferior ao que se faz com a polícia: sinal evidente de atraso intelectual.

“Não se limita a isto.

“Segundo a opinião de competentes, a proporção regular entre o número de habitantes de um lugar e o das pessoas que devam freqüentar a escola é de 12 a 15%, se esse lugar quer ter título de adiantado.

“Ora, dos três mil espíritos que disse haver aqui dentro – 4% e alguns quebrados é que se encontram realmente de freqüência em cinco casas de instrução que existem, sendo somente 7% o número dos matriculados.”

Palavras que pintam ao vivo a situação daquele tempo em uma cidade do interior.

Servem de fotografia do Brasil inteiro, sendo inferiores as condições em outras zonas menos prósperas. Hoje as coisas andam muito modificadas para pior.

As palavras do preclaro brasileiro, que tinha tanta distinção como poeta quanta como crítico e jurisconsulto, vêm confirmar como disse, além da geral pobreza, o dito de não sei que observador inglês, que acertadamente nos definira – um povo de analfabetos e doutores.

Parece contradição, mas não é; o grosso da população é inegavelmente analfabeta, a porção, porém, que chega a ir para os estudos, procura, na máxima parte, formar-se, isto é, arranjar o diploma que facilmente lhe abra as portas do funcionalismo.

A mesma mania existe em Portugal, como tive ensejo de observar e como se encontra documentada em Rocha Peixoto – A Terra Portuguesa, no engraçado capítulo – Ir pros estudos.

Releva ponderar que no Brasil a moléstia lavra mais intensamente ainda.

É tempo de lançar vistas às populações rurais.

Em primeira linha vêm, nas regiões de leste, centro e oeste do paralelo 16 ou 15 para cima, os fazendeiros de criar, os proprietários de seringais, os senhores de engenhos de açúcar, os grandes cultivadores de cacau; nas terras meridionais, daqueles paralelos para baixo, – os fazendeiros de café, os donos de estâncias de criar, os senhores de engenhos de mate, conforme as zonas do país. Não são gentes que se possam considerar milionárias, nem mesmo, em grande parte, abastadas. Existem muitos desses proprietários completamente arruinados.

Esta é a verdade, e, quase sempre, a origem dessa ruína, dessa quebradeira, é, além da falta de braços de pessoal idôneo e abundante para as respectivas indústrias, a rotina dos processos de trabalho.

Tal a fisionomia da nossa faustosa plutocracia agrária, que tanto ilude de longe.

Após os grandes agricultores, criadores e extratores ou apanhadores pelo método extensivo, mister é colocar os médios e pequenos lavradores, os donos de reduzidos sítios e fazendolas, de não avultados seringais, etc., etc.

Logo após aparecem os agregados ou moradores que lavram terras dos grandes fazendeiros e senhores de engenho.

Não passam todos de precária mediania que se avizinha assaz da pobreza, manifesta em muitos casos.

Seguem-se os trabalhadores rurais, propriamente ditos: antigos homens livres que vivem de seu serviço braçal, e antigos escravos, hoje livres, eles ou seus descendentes, que praticam de igual sorte.

Cumpre dizer quanto aos ex-escravos e sua prole, que só em muito reduzida porção permanecem nas fazendas e engenhos. A maior parte debandou para as vilas e cidades, confirmando, destarte, a irresistível tendência da raça negra para residir nas grandes aglomerações, como tão lucidamente demonstrou A. de Préville em Les Societés Africaines.

Nas terras meridionais, em São Paulo, parte de Minas, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul – deparam-se-nos os colonos estrangeiros ou seus descendentes.

Em Minas e São Paulo espalhados, como trabalhadores nas fazendas, em substituição do antigo braço escravo; em Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul principalmente aglomerados em fortes núcleos, alguns, já hoje em dia, verdadeiras vilas e cidades. Os dos campos vivem regularmente da produção agrícola; os das cidades dedicam-se a várias indústrias.

Estes são pela maior parte de origem alemã; aqueles de estirpe italiana.

Após todas estas classes rurais, levemente apontadas, aparece, mesmo nos campos, a turbamulta dos vadios, dos pernósticos, dos cafajestes, como se diz em Pernambuco, que, neste abençoado clima, passam sem ocupações, agregando-se aqui e ali aos proprietários de épocas em épocas, ou indo engrossar os numerosos troços de bandidos que, como os dos Bálcãs, da Albânia, do Atlas, da Córsega, da Serra Morena, da Sicília, – percorrem os nossos sertões...

Deste rapidíssimo escorço forçoso é concluir que não brilha pela farta riqueza, de alto a baixo, a nossa população rural.

Alguns fazendeiros de São Paulo, resto dos bons tempos da escravidão, e certo número de estancieiros criadores do Rio Grande do Sul abrem exceção, não demasiado extensa, que vem confirmar a regra.

Vamos adiante.

A compreensão da nossa exata posição econômica determina- se, disse eu, não só pela vista geral das populações tomadas em seções, como ainda pelo lançar de olhos sobre o estado das terras pelo país afora.

Aqui bastam algumas pinceladas seguras, impostas pelos fatos irrefragáveis.

Não basta arrumar em cifra a soma total de nossa exportação, aliás menor do que a de muitos países pequenos da Europa e América, para se ficar pensando que o Brasil nada em ouro.

A exportação de meia dúzia de gêneros, provindos de regiões entre si enormemente distanciadas, deixa logo ver que existem largas zonas do país que se debatem na miséria, no atraso, no entorpecimento.

Este caráter especial da nossa produção será estudado linhas abaixo.

Por ora basta lançar vistas sobre o aspecto do país, pelo lado da intensidade maior ou menor da vida.

No Brasil todo, de norte a sul, depara-se-nos o fenômeno de terras, vilas e cidades em franca decadência.

A começar pelo vale amazônico, sabe-se que ali antigamente proliferou e progrediu a vida agrícola, que foi a origem de povoações como Macapá, Mazagão, Gurupá, Monte Alegre, Santarém, Alenquer, Óbidos e outras de rio acima.

Pois bem, com o apanhamento selvagem da borracha que desloca os trabalhadores da enorme região para pontos distantes, todas aquelas vilas e cidades, outrora florescentes, estão hoje decadentes.

É que não basta a exportação bruta de produtos de índole aleatória para que se consolide a riqueza local.

No Maranhão a famosa crise do nosso açúcar de cana, diante da concorrência estrangeira nos mercados mundiais, por um lado, e por outro, as incertezas e azares da vida pastoril, tem acarretado a decadência ou o estacionamento de cidades como São Luís, Alcântara, Viana, Grajaú, Brejo e a mesma Caxias.

A capital, São Luís, no começo da República, entrou em certa atividade fabril, cedo esvaecida.

O fato do entorpecimento das cidades que não avançam, que estacionam ou francamente decaem, não se desmente no Piauí.

Oeiras, Jurumenha, Amarante, Jaicós, Picos e outras são a prova.

Inegável é ele no Ceará e na zona das secas do Rio Grande do Norte, Paraíba e sertões de Pernambuco.

Este último estado, Alagoas, Sergipe, Bahia e toda a zona da lavoura da cana, desde o Rio Grande do Norte até o Espírito Santo, não saem da regra geral.

Escusado é citar os nomes das povoações, porque as próprias grandes capitais, como Recife e S. Salvador, ali estão para atestar o inegável fenômeno.

No Rio de Janeiro não há quem ignore que as cidades da costa, como Angra, Parati e outras, pontos terminais de largo comércio em dias de antanho, caíram em completa decadência, acompanhando muitas mais do interior do mesmo estado de São Paulo, que se ressentiram com as deslocações causadas pela estrada de ferro central.

A vida, ainda muito pouco intensa e mal arraigada por indústrias locais, tem-se afastado, emigrando para os pontos terminais.

Fatos todos estes que demonstram a pouca solidez de nossa estrutura econômico-social.

Em Minas, Goiás e Mato Grosso é geralmente conhecida a decadência das povoações das antigas zonas de mineração, que se extinguiu quase por toda a parte.

Basta ir ali perto ver o estado de marasmo de S. José de el-Rei, ou na cidade de Campanha.

São Paulo, com toda a sua galhardia, não desmente o fato.

Na costa e no interior, é ele patente.

O deslocamento do trânsito numa parte, o esgotamento das terras de café na parte nordeste do estado – fornecem a explicação do assunto.

Mas a explicação de um fato não quer dizer que ele não exista.

São Vicente, São Sebastião, Ubatuba, Taubaté, Lorena e outras ali estão falando claro.

De Paraná e Santa Catarina basta dizer que as vastas regiões de oeste estão muito longe de ter sido colonizadas a ponto de por elas circundar a vida culta e riqueza.

Bem ao contrário.

A própria zona correlativa no Rio Grande do Sul, toda a antiga extensa região dos Povos das Missões – não está próspera; decaiu evidentemente.

A razão capital de toda essa estagnação, além de motivos que se prendem à grande extensão do país e ao modo como ele foi colonizado, encontra-se na índole especial de nossas principais indústrias.

Descubro nelas os seguintes sinais: certos caracteres de primitividade, grosseria, descontinuidade, exclusivismo, intermitência.

O seu cunho primitivo se revela, numas, como a borracha e o mate, no fato de serem meras dádivas da natureza; e noutras, em serem de plantas que duram trinta, quarenta e mais anos, como o cacau e o café.

Daí, dado o gênio do português, que nunca foi de assíduo agricultor apto a vencer dificuldades, cresceu certa falta de persistência, de gosto no trabalho, de coragem em afrontá-lo, de iniciativa em variá-lo e fazê-lo crescer, que é próprio de nossas populações.

Daí proveio também o outro característico de nossas indústrias que ficou apontado: certa grosseria.

Tem sido esse o motivo principal do mau tratamento das nossas borrachas, dos nossos açúcares, dos nossos cafés, dos nossos tabacos, etc., que chegaram a ser depreciados no estrangeiro, a despeito da sua superioridade natural.

A descontinuidade e correlato afastamento de nossas indústrias se revela no fato de se acharem as principais (e é sempre destas que trato) confinadas em regiões separadas e longínquas entre si.

Café para um lado, borracha para outro, açúcar para outro, ferro e manganês para outro, a grandes distâncias.

Daí resulta que a possível intensidade da vida econômica, geral e contínua, não se manifesta.

Em torno de três ou quatro regiões isoladas de prosperidade econômica distendem-se vastas zonas de marasmo.

Não é só: certo caráter de exclusivismo é nelas inegável, quer dizer que, nas terras em que predominam, tudo absorvem, não deixando campo a outros gêneros de atividade e cultura.

Tal o motivo capital por que se não retalharam os enormes latifúndios e não medrou a pequena lavoura nas regiões do açúcar, do café, da borracha, do mate, do ferro.

As conseqüências deste fato têm sido desastradas.

Não insistirei nelas, porque não estou escrevendo um livro e sim um opúsculo.

O caráter de intermitência de nossos principais produtos agrícolas e extrativos se evidencia na sua periodicidade em épocas certas do ano, dando lugar a largos meses de penúria e na maior ou menor intensidade ou escassez em períodos mais largos.

Esta última característica foi, com habilidade, apontada pelo Deputado Cincinato Braga, em discurso pronunciado na Câmara dos Deputados aos 14 de dezembro deste ano.[13] Os inconvenientes de todos estes característicos nas finanças, no comércio e na vida econômica nacional são fáceis de prever. Escuso esmiuçá-los detidamente.

Outra consideração devo juntar às notações estabelecidas: a espécie de intervariação histórica, que houve entre essas diversas indústrias, que se revestiram, desde o começo, de certo cunho de aventura e acaso.

Na colonização do Brasil, sob o ponto de vista econômico, não se assiste à formação de um organismo forte, robusto e gigânteo, que se vá constituindo aos poucos, num crescendo normal, que se vá distendendo por todas as zonas regular e harmonicamente.

Não se assiste à formação lenta e gradual duma democracia rural, ativa, autônoma, que vá acumulando a riqueza no amanho das terras.

O português, desabituado ao trabalho agrícola intenso, como está demonstrado em Costa Lobo – A Sociedade Portuguesa no Século XV; em Anselmo de Andrade – O Portugal Econômico e, melhor ainda, em Léon Poinsard – Le Portugal Inconnu, administrou a colônia como uma feitoria comercial por empreitadas.

O governo concedeu capitanias e depois sesmarias e mais sesmarias, a torto e a direito, a olho.

Os colonos, esparsos, reduzidos em número, aglomeraram-se em povoados que foram fundando desde o século XVI.

A lavra dos campos só foi tentada, mui lentamente nas terras próximas aos povoados.

A princípio, os primeiros exploradores andaram a perder tempo no corte de madeiras para a exportação.

Em seguida, com os braços dos índios e escravos negros, iniciaram o cultivo da cana-de-açúcar.

O proprietário absenteísta, morador no povoado, tinha feitores para dirigir e conter a escravaria da terra e de Guiné...

Durante todo o século XVI e XVII não se fez outra cousa.

Nos fins do último e começos do XVIII é que principiou nos sertões do Norte a mais ou menos reduzida criação do gado bovino.

Este sempre não muito avultou.

Ao primitivo período do açúcar só no segundo quartel do século XVIII se vem juntar o ciclo da mineração, que dura apenas um século, entrando em franca decadência, logo que se tornaram precisos grandes e dispendiosos trabalhos de arte.

Volta-se quase exclusivamente ao açúcar, como produto natural de exportação.

O período do café só no século XIX se abre em regra e desenvolve intensamente.

Tarde, muito mais tarde, chegou a fase da borracha.

É de nossos dias.

A conseqüência deste errôneo modo de colonizar é aquela mesma a que já aludi: o não se ter constituído a democracia rural, não se criarem as pequenas culturas...

Daí o conservarem, de alto a baixo, as nossas agriculturas principais francos sinais de espúrio feudalismo: o senhor e os escravos, ontem; o fazendeiro e os colonos, hoje. Pelo que diz respeito às indústrias extrativas: donos de seringais e a turbamulta quase escravizada dos seringadores;[14] os senhores de engenhos de mate e os falquejadores que o colhem. Quanto às indústrias criadores, no Norte: os fazendeiros e os seus vaqueiros; e no Sul: os estanceiros e seus capatazes e peões.[15]

Em tais condições, não é agora sem razão lançar neste lugar rápida vista sobre a prosperidade ou não de nossas indústrias. Basta ver as mais eminentes.

Este ponto foi tratado por Cincinato Braga.

Por minha parte estudara as mais consideráveis e as menos importantes.

Para não ser muito extenso, basta consignar aqui as conclusões do ilustre paulista acerca das mais notáveis, mesmo para que mes amis tes ennemis não ousem pensar que exagero.

Chamo o deputado em meu auxílio.

Eis o quadro, cumprindo notar que a maior porção das informações fornecidas pelo deputado paulista são hauridas no Retrospecto do Jornal do Comércio do ano de 1909: Açúcar – Aqui está o que antes da alta cambial deste ano, já dizia o insuspeito Jornal do Comércio, em seu retrospecto de 1909: “Para manter-se, a indústria açucareira tem de lançar mão de um processo antieconômico e prejudicial aos interesses do consumidor interno, entregando ao consumo, e a preço arbitrariamente taxado, apenas a quantidade de que ele estritamente carece, e despejando o resto a todo o preço nos mercadores exteriores.”

A situação desta lavoura é atualmente desesperadora. Teria tido ela de 1899 para cá tal incremento e preços tão bons, que pudessem ter enriquecido seus agricultores para resistirem agora?

Não. Eis aqui os miseráveis preços da qualidade superior:

Anos                                                       10 quilos

1900 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9$500

1901 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6$500

1902 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4$200

1903 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$250

1904 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$250

1905 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$000

1906 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3$200

1907 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4$000

1908 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6$000

1909 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$000

1910 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$200

O açúcar demerara, esteve em março a 3$000; com a alta de câmbio, caiu em agosto a 2$100: perdeu 30% de seu preço.

E a lavoura de açúcar ocupa a atividade de mais de um terço da população do Brasil.

Algodão – Os preços deste artigo estão atualmente em baixa.

Têm sido estes:

Anos                                                       10 quilos

1899 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13$000

1900 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14$000

1901 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11$000

1902 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9$100

1903 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13$000

1904 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13$000

1905 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8$700

1906 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9$500

1907 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14$200

1908 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10$800

1909 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12$000

1910 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10$500

O algodão ia tendo uma alta em março; mas a subida do câmbio deu-lhe para trás, e seu preço caiu de 31% em agosto.

Cacau – O retrospecto de 1909 informa: “O cacau, fornecendo em 1909 um contingente maior à exportação do que em 1908, produziu em valor uma quantia, não só relativamente, mas absolutamente menor, do que se tinha apurado no ano antecedente.”

A situação atual, de 1910, é crítica; os preços têm sido em média os seguintes:

Anos                                                       10 quilos

1901 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9$340

1902 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8$160

1903 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7$750

1904 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7$550

1905 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$330

1906 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$860

1907 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10$230

1908 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7$360

1909 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$820

1910 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$800

O cacau chegou em março a 7$800; mas, com a alta do câmbio, caiu outra vez o seu preço de 25% em agosto.

Mate – Diz o restrospecto de 1909: “Não obstante ter sido exportado em maior quantidade em 1909 do que fora em 1908, produziu, entretanto, resultado pecuniário menor, em relação à unidade que lhe serve de medida.”

Seus preços têm sido estes:

Anos                                                       10 quilos

1901 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $530

1902 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $700

1903 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $296

1904 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $392

1905 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $491

1906 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $448

1907 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $450

1908 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $431

1909 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $388

1910 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $440

Fumo – Informa o retrospecto citado: “O fumo, embora exportado em 1909, em maior quantidade, quase dupla, do que no ano anterior, deu todavia um resultado, em dinheiro, relativamente menor.”

Seus preços têm sido estes:

Anos                                                       Quilos

1901 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1$500

1902 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $550

1903 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $650

1904 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $776

1905 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $616

1906 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $517

1907 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $958

1908 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $980

1909 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $740

1910 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $680

Couros – Os preços têm sido os seguintes:

Anos                                                       Quilos

1901 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $835

1902 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $810

1903 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $835

1904 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $875
1905 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $682

1906 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $815

1907 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $840

1908 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $585

1909 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $789

1910 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $717

Todos os produtos de exportação, já enumerados, estão em situação de preços paralisados ou decadentes.

Nossos antagonistas argumentam especialmente com a recente alta dos preços do café e da borracha. Vejamos isto:

Café – Os preços desta mercadoria têm sido, em média por ano, os seguintes, no mercado do Rio:

Anos                                                       10 quilos

1899 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4$700

1900 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$430

1901 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3$300

1902 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3$150

1903 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4$600

1904 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$900

1905 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$300

1906 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4$530

1907 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3$540

1908 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3$450

1909 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4$300

1910 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6$000

É mister ponderar que, no decênio anterior, o café tinha estado a 10$500, 15$000 e 16$000 por 10 quilos. Basta isso para ver-se que, de 1899 a 1910, a situação foi de desespero! Foi de queda à quarta e à quinta parte dos preços anteriores.

Apenas de junho de 1910 para cá, esta mercadoria tem estado em alta: não alta exagerada. Ainda não atingiu senão os preços médios do decênio de 1890 a 1900. A esta alta se referem os nossos antagonistas para justificarem a elevação da taxa cambial. Mas esquecem que essa alta se está dando, não naturalmente, mas porque o governo de São Paulo restringiu artificialmente a oferta do gênero nos mercados, conservando retiradas deles seis e meio milhões de sacas, a título muito oneroso para a lavoura. Isto quer dizer que a situação da lavoura de café é ainda de franca crise econômica: se se restituir ao mercado o retido, os preços cairão outra vez imediatamente. Situação de franca crise; tanto assim que tem estado, e vai continuar a estar proibido o aumento das plantações, enquanto subsistir o empréstimo de 15 milhões de libras.

E não é tudo. Essa alta assim precária, é também conseqüência da pequena safra futura. Em que pode ela animar veleidades de alta cambial, quando a artificial melhoria de preços provém da escassez da produção, e quando esta produção não pode em muito aumentar-se, por causa da proibição das plantações?

Para o Brasil, que adianta subirem os preços de mercadoria que ele não tem para vender nas quantidades anteriores? Se a alta viesse sem artifícios onerosos para pagar produção tão abundante, ou mais abundante, comparada com a anterior, então sim, não restaria a examinar senão o aspecto da permanência, ou não, dos preços assim elevados. Se fosse de esperar a permanência de tal alta, tolitur quaestio, a situação econômica desse ramo da produção nacional seria de sólida prosperidade.

Agora, porém, não se dá isso.

Borracha – A situação dos preços da borracha tem sido esta:

Anos                                                       Quilos

1899 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6$650

1900 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8$600

1901 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6$000

1902 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$000

1903 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6$000

1904 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6$500

1905 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6$500

1905 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6$400

1906 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$800

1907 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4$900

1908 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$200

1909 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7$000

1910 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . -$-

No corrente ano, a borracha teve uma alta repentina e considerável. Chegou a vender-se até a 15$000. – Efeito de condições naturais da produção e do consumo? – Não. Efeito de ousado golpe da bolsa, de uma formidável especulação de praça, tão transitória, que já os preços caíram, desapontadoramente, abaixo do nível anterior a essa especulação bolsista. O preço atual é de cerca de 6$000 por quilo. Pode-se, pois, confiar em consistência econômica sólida na produção da borracha? Não.

O pior, porém, não está só nisso. Está na extrema gravidade do perigo iminente, que ameaça, neste momento, esse importantíssimo ramo da nossa exportação, o segundo em valor ouro depois do café. A borracha é uma das colunas mais importantes do edifício do nosso câmbio e essa coluna está ameaçando esboroar-se! Estamos a braços com o perigo de vermos arrebatado ao Brasil o cetro privilegiado da produção da borracha.

Este assunto é de máxima gravidade. A que taxas não baixaria nosso câmbio, quando cessasse o amparo importantíssimo que atualmente lhe presta esse precioso produto, que fornece à praça cerca de vinte milhões de libras? Ninguém há que possa responder a esta pergunta, temendo que a resposta seja uma nova moratória... A verdade, entretanto, deve ser dita, precisa ser sabida e divulgada. O Brasil tem tido quase o privilégio exclusivo do fornecimento da borracha ao mundo. Essa posição, porém, começa agora a ser perdida para nós, devido ao aumento portentoso da cultura e da exportação desse produto no Oriente.

Mineração – Temos tido algum desenvolvimento dos trabalhos de mineração, especialmente de extração do manganês. Com a taxa de 15, esses trabalhos ainda se mantinham, embora proporcionando lucros escassos. Com taxa superior a 15, e especialmente com as taxas próximas de 18, tenho notícia do fechamento de um estabelecimento de mineração e de grande desânimo em outros.

“De toda a longa exposição que acabamos de fazer, se verifica que a situação econômica de todas as nossas fontes de produção exportável é antes precária do que próspera. Limitamos o nosso estudo à constatação dos preços dos produtos. Não tivemos tempo de levar o nosso inquérito até aos detalhes de custo da mão-de-obra e de remuneração aos capitais empregados. Estamos, porém, convencidos de que o estudo desses detalhes não faria senão confirmar as nossas conclusões...”

Neste assunto, porém, não basta fazer o que, com auxílio do retrospecto do Jornal do Comércio, fez o Sr. Cincinato Braga.

Indispensável é ir além, mostrando as condições em que ficam os desgraçados que produzem essas riquezas, em que se apascentam o fisco e a exploração implacável do capital, quase todo estrangeiro.

Qual a situação real das massas de verdadeiros escravos que colhem a goma elástica?

A mais ignóbil que é possível imaginar, referem testemunhos insuspeitos de dúzias de indivíduos que tenho ouvido, vindos do Amazonas e do Acre...

Internados aos pequenos grupos no interior das matas, vivem na completa promiscuidade e abjeção das tribos mais atrasadas de que há memória.

Sujeitos despoticamente aos donos dos seringais, como estes andam pelo cabresto dos aviadores explorados pelos regatões, perdem a noção da família, todos os melindres da dignidade, transformam-se quase em brutos.

Os mais instintos sobem à tona E não é só no meio da mata que se nota a barbárie e o atraso.

Em regiões mais mansas, à margem dos rios da Amazônia, nos povoados – a pobreza, o mal-estar, a indigência são a regra.

Em Bates, Agassiz, Euclides da Cunha existem páginas verdadeiramente compungitivas.

Não há muito o Brasil inteiro leu espantado a tétrica pintura que fez, em poucas linhas, do estado moral e social das gentes das povoações do Madeira o eminente cientista Dr. Osvaldo Cruz.

Não há mister de chegar até ele para se ter notícia do fato.

Os próprios literatos e acadêmicos, tão melífluos com os poderes, tão cheios de diplomatices com certos indivíduos de renome, são os primeiros a depor acordes ao tema.

Eis aqui palavras de um deles, dadas como conclusão de um estado acerca das populações da Amazônia:

“1º As raças cruzadas do Pará estão profundamente degradadas.[16]

“2º Ao meio e às condições sociais políticas e religiosas, em que se deram os cruzamentos, se deve atribuir o lastimável estado a que chegaram.

“3º Pondo de parte este estado, o que é certo é que, relativamente, predominou nestas raças o elemento indígena mais do que o português.

“4º A população que não pertence a estas raças – sentiu também essa influência.”

Esses dizeres têm apenas um defeito: ao lê-los desprevenidamente pode-se ficar a pensar que as aludidas raças cruzadas da Amazônia constituem ali uma pequena parte da população, quando o inverso é justamente a verdade.

Pondo-se de parte alguns negros puros, em número reduzidíssimo; os indígenas puros, ainda acantoados nos sertões; os portugueses nativos, residentes em Belém e Manaus, em número pouco avultado; alguns estrangeiros, nomeadamente ingleses e americanos, em quantidade insignificantíssima, o que resta, e é quase a totalidade da população, são esses representantes dos cruzamentos dos três povos, representantes aos quais errônea e meio desdenhosamente chama o autor as raças cruzadas do Pará e Amazonas...

O escritor é um genuíno rebento dos três povos e foi nascido ali.

Quem o ler, ignorando os fatos, poderá pensar que quem está a escrever aquelas conclusões é algum puríssimo ariano da Escandinávia ou da Inglaterra nas zonas mais extremes de misturas.

Puro engano.

Trata-se de um cafuzo irrecusável, exemplar típico para servir de exemplo.

Nada mais cômico do que ouvir sujeitos, como esse citado, fazerem referências às raças cruzadas da Amazônia, como alguma coisa que está fora deles, alguma coisa que lhes é estranha, de que não fazem parte, a que são superiores...

Ora esta!

Mas vamos adiante.

Se a gente da borracha, estudada entre os que diretamente a colhem, apresenta aquele aspecto, a do açúcar e do tabaco não está em muito melhores condições.

Não há muitos dias conversei com um amigo que possui negócio de tabaco na Paraíba do Norte.

Ele e um irmão tomaram no interior, em zona apropriasda, por arrendamento, largas extensões de terreno, onde colocaram numerosos plantadores de fumo.[17] Estes colhem, como próprios, os resultados de seu trabalho e os vendem aos dois negociantes.

Foi o melhor meio que eles escontraram para os prender à cultura.

Não são gentes preguiçosas, mas, no geral, não ecapam às condições de positiva pobreza.

Esse amigo deu-me conta de dois fatos, de que já tinha notícia por informações provindas de quase todo o norte e interior do país, mas que, nas suas palavras, vi plenamente confirmados.

A pressão que fazem certos mandões sobre os pobres plantadores, aos quais forçam a venda de sua produçao, é um deles.

A coisa passa-se assim: há sempre na comarca ou no termo ou no município um ou mais chefes políticos pertecentes ao grêmio oligárquico que oprime o estado; algum desses sujeitos faz saber que, naquele ano, é ele quem vai comprar o fumo. Já se vê, faz o preço que lhe convém.

Os pobres tabaréus não tugem nem mugem.

Corre logo a notícia: “Este ano quem compra é o capitão F...”.

Está tudo dito.

Pior do que em plena Idade Média.

O outro fato, este clamorosíssimo, atestado por meu amigo, é a sem-cerimônia com que um mandão poderoso qualquer, apadrinhado pela oligarquia, já se vê, em tendo lançado, verbi gratia, vistas cobiçosas sobre um bom sítio, uma boa propriedade de alguém, se esse alguém não desfruta igual proteção, toma-lhe à força, ou por traças adrede preparadas.

Um pavor!

Sei de um fato destes acontecido, não há muito nas cercanias de Belém do Pará. Relatou-me, com todas as minudências e com todos os nomes, pessoa competente. Mas destas coisas não se fazem relação aos Ferreros, Clemenceaus, Anatoles Frances, Ferris, Denis...

O meu informante da Paraíba narrou-me que corta o coração ver, nas zonas da cana-de-açúcar, canaviais inteiros abandonados e muitos arrasados pelo fogo.

A decadência é completa nestas regiões por todo o Norte, desde Pernambuco ao Maranhão: o produtor imediato, o trabalhador rural, o plantador de cana, o operário dos engenhos, vivem em desgraçada pobreza.

Nem se pense ser isto apanágio dos estados escravizados do Norte, como, por ocasião da última eleição presidencial, era moda denominar aquelas circunscrições políticas.

O mesmíssimo acontece nas zonas do café em Minas e no Estado do Rio de Janeiro.

Neste ponto os documentos são tantos que me vejo embaraçado na escolha.

Neste mesmo livro, nos Problemas brasileiros, o seu autor, Artur Guimarães, – dá testemunho do fato nestas cruéis palavras: “Com serem exóticos, os nossos mais preciosos produtos – café, borracha, cacau e fumo – estão todos em baixa (desprezadas as últimas oscilações para melhor na borracha e no café, sem significação quase, pelo aumento constante dos impostos, dos gastos de produção, de transportes e de idêntica cultura iniciada noutros países); as povoações jazem em abatimento, roídas pelas dívidas, sendo verdadeiros poços sem fundo ou de insondável profundidade os registros hipotecários; causando tristeza, de um lado, o marasmo das gentes, do outro o abandono das coisas, transformadas em taperas centenas e centenas de propriedades outrora florescentes.

“Morrem nas estradas, à mingua, criaturas que nem são enterradas e cujos ossos os cães tresmalham, segundo insusupeitos e respeitáveis testemunhos; a vestimenta transforma-se, simplifica-se quase à primitividade; a alimentação rudimentariza-se, passando a comestíveis de luxo – o feijão e a carne-seca; as pontes caem e não são repostas; os caminhos acusam ausência absoluta de conservação; os urubus são atraídos pela imundície...

“Este quadro, cujas tintas são negras mas, juramos, estão abaixo, muito abaixo da realidade, este quadro não entibia os ânimos dos sindicatos políticos locais, atreitos às lutas sempiternas do campanário.”

Há ali um livro – Os Lamentos da Lavoura, publicação mandada fazer pelo Clube Agrícola de Miracema, no qual colaboraram inteligentes e insuspeitíssimos agricultures de Minas e do Estado do Rio de Janeiro, que se deve considerar uma espécie de cartilha ortodoxa para ser consultada no assunto.

Existem nele páginas, tão pungentes da situação lastimosa dos trabalhadores rurais, que tenho, com franqueza, vergonha de reproduzir.

Leiam-nas os Pinheiros e os outros nossos senhores.

Pela terrível gravidade dos assertos, para que os interessados na geral ilusão nacional não ousem dizer que eu e meu amigo Artur exageramos, além do que se pode ler nos Lamentos da Lavoura, não deixo de citar documento valiosíssimo, publicado na Gazeta de Notícias de 3 de setembro de 1908, sob o título Uma Impressão desoladora.

É uma carta do insuspeito Júlio Suckow, colaborador daquela Folha. Diz assim: “Fui ontem, domingo, 30 de agosto, assistir a uma reunião de lavradores desta zona, na cidade de Cataguases. Desde que ouvi falar pela primeira vez nessa reunião, me enchi de curiosidade e isso por um motivo: tenho acompanhado, com certo interesse, tudo quanto ultimamente se tem escrito sobre a crise desoladora que estão atravessando esses lavradores. Demais, há quase um mês que estou percorrendo, a cavalo, vários municípios cafeeiros, e só com esse curto tempo de viagem, já estou farto de ver cenas pungentes, já estou cansado de ouvir queixas contra impostos descabidos, contra tarifas ferroviárias, etc. Isto aqui é um verdadeiro horror!

“A Mata, a poderosa Mata mineira, que outrora fora o país encantado, onde o Deus-dinheiro habitava, transformou-se num cenário vasto de misérias dolorosas. Há em quase todos os homens e em quase todas as coisas desta região, um aspecto de tristeza, nascida no desânimo.

Creio que digo bem em escrever – desânimo, porque de outra coisa não se pode chamar isto que anda por aqui. Quando saí desta terra, com a idade de 12 anos, isto é, em 1892, o café ainda estava a 27.500 a arroba.

Nesse tempo havia grandes fortunas. As fazendas eram verdadeiros édens, espalhados pelas clareiras das matas, pelas encostas dos morros, pelos vales majestosos, pelas gargantas das montanhas.

“Em todas elas havia grande entusiasmo, uma animação vibrante, que se manifestava nos gestos e nas ações dos homens.

“Era a facilidade de vida, era a abundância de dinheiro que estonteava, que empolgava as gerações, arrastando-as ao trabalho com a certeza matemática do triunfo.

 “Havia luxo, havia conforto, havia alegria nas fazendas.

“Guardo ainda na retina essas cenas antigas, cuja recordação me faz sentir um misto de tristeza e de saudade.

“Quando um fazendeiro ou qualquer pessoa de sua família fazia anos, havia festa, e festa que durava dias. Vinham convidados do Rio, de São Paulo e muitas vezes dos estados do Norte. Enquanto nas casas de morada os patrões e convivas ficavam animadamente, nos terreiros, quase sempre próximos às antigas senzalas, os pretos dançavam o jongo, dando palmas violentas nos caxambus, entoando desafios, bebericando a branquinha, que ficava ao lado, em garrafões, como elemento indispensável.

“Muitas fazendas conheci que possuíam bandas de música.

Dessas me recordo de três neste município: Paraíso, Cruz Alta e Palmital.

“Tudo isto hoje em dia já não existe.

“Passei como se vê dezesseis anos sem ver a região natal.

Antes não a tivesse visto mais.

“As fazendas apresentam aspecto de taperas sombrias, onde roçaram sinistramente as asas de uma maldição eterna.

“Fazendeiros, outrora opulentos, encontrei-os em extrema miséria, com fazendas reduzidas a currais e assim mesmo hipotecadas.

“E isto ainda não é nada, segundo me informam. Há fazendas onde impera a fome, que é a manifestação mais positiva, mais clara da crise desoladora do café por estes lados.

“Com a crise cafeeira o comércio sofreu abalo enorme, diminuindo por isso a vida, o movimento das cidades, vilas e arraiais.

“Aí no Rio vivemos alheios ao que aqui se está passando. Fazemos uma idéia do nosso Brasil por essa urbes enorme, de autos fonfonadores, de avenidas majestosas, onde o cosmopolitismo vibra com intensidade.

“Aqui e em outros pontos é que está a vida nacional e é esta que está pintando a situação dos brasileiros. Tenho conversado com vários fazendeiros sobre esta situação angustiosa e todos eles a atribuem aos impostos despropositados, às tarifas ferroviárias.

 “Dizem mais que os homens do governo nada têm feito em favor da resolução da crise e isto, talvez, por ignorarem o estado a que chegaram as fazendas.”

Ninguém se iluda; este é o Brasil real, cujo verdadeiro estado precisamos conhecer para dele sairmos por meio de forte reação. Não é por baboseiras de Anthouard, Pierre Dénis e outros engasopadores que havemos de saber o que se passa em nossa casa.

Tal a razão por que afirmo não bastar a leitura do Retrospecto, aliás valiosíssimo, do Jornal do Comércio, ou de dicursos, aliás altamente meritórios, de um Cincinato Braga, para se conhecer a realidade econômica do Brasil.

O grande argumento dos Pinheiros Machados e até dos farsantes incuráveis, como Nilo Peçanha, é o famoso excesso da nossa exportação sobre a importação.

É preciso ser muito paspalhão para vir, neste primeiro quartel do século XX e numa terra como o Brasil, com um lastimável argumento desses.

Basta, lembrar que, se ele colhesse, o país mais miserável do mundo seria a Inglaterra, porque ali se dá exatamente o inverso: a importação sobrepuja a exportação.

Só isto seria bstante para fechar a boca às feras das finanças, se essas bocas se pudessem fechar, sempre abertas que andam para devorar o produto do trabalho alheio.

Mas não é só isto; existem quatro ordens de argumentos que dão com o ilusionismo dos nossos despóticos senhores em terra e o afundam por uma vez: 1º os impostos sobre a exportação e mais os sobre a importação que levantam as despesas desta e deprimem considerabilissimamente os saldos daquela; 2º os gastos da produção da primeira que levam o produtor à quase miséria; 3º o modo como se realiza e como se distribui o suposto superávit da produção; 4º os encargos do Brasil lá fora, além da penúria, cá dentro, no grosso da população.

Tudo que se arquitetar fora deste quadro peca pela base, como ilusão, falsidade, mentira...

Desfie-se este rosário conta por conta.

Tome-se como base de demonstração qualquer dos quatro ou cinco últimos anos e sempre se verificará o sofisma do eternamente decantado saldo da balança do comércio a nosso favor.

Eis aqui o cálculo feito para 1906.

Exportação . . . . . . . . . . . . . . 799.670:000.$5000

Importação . . . . . . . . . . . . . . 545.000:000.$5000

Saldo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254.670:000.$5000

Mas o saldo é puramente ilusório.

Para esvaecer-se como fumaça basta indicar a cifra enormíssima dos impostos sobre a exportação.

Os estados arrecadaram . . . . . 177.000:000$000

As municipalidades . . . . . . . . . 80.000:000$000

Total dos impostos . . . . . . . . . 257.000:000$000

Deduzidos estes da soma total da exportação, temos:

Exportação . . . . . . . . . . . . . . 799.670:000$000

Impostos . . . . . . . . . . . . . . .. 257.000:000$000

Valor real da exportação . . . . . 542.670:000$000

Ora, como a importação orçou por 545.000:000$000 e o valor de fato da exportação para o produtor orçou por 542.670:000$000, segue-se que tivemos um déficit de 2.330.000$000.

Isto pelo que toca às relações entre a exportação real em face da sua concorrente.

Veja-se agora a soma enorme de impostos e outras despesas que avolumam o gasto real do consumidor com a importação. Eis aqui o cálculo, feito por velho e amestrado agricultor:

Custo da importação. . . . .. . . . 545.000:000$000

Impostos federais .  . . . . . . . . 384.000:000$000

Custo real da importação  .  . . . 929.000:000$000

O importador lucra 10% . . .. . . 92.900:000$000

Custo real ao varejista . . . .. . . 1.021.900:000$000

Este vende ao consumidor

com o lucro mínimo de 15% . . . 153.285:000$000

O consumidor vem a pagar. . . . 1.175.185:000$000

Mas, como o consumidor nacional só produziu 799.670:000$000, teve um déficit positivo de 375.515:000$000.

Se nos lembrarmos, como acima ficou provado, que a produção, descontados os impostos, foi apenas de 542.670:000$000, – o déficit real do produtor se elevará a 632.515:000$000.

Os mesmos cálculos, aplicados aos anos de 1907, 1908, 1909 e 1910, vêm provar sempre e sempre a realidade do déficit da produção, onerada, carcomida pelos impostos e outros ônus.

Neste livro, nos Problemas Brasileiros, o assunto é também, e com proficiência, discutido e indicadas são, até, duras palavras do relator da comissão de finanças da Câmara dos Deputados no ano que está findando de 1910.

O parlamentar confirma os nossos assertos.

Não são, porém, só os impostos e ônus apontados que rebatem vitoriosamente a loa da balança favorável.

Os gastos da produção, enormíssimos no Brasil, atenta a nossa defeituosa organização social e econômica, têm que ser chamados a depor.

Sua voz é eloqüentíssima e insofismável.

Eis o que está para ler-se numa representação dirigida aos 27 de junho de 1907, por um grupo de lavradores, dos mais conceituados aos presidentes dos Estados de Minas e Rio de Janeiro:

Preço por que fica uma arroba de café ao fazendeiro

Apanhamento (2 alqueires a 500 réis) . . . . . . 1$000

Capinas anuais . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1$200

Trato no terreiro e carretos . . . . . . . . . . . . . $200

Matar formigas . . . . . . . . . . . . . . . . . .  . . . $500

Administração. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $600

Soque. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $300

Aluguel de saca. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . $100

Juro do capital empregado na Fazenda  . . . . . 1$333

Conservação de casas, terreiros. . . . . . . . . . . $300

Consertos de caminhos . . . . . . . . . . . . .  . . . $200

Despesas, segundo a c/v

com fretes, direitos, carretos, etc.. . . . . . .  . 1$810

soma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  . . 7$543

Preço atual (junho 1907) de

1A, tipo sete, de café . . . . . . . . . . . . . . . . . 5$000

Déficit . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2$543

E foi esta a realidade por anos inteiros no Brasil na produção de sua principal fonte de renda.

Aos preços correntes, tipo 7, que oscilaram durante este mês inteiro de dezembro de 1910 entre 7$200 e 7$500 por arroba, ainda na melhor hipótese, havia déficit.

As péssimas colheitas deste ano e do próximo futuro, ajudadas pela represa produzida pela ação do governo de São Paulo, é que vai agora trazendo melhoria de preços que possam deixar lucro ao produtor.

Mas é sempre passageira a vantagem da colaboração do mal e dos expedientes.

Triste consolo é esperar a fortuna da escassez das forças da natureza, ou do triste recurso de queimar o produto, ou de proibir-lhe a plantação ou de retê-lo anos inteiros nos armazéns.

São causas aleatórias que podem dar bom efeito uma ou outra vez, as quais, porém, se não podem prolongar indefinidamente.

Passando à terceira categoria de fatos que reduzem de muito as proclamadas maravilhas da balança do comércio em nosso favor, isto é, o modo como se efetua o valor da exportação, basta afirmar o fato irrecusável de que, grande parte dela, ou mesmo, a quase totalidade, pelo que toca à borracha, é realizada por empresas estrangeiras que nos exploram desapiedadamente.

Ou tenham em alguns pontos na zona da borracha comprado extensos seringais por conta de casas matrizes lá fora, ou se apresentem apenas como compradores da preciosa goma por conta de tais casas, o certo é que, em ambos os casos, a realização monetária em grosso é feita no estrangeiro.

O que fica no país, comparativamente bem pouco reduz-se a três partes: a) quota do fisco que tem sido a origem das tremendas bandalheiras que têm afetado a governação dos estados amazonenses; b) quota dos aviadores, quase todos portugueses, que remetem também grandes quantias para a Europa; c) quota dos seringueiros. Esta, consideravelmente a mais exígua de todas, ainda se divide na parte pertencente aos donos dos seringais e na parte que vai a tocar aos trabalhadores que se internam na mata.

Fácil é notar aqui a partilha do leão.

Mutatis mutandi, é assim em várias outras produções.

A quarta e última ordem de fatos que se opõe vitoriosamente ao ilusionismo, que tenho estado a combater, refere-se aos elevadíssimos encargos do país no estrangeiro que lhe devoram os saldos e ainda ficam de fauces abertas, esperando quatro ou cinco vezes mais para tragar, sem se terem por satisfeitos.

Só este lado da questão, de vulgar notícia, é que tem principalmente sido aventado pelos oradores do Congresso, cabendo ao citado Cincinato Braga quinhão conspícuo.

Merece esta parte de seu citado discurso de 14 deste mês ser meditada por todos os brasileiros verdadeiramente patriotas.

Eis aqui as conclusões a que o destemido paulista chegou:[18]

“No período de 1899 a 1910, temos apurado um saldo meramente comercial de £ 15.000:000 por média anual.

“Se esta situação continuar, estamos desgraçados, porque somos forçados a pagamentos ou à satisfação de dívidas no valor de £ 24.000:000, por ano, no mínimo...

“Quanto aos pagamentos de todas as nossas responsabilidades em ouro para com o estrangeiro, anualmente, os dados fornecidos pelas estatísticas são deficientíssimos.

“O algarismo de £ 24.000:000 para essas responsabilidades poderá ser inferior, nunca superior à realidade.

“Estamos vivendo em período de déficit na balança das contas internacionais gerais...

“No período de 1899 a 1910 triplicamos a nossa dívida externa (só externa) federal em ouro.”

Os estados e municípios seguiram a mesma toada.

O deputado conclui por fim: “Assim, em síntese geral, vemos que os compromissos externos do Brasil, criados de 1898 para cá, orçam, pelo menos, por estas quantias:

União . . . . .  . . . . . . . . . . . . . £ 53.323:479

Estados e municípios. . . . . . . . . . 41.997:000

Capital industrial .  . . . . . . . . . . . 30.000:000

Soma . . . . . . . .  . . . . . . . . . £ 125.320:479

“Note-se bem: esta soma enuncia apenas o aumento de dívidas externas: – cento e vinte e cinco milhões esterlinos a mais, de 1898 para cá!

“Aí está demonstrado como, nesse curto período de déficit na balança geral das contas, temos conseguido massacrar nossa situação real. Atribuindo a esses compromissos um juro médio de 5% ao ano, com amortização de capital apenas da quantia de 1% ao ano, temos que são necessários sete milhões e meio esterlinos anuais só para o serviço do aumento das nossas dívidas, do funding loan para cá.

“Temos feito figura, à força de fazermos dívidas...”

Se na desdenhosa caterva de incompetentes ou desonestos que nos têm governado de então para cá houvesse resquício de bom senso, era caso para se penitenciarem em público.

Em se tratando de properidade econômica de um país qualquer, quando se afirma que esse país avança a passos largos na direção de amplo futuro, ocorre logo, ao espírito de quem ouve, que nessa terra se abriram novas e fecundas fontes de prosperidade; surgiram indústrias que não existiam; que o povo, disciplinado no trabalho, multiplica as colheitas, impulsiona a produção, acumula a riqueza; que o capital cresce e se avoluma; como se vê a população inteira na faina; nota-se uma espécie de consenso, de harmonia em todas as classes de alto a baixo e por todos os recantos do território.

Sente-se, palpa-se, por assim dizer, a verdade insofismável de ser a vida econômica uma função direta da vida nacional, do existir popular.

Ninguém se lembra de indagar o que faz o governo.

Sabe-se, de antemão, que nessas terras privilegiadas do trabalho, ele se limita a deixar sem peias as forças propulsoras da nação.

Lede o belo livro de P. Roussier – La Vie Americaine e vede.

Percorreis as zonas do criatório dos gados, as regiões agrícolas, as terras de mineração, as grandes cidades manufatureiras, por toda a parte nota-se a intensidade da vida, o calor da atividade popular.

Os milionários, que se contam por milhares, colaboram com os operários de todas as classes, de todas as categorias.

Por todos os lados estua o entusiasmo, sente-se o fragor da onda humana no labutar sem tréguas.

Os centros de calorosa vida multiplicam-se por todas as bandas.

No Brasil, com que tristeza se é obrigado a dizer: nada disso!

O povo, apático, espera a palavra, o apoio, a proteção dos governos; estes dão tratos à cabeça para multiplicar os expedientes ilusionistas que adiem as crises e mascarem as prementes necessidades.

Criaram eles, povo e governos, novas fontes de produção e de renda?

Qual!

Combinaram soluções dilatórias e nada mais: funding loan, convênio de Taubaté, caixa de conversão, e outras magicaturas da espécie...

O gênio chianístico da raça surgiu com força...

Isto mesmo nos melhores e mais felizes momentos.

Em tese geral, pode-se dizer que toda a política econômica dos governos brasileiros se tem reduzido a uma espécie de receita que se traduz nesta regra aritmética:

Apontam o tamanho do país, citam-lhe os grandes rios, as extensas costas, as matas, as terras cheias de riquezas inesgotáveis; referem- se aos produtos, destacando o café e a borracha, que excedem de muito os do resto do mundo; tentam os empréstimos que são acolhidos pelo capital mundial, superabundantíssimo hoje em dia; acenam, outrossim, com concessões a empresas que se queiram organizar e estas afluem; para maior engodo, fazem alguma coisa de gênero vistoso, à custa desses mesmos empréstimos, como sejam avenidas, pomposos teatros, grandes edifícios, exposições espalhafatosas, coisas todas estas em que se empregam milhões, recheando amigos e comparsas; avolumam-se então os empréstimos, sempre objetivo principal da engrenagem, nomeadamente ajudada por largas embaixadas de propaganda na Europa e fartos subornos a jornais do Velho Mundo; chamam europeus gananciosos de ouro e fama, para fazer discursos e conferências lá e cá, apregoando nossas incomparáveis grandezas e maravilhas, e as negociatas redobram e os empréstimos chegam até para os estados e algumas municipalidades. E como, apesar de tudo, se dão certos altos e baixos, criam a caixa de conversão, engenhoso aparelho que serve para atrair capitais, uns, dos próprios referidos empréstimos que ali se demoram algum tempo; outros, para ganhar na diferença de câmbio que passa a funcionar com três taxas: uma da caixa, outra da Alfândega para a cobrança dos vales ouro, e outra livre, a da praça; redobra o ilusionismo; e, quando se observa que de real e positivo restam apenas o embelezamento do Rio de Janeiro, lançam nova isca aos capitais europeus, ansiosos por empregar-se, contratando onerosissimamente os melhoramentos de alguns portos, que se protelam como obras de Santa Engrácia, e a construção de alguns mal delineados trechos de estradas de ferro, manobras todas estas em que, por via de regra, se ocultam grossas batotas, que, caso inédito em todo mundo, são às vezes denunciadas por algum novo ministro desabusado. Está tudo feito.

Que progresso! bradam os paspalhões de todo o gênero.

Pode-se desse curioso sistema, que se deve combater, de atrair capitais, mundiais, não em largas fundações e sim, pela máxima parte, em obras suntuárias, traçar o seguinte quadro:

Realidade positiva que arma o resto . . . . . . . . . Borracha, café, cacau, manganês, etc.

Ilusionismo de grandezas e progresso. . . . . . . .. Avenidas, melhoramentos decorativos do Rio, exposição, Congressos, etc.

Expedientes empíricos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . Caixa de conversão, valorização do café, conversão da dívida, etc.

Outros engodos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tarifas protecionistas, para dificultar a importação e preparar o excesso da

                                                                    exportação sobre aquela, etc.

Alvo real . . . . . . .  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Empréstimos do estrangeiro para a União, estados, cidades, etc.

Ponto de chegada final. . . . . . . . . . .  . . . . . . . Impostos e pobreza real do povo, ao lado das espertezas sem conta dos

                                                                    politiqueiros, das chamadas classes dirigentes.

Por este quadro, e por tudo, aliás, que ficou dito, nota-se a parte mais que considerável, verdadeiramente preponderante, do estrangeiro na vida econômica do Brasil.

As fontes principais da riqueza estão nas suas mãos.

O grande comércio importador e exportador, o comércio bancário, as empresas de portos, estradas de ferro, bondes, iluminação, esgotos, mineração, tudo está explorado por eles.

Tempo houve em que as fontes diretamente produtoras, lavouras da cana, do café, coleta da borracha, mineração e outras, eram puramente nacionais.

Agora já não é assim.

A mineração nos tem quase completamente escapado, por falta de grandes capitais e de espírito de iniciativa.

A lavoura da cana, por decadente, pouco avulta.

O café caiu diretamente sob a ação dos especuladores do Havre, Hamburgo, Liverpool, Antuérpia e Nova Iorque, com seus representantes diretos cá, os quais mataram a classe nacional dos comissários, porque vão comprar diretamente o produto na porta do fazendeiro.

Este, por outro lado, é governado pelo colono estrangeiro, sucedâneo do escravo, com a diferença que um era mandado e o outro manda.

A borracha depende do brasileiro pura e simplesmente no trabalho selvagem do apanhamento da goma.

O tapuio, o cafuzo, o mameluco, o caboclo, o caboré, de Amazonas, Pará, Acre e Mato Grosso, ajudado do ativo e enérgico emigrante do Ceará, de Sergipe, do Rio Grande do Norte... é que roem os ossos do ofício.

As carnes gordas tocam às casas exportadoras estrangeiras de Manaus e Belém, representantes das ricas matrizes da Europa e dos Estados Unidos.

As chamadas classes dirigentes naquela vasta região, como aliás em todo o resto do país, quero dizer, os manipuladores da política, de tantas riquezas só vêem o que lhes toca no refluxo, nos impostos do fisco.

E é desses meros parasitas, que proliferam pelo Brasil inteiro, vivendo tumultuariamente da política alimentária, das receitas dos orçamentos, porque não exercem função diretamente produtora, que, uma vez, um amigo me disse que são dignos dos maiores acatamentos, porque representam uma espécie de aristocracia administrativa...

O meu interlocutor arranja as coisas em nossa terra por este modo: ao proletariado rural – os duros trabalhos da produção agrícola, mister em que é, no Sul, ajudado pelo colono; ao estrangeiro – o alto comércio e as empresas; a intitulada aristocracia administrativa – o funcionalismo e a política.

C’est pour rire.

Conhecido é o valor dessa pretensa aristocracia da politicagem: quando não se ceva a custo do estado na União e nas antigas províncias, onde forma os famosos grupos oligárquicos que asfixiam e depenam os povos, se avilta entrando com os capitalistas e sindicatos estrangeiros em negociatas brejeiras em que é sangrado o Tesouro Público e deprimido o caráter nacional.

Estas últimas palavras levam-me naturalmente a lançar vistas sobre o fundo da situação política.

V

Aspectos políticos

Os nossos escritores e oradores de ofício laboram num verdadeiro círculo vicioso, porque não querem ver a raiz do mal de que todos falam, mas nem a explicam nem a corrigem. Não têm a coragem, diria melhor, o patriotismo de dizer a verdade inteira, cruel, implacável, mas que deve ser dita, para que se busque emendá-la quanto possível.

Começam por desconhecer a base fundamental de toda a sociologia de que, nesta esfera, quem dá a lei, indica o caminho, sugere os alvitres, inspira os sentimentos, estimula a ação, determina o alcance e o significado dos fatos, é o grupo, a gens, a nação, e nunca o indivíduo, verdadeiro títere no meio das vastas e incontrastáveis correntes populares.

É uma loucura procurar conhecer a política de um povo, sem estudar o estado real da psicologia desse povo.

É uma loucura ainda maior querer dirigir a política, isto é, os ideais de um povo, porque a política, no são sentido, é puramente a satisfação das aspirações nacionais, sem se tomar em conta a íntima elaboração dessas aspirações na alma popular.

Ora, o erro capital de toda a nossa engrenagem política, o proton- pseudos de nossa politiquice (não pode ter outro nome), como se ela fabrica pelas chamadas classes dirigentes, é conscientemente ocultar a verdade sobre o real estado dos dezesseis ou dezoito milhões de habitantes do país, tomando-lhes a frente, substituindo-os, tomando-lhes o lugar e figurando por eles.

Destarte, um clã, um punhado de indivíduos toma as rédeas da governança, da direção dos negócios e dita a lei, mais ou menos, segundo os seus caprichos e ignorância.

Começa logo, para enganar e manobrar a gosto, por fabricar um Brasil para exportação, o Brasil que se poderia chamar o Brasil de Haia, isto é, ao que dizem, vinte e cinco milhões de homens cultíssimos, riquíssimos, adiantadíssimos, vivendo no regímen da mais encantadora liberdade civil, sob o governo progressivo de estadistas incomparáveis.

O reverso do quadro é aquele que todos nós bem conhecemos e pode ser admirado em cores inapagáveis nas plataformas, discursos e conferências desse mesmo ilustre espírito, dessa mesma encantadora sereia de Haia, no último pleito presidencial.

Não pode haver maior contraste.

Entretanto, se é, às vezes, conveniente transfigurar o semblante da nação para mostrar radiante aos olhos do estrangeiro, ávido e grosseiro; se é sempre de bom aviso levá-lo apenas à sala de visitas e esconder-lhe o resto, esta medida de precaução não deve constituir, cá dentro, a regra geral constante e absoluta do proceder político.

O contraste entre a realidade e a ilusão deve-se sempre ter em vista, quando se quer trabalhar a sério, no intuito exatamente de diminuir, de afastar esse contraste.

Devemos, destarte, tomar o Brasil de Haia como uma espécie de ideal que procuraremos atingir com os maiores esforços e não como a verdade já hoje alcançada e sobre a qual devemos dormir.

Há duros acordares, às vezes, nesse dormir de enganos.

Vede essa Rússia, que tem tantos pontos de semelhança conosco.

À força de confundirem ali o povo russo, grosseiríssimo e atrasadíssimo, com a aristocracia de Moscou e Petersburgo e a elite de intelectuais que faz ciência e literatura, aristocracia e elite que absoluta- mente não possuímos em grau tão subido, levaram a terra dos czares à tremenda derrota conhecidíssima.

Andamos, com muito aferro, reincidindo no mesmo erro, sem reparar que, mais cedo ou mais tarde, a carcoma virá à superfície.

O grupo, repito, é quem, pelo espírito coletivo, tudo dirige em política; o indivíduo nada faz que possa ter valor, se não representa a aspiração geral.

Ora, os nossos dirigentes lutam entre duas condições opostas; a do ilusório Brasil e a do real; por isto suas criações são sempre mancas.

Daí o fracasso das leis e instituições.

É que esse dualismo labora no íntimo de todos nós, e é de mister muita atenção e critério para escapar a ele.

Assim todos nós, quando nos reunimos nas assembléias constituintes ou ordinárias e laboramos as nossas constituições ou as nossas leis, temos sempre em vista esse Brasil das nossas fantasias, gente culta como a que mais seja, e legislamos neste sentido, fabricamos neste pressuposto as medidas que lhe vamos aplicar.

Um falso pudor vela-nos a grosseria dos fatos; a tendência da raça para a facilidade atraente das idéias geradas e simplistas põe-se em ação; o orgulho latente em todas as almas, de sermos já tão bons como os melhores, leva-nos não só a copiar as instituições dos mais aptos, como até a lançar-lhes em muitos casos a barra adiante.

Daí essas constituições e leis que muitas vezes são verdadeiras obras de teoria, sem aplicabilidade prática.

Daí essa constituição imperial, fabricada com a quintessência do parlamentarismo, afeiçoada nos moldes de Constant, com esse poder moderador ideal, com essa separação harmônica de poderes que nem a própria pátria do sistema conseguiu até hoje realizar.

Daí essa constituição republicana, segundo o modelo presidencial norte-americano, com essa federação, que é uma quase dissolução; com esse Supremo Tribunal, composto de sumidades na inteligência e no caráter, que até agora andamos a procurar sem achar.

E sempre tem sido assim, em todos os sentidos, desde a Independência.

No papel é o povo das leis ideais; na prática nenhuma delas é cumprida como deveria ser.

É que, quando discursamos de idéias e doutrinas, somos repetidores das teorias que julgamos mais avançadas, nesse prurido infantil, muito nosso, de nos mostrarmos muito inteligentes e sabedores; e, quando aplicamos, quando descemos à prática daquelas mesmas instituições que copiamos dos outros, revelamo-nos tais quais somos: os atavismos acumulados no povo pela raça e pela história surgem em cada um de nós; o tipo meio selvagem aparece.

É regra que não falha, nem pode falhar.

Destarte, todos os nossos pretendidos chefes e guias políticos são-no de fato, não, como ingenuamente todos supõem, pelas idéias que pregam, idéias de que são autores, mas sim pelo modo como as realizam, pela feição pessoal que lhes dão, quando as desvirtuam na prática.

Tomai qualquer desses mais famosos estadistas do Império, um Paraná, um Uruguai, um Eusébio, um Zacarias, um Cotegipe, um Rio Branco; cada um deles foi homem representativo de nosso viver político-social, não quando discreteava do Poder Moderador, da responsabilidade dos ministros, das atribuições da Câmara e outras teses copiadas do parlamentarismo europeu, senão quando administrava o país, manipulando a engrenagem geral que partia do imperador e chegava ao mais humilde inspetor de quarteirão, compondo as câmaras adrede pela ação compressora dos presidentes de província, pelo falseamento das eleições, pela derrama dos favores do filhotismo.

O mesmo é agora.

Vede esse Pinheiro Machado, que tem hoje mais poder do que jamais sonhou um homem enérgico e decidido como Pedro I, ou um homem puro e magnânimo como Pedro II, vede o grupo gaúcho na sua faina de mando e mexidos de politicagem.

É realmente um chefe, um digno representante da média geral da cultura brasileira, não pelas conquistas diretas que realizasse na opinião, sim pela abdicação que nele foram fazendo todos os seus companheiros do Senado e da política dos estados, abdicação ditada pela constante de nosso caráter, que sempre busca descansar em alguém.

É um chefe, um digno representante do momento, não quando discorre de idéias que não tem, sim quando se ataviza nele o gênio inculto da raça e surge o caudilho, o amigo de João Francisco, o perseguidor de Gumercindo Saraiva, o guerrilheiro dos pampas, o chefe de clã, meio selvagem, meio civilizado, não compreendendo os negócios sem o arrocho dos mandões...

Tomai esse Nilo Procópio. É um homem tópico, um expoente do Brasil de certas camadas sociais, não quando pensa que pode reformar a instrução pública ou dar ordem e sistema à nossa viação férrea; sim quando se dedica com as fitas cinematográficas (expressão genial do povo para caracterizar as politiquices de Procópio Peçanha) de sua governança, quando faz moer nos prelos europeus as maravilhas da gestão dos negócios em seu tempo; não quando pensa no plantio do arroz, senão quando inventa no penúltimo dia do seu governo aquela fantástica inauguração de Itacuruçá, que devia começar numa insignificantíssima estação de um ridículo ramal de estrada de ferro e acabar na entrada triunfal do arrivista na baía de Guanabara, escoltado por todos os navios de nossa esquadra. No gênero é uma maravilha inédita...

Procópio Peçanha é tipo representativo, não quando colabora no Convênio de Taubaté, por exemplo, senão quando nele se revela o atavismo das tendências negociadoras, que são um dos característicos mais vivos dos figurões presidenciais da América Latina.

Mas o tempo acaba sempre por fazer a sua obra e a realidade quebra os falsos moldes em que a tentaram sufocar.

As leis e constituições ficam no papel como múmias e na prática estalam e esboroam-se.

O parlamentarismo imperial acabou numa espécie de ofício de máquina pneumática.

Laborava no vácuo.

É que o instituto estava acima de nosso estado real de civilização.

Pior ainda é o que em vinte anos tem acontecido no regímen federativo. Ponha cada um a mão na consciência e diga a verdade toda ao país.

A federação transformou-se em vinte e duas oliarquias fechadas, cada uma das quais é explorada por um clã.

Na classificação que das suas diversas modalidades fiz nas Provocações e Debates enumerei apenas vinte, por me ter esquecido a do Distrito Federal, sob o mando autoritário de Augusto de Vasconcelos e Melcíades Sá Freire.

Reparo agora esse erro e aí vai mais uma.

Há outro, porém, mais grave que urge corrigir: a própria União, tomada no seu conjunto, geme sob o jugo da oligarquia-mor de Pinheiro Machado, acolitado por Modesto Leal e Antônio Azeredo.

Mais tarde serão outras as figuras.

Por esta forma, em cada um dos estados, o clã triunfante, revivescência dos clãs dos berberes, tronco primitivo principal das gentes ibéricas de que os portugueses são um ramo e nós um rebento na América, o clã triunfante tem sempre reduzido os outros à impotência, comprimindo as liberdades civis, reduzindo a nada as franquias municipais, falseando as eleições, corrompendo as justiças, monopolizando os empregos, entendendo-se sempre em entente cordiale com os chefes da oligarquia central em troca de serviços, auxiliando-se mutuamente...

O clã central, por sua vez, enfeixa nas mãos toda a força: indica os sucessores à presidência, os candidatos ao Congresso no Senado e Câmara; tem anulado o Poder Legislativo com traços sutis, reduzindo-o à simples chancela da Presidência, movida esta pela oligarquia; tem o mesmo feito ao Judiciário, aviltando as justiças, conferindo os melhores cargos aos amigos incondicionais, nomeando para o Supremo Tribunal energúmenos politiqueiros, amestrados, quase todos, no cargo de chefes de polícia do Distrito Federal, espécie de escola em que põem à prova a sua capacidade de arbítrio contra a lei e de obediência aos amos.

O resultado final de tudo isto é que, em vez do regímen federativo, de autonomia real dos estados e dos municípios, vivemos no duro regímen de uma centralização de fato, espécie de grosseiríssima república unitária, ilegal e espúria.

É que o gênio apático da raça, a tendência grupista dos iberos- latinizados, verdadeiros comunários de estado, que sonham sempre com o chefe, o guia, o patrono, zombando das teorias de nossos retóricos, acaba sempre por vir a flux e vingar-se das peias que lhe opõem.

O povo brasileiro, pelo seu estado de cultura, por seus antecedentes étnicos e históricos, por sua educação, por seu caráter, por suas tendências, não era nem é apto para esse federalismo que coseram aos ombros.

Em vez do presidente eleito livremente por uma democracia consciente de suas aspirações para cada um dos estados, surgiu o tuaua, o chefe de clã, o mandão, o caudilho, acomodando sua grei.

Era fatal.

Em vez do presidente eleito para chefe da União pelo sufrágio da maioria da nação, encarnando idéias e planos de governo, inspirados pelo sentir do povo, tem surgido as figuras apagadas de cada um desses designados da oligarquia-mor.

Era fatal.

Nestas condições, é só por figura de retórica que se fala na federação brasileira.

E ainda há mais.

Parece absurdo, mas é a verdade.

O mal, isto é, as oligarquias locais e a geral, tem exercido a função reparadora de trazer a coesão.

As oligarquias, com todas as suas torpezas e infâmias, com todos os seus despotismos, suas ilegalidades, têm a vantagem de conter a desordem: ou oligarquia ou anarquia.

Eis o fato.

Desconhecendo a realidade das populações do interior, repartidas em grupos, quiseram considerá-las como capazes de se reger livremente em política harmonia.

Puro engano.

O clã mais forte há de sempre tomar a frente aos mais fracos.

E cada grupo que decair terá de ceder o lugar a outro; se este não puder conter os rivais, virá, então, a anarquia.

Rio-me, quando ouço as pomposas promessas de acabar com as oligarquias, conservando a federação pelo modelo atual.

Para acabar com elas é preciso instituir legalmente o regímen unitário e mantê-lo com rigor, sufocando o caudilhismo, onde quer que ponha de fora a cabeça e esperar a ação lenta do tempo e da cultura.

Dentro da federação, elas terão de se manter por anos e anos, talvez séculos, enquanto a obra sistemática da educação, da instrução e ainda da seleção social, no sentido da antropossociologia, não tiver produzido os seus efeitos.

E pelo que toca à oligarquia central, essa espécie de imperialismo bastardo e refece, ela exerce a função centralizadora; mas exerce-a desasadamente, contra a lei, contra os princípios e quase sempre inspirada em caprichos e interesses pouco dignos.

Não teria sido mil vezes melhor que esse órgão de centralização tivesse sido logo criado pela lei?

O sistema de governo do Brasil, afigura-se-me que deveria ser um governo unitário de feição original, atenta ao gênio do povo.

Assim como o instinto de conservação da raça sugere o tuaua, o oligarca, o caudilho, o clã dirigente e compressor, em oposição ao tribuno, o retórico, o fantasista liberalizante, pela mesma forma ele mostra bem claro, nessas ásperas provanças que nos inflige, que o federalismo democrático e livre está muito acima de nosso estado social, o qual não deve ser aferido pelos literatos da Academia, os eruditos do Instituto Histórico, os cientistas da Politécnica ou das faculdades de medicina e direito.

Aqui mesmo, perto de nós, em várias zonas heteróclitas da cidade, temos gentes que mais se parecem com a maioria da população geral do país. Orça toda esta por dezesseis milhões, pelo menos, contra os dois milhões, quando muito, de intelectuais das cidades mais adiantadas.

Nem se pense ser absurdo criar o governo conforme a índole dos menos cultos. Ao contrário: os governos para eles é que se fazem; porque são os que mais precisam da sua direção.

Sábios, gênios, talentos, ilustrações, dispensam as injunções de governantes quaisquer.

E quando falo na gente heteróclita da cidade é apenas para que se não perca de vista que aqui dentro, aqui junto a nós, na mesma capital do Brasil, temos à mão os espécimes que devemos estudar para tomar a média da cultura da população nacional, que não se reduz aos elementos mais cultos do Rio, São Paulo, Petrópolis, Porto Alegre, Recife, Bahia, etc.

Como ilustração das verdades expostas, relancear os olhos pelo estado de abastardamento das instituições seria trazer as mãos cheias de fatos, cada qual mais sugestivo.

Bastaria voltar-se a gente para qualquer lado e escolher.

Seria desnecessário relembrar as revoltas e sedições, todas elas demonstradoras da inadaptação das gentes brasileiras às novas instituições.

Daria para um livro.

Em todas elas sempre o princípio gerador foi essa inadaptação.

O golpe de estado de 3 de novembro e o respectivo contragolpe, vitorioso, porque Deodoro não quis resistir; a revolta de Silvino na fortaleza de Santa Cruz, preparada por agitadores da capital; o movimento dos treze generais; a revolta da Armada, esta sem o mínimo ideal, sem plano, sem norteação alevantada e séria; a revolução dos federalistas no Rio Grande, esta de todas a mais digna, posto que manchada, principalmente da parte da gente castilhista, por feíssimos atos de selvagem crueldade; Canudos, puro movimento análogo aos da Berbéria, nos quais o caudilho se forra sempre do profeta, do maddhi; a revolta dos marinheiros; a do corpo de fuzileiros da ilha das Cobras, tudo isto significa uma só coisa.

Seria possível fazer rápida excursão pelos vinte e um centros oligárquicos e espreitar o que neles se tem praticado, e, à luz de documentos, denunciá-lo.

Veríeis esse Acre, que ainda se agita porque não achou a oligarquia definitiva que o arroche ao mando; e ainda não a encontrou, porque os bandos em luta se têm equivalido pouco mais ou menos em força e desfaçatez.

Veríeis sim, esse Acre, que tem durante anos feito gemer os prelos e tem metido os leitores em um tão cerrado cipoal de acusações, invectivas, alegações de fraudes, ladroeiras, infâmias, torpezas, traições e crimes de toda a casta contra tudo e todos, que se chega afinal a não se saber onde anda a verdade.

Tenho levado anos a acompanhar no Jornal do Comércio, como matéria de estudo social, as publicações acerca das coisas da famosa região.

Confesso que nunca encontrei metafísica tão complicada.

São tantas as teses e antíteses que deixam Hegel a perder de vista.

A fertilidade inventiva da ganância, em luta aberta com as ganâncias rivais, é verdadeiramente admirável.

Entretanto, uma coisa ressalta nítida dos fatos: a incapacidade de nossos chamados estadistas para administrar.

Há vinte anos se debatem sem tino e sem critério e não chegaram até agora a organizar de fato todo o território. Suga a União milhares de contos anualmente, engole-os e nada faz de profícuo e verdadeiramente proveitoso.

Cata a dedo afilhados para irem engordar naquelas ricas paragens, e mais nada.

Isto no século XX e num pequeno trecho de terra brasileira.

Lembrem-se que portugueses, no século XVI, sem recursos sérios, sem população quase, sem capitais, sem esquadras dignas de tal nome, no fim de cinqüenta anos tinham lançado neste enorme país, as bases da administração que nos organizou até hoje.

Veríeis esse Amazonas, onde, segundo a frase popular, todos os governos têm sido piores, o que vale dizer que todos têm sido péssimos, não existindo distinções a fazer.

Tremeria a pena se tivessa agora de descrever as fantásticas lendas das governanças de Pensador, Fileto Pires, Ramalho, Silvério e Constantino Néri.

E as façanhas do Sá Peixoto a depor, o Bittencourt em meio do crime assombrosamente único do bombardeio de Manaus?

Horrível.

Livrasse-me Deus de meter-me com as sábias combinações políticas do Pará; mas ali haveria fatos estranhos a joeirar.

No Maranhão o mesmo; nem seria preciso falar no Ceará, onde o aciolismo criou escola, fornecendo ao país, a forma típica do oligarquismo familista das vetustíssimas organizações tribais.

De Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, os jornais todos os dias registram medonhas cenas que seria possível compendiar.

Não o farei, preferindo citar fatos mais concretos que toda a nação memora nas horas de desalento.

Refiro-me aos famosos casos.

Com eles e mais os disparates e loucuras da politicagem de todos os dias e os vícios da administração, se poderiam formar dois lindos raminhetes para as aristocráticas mãos de Pinheiro e seu amigo Procópio Peçanha.

O duplo caso de Sergipe, no primeiro dos quais houve desasada deposição do presidente, reposição pessimamente dirigida pelo governo federal, dando lugar ao vil assassínio de um homem de grande talento, que provovou o assassínio de um senador em praça pública desta cidade; e no segundo as peripécias teatrais duma renúncia que se resolveu em renúncia da renúncia...

Uma comédia miserável!

O famosíssimo caso da Bahia, no qual o desabuso criminoso do governador fez postar capangas na porta da assembléia que deveria reconhecer-lhe o sucessor, vedando a entrada dos deputados e senadores da maioria que lhe era adversa e dando como reconhecido, por mera minoria, quem lhe era do peito.

O de Goiás, que, nas surdas peripécias maquiavélicas que o revestem, lembra algum lôbrego episódio da Itália dos Bórgias.

O de Mato Grosso, em que a traição e a morte funcionaram como norma e elemento para alcançar o poder.

O do Rio de Janeiro em que, tendo andado a bater à porta do Poder Legislativo e a sondar o Judiciário, armando adrede o Supremo Tribunal, o presidente da República, chefe político no infeliz estado, teve a coragem cínica de abusar do seu cargo para preparar a vitória de seus interesses pessoais, escudado principalmente nesse Pinheiro Machado, acusado pelos jornais de conivente também na mazorca do Amazonas.

E como, na espectativa de obter da Câmara a intervenção, como a obtivera do Senado, oprimido sob as plantas pinheiristas, che- gasse ao fim de seu governo sem a alcançar, deixou a seu sucessor esse terrível e monstruoso legado, como lhe deixaram outros não menos odientos, que explodiram logo nos primeiros dias da presidência do Marechal Hermes.

De todos os casos, este é o mais hediondo, porque foi todo ele obra do governo da União.

Nos outros houve sempre o papel preponderante da politicagem local, intervindo ou não, conforme os seus caprichos, a União.

No do Amazonas colaborou ela criminosamente, fornecendo a esquadrilha para o bombardeio; mas no do Rio de Janeiro encarregou-se de tudo.

Admira que o presidente, que devia estar amestrado com as alicantinas do seu antecessor, que lhe deixara, por tortuosidade e erros, as negras prebendas da revolta dos marinheiros e da ilha das Cobras, tivesse caído no laço e na infantilidade de ajudar a politicagem desse desalmado no Estado do Rio de Janeiro.

Desde o tempo das deposições dos presidentes dos estados, ordenamentos a couce d’armas por Floriano Peixoto, não se tinha visto um tão formidável erro.

Como quer que fosse, porém, o fato é que – e isto vi – aos 30 de dezembro do ano de 1910, penúltimo dia do govenro do Dr. Backer, foi ocupado o palácio presidencial por forças federais, como o foram as repartições públicas e as principais ruas da cidade.

Era a deposição real do presidente e a sua retirada de palácio, para que ali não pudesse investir em funções o seu sucessor.

Ao mesmo tempo era ocupado o paço da assembléia estadual, para que ali não pudessem os deputados funcionar e reconhecer o sucessor legal do presidente.

O palácio do governo e o edifício da assembléia ficavam, destarte, sob o domínio exclusivo da gente de Procópio, para neles meter os seus amigos, sob a garantia dos soldados da União...

No gênero foi uma obra-prima.

Dela se pode gabar calorosamente o nosso senhor-mor Pinheiro Machado.

Com ela pode debicar com o mundo o incomparável Procópio Peçanha: o resultado lhe saiu a contento, melhor que a encomenda.

Tudo, porém, será isto, menos o regímen criado e definido na carta de 24 de fevereiro.

Mas não fica aí.

Como acontecesse que os deputados de Backer (no Estado do Rio as assembléias andavam em duplicata – a do presidente do estado e a do presidente da República) requeressem habeas corpus e o tivessem obtido, ensejo apareceu ao governo federal para francamente desobedecer ao Supremo Tribunal, aviltando-o comicamente.

É o caso que, ciente da ordem de habeas corpus, o governo da União lhe respondeu: “Sim, estou ciente e obedeço para reconhecer Oliveira Botelho e a sua assembléia.

Obedecer, praticando exatamente o contrário da injunção que se lhe fazia!

Será tudo, menos o regímen definido na carta de 24 de fevereiro.

Seria caso para rir, se não fosse de melhor alvitre chorar sobre as misérias desses governichos sem senso e sem compostura.

Parecido com isto só me ocorre um caso que me aconteceu no tempo em que eu fui advogado.

Havia então as audiências no juízo de paz para conciliação.

Numa delas, uma vez, fiz intimar alguém, um diretor de colégio, que era devedor de forte quantia e se recusara a satisfazer ao credor.

Na audiência o patrono do citado, depois de longo arrazoado, acabou por estas palavras: “O meu cliente fez essa dívida em prol da instrução; ele se concilia para não pagar.”

Sendo-me dada a palavra, limitei-me a dizer: “O acordo é impossível diante dessa grande novidade – conciliar para não pagar!...”

A gargalhada foi geral, dissolvendo-se a audiência.

Pouco mais ou menos, temos agora o mesmo: “Obedeço, para reconhecer o Botelho e a sua assembléia.” Uma comédia.

Tão enorme desrespeito pelo Tribunal, perda angular do regímen, tinha de trazer imediatamente tristes conseqüências.

Uma delas foi a desconsideração que o Tribunal infligiu a si próprio, ousando dizer que o seu ato, o habeas corpus, por ele concedido, era uma espécie de caso impensado e leviano, era nulo por inexeqüível...

Nos arquivos de tribunais congêneres este caso não conta o seu igual.

É que, armados da ordem de habeas corpus, os deputados de Backer, que constituíam a assembléia legítima, não puderam reunir-se no local do costume, porque o encontraram ocupado por uma das repartições públicas, por ordem de Oliveira Botelho, e recorreram de novo ao Tribunal. Saiu-se este com aquela estupenda resposta.

Como tudo isto anda errado!...

Como tudo é tão triste!...

E é esta a federação![19]

Para completar o bouquet basta só nomear outros erros, desatinos, falcatruas, ou que melhor nome tenham, da política e da administração.

Irão um pouco sem ordem e à medida que forem surgindo na memória quer os de gênero horroroso, quer os de gênero bandalho...

A duplicata do Conselho no Distrito Federal e a solução anômala que lhe deu o Governo, para fortalecer a oligarquia de Augusto de Vasconcelos.

O forno de cremação montado na ilha das Cobras por Marques da Rocha, fenômeno político-social, ocorrido aqui na capital federal, é tão horrível que poucos se lhe encontrarão parecidos no mundo, em tempos quaisquer. Os morticínios do Satélite, cena dantesca, quase inédita...

As obras e os canos do Cherém.

As falcatruas da Exposição.

Os malabarescos arranjos na viação férrea, postos agora a nu em artigos formidáveis no Jornal do Comércio.

Os desfalques nas repartições fiscais, dando lugar ao documento firmado pelo digno Coelho Lisboa que chegou, por tantos abusos praticados, a não aceitar um alto posto no Tribunal de Contas.

As cenas torpíssimas das eleições e seu sistemático falseamento.

O protecionismo insensato a indústrias de estufa, ao lado dos impostos ultra-exaustivos e da loucura dos empréstimos.

O funding loan, a quebra dos bancos em 1900, dando lugar ao episódio negregado da passagem de Patersen pelo Banco do Brasil.

As anomalias esquisitas na estrada de ferro Central, denunciadas pela imprensa.

Os estados de sítio repetidos e escusados.

A encomenda de dreadnought sem o pessoal técnico, abundante e apto para os manter, só por satisfazer as loucuras de um imperialismo insensato, dando como resultado a perda de mais de cem mil contos, porque os navios vão ficar deteriorados, por não termos marinhagem digna desse nome em cinco ou seis anos, pelo menos.

O caso originalíssimo de insânia da Faculdade de Medicina, no tempo da recente luta entre o diretor Hilário de Gouveia e a Congregação, que prova a inépcia da nossa administração nas coisas mais simples.

A desorganização sem par do ensino público.

O banditismo no centro, protegido pelos oligarcas.

O aviltamento da justiça revelado nas dificuldades sem nome que lhe embaraçam os julgados, como nesse famoso caso dos assassínios dos estudantes no Largo de S. Francisco, e na pedra posta em cima do processo dos assassinos do malogrado Euclides da Cunha.

As legações dadas aos manos, como presentes de anos, como se foram perus ou capados gordos.

A revisão do contrato das Docas de Santos, em condições lesivas, denunciadas com ferro em brasa no Senado pelo honrado Alfredo Ellis.

A encampação da Minas e Rio pela Sapucaí.

O conto das mil e uma noites da Leopoldina.

Os cargos da representação nacional outorgados a parentes, que os guardam, enquanto os chefões exercem outras comissões.

Os cargos de ministros do Supremo Tribunal dados a politicantes, adestrados, muito deles, na chefatura de polícia.

A farsa do povoamento do solo por decreto, cujo fim principal foi montar para afilhados aqui uma repartição completa e na Europa a impagável embaixada de ouro...

As fitas cinematográficas do Nilo, nomeadamente as da esquadra, na célebre revista geral, após Itacuruçá, raiz principal da revolta dos marinheiros acossados de trabalho, e as do câmbio alto, que custaram milhões ao Tesouro.

A tentativa de suicídio do Congresso no planejado adiantamento indefinido.

A existência mesma de um grande mentor e eleitor irresponsável, que a todos leva pelo cabresto.

O empastelamento de jornais da oposição que se repete quase mensalmente por todo esse Brasil, de norte a sul, e de que são exemplos típicos o do Maragato, em Santana do Livramento, e o do Correio de Cantagalo, no Estado do Rio de Janeiro.[20]

O regímen do calote, generalizado na administração federal e principalmente na estadual.

Tem este duas faces: o calote direto sob pretextos vários, como o das famosas contas do Ministério de Justiça e das obras da Exposição Nacional, e o quase calote, consistente em deixarem meses e até anos os funcionários públicos sem receber os seus ordenados.

Esta prática, hoje endêmica, tem dado lugar a terríveis casos de assassínios e suicídios e a curiosas ocorrências cômicas.

Desta última espécie é a de um juiz do Estado do Rio de Janeiro que, cansado de esperar por pagamento, e acossado por exigente credor, enviou ao presidente do Estado letra para ser por este endossada, expediente que lhe valeu mandaram-lhe pagar dois meses de ordenado, dentre os trinta e tantos que lhe deviam.

Releva ajuntar que, quando as fazendas estaduais consentem em saldar as suas contas, sempre o fazem com os títulos depreciados de seus empréstimos internos.

Esta é a verdade geralmente sabida e ocultada habilmente aos olhares estrangeiros pelos interessados em manter lá fora a fonte perene dos saques sobre o futuro.

Como fita-mor do ramilhete e para ser agradável a Pinheiro Machado, relembrarei algumas maravilhas da política de seu estado natal, belezas do castilhismo positivóide que anda envenenando a alma gaúcha. Antes de tudo, devo confessar que faz hoje medo escrever qualquer coisa que não seja em louvaminha dos homens e da ordem de coisas ali reinante.

Por motivos fáceis de explicar aqueles sectários são a gente mais odienta de todo Brasil.

Almas semibárbaras de egressos do regímen pastoril, envenenadas pelas doutrinas e manhas ditatoriais de um meio positivismo grosseiríssimo, – essas da classe hoje dirigente no Rio Grande do Sul –, não trepidam no manejo dos atos mais violentos, na repressão daqueles que se desviam das normas de seu estreito politicar, e menos ainda em cobrir de insultos e baldões quem quer que não diga amém a todas as suas tresloucadas pretensões.

Eu mesmo já tive disso a mais dura prova.

A mais estúpida e deslavada descompostura que, em quarenta e tantos anos de lutas, levei na vida, foi a vil arrieirice com que entendeu de escoicear-me a Federação, a famosa Jararaca, de Porto Alegre, só por haver entre as oligarquias que nos corrompem e aviltam, colocado, como era de justiça, o castilhismo positivóide.

Tiveram ali a coragem, filha de crassíssima ignorância, de contestar o caráter oligárquico do governicho do desventurado estado.

Entretanto, se a algum dos ajuntamentos que desgraçam nossas ex-províncias cabe bem esse qualificativo, é a esse grupete do Rio Grande, onde um chefe incontrastável e meia dúzia de mandarins trazem pela gola a população, sufocando-lhe todas as liberdades.

Aqueles incultos gaúchos ainda pensam que oligarquia quer dizer governo de família, governo de parentes, aplicável somente ao Ceará...

Coitados!

Evoquem Clotilde e consultem-na.

Faz hoje medo, porque a castilhice vai chegando até cá; é veneno que vai transbordando, a ponto de ter gente sua aqui no Rio de Janeiro um pouco por toda a parte.

A época é deles: três das pastas do Ministério, a prefeitura, a diretoria da instrução pública, a diretoria da Imprensa Nacional, algumas delegacias caíram nas mãos dos terríveis sectários.

O próprio presidente da República, pelo fato ocasional de ter nascido no Rio Grande, quando o pai esteve ali destacado, já cometeu a imperdoável leviandade de proclamar modelar o regímen ali reinante; e deixa-se por gosto cavalgar por Pinheiro Machado.

Este anda radiante, porque sua proverbial ambição e provada incapacidade mental não chegam para lhe deixar ver que é o amadurecimento do fruto exatamente sintoma da próxima queda.

O abismo entre todo Brasil e esse ditador sem responsabilidade, esse colaborador da treva, esse mandão de fato, que se oculta nos bastidores, escancara-se cada vez mais.

Indo falar de coisas do Rio Grande, sine ira ac studio, devo, antes de mais nada, protestar que, ali como no Brasil todo, sou do número dos que adoram a terra, amam ardentemente o povo e detestam a chamada classe dirigente, em cujo número avultam incompetentes ou criminosos em qualquer grau.

Lendária era no Brasil inteiro a fama da democracia rio-grandense. Uma prolongada luta de quase dez anos em prol da República, que se havia distendido dos últimos tempos da Regência aos primeiros do reinado de D. Pedro II, tinha sido o ponto de partida da lenda, desabrochada em pleno romantismo.

Todas as outras revoluções dos tempos regenciais e do Segundo Reinado haviam sido demasiado curtas e efêmeras: não deixaram repercussão no espírito popular.

A do Rio Grande, não; tinha sido coisa séria.

A democracia brasileira voltava-se para o Extremo Sul, sempre que precisava aviventar tradições ou tomar coragem para novos surtos.

As melhores imagens da retórica de nossos tribunos memoravam a ideal República de Piratini, a epopéia dos Farrapos, a intrepidez dos guascas, as ousadias dos gaúchos, a alma invencível dos pampas...

Eram frases místicas de puro romantismo político, ou de liberalismo romântico, como quiserem.

A princípio, Félix da Cunha, com algum talento, e mais tarde, durante toda a segunda fase do Segundo Reinado, Gaspar Martins, com talento notável, e Assis Brasil, na propaganda republicana, com talento ainda mais alto, mantiveram sempre a lenda em estado de ebulição.

Não é que eu conteste de todo a realidade das tendências liberais e democráticas dos rio-grandenses.

Em parte eram e são verdadeiras, mas só em parte; e, para prová-lo, não preciso mais nada do que notar a tal ou qual facilidade com que ali se instalou a ditadura castilhista.

Já não seria tão fácil implantá-la em São Paulo.

As condições das terras e as conseqüências imediatas dessas condições no trabalho, e, pelo trabalho, na organização da propriedade e da família, e, pela da propriedade e família, na repercussão que delas atua na vida social e política, explicam amplamente o fato.

A retórica nacional, superficialíssima e desarticulada, mesmo quando manejada por nossos pretendidos historiadores, ainda não achou jeito de explicar cabalmente o progresso de São Paulo, com o seu liberalismo orgânico; nem a vacilação rio-grandense entre o despotismo da ditadura positivista e os surtos democráticos do parlamentarismo ou do presidencialismo americano.

O fato é que São Paulo é o filho mais velho e mais robusto da civilização e da organização brasileira. Vem isso de longe.

Pelas condições especialíssimas da terra, apertada ali contra o mar pela montanha, o colonizador, logo nos primeiros anos do século XVI, galgou a serra, alcançou o planalto, o sertão, e fundou lá a cidade.

Ao passo que em todo o resto do Brasil o colono ficou durante século e meio, ou mais, arranhando a costa como caranguejo, na frase gráfica de Frei Vicente do Salvador, o caso foi o inverso em São Paulo.

Por isto, e desde então, ele se adiantou mais de um século ao Brasil inteiro, por isto é hoje o mais culto, o mais adiantado, o mais progressivo de todos os nossos estados.

O ritmo da civilização nacional é avançar para o oeste e dominar o grande corpo do país.

São Paulo antecedeu a todos nesta direção, foi o primeiro que pisou o sertão e dele se apoderou.

Neste oeste maravilhoso, onde estão as terras roxas, que lhe dão a riqueza, ele plantou tenda antes dos mais.

Chegou até a funcionar como agente descobridor, como devassador de terras, dando-as a outros, terras em que se vieram desenvolver Minas, Goiás e Mato Grosso.

Tudo proveio de um só fato: a fundação da capital no centro e o avançar para o oeste.

Minas ocupa o segundo lugar, após São Paulo, na riqueza e no progresso, porque foi um desdobramento da terra-máter paulista, e fundou também no centro as cidades e a vida.

Desse fato inicial proveio o fato imediatamente fundamental no progresso dos dois estados: a prisão ao solo pela agricultura.

No Norte também a agricultura se desenvolveu desde o século XVI; mas durante dois séculos não saíram os colonos da costa e da zona da mata.

No vale amazônico o caso é especial; houve do século XVII em diante entradas para oeste, mas presas às margens do grande rio.

Os colonos arranhavam ali as margens do rio colossal – como tartarugas, como os outros arranhavam as costas do oceano como caranguejos.

A indústria-máter, a oficina-mor da civilização, a agricultura no vale amazônico ainda não se fundou até agora.

As indústrias secundárias da extração de produtos naturais não podem ali exercer a função direta e normal de agentes civilizadores do homem.

As cenas de pirataria que afeiam a política do Amazonas e Pará decorrem principalmente desse fato e por ele se explicam.

No Brasil intermédio, de Bahia a Maranhão, a decadência do ramo principal da agricultura, a cana-de-açúcar, explica a madorra política em que se acham aqueles estados, reflexo de má situação econômica.

Pelo que toca ao Rio Grande, é ele o filho mais moço da civilização brasileira.

Só do século XVIII em diante é que se foi organizando.

As condições de fronteira explicam em grande parte a história lenta de sua formação e muitos outros casos de seu viver.

Quanto à vida social, é irrecusável a verdade ali da existência de um verdadeiro dualismo, oriundo da diversidade das zonas em que se divide o estado: os campos e coxilhas do Sul, as terras de serra acima.

Em rigor, seria possível estabelecer três zonas: a dos campos do Sul; a das encostas, depressões e contrafortes das serras; a do planalto amplo.

A primeira e a terceira são do gênero das estepes relvosas, próprias para a criação de gado, tão habilmente descritas pelos cultores da ciência social na Mongólia, na Rússia do sul, na Pérsia, na Ásia anterior e até na África do Norte.

O caráter das gentes dessas zonas está estudado pelos adeptos da escola Le Play.

Ali floresce o tipo do criador inteiramente nômade em certos pontos, meio nômades noutros.

Na Mongólia reina a organização patriarcal pura, o comunarismo de família.

O tipo vai-se modificando, aos poucos, à medida que se avança na direção do sul até chegar à África.

Na sua passagem, verbi gratia, para a Península Ibérica, ele se desorganiza em conflito com inúmeras condições do meio e da concorrência de elementos estrangeiros e chega à formação desse tipo comunário de estado, tendo como base a família instável, como se pode ler em Demolins – Les Grandes Routes des Peuples, em Poinsard – La question du Marroc e Le Portugal Inconnu, em de Preville – Les Societés Africaines.

Tal a raiz em que se vai prender a desordem atual da política portuguesa, que serve de ilustração da nossa.

No Rio Grande temos, não falando das gentes das cidades, pelo menos dois tipos de população: a dos agricultores das encostas da serra e de acima e a dos criadores dos campos e coxilhas.

A estes últimos, socialmente, se ligam os criadores das chapadas do planalto.

São gentes entusiastas, alimentadas de carne abundante, tonificadas pelo mate, mas algum tanto desorganizadas, meio nômades, pelo menos pouco sedentárias, pouco presas ao solo no que, nomeadamente, toca aos peões e capatazes.

Acostam-se sempre a um patrão, não cultivam a autonomia da vontade, a iniciativa de viver por si, traçando-se uma carreira, não cultivam a liberdade civil no sentido moderno.

São uns patriarcais instáveis, eles e os seus chefes, estirpe desses caudilhos que pululam na terra gaúcha, dos quais tantas dúzias surgiram nos dias da revolução federalista.

Alguns, mais desprendidos, ou mais dignos, ou almas mais alevantadas, abraçaram a causa da revolução como Gumercindo Saraiva; outros, temperamentos de truculentos sequazes, abraçaram a causa dos pica-paus, a causa do déspota Castilhos, como esse ultrafamoso João Francisco, hoje repudiado pela própria oligarquia que se apoderou do Estado.

Esses são o esteio-mor do castilhismo.

Quanto aos agricultores da ex-província, acham-se eles pela maior parte nas colônias de origem estrangeira. Se estas já estivessem de todo nacionalizadas, abrasileiradas, pelo menos pela língua, e tomassem mais interesse pelas nossas coisas políticas, o castilhismo voaria pelos ares; porque não se pode acreditar que uma democracia rural, inteligente e próspera, se submetesse ao jugo de ferro de um positivismo espúrio, manejado por um par de nulidades como Pinheiro Machado e Borges de Medeiros.

É, pois, no elemento semibárbaro do regímen pastoril que se abroquela o castilhismo positivóide.

A democracia das colônias é-lhe indiferente, porque não está organizada, não está intensamente abrasileirada, não lhe repercute n’alma a vibração americana do liberalismo.

Nas gentes das cidades há a distinguir os descendentes dos colonos, que vivem das indústrias ou do comércio nas mesmas condições de indiferença dos seus parentes das colônias, e os descendentes da velha estirpe nacional.

Destes notam-se três grandes classes: a dos funcionários públicos, sempre adeptos do poder; a dos que vivem das profissões liberais; a dos negociantes e empregados no comércio ou nas indústrias.

Nestas duas últimas ordens de gentes dividem-se as opiniões: existem pica-paus e maragatos.

A roda dentada da ditadura vai ganhando terreno; porque dispõe do poder e o poder é o poder, como afirmava o tribuno da época imperial.

Importa dizer que o castilhismo calcinará a alma rio-grandense, até que haja governo de gente que pense na união e ponha aquilo abaixo em oito dias.

Mas não devo esquecer que o meu alvo principal agora é preparar a fita para o ramilhete a pôr nas mãos de Machado, tecida das grosserias praticadas pelo governicho de Porto Alegre.

Uma vista sistemática sobre os desacertos e violências do pior dos governos flageladores do Brasil determinará facilmente os seguintes grupos principais de fenômenos que ali despertam a atenção: acentuado jesuitismo, prenhe de manhas e traças jeitosas, principalmente no intuito de velar a luta real existente entre os próceres do partido; despotismo implacável como norma de governo, tanto mais terrível quanto é alimentado, por sistema, dentro das estreitas doutrinas teóricas de um fanatismo crendeiro, despotismo que se traduz em perseguição tremenda aos adversários sob todas as formas, nomeadamente na linguagem veementemente descabelada da imprensa e das arengas dos detentores do poder, por um lado, e, por outro, em proteção, sem peias, aos amigos, considerados esteios da situação; barbarização geral dos costumes que se acomodam cada vez mais com a violência; como remate, o contrabando, por todos os lados, como meio de arredondar fortunas, negociata que muitos figurões não acham de todo desprezível.

Urge desfilar às pressas as contas deste rosário.

O jesuitismo manhoso, para ocultar ao Brasil em geral as dissensões dos próceres do castilhismo, é patente e exposto aos olhos de todos.

Os testemunhos da imprensa e de pessoas fidedignas são unânimes.

São de vulgar notícia as antipatias e desavenças entre Pinheiro e Cassiano; entre aquele e Borges de Medeiros; entre este e Carlos Barbosa; entre os dois últimos e João Francisco.

Sabe toda a gente, por exemplo, que, sendo este último endeusado por todos os castilhistas, porque tinha inspirado especial confiança ao falecido tirano, e gozado principalmente da amizade de Pinheiro Machado, logo que Medeiros entrou a ter ciúmes do senador arvorado em grande potência política no Rio de Janeiro, começou o caudilho do Cati a ser maltratado pelo governo de Porto Alegre, que lhe foi retirando a força e atacando o prestígio.

“O senador”, escreve provecto jornalista rio-grandense, “tinha no caudilho do Cati uma força incontestavelmente grande e valorosa: o Sr. Medeiros percebeu o perigo e cortou-lhe as asas.

“Primeiramente reduziu-lhe o número de praças aquarteladas que faziam do Cati uma Sebastopol da fronteira, depois extinguiu aquela praça de guerra, quando viu que, pela redução do efetivo, ela não representaria uma resistência séria, depois anulou moralmente o caudilho, por meio de um monstruoso processo de contrabando, e, em seguida, armou- lhe a cilada de Santana, onde ele devia cair e na qual pereceram os seus dois valorosos irmãos e um precioso amigo, de alto valor pessoal.

“Esses golpes, que pareciam ferir o coronel João Francisco, foram outras tantas pancadas que o Senador Pinheiro Machado recebeu no alto da cabeça, deixando-o desmontado e sem aquele ponto de apoio.”

Toda a gente sabe o que aconteceu depois.

Quando se supunha que a luta ia romper violentíssima entre João Francisco e o governo de Porto Alegre, como tudo parecia indicar pela grita levantada pelo caudilho e as respostas que lhe dava em discursos e escritos o Sr. Flores da Cunha, órgão de Medeiros na ocasião, tendo o caudilho apelado para seu chefe Pinheiro Machado, pedindo-lhe apoio, o jesuitismo geral pôs-se em ação.

O senador, jesuíta-mor, quebrou o corpo e telegrafou que pela última vez ia aconselhar o amigo transviado...

O caudilho, também jesuíta, percebeu o jogo, viu que ia ficar só e de todo perdido: tratou de fazer pazes com todos...

Telegrafou para Porto Alegre a amigos nestes termos: “Diante da tremenda crise política [?] que acaba de rebentar no Rio, produzida pelas defecções de amigos de ontem [?], que hoje de parceria com inimigos contumazes se atiram ferozmente [?] contra Pi- nheiro Machado, principal sustentáculo da República, é chegado o momento de nosso partido em toda a parte cerrar colunas em torno de Pinheiro Machado, que é o mesmo que dizer em torno da bandeira da República [!!].

“Eu mesmo agora, com a alma dilacerada por profunda dor, ante tão grave situação [?] estou pronto [pudera não!] a chegar à forma, com todos os velhos companheiros, para constituir a muralha de defesa da República.

“Em tais ocasiões, o dever impõe o sacrifício da paixão para auxiliar a defesa da causa da pátria.

Peço-vos servirdes intérpretes tais sentimentos por mim e meus amigos junto ao Governo e do Chefe aí.”

Como tudo isto é típico!

O caudilho faz frases, fantasia tremenda (gosta muito desta palavra...), crise política no Rio pelas defecções de amigos de Pinheiro, sustentáculo da República.

Até hoje ninguém sabe que crise foi essa, quais foram os inimigos traidores, e como é que o Sr. Pinheiro Machado é o sustentáculo da República.

O homem do Cati pegou pela cauda a ocasião de se chegar aos seus inimigos e mais nada.

Despotismo, perseguição aos adversários, por fatos e linguagem despejada da imprensa, proteção descarada aos amigos da situação são coisas todas que ressaltam destas transcrições, que faço para argumentar com escritores e jornalistas da própria terra devastada pelo castilhismo: “A organização do Rio Grande do Sul, aberta do sistema americano, é toda ela calcada, à força de marreta e malho, nas aspirações da política positiva de Augusto Comte, que em parte nenhuma do globo teve aplicação, nem na Groenlândia, nem no arquipélago de Lafoden.

Quanto às nossas origens étnicas, aquela organização desmente e contraria absoluta e fundamentalmente as tradições brasileira e rio-grandense, através das quais passam sempre o sopro animador e vivificante e a vibração da liberdade, como os efetivos das correntes de alta freqüência com que a darsonvalização agita e modifica milagrosamente as condições do organismo humano, ao passo que na atual modelação do Rio Grande do Sul o que predomina é a intolerância insolente e a tendência manifesta para o absolutismo czarista.

Não obstante a origem também absolutista da metrópole portuguesa, de onde promanamos, havia no velho Portugal as tradições da liberdade municipalista que, no meio da política parlamentar do império, foi sempre a atmosfera em que o povo rio-grandense viveu durante os sessenta e sete anos da independência.

Hoje, essa tradição formosa, que constituía o lar da nossa liberdade em todo o Brasil, no Rio Grande do Sul está completamente apagada da realidade e, ou é uma bela reminiscência histórica, ou uma aspiração popular a transformar-se em artigo de programa partidário.

Politicamente encarado o problema, no Rio Grande do Sul não há presidencialismo, nem ideal, nem prático: há personalismo.

Depois de promulgada a Constituição positivista, abertamente, francamente, amplamente positivista, houve a adaptação triunfal do castilhismo, pela influência absoluta, dominadora de Júlio de Castilhos, que a revolução e a guerra civil tornaram ainda maior, incontrastável, profunda.

Falecido o ditador, o poder espiritual, como lá se diz ortodoxamente, incrustou-se no presidente do Estado, Dr. Borges de Medeiros, que já exercia o temporal.

Do acúmulo dos dois poderes na mesma entidade, resultou o predomínio pessoal do Sr. Dr. Borges que acabou por diluir e abalar o castilhismo, substituindo-o pelo borgismo.

Lentamente, o pequeno ditador foi impondo a sua vontade, onde e sempre que, por lealdade à sua memória, deviam predominar o nome e os processos do falecido ditador.

De sorte, que, no Rio Grande do Sul, não há regímen republicano presidencial, há tão-somente o absolutismo ditatorial positivista, instituído por Júlio de Castilhos e deturpado ridiculamente pela simplicidade sorridente e loilesca do seu mumificado sucessor.

O sistema republicano presidencial que adotamos funda-se no regímen representativo e no Rio Grande do Sul há uma verdadeira mescla, que escapa a esse regímen livre e democrático, porque, ou é a vontade do presidente ou do chefe que prevalece, fazendo nomeações onde e quando deveria manifestar-se a vontade do povo, pelas urnas, como acontece com a escolha do vice-presidente do estado, e dos vice- intendentes, nos municípios onde há esta entidade; ou realmente funciona o processo eleitoral com apelação para o presidente do estado, que é pura manivela na mão do chefe, quando não é o próprio chefe que acumula as duas funções.

“Ainda está palpitante o caso típico, característico e específico da fronteira, em que continua a ser herói o caudilho João Francisco, o qual, na opinião do Dr. Flores da Cunha, deputado estadual e amigo íntimo do Dr. Borges (é realmente o mais abjeto dos seres e o mais infame dos homens).

“E esse caso não pode deixar mentir nem errar: a paixão não pode cegar-nos entre membros do mesmo partido, e utilizamo-nos de palavras escritas e assinadas pelos próprios interessados na solução da contenda.

“Em toda essa tristíssima pendência, a figura do presidente do estado, Dr. Carlos Barbosa, ficou totalmente apagada; quem apareceu em foco foi o Sr. Dr. Borges de Medeiros, a quem até as autoridades locais telegrafavam de preferência para solicitarem providências e participarem notícias dos acontecimentos.

“E é tal a nefasta influência personalista do Sr. Medeiros, na ação política e administrativa do Rio Grande do Sul, que conseguiu do chefe do governo do estado a nomeação do Dr. Melo Guimarães para juiz de comarca de Cachoeira, quando era público e notório que ele se achava implicado nos morticínios de Santana, como principal responsável.

“E antes de se ter provado que esse juiz não era réu de assassinato, o Dr. Carlos Barbosa nomeou-o magistrado de uma comarca: oito dias depois foi expedida ordem de prisão preventiva contra esse (modelo de juiz, honra da Justiça rio-grandense), na frase do Dr. Medeiros.

Por estas palavras do ilustre Dr. Pinto da Rocha, provecto jornalista, professor de direito da faculdade livre de Porto Alegre, ex-deputado federal, que a fundo conhece a política rio-grandense, fica-se bem a ter uma idéia do despotismo reinante na terra dos Farrapos.

Pelas que se vão seguir penetra-se amplamente no sistema de arrocho para com os próprios funcionários, quando não fecham os olhos às alicantinas dos amigos do peito.

Faz-se vista gorda à prevaricação, contanto que se não diminua o número dos sustentadores do nefasto regímen, que ali impera por desídia indesculpável da União, que, ao contrário, o tem protegido e ajudado.

“Enquanto o chefe do partido, pela organização interna do tal partido dominante no Rio Grande do Sul, tiver a supremacia de que realmente dispõe a respeito da política, é impossível ao governo ter ampla liberdade para tratar da administração do estado.

“Vamos demonstrá-lo com um fato que é categórico.

“A Constituição do estado determina que o Presidente será auxiliado na administração por três secretários de sua exclusiva confiança, que presidirão aos departamentos do Interior, Fazenda e Obras Públicas.

“O secretário do Interior é um dos substitutos do Presidente em casos de impedimento e cada um dos outros secretários substitui o colega na ordem da referida enumeração.

“Há mais de um ano a Secretaria da Fazenda está vaga e apenas interinamente dirigida pelo secretário das Obras Públicas, Dr. Cândido de Godói...

“Por quê?

“A Secretaria das Obras Públicas é, como a da Fazenda, de um grande acúmulo de serviços de diversas espécies, que dá ao titular da pasta um trabalho hercúleo.

“Reunidas, há um ano, em um só homem, as duas funções tão complexas dos dois departamentos, não é possível conseguir normalidade no cumprimento dos deveres, nem regularidade no desempenho das funções, nem atenção fecunda aos interesses gerais da administração.

“Por mais inteligente e mais forte que seja o secretário das Obras Públicas, não poderá resistir a esse excesso de trabalho, ou, se isso é verdade, fica amplamente provado que é uma inutilidade a Secretaria da Fazenda no Rio Grande do Sul, visto como os fatos estão demonstrando que um só secretário pode, durante um ano, servir perfeitamente os dois departamentos, sem prejuízo da sua saúde e com vantagem para os interesses públicos.

 “Mas por que razão está vago o cargo de secretário da Fazenda?

“Exercia essa função, desde que o Dr. Carlos Barbosa assumiu o governo do Estado, o Sr. Álvaro Batista, irmão do dr. Homero Batista, deputado federal do Rio Grande do Sul.

“A competência, a ilustração, a orientação, a energia firme e o zelo incontestável com que o Dr. Álvaro Batista dirigiu a Secretaria das Finanças ficam ampla e irrecusavelmente manifestados no seu excelente Relatório, o mais vigoroso, mais fecundo documento que o regímen republicano produziu, durante vinte anos, naquele estado.

“Essas qualidades não podiam agradar ao Dr. Borges de Medeiros, porque lhe perturbavam os processos políticos por meio dos quais ele procura manter a coesão dos seus amigos.

“O Dr. Álvaro Batista quis administrar com energia, quis tratar dos interesses gerais do estado, sem se preocupar com a política do partido e apertou com os coletores estaduais para cumprirem os seus deveres, apressando e tornando efetivo o pagamento de impostos atrasados, em dívida, a fim de recolhê-los aos cofres do Tesouro, como era de lei, que ele, secretário, tinha obrigação de cumprir, sob pena de ser desidioso e, portanto, delinqüente.

“Começaram a chegar ao seu conhecimento ofícios e informações reservados, explicando os motivos de atrasos e solicitando benevolência. O secretário insistiu energicamente e exigiu o imediato cumprimento do dever, sem benevolências incompatíveis com as imposições irrecusáveis das leis em vigor.

“Ameaçados, os coletores dirigiram-se, pessoalmente, ao Sr.

Borges de Medeiros, em Porto Alegre, e fizeram-lhe ver que, sendo os devedores remissos, em quase sua totalidade, membros, e alguns proeminentes, do partido situacionista nas suas respectivas localidades, se viam na impossibilidade de fazer a cobrança imediata e judiciária, como pretendia o secretário da Fazenda sob pena de haver uma verdadeira debandada para os partidos democrático e federalista.

“Isso alarmou o Sr. Medeiros que, imediatamente, intimou o presidente do estado a chamar à ordem o secretário da Fazenda para que se submetesse ou se demitisse...

 “E, passados dias, o Dr. Álvaro Batista renunciava o cargo de secretário da Fazenda, no qual tantos, e tão grandes, e tão brilhantes serviços podiam ainda prestar o seu formoso talento e as suas ambições republicanas.

“Eis aí como o presidente do Rio Grande do Sul, na organização do estado, tem a mais ampla liberdade para tratar da administração.

“No Rio Grande do Sul os funcionários públicos, do inferior ao superior, são todos de nomeação do presidente do estado, mas este, pela organização interna, ali estabelecida, apenas manda lavrar o decreto e assina: quem nomeia e demite funcionários do estado e de todos os municípios é o Dr. Medeiros, e se o presidente recalcitrar vai para o livro negro e se não se submeter, porque a submissão é a base do aperfeiçoamento, está irremissivelmente condenado, como já esteve o Dr. Carlos Barbosa, que chegou a ver em palácio o Dr. Juvenal Müller, vice- presidente do estado, para insinuar-lhe que lhe devia passar o governo e recolher-se a Jaguarão para tratar da saúde.

“Os deputados à Assembléia Orçamentária não são escolhidos pelo povo, nem mesmo pelo partido nas localidades: o Sr. Borges de Medeiros, em Porto Alegre, compõe a lista e remete-a aos intendentes dos municípios para que estes realizem as eleições prévias, isto é, a apuração desses nomes até tal dia determinado.

“Essa lista, mesmo sem as respostas aprobativas dos intendentes, é publicada no órgão oficial, que proclama os candidatos: no dia da eleição é aquela certeza – a vitória é colossal, o partido vence em toda a linha, mais uma vez tocam as fanfarras, espoucam os foguetes e são aclamadas vibrantemente a memória de Julio de Castilhos, o imortal, e a benemerente de Borges de Medeiros, o puro.

“Pela mesmíssima forma são escolhidos os intendentes municipais e quando, em eleição leal, a oposição vence, como em S. Gabriel, Caí, S. Sepé, Bagé e outros municípios, o presidente do estado, que não faz política e só administra, anula as eleições, e obedecendo às ordens do Sr. Medeiros, destaca da Secretaria do Interior e da Brigada Militar funcionários e oficiais, que vão dirigir a política e fazer a administração interina do município, e que depois se fazem eleger intendentes, como sucedeu em Caí, Bagé, Piratini e Alfredo Chaves.

 “É interessante esse modo de ver a política...

“Os situacionistas do Rio Grande do Sul detestam a intervenção, sempre contra ela se insurgiram, sempre entenderam que qualquer ato legislativo de regulamentação do art. 6º da Constituição seria um atentado inqualificável à autonomia local, a morte do regímen federativo...

“No entanto, no Rio Grande do Sul, a autonomia municipal, que a Constituição da República salvaguardou eloqüentemente e na qual assentou toda a construção republicana da pátria, a autonomia municipal, pela organização política rio-grandense, é um verdadeiro joguete nas mãos de um malabarista desastrado.

“Manda o Sr. Medeiros e o município há de curvar a cabeça; se o não fizer a eleição será anulada pelo presidente e, cassada a autonomia municipal, receberá ele um capitão, um major, um tenente ou um cabo da Brigada Militar, que será o intendente, enquanto o Sr. Medeiros entender que esse preposto é que consubstancia a pureza dos princípios republicanos em toda a verdade...

“E isso, que acabamos de escrever, desafia altivamente a contestação de quem quer que seja, rio-grandense ou não, da bancada federal, do exército, da armada...”

Espanta!... Nada mais claro, nem mais concludente.

São fatos e alegações irrefutáveis, que deveriam levantar calorosos protestos pelo Brasil inteiro.

Todas estas incontestáveis verdades foram escritas em resposta ao Marechal Hermes, quando, sem o menor critério, se lembrou de elogiar o negregado regímen rio-grandense.

Os trechos que vão a seguir põem a nu o sistema de infames pasquinadas, em moda ali na imprensa do governo.

Foram eles em resposta ao Senador Pinheiro Machado, quando teve a audácia de cantar a candura da linguagem de seus correligionários.

Essa pilhéria do ilustre caudilho provocou esta réplica, verdadeiramente esmagadora, por firmar-se em fatos incontestes e alguns deles, sem a menor dúvida, escandalosos: “O Sr. Senador Pinheiro Machado é representante de um estado onde predomina o partido da ditadura positivista, onde a compressão é uma realidade indiscutível, e onde a imprensa oficial nunca, nunca, nunca teve outros processos que não fossem a mentira, a injúria, a calúnia e a ameaça clara, positiva e sem rodeios nem ambages, quer nas cidades do litoral e do interior, quer na própria capital do estado, na presença do chefe do partido, da força armada e com incitamento dos governos constituídos.

“O Sr. Senador Pinheiro Machado sabe, de ciência própria, sabe, por ter lido, que os seus amigos no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, fundaram um jornal, intitulado Debate, exclusivamente para o fim de injuriar, difamar e aviltar a honra dos adversários.

“O Sr. Senador Pinheiro Machado sabe que o Sr. Borges de Medeiros era sócio dessa empresa, ao mesmo tempo que era presidente do estado; sabe que, entre outras infâmias de grosso calibre, ao mesmo passo que tecia encômios descabelados a S. Exª, dizia que o Dr. Fernando Abbott era um bêbedo, um ladrão e um assassino; que o Dr. Assis Brasil era um patife; que os democratas e federalistas eram uma súcia de bandidos, uma quadrilha de gatunos e salafrários; o Sr. Senador Pinheiro Machado sabe que esse jornal chegou a pedir a eliminação dos adversários, aconselhando o governo a fazer a seleção artificial; o Sr. Senador Pinheiro Machado sabe que aquele pasquim era do seu partido, dirigido pelos estudantes da Faculdade de Direito, filhos dos chefes políticos da Cachoeira e da Vacaria e pelo primogênito de um desembargador do Superior Tribunal do estado, que foi o orador do partido que, da rua, saudou, em discurso vermelho, a individualidade política do senhor senador; o Sr. Pinheiro Machado sabe que o Sr. Borges de Medeiros, nos dias em que as diatribes eram mais descabeladas, descia do palácio do governo e ia visitar a redação do Debate, concitando esses moços estudantes a prosseguirem no caminho encetado, atirando-os contra os próprios mestres da escola superior de que eram alunos e colocando-os, depois de assim bem corrompidos, na administração municipal, na política e, o que é doloroso e de tristes apreensões, nas cadeiras da magistratura.

“E o Sr. Pinheiro Machado, que sabe de tudo isso, que tudo isso aplaudiu, que tudo isso animou com a sua aprovação, ainda hoje vem, em discurso político, de responsabilidade, lançar sobre as suas próprias vítimas, sobre os mártires dos instintos sanguinários dos seus amigos e dos seus ajudantes, a responsabilidade dos crimes e das monstruosidades que nós temos sofrido e que eles têm praticado, com uma perversidade que seria suficiente para justificar perante a consciência da história a revolução mais sangrenta que viesse a explodir.

“E, por que motivo havemos nós de ser generosos com o senhor senador e com os seus amigos e ajudantes de carrasco, quando S. Exª conosco absolutamente não tem generosidade, nem consente que a tenham os seus amigos?

“A representação rio-grandense na Câmara dos Deputados federais está desfalcada de um dos seus membros: há dois anos que este homem, no delírio ambulatório de uma paralisia geral progressiva, passeiam por toda a parte, numa peregrinação dolorosamente triste, e definha lentamente, sem que para ele nem para o seu partido lucile a estrela de uma esperança.

“Esse homem foi, no Sul, o redator-chefe da Federação, o órgão oficial do governo, do partido, do Sr. Borges de Medeiros e do Sr. Pinheiro Machado; não há no Rio Grande do Sul um só adversário, federalista ou democrata, de nome ilustre ou de modesta reputação, que esse homem não houvesse injuriado, difamado, caluniado, torpe e desbragadamente, com ciência e consciência plena do Sr. Pinheiro Machado, que o faz deputado federal e que sempre o distinguiu e animou.

“Esse homem, com o apoio de todo o partido, sobretudo dos chefes de maior valor, escreveu as maiores infâmias de que há memória, caluniou e insultou à vontade, impunemente uma sociedade inteira, e é hoje deputado federal pelo Rio Grande do Sul.

“Nunca foi possível obter da justiça dos homens, na terra infeliz dos Farrapos livres, a condenação do caluniador, acobertado pelo apoio dos chefes, dos asseclas e da força pública.”

Em assunto tão grave preferi, como era de razão, conceder a palavra a uma testemunha ocular da maior respeitabilidade, cujos depoimentos não andam nas páginas de obscuros jornais de província e sim nas colunas do Diário de Notícias, um dos mais aplaudidos órgãos da imprensa da capital da Federação.

São repositórios de fatos positivos, irrefutáveis, esmagadores, colhidos no meio de enormíssima quantidade.

Outros muitos mais deprimentes têm-se ali dado, que me abstenho de compendiar, porque entram nos domínios da pura ferocidade.

Citarei apenas mais um trecho, eloqüente a mais não ser, atestado da deplorável situação de espírito a que chegou o partidarismo na terra dos pampas.

É o caso que o intendente municipal da cidade do Rio Grande chegou, aos 25 de julho de 1900, a ter a coragem de aconselhar aos seus amigos o assassínio dos adversários, e, no dia seguinte o seu jornal – União Cívica – estampava as monstruosas palavras que vão no final do depoimento do cronista: “Desrespeitando a majestade fúnebre e sagrada de um cemitério, junto a uma sepultura ainda quente, V. Exª, chefe do partido e primeira autoridade local à frente da onda fanatizada que o domina pela bajulação, não teve dúvida em incitar a raiva incandescente da multidão desvairada, convidando-a para a matança e para a hecatombe.

“E como se não bastasse essa suprema degradação moral, essa ostentação terrorista do crime, esse desafio verbal atirado às faces de um povo, durante uma cerimônia fúnebre, convertida na mais horrenda e bestial orgia de sangue, V. Exª, ainda no dia seguinte, pelas colunas do seu aprimorado panegirista, mandava insultar a civilização, mandava injuriar uma sociedade inteira, escarnecia da lei, e arrastava a sua autoridade pela lama das sarjetas, repetindo em letras negras as palavras violentas que proferira no cemitério e que envergonhariam o próprio Troppmann.

“Eu vou recordar-lhe esse triunfo com que V. Exª ilustrou a história da sua esplêndida e sábia direção política sobre essa infeliz cidade, transcrevendo aquele primoroso mimo literário que devia ser inscrito em letras de ouro sobre uma lápide de mármore negro, no frontispício da casa em que funciona a União Cívica!

“Eis aqui os seus períodos eloqüentes e majestosos, datados de 26 de julho de 1900: “Ah! miseráveis!

 “Vamos esmiuçar muito e muito o doloroso acontecimento: e se das nossas incessantes pesquisas confirmar-se que um desses bandidos foi o mandante da tentativa de assassínio feita contra o nosso companheiro, faremos rolar cabeças aos pares, às dúzias, transformando as ruas em estendais de cadáveres de maragatos.

“A nossa vingança será exercida a bala, a faca.

“Breve tereis a prova!”[21]

É horrível! Dispensa comentários.

À vista de tão escandalosos fatos e de tão compressor e desalmado sistema, não é de admirar a intensa barbarização que se vai distendendo por todo o Estado, da qual o artigo seguinte, reproduzido da Gazeta do Comércio e do Maragato – dá nítida idéia: “Por mais que a oposição procure pautar na tolerância e na cordialidade as normas do seu viver diante desta situação que domina o Rio Grande, à custa do eterno favor da União, surge-lhe sempre, dolorosamente, o dever de clamar com energia contra os nefandos processos que esbirros inveterados na prática do crime vão impunemente executando pelo estado afora, pelo absoluto desprezo pela nossa civilização e até pelas próprias autoridades mortas que, na capital, fingem de governo republicano.

“É um nunca acabar! Os bandidos emergem como hervas daninhas de cada canto do Rio Grande, apunhalando os adversários e até os amigos, à sombra de tradicional impunidade garantida pelos mandantes, chefes e chefetes de maus bofes, sem cultura e perpetuamente sedentos de sangue; é isto que se diz governo modelo, todo cheio de sensibilidades republicanas e preconceitos hipócritas, cala e consente sempre a braços com um incurável desânimo, misto de pusilanimidade e de covardia, que estimula ardentemente os facínoras a novas façanhas.

“Mata-se atualmente no Rio Grande com freqüência e à vontade. Quem é amigo da situação pode sair desassombradamente de garrucha em punho ou de lança em riste e sacrificar os seus desafetos, por este ou aquele pretexto fútil, que o castigo é nulo e o herói ficará talvez mais recomendado aos chefes, como homem de valor.

“O chefe de polícia é um bom cidadão, excelente para firmar o expediente, expedir carteiras de identidade e passear na Rua da praia, porque, no mais, a sua ação é nenhuma. Os subchefes não lhe dão satisfações, fazem o que entendem ou, por outra, fazem política pelos municípios, quando lhes não dá também para ordenar a eliminação de Fulano ou Beltrano, de sorte que não há receio, por parte dos matadores, de serem sequer processados.

“Não inventamos. É esta, inteira e transparente, a dolorosa verdade.

“Consultem-se os jornais nestes últimos meses, e veja-se se é ou não assombroso o incremento que vai tornando a ter o homicídio pela campanha do estado.

“É simplesmente alarmante!

“Das primeiras vítimas foi o denodado Inocêncio Garcia, barbaramente abatido a golpe de cacete e facão, a ponto de lhe haverem cortado quase a metade da cara! O Dr. Vasco Bandeira foi a Vila Rica, onde se sabia bem quem eram os autores do covarde assassínio, tendo chegado mesmo o finado coronel Gonzaga de Azevedo a prestar declarações precisas, e voltou, sem ter colhido uma só circunstância que o animasse a instaurar processo!

“Daí por diante, vêm os casos parecidos se multiplicando, numa proporção assustadora. É o massacre do Livramento, onde tombam três vitimas, da própria situação, figuras salientes no meio fronteiriço, e os habeas corpus e a escancarada proteção dos governantes e as músicas oficiais, no dia do sepultamento das vítimas, tripudiam impiedosamente sobre os cadáveres, enquanto o chefe de polícia, justamente no momento das investigações, vai passear a Jaguarão, em lugar de cumprir o dever de aparecer em pessoa no lugar do crime monstruoso.

“É um subintendente do Herval a matar ou deixar matar um pobre tropeiro, a título de ser ele contrabandista. É, no município de S. Gabriel, a polícia a matar outro indivíduo, porque resistiu à prisão.

É, em Nonohay, o escrivão e o ex-subdelegado de polícia a matarem Francisco Padilha, devotado federalista, membro do diretório local, forte comerciante, chefe de família, confiantes no poderio nefasto do Sr. Firmino de Paula nos domínios serranos.

 “É, ainda no Livramento, há poucos dias, um bandido anônimo a matar, a tiros de carabina, um filho de conhecido fazendeiro, saqueando- lhe o cadáver. E a lista por aí vai, intérmina e desconsoladora.

“Onde estão as indagações referentes a semelhantes crimes?

Que providências tem tomado o chefe de polícia para averiguar esses casos?

“O Correio do Povo, por exemplo, em telegrama de Santa Maria, ontem, diz sem rebuços que o assassínio do nosso malogrado amigo Francisco Padilha, em Nonohay, foi praticado, ao que diz pessoa fidedigna, pelo escrivão e o subdelegado.

“Leu esta nota o Dr. Vasco Bandeira? Que diligências ordenou para verificar a veracidade da denúncia?

“Certamente nenhuma. S. Sª não tem jeito para as delicadas funções que está a exercer, nem tem o apoio e o estímulo de um governo de alma de pedra, vergonhosamente indiferente à desmoralização que avassalou a situação, a começar pelos templos da Justiça, transformados em casas de Orates, e a terminar nas confissões públicas de um deputado amigo, na imprensa, por entre estilismos cáusticos, da conivência de tal situação em monstruosos crimes de vários tempos.”

Tal o estado real em que se debate o Rio Grande do Sul, a terra de Silveira Martins e Assis Brasil, sob o guante férreo do Sr. Borges de Medeiros, com o assentimento do Sr. Pinheiro Machado.

Possam os federalistas algum dia expungir da terra gaúcha esse regime do terror e da morte.

Escusado é depois de tudo isto insistir sobre o contrabando.

Sei que este existe um pouco por toda parte no mundo inteiro.

Sei que nas regiões fronteiriças reina com maior ou menor desplante.

O Rio Grande do Sul não faz exceção: mas ali o contrabando tem chegado a assumir completa organização em que figurões da política têm parte conspícua, uns exercendo-o diretamente, outros defendendo os amigos nele implicados.

Um caso famosíssimo é o recente em que anda implicado um Sr. Santerre Guimarães, irmão de um dos ministros do Supremo Tribunal Federal e parente de um poderosíssimo ex-ministro da Fazenda.

Outro, também recente, é aquele que deu causa a processo criminal contra o famoso e potentado coronel João Francisco.

Não é para aqui narrar as peripécias interessantíssimas desses dois casos.

Basta dizer, quanto ao último que, enquanto a fazenda pública move processo-crime contra João Francisco, este, por seu turno, move processo de indenização, por perdas e danos, contra aquela.

Não é preciso ser profeta para prever quem acabará vencendo.

A viagem triunfal que fez, em tempo, ao Rio de Janeiro, onde recebeu do governo federal e dos próceres da política as mais fervorosas manifestações, é disso alvissareiro sintoma.

VI

Aspectos financeiros

Resta um lance d’olhos por este lado.

Quatro notas capitais compõem o concerto das finanças brasileiras: a) Aumento constante das despesas; b) Déficits consecutivos; c) Impostos cada vez mais onerosos para cobrir esses aumentos e déficits; d) Empréstimos sobre empréstimos para o mesmo fim. Não passa disto.

As despesas têm aumentado num crescendo aterrador, chegando a dobrar pés com cabeça.

Todo o funcionalismo público tem tido acréscimos de vencimentos.

Os mais avolumados têm sido os dos ministros do Supremo Tribunal Federal, os das secretarias deste tribunal, do Senado, do Tesouro e de vários ministérios.

Os soldos e etapas do exército só de pancada subiram a mais de doze mil contos anuais, sobre os muitos milhares que já custavam.

O mesmo na marinha.

Três dreadnoughts custaram de fabrico noventa mil contos e a mantença anual importa em mais de dois mil cada um.

Só na pasta da viação os contratos da gestão de Procópio Peçanha sobem a mais de quinhentos mil contos... Um horror!

Por estas simples amostras é fácil imaginar a quanto andam montando esses constantes aumentos.

Os impostos vão necessariamente no mesmo crescendo.

O quadro abaixo, formulado pelo Sr. Cincinato Braga, dá idéia dessa carreira dos impostos, pelo que toca à União, somente à União.

O que vai pelos estados e municipalidades é ainda mais aterrador.

A exposição dos impostos municipais do Distrito Federal, por exemplo, enche um volume inteiro, em oitavo, de 200 páginas.

Não existe uma só manifestação da vida pública, em qualquer ramo, que não esteja tributada e muito.

Mas eis o quadro aludido, relativo à União: “No quatriênio presidencial de 1895-1898 (Prudente de Morais), a média anual de recursos exigidos ao contribuinte foi de 324.885:618$000.

“Tomando esse algarismo como ponto de partida, vejamos do ano de 1898, do funding loan para cá, quais têm sido os aumentos dos impostos (somente federais):

Período presidencial de 1899 – 1902 (excesso da

respectiva média anual sobre a média anual de

quatriênio de 1895 – 1898 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49.542:048$000

Período presidencial de 1903 – 1906, idem, idem . . . . . . . . . 417.044:656$000

Período presidencial de 1907 – 1910, idem, idem . . . . . . . . . 627.475:104$00

Soma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  . 1.094.061:808$000

“Atingiram, pois, a um milhão e noventa e quatro mil contos os impostos exigidos a mais de 1899 para cá: noventa e nove mil contos de aumento anual sobre os impostos anteriormente existentes, que continuaram também a ser cobrados”. É medonho!...

“O déficit foi sempre endêmico em nossas finanças.

“Nos dias atuais ele se ostenta por esta forma, devendo impressionar os espíritos verdadeiramente amantes desta terra e deste povo. Fala o deputado paulista:

Receita                                                    Despesa

Ano         ––––––––––––––––––--------––––––––      –-–––––––––––--––––--–––––––––––––

              Ouro                      Papel                      Ouro                      Papel

1900       24.570:742$000       263.687:253$000      41.708:100$000       358.480:172$000

1901       36.287:364$000       231.495:487$000      40.490:241$000       261.629:231$000

1902       42.904:714$000       243.184:105$000      34.034:760$000       236.458:861$000

1903       44.852:105$000       292.586:306$000      42.376:228$000       286.902:608$000

1904       50.051:875$000       278.947:388$000      47.225:384$000       378.450:556$000

1905       56.210:875$000       299.845:532$000      46.790:850$900       290.623:608$000

1906       88.036:427$000       273.219:209$000      53.167:218$000       328.403:950$000

1907      104.988:902$000       320.927:661$000      66.060:667$000       376.274:423$000

1908       88.809:506$000       273.655:618$000      61.215:252$000       376.749:140$000

1909       86.724:376$000       290.031:934$000      74.449:102$000       365.869:980$000

“Façamos a conversão da parte ouro para papel; e então, representando todos esses elementos em papel, poderemos cotejá-los de modo mais facilmente compreensível, para apurarmos saldos ou déficits. Reduzindo-os a papel, obtemos os seguintes algarismos:

Ano         Receita                   Despesa                  Saldo                      Déficit

1900       307.914:589$000      433.554:753$000                                   125.640.164$000

1901       296.812:744$000      334.517:035$000                                   37.704:301$000

1902       320.412:824$000      297.721:430$000      22.691:394$000

1903       373.320:096$000      363.179:819$000      10.140:276$000

1904       369.039:780$000      463.466:248$000                                   94.426:454$000

1905       401.025:107$000      374.868:350$000      26.156:757$000

1906       431.684:869$000      424.104:943$000                                   7.579:925$800

1907       509.907:684$000      495.183:624$000      14.724:000$000

1908       433.512:836$000      486.936:594$000                                   53.423:757$000

1909       456.153:223$000      499.891:770$000                                   43.738:546$000

              3.899.783:762$000   4.173.424:571$000   81.292:412$000       351.931:222$000

“Apurados esses dados, chegamos ao resultado seguinte:

                                          Receita                   Despesa                  Déficit

Média anual. . . . . . . . . . . . . 389.978:376$           417.342:457$           27.364:081

“Quer dizer: decênio em que o déficit das rendas, em comparação com a despesa feita, foi de 273.000:000$! Chamo a atenção para esta circunstância: o déficit dos últimos dois anos, de 1908 e 1909 – só desses dois – ascendeu a 97.162:303$, que ao câmbio de 15d importam em mais de seis milhões esterlinos! Pois então, com situação econômica deficitária como vimos atrás; com situação financeira deficitária, como acabamos de ver agora, pode-se, sem insânia, pensar em qualquer alta cambial segura e permanente?

“Chamo também a atenção dos homens de boa-fé para a situação do Tesouro no exercício corrente. Até outubro inclusive (algarismos do Sr. Leopoldo de Bulhões):

Renda ouro arrecadada . . . . . . . 86.415:206$000

Renda papel arrecadada. . . . . . . 225.784:749$000

“Reduzindo-se toda essa renda a papel, para facilidade de exposição, encontraremos um total arrecadado de 381.347:649$: o que corresponde a uma arrecadação mensal de 31.778:970$000.

“Supondo-se que este último algarismo se mantenha até o fim do ano, temos que, em novembro e dezembro, vamos arrecadar mais 63.557:941$000.

“Assim, arrecadação total do exercício de 1910, câmbio a 15, será se esta:

Janeiro a outubro . . . . . . . . . . .381.347:649$000

Novembro e dezembro. . . . . . . . 63.557:941$500
                                             444.905:590$500

“Vejamos agora a despesa. A lei do orçamento vigente autoriza uma despesa que, ao mesmo câmbio de 15, atinge a 445.817:156$803.

Esta quantia, porém, já está excedida em 20.000:000$ de créditos especiais suplementares e extraordinários em elaboração legislativa, perfazendo assim uma despesa total certa de 465.817:156$803.

“Conseguintemente, vamos encerrar o exercício de 1910 deste modo:

Despesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . 465.817:156$830

Receita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 444.905:590$500

              Déficit . . .  . . . . . . . . . . 20.911:566$330

“Para moldura preta deste sombrio quadro, temos a acrescentar se se cometer o erro de fixar o câmbio a 16d, um prejuízo a mais para o Tesouro de 20.000:000$ de diferença entre as duas taxas.

“Isso elevará o déficit a 40.911:566$330!”

São elementos de juízo, coligidos dos relatórios e documentos oficiais, que podem ser verificados por qualquer.

Foram compendiados pelo orador paulista em seu citado discurso de dezembro de 1910.

Referem-se todos à União.

A marcha triunfante do déficit nos estados é igualmente digna da maior atenção da parte dos espíritos patrióticos.

Eis aqui o quadro, segundo as mesmas fontes insuspeitas, decorrentes dos documentos oficiais: “A situação financeira da União é assim desastrosa.

“Pois a dos estados não é menos.

“Ei-la aqui resumida, no tocante ao último exercício, de que foi possível colher dados oficiais:

                                                    Receita                             Despesa

Amazonas (1908–1909)                     11.150:672$                      46.121:581$

Pará (1909)                                    18.920:530$                      17.418:399$

Maranhão (1909)                             2.580:008$                       2.716:650$

Piauí (1909)                                    1.398:895$                       1.398:177$

Ceará (1909)                                  3.602:308$                       3.641:467$

Rio Grande do Norte (1909)               1.252.589$                        1.338.364$

Paraíba do Norte (1909)                    1.891.502$                        1.997:506$

Pernambuco (1900)                          10.612:592$                      12.444:474$

Alagoas (1909)                                2.752:800$                       2.795:313$

Sergipe (1909)                                1.699:522$                       2.010:567$

Bahia (1909)                                   9.488:708$                       12.613:892$

Espírito Santo (1909)                        2.663:900$                       2.616:729$

Minas Gerais (1909)                         21.185:324$                      27.335:953$

Goiás (1999)                                   619:127$                          946:464$

Mato Grosso (1909)                          3.000:000$                       2.942:151$

Distrito Federal (l909)                       34.735:876$                      72.924:174$

Rio de Janeiro (1909)                        8.597:706$                       8.228:934$

S. Paulo (1909)                               56.659:990$                      67.757:577$

Paraná (1909)                                 8.926:989$                       9.355:969$

Santa Catarina (1908)                       1.995:220$                       2.114:264$

Rio Grande do Sul (1909)                  14.746:307$                      13.136:535$

                                 Soma            218.122:249$                    311:653:160$

                                 Déficit geral                                          93.530:911$

“Aí está.

“Déficit enorme no Tesouro da União; déficit nos Tesouros dos estados: pródromos cruéis de nova moratória, se não criarmos juízo.”

São coisas que não precisam de comentários: impõem-se por si mesmas na eloqüência sóbria dos algarismos.

Demandam, porém, explicação, e esta só pode ser dada pelo conhecimento exato do caráter comunário do povo, habituado à política alimentária, desafeito à iniciativa, à autonomia do trabalho, ao exercício amplo das profissões usuais da indústria e da atividade moderna...

Pelo que diz respeito à progressão ascendente em que vão os empréstimos externos, toda a gente sabe que tem sido uma verdadeira orgia.

Nos últimos tempos montaram a mais de cento e quarenta milhões esterlinos, quase tudo em pura perda: obras suntuárias, dilapidações internas, luta com o déficit, sempre renascente...

E, destarte, rolam nossas finanças em perfeito círculo vicioso.

Ninguém se iluda: a reação é indispensável. É urgentíssimo pôr no chão esse nefando regime federativo, ou ele dissolverá o Brasil...

VII

Considerações finais

Às páginas que precedem, e se destinam a uma espécie de introdução aos Problemas Brasileiros, não é sem razão juntar alguma coisa mais sobre este escrito e seu autor.

Artur Guimarães, para as letras, veio do comércio, onde labutou por mais de vinte anos.

Comissário de café, atravessou os áureos tempos dos altos preços deste gênero, período em que, como na época imperial, se levantaram grandes fortunas, ainda nos primeiros anos da República.

A sua casa foi uma das mais consideráveis da praça do Rio de Janeiro.

Depois vieram os dias aziagos, veio a decadência, e ele teve de dar outra direção à sua atividade.

Inteligente, estudioso, dotado do talento de observar, apreciou as causas da crise no vivo, no meio da peleja.

A maior porção dos artigos que constituem os Problemas Brasileiros, bem como os que formaram as Questões econômicas nacionais, foram escritos no meio da batalha.

Não se podia desejar mais oportunidade, nem maior competência.

Já dantes, sob a forma de contos, romances e dramas, tinha abordado vários problemas do nosso meio econômico e comercial.

São disso testemunhas – O Obstáculo, A Fazenda do Paraíso, A Sorte, entre os romances, – O Destino, O Desfalque, entre os dramas.

Neste seu novo trabalho aplica-se ao estudo de nossa atual crise econômica e discute diversos assuntos da maior importância, propondo, em vários casos, acertadas medidas.

Em todos sobressai o caráter prático das investigações do autor.

Isto realça-lhe o mérito.

De divagações teoréticas andamos mais que saturados em pura perda.

Destarte, é muito para louvar o modo como aprecia e determina as causas do atual estado depressivo da lavoura, das indústrias, do comércio nacional, a despeito das afirmativas em contrário, correntes no mundo oficial.

Com igual tino comenta o fenômeno irrecusável da carestia de vida no Brasil em geral e nomeadamente no Rio de Janeiro.

A questão dos orçamentos do estado e o problema da chamada balança comercial são aventados com especial cuidado, avultando, neste capítulo, uma contribuição original, que não me lembra ter encontrado por outros debatida.

Refiro-me ao tríplice quadro que traçou dos gêneros que subiram de preço, apesar da alta do câmbio, dos que estacionaram no preço, dos que baixaram um pouco, mas sem guardar proporção com a alta cambial, no decênio de 1901–1910.

Não lhe passou despercebida a decadência do comércio de café na praça do Rio de Janeiro e, com seguro critério, procura as causas do fato, conseguindo determiná-las em grande parte.

Faz, neste ponto, um paralelo com a crise dos vinhos em França, nos anos próximos passados, apreciando o excelente estudo de Paul Descamps sobre As populações vitícolas da França, onde há muito a aprender para os brasileiros, pelos pontos de semelhança entre as duas crises.

Não se limita ao estudo crítico das causas do fenômeno, aponta, no artigo seguinte, os meios para a remodelação do comércio do café.

Lembra a formação do que se poderia chamar a Cooperativa dos Comissionários Reunidos, a formação de caixas rurais, organizadas pelos lavradores nas cidades e vilas do interior.

Aconselha, pelo menos, a formação de agrupamentos, tomando por modelo Comptoir de Lonwy, tão magistralmente descrito por Paul de Rousiers.

Em páginas posteriores discute, aconselhando, a comercialização dos títulos da lavoura, a criação do crédito agrícola, o largo emprego do mutualismo e do cooperativismo, lembrando estudos análogos de Anselmo de Andrade em Portugal, de Louis Bertrand na Bélgica, de Cayasse em França.

Muito há a adotar nos alvitres que sugere.

Não lhe passou por alto a questão da carestia dos fretes em nossas estradas de ferro, como se vê na bela resposta dada em nome do Centro do Comércio de Café ao superintendente de The Leopoldina Railway C.º Outro tanto acontece no que concerne à disseminação de maquinismos agrícolas, que ainda é, entre nós, muito reduzida, devendo ao contrário generalizar-se.

Com cores enérgicas verbera a falta de preparo dos nossos cafés, o que tem contribuído para, lá fora, darem nomes estrangeiros às nossas melhores qualidades e somente às piores conservarem a proveniência brasileira.

Este desaforo, que não merece outro nome, tem sido praticado durante dezenas e dezenas de anos, sem o menor corretivo.

Aos nossos governos, ocupados nos magnos problemas da conquista, conservação e utilização das posições, e nos ainda mais consideráveis de perseguir os adversários e depenar as populações, por todos os lados e por todas as formas, nunca ocorreu lançarem vistas para esse escandaloso caso.

A propaganda inteligente do café e doutros gêneros nacionais é aconselhada, não pelos dispendiosíssimos processos da famosa embaixada de ouro, e sim pelos moldes inteligentemente práticos, apontados por Jaime Batalha Teis para a dos vinhos e produtos portugueses na Inglaterra e no continente europeu.

Pelos meios preconizados pelo ilustre cônsul português em Londres, vê-se quanto é indispensável, entre certos povos, a ação oficial, mas sempre subordinada à ação particular.

Segue-se um pequeno capítulo, de cunho essencialmente prático, em que o autor aprecia alguns dados do recenseamento da popula- ção da cidade do Rio de Janeiro, publicado em 1906 pela repartição de estatística.

Por ali se vê o pavoroso estado de real pauperismo em que se debate a maior parte da população desta cidade, em que pese às fitas cinematográficas dos Procópios Peçanhas e companheiros.

As três ou quatro dúzias de indivíduos que aqui vivem diretamente das traficâncias da alta politicagem e os outros tantos que se lhes agregam, por todos os jeitos e manhas da advocacia administrativa, nadam, sem dúvida, em ouro, e, generalizando o seu safado caso especialíssimo, julgam ser essa a exata situação da população brasileira em geral.

Puro engano. Em 811.443 almas, que tal era a população da cidade há cinco anos, elevava-se a 395.699 o número dos indivíduos sem profissão, pouco menos de 48% da população total...

Um horror!

E ainda mais escuro será o quadro, se lhe acrescerem os menores, os velhos e, em grande parte as mulheres.

Dignos de especial atenção são os conceitos que externa a respeito de certas teses propostas pela 3ª seção do Congresso de Expansão Econômica, reunido há poucos anos no Rio de Janeiro.

A primeira tese referia-se à existência, ou não, de monopólios industriais do estado no Brasil.

A resposta foi dada pela negativa, aconselhando o monopólio do café e da borracha.

Acho muito discutível esta opinião, atendendo-se aos vícios radicados na administração brasileira e ao caráter de banditismo dos governos dos estados, entregues, em muitos deles, a indivíduos verdadeiramente amorais, senão de todo imorais e atendendo-se, ainda, aos deslizes do próprio governo federal, que, assessorado por Pinheiro Machado, tem chegado, às vezes, às mãos até de um Nilo Peçanha...

A segunda tese era relativa à existência, ou não, de trustes e cartéis no Brasil.

Esta parte é tratada com algum desenvolvimento.

Distingue, com razão, os açambarcamentos, existentes desde muitos anos em nossa praça, do comércio de certos gêneros como o bacalhau, as cebolas, o arroz, a carne-seca, etc., dos verdadeiros trustes, cujos primeiros exemplos típicos encontra no privilégio da viação pública conquistada pela Light and Power e no sindicato das cervejas, que prosperou algum tempo.

Firmado nas boas doutrinas do Le Bon, Gide, Rousiers e Raffalovich, defende os trustes, quando moderados e bem dirigidos. Conclui que o Brasil, por suas riquezas naturais, desaproveitadas pelos filhos da terra, será campo aberto às empresas e grandes trustes estrangeiros, que se apresentarão para explorá-las, devendo nós os nacionais ter cuidado para não cairmos de todo em plano completamente inferior.

Acho-lhe razão, podendo-se dar, digo eu, no Brasil o que acontece nas ilhas Filipinas, onde os grandes melhoramentos americanos, na frase do insuspeito Coolidge, fazem bem às ilhas Filipinas, mas não aos filipinos...

Finalmente, no artigo – O romance econômico do Brasil no século XX, – Artur Guimarães, glosando o que Georges d’Avenel chama o romance econômico do século XIX em França, insiste sobre a real pobreza de nossas populações, nomeadamente as da própria capital, e faz reparos dignos de meditação aos que não se pagam de palavras, nem se deixam seduzir pelo ilusionismo dos interessados em nos engodar.

Tal sucinto resumo do livro.

Que é, porém, a filosofia do autor, em que escola social está filiado?

Artur Guimarães e seu filho Argeu foram meus discípulos, aquele em curso particular e o outro na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. No intuito da transformação do caráter nacional, modificando-lhe a educação para revigorar-lhe a índole, sempre dou notícia e exponho, mais ou menos largamente a meus discípulos, as doutrinas e ensinamentos das três escolas sociológicas que, me parece, devem ser preferentemente estudadas pelos brasileiros.

São elas: o evolucionismo de Spencer, a antropossociologia de Ammon e Lapouge, e a escola social de Le Play, de Tourville e seus continuadores.

A doutrina spenceriana, devendo, aliás, ser precedida do estudo completo do sistema, desde os Primeiros Princípios, mostrando detalhadamente a formação evolutiva e estrutura íntima da sociedade, estabelecendo, com bases seguras, o desenvolvimento da família, das insti- tuições políticas, das profissionais, das industriais, habilita-nos a ter a idéia indispensável de que a sociedade não é uma fábrica caprichosa de nossos planos, senão uma formação natural, sujeita a leis próprias.

Tem este préstimo inestimável de servir para reduzir as pretensões e loucos planos dos políticos, tornando patente a sua inanidade, desde que se não achem de acordo com os fatores normais da evolução social.

Por tocar neste ponto, admiro a leviandade com que alguns espíritos mal-informados pretendem achar contradição entre a doutrina sociológica spenceriana, como vem exposta na sua obra capital sobre o assunto e alguns assertos do seu último livro – Fatos e Comentários, – só porque neste o filósofo verbera certas tendências do que se chama o imperialismo moderno: principalmente esse arreganho de força e essa mania de tudo arregimentar, que se nota na administração das grandes nações e dos grandes partidos, nomeadamente a Alemanha e o socialismo.

Não se poderia esperar outra coisa do filósofo que sempre fez a apologia da expansão individual da personalidade humana, a expansão autônoma e digna da liberdade.

Causa desgosto ver que até o lúcido espírito de Euclides da Cunha caísse nesse desacerto.

A antropossociologia de Ammon e Lapouge serve, principalmente, para mostrar a persistência e a importância do fator étnico (maxime num país onde se tem dado o cruzamento de três raças diversas), habilitando-nos para tomar determinadas medidas na educação popular.

Ninguém se iluda com as leviandades negativistas dos Finots e Clajanis.

A doutrina de Le Play, vigorizada por Tourville, Demolins, Rousiers, Poinsard, Pinot[22] Descamps e toda uma plêiade de ousados investigadores, presta o inestimável serviço de ensinar a observar o povo nas diversas zonas do país na labuta especial de seu viver, de seus modos e meios de trabalho, determinar a conseqüente estrutura da família que brota naturalmente daqueles fatores primordiais e o caráter inevitável que dali advém à população.

Causa, neste último ponto, verdadeira estranheza darem alguns ignorantes, entre nós, à doutrina dessa escola social o título de reacionária, como se pudesse ter esse caráter quem ensina e proclama, acima de tudo, o revigoramento do espírito de iniciativa, de autonomia pessoal, de coragem empreendedora, em suma, esse particularismo, que tem feito a fortuna dos ingleses e dos anglo-americanos ...

É muita cegueira.

Mas, perguntar-se-á, não estarão em desacordo essas três doutrinas?

Antes de tudo, devo notar que me parece ser uma grande e indiscutível verdade o que disse o ilustre sociólogo americano Lester Ward sobre as supostas contradições entre os principais sistemas de sociologia.

Compara ele esta ciência a um país novo e implorando que foi investido por vários viajantes no intuito de conhecê-lo.

Cada um tomou um rumo especial, uma direção determinada.

Uns seguiram rios acima, outros embrenharam-se em grandes matas, estes em alterosas montanhas, aqueles atravessaram planícies e chapadões.

De volta, cada um manifestou o que viu, e teimava cada qual em afirmar só existir na terra aquilo que tinha visto.

Uns só rios, outros só matas, outros só planícies, outros só montanhas, quando a verdade é que todas aquelas coisas lá se achavam no país, percorrido parcialmente por cada um.

O exclusivismo é que os iludia.

Igual coisa acontece com a vasta esfera da ciência social, ainda em formação.

Cada pensador vê um lado determinado das coisas, conforme suas tendências e inclinações e é, naturalmente, levado a proclamar este lado com o único essencial, ou, pelo menos, o predominante sobre os outros.

Destarte, a imitação e a oposição – de Tarde; a cooperação – de Spencer; a regra ou norma – de Durkheim; a consciência da espécie – de Giddings; a luta das raças – de Gumplowicz; os meios e modos de trabalho – de Le Play, tudo isto é exato, não passando cada um desses fatos de faces diversas, de aspectos especiais do assunto.

Ora, as doutrinas de Spencer, Ammon e Demolins estão de pleno acordo nos problemas principais da ciência social.

Admitem, os três, a formação da sociedade por meios naturais, pela evolução e não por planos e arranjos de governantes e políticos.

Estão de acordo, quanto à evolução das profissões e das criações industriais e econômicas; quanto à luta pela existência nos domínios da sociedade; quanto à natureza do governo e seu papel secundário na marcha geral dos povos. O mesmo se dá quanto à educação, ao progresso e suas vacilações e épocas de parada; quanto às gentes mais progressivas da humanidade, como o tem até hoje demonstrado a evolução. Os individualistas de Spencer não são outros senão os particularistas de Le Play e os arianos de Ammon e Lapouge.

Dá-se até uma singular coincidência: a chamada Escola da Ciência Social de Le Play e discípulos assinala a Noruega como a pátria desses particularistas que representam, entre os homens, o maior esforço da autonomia individual; a antropossociologia de Ammon e Lapouge e discípulos assinala a região do mar do Norte como a pátria de origem dos arianos, em terras que ali deviam ter existido, hoje submersas.

Igual e admirável é o acordo das três escolas no julgamento de muitos fatos contemporâneos, por exemplo, do comunismo e socialismo.

Não há negar, por outro lado, que os comunários de Le Play coincidem, quase sempre, por toda a parte com os braquicéfalos de Ammon, e a antropossociologia, ainda neste ponto, dá a mão à escola da ciência social.

Acordos de ordem secundária existem inúmeros.

Só numa questão grave se afastam os sectários de uma das escolas: a da explicação da origem e separação das raças.

Para a antropossociologia e para Spencer essa separação é primitiva e originária; e para ciência social de Demolins e seus correligionários mais extremados, essa separação e distinção explica-se pelos caminhos lentamente seguidos pelos vários bandos de homens nas suas migrações e pelas estadias prolongadas desses bandos em regiões diversas.

Para o alvo principal, porém, que devemos ter em vista, é indiferente a causa da distinção profunda entre as raças, digo as verdadeiras raças e não as meras variedades de um só tronco.

Ou, como pensam os poligenistas, já elas tivessem surgido distintas e separadas em centros diversos de aparição, ou se tenham profundamente diferenciado pela longuíssima permanência em sítios entre si diferentes, o resultado, para o estudo, é o mesmo.

Quem ler o trabalho de Artur Guimarães verá que ele versa as três grandes escolas sociais, aproveitando-lhes a lição.

Dou-lhe parabéns por isto.

VIII

Epílogo

No fim deste rapidíssimo inquérito sobre a real situação brasileira, não é sem razão olhar para os lados do futuro e prefigurar o Brasil com que devemos todos sonhar.

O que nestas páginas censurei não foi o povo, que é ingênuo e generoso; foi a classe que se apoderou de seu governo, de seus destinos, e tenta fazê-lo a sua imagem e semelhança, classe, na maioria, composta de incompetentes ou traficantes.

Aos que exerceram o monopólio de nos governar em nome do direito divino dos reis, sucederam os que exercem o mesmo monopólio em nome da esperteza, da audácia, da mentira e da corrupção.

Contra esses é que é preciso bater, bater, bater, no intuito de desbravar o caminho dos tropeços que o entulham.

Todas as forças ativas da nação devem ser movimentadas no sentido de nos educarmos para assumir a posição que devemos ocupar.

Para tanto tem o povo de contar consigo mesmo, prepando- se para se libertar de todas as peias que o prendem ao comunarismo improgressivo.

O Brasil com que devemos sonhar é este: Etnograficamente, terá assimilado os elementos diversos de sua formação e ainda os contingentes, cada vez mais numerosos da imigração, sobretudo das raças particularistas do norte, formando um povo forte e homogêneo, com o uso exclusivo da língua portuguesa, com o fim de manter o cunho da nossa constituição histórica luso-americana.

Mostrar-se-á, socialmente, cheio de audácias bem encaminhadas, de iniciativas autônomas, de energias para os grandes empreendimentos, sem o placet de estranhos, sem alardes tumultuários, sem tutelas de governos. Nas relações puramente econômicas, cultivará principalmente os ramos de atividade que são indicados pela variedade de seus climas, de suas zonas: a grande e a pequena lavoura, a indústria pastoril, a mineração, a navegação, a indústria florestal, as indústrias extrativas, as fabris, está nos grandes centros, quando a evolução for neste ponto normal.

Na política internacional, não há de sonhar com imperialismos pretensiosos; não se armará de formidáveis esquadras e exércitos; não há de querer meter-se com a vida dos vizinhos, e será cada vez mais respeitado; e, cá dentro, não há de andar perdendo as ousadias preso à politiquice, com a mira na empregomania.

Cultivará a verdade sob todos os aspectos; exercerá a justiça como base da vida pública, a liberdade como elemento principal da personalidade, o dever como força propulsora da estabilidade e da ordem.

O progresso será nele natural e espontâneo, como resultado normal da evolução, a florescência da educação viril das energias populares.

Não precisará mentir, apregoando um falso e ilusório progresso antes de tempo.

Nas ciências, procurará colaborar honestamente e com acentuado fervor para o alargamento do saber desinteressado.

Na literatura, não precisará de copiar modelos estranhos.

Na poesia, a contemplação cada vez mais íntima e assídua de sua natureza, despertará ações reflexas nos talentos e inspirará obras de alto valor.

O estudo, cada vez mais profundo do povo, na sua história, no seu viver sob todos os aspectos, determinará em todos os ramos literários a eclosão de alevantados ideais, fecundadores da criação.

O amor pelos nossos grandes homens, o culto do nosso passado, o entusiasmo pelo presente, serão perenes fontes de eterna inspiração.

Não perderá o amor às nossas gentes, não precisará de praticar diplomatices literárias com os Ferreros, os Prozors, os Orbans, e quejandos, atrás de fácil renome, mendigado à Europa blasée.

No romance, por exemplo, em obra simbólica, não cairá na criminosa loucura de representar o tipo brasileiro algum agrimensor idiota que não saiba armar um teodolito, ou algum rábula de aldeia, imbecil e falastrão; ou de alguns politiqueiros de lugarejo, para contrastar com pretensiosos germânicos, discutidores de metafísica e da política realista do imperialismo...

Não precisará de basbaquear o insolente europeu, gasto com a descritiva de matas, cheias de vaga-lumes, tamanhos como borboletas e tão numerosos como formigas.

A consciência de um largo destino nacional, o fervor pela humanidade, para a qual sentirá que está colaborando, abrir-lhe-ão a esfera das inspirações universais em que todos os povos se sentirão abrigados.

Transfigurará, cada vez mais, a qualidade máxima de sua estesia, o lirismo, dando-lhe profundeza, vida, calor, suavidade, doçura, meiguice, exuberância e brilho, em que se achem matizados todos os bons pendores do coração, diante dos espetáculos da natureza e da existência.

Nas artes plásticas, infundirá alguma coisa que seja como a emanação dessa mesma natureza física, fata morgana, incomparável em suas mutações.

Na música, se há de sentir a irmã do lirismo, característico da raça, em cuja gama quase infinita modularão todas as emoções superiores das almas seletas.

Força, generosidade, amor do ideal, deverão ser as qualidades predominantes do povo que deve abrir a senda do porvir, na frase do poeta.

Esforcemo-nos para que assim seja.

O entusiasmo e a esperança são também forças sociais. Utilizemo- los.

Esse é o Brasil dos meus sonhos.[23]

 

7 – O REMÉDIO*

Que deve ser o discurso de despedida de um velho lente a jovens juristas, ao retirarem-se da faculdade para a vida prática, para a magistratura, a advocacia, a carreira diplomática, o funcionalismo público, a política?

Apenas um punhado de sinceros conselhos, ditados pela experiência.

E é o que venho fazer.

Cada frase histórica, num dado povo, tem sua especial feição, que atrai as atenções e impele à meditação e ao estudo.

E como a vida é tecida de dificuldades e embaraços, importa dizer-se o aspecto mais triste das coisas – o que assume esse papel de ímã das vistas de todos, para ele voltadas, impelidas pela força latente que dirige os acontecimentos humanos.

Qualquer que seja a opinião que possa formar cada um da situação brasileira, porque, é claro, de nosso país é que devo falar, impossível é existir homens de são juízo que a não julgue muito melindrosa do ponto de vista político, e, especialmente, do ponto de vista social.

Seria capaz de apostar que, neste momento e neste lugar, por uma aberração de certos espíritos malévolos que se prazem em espalhar incorretas apreciações, espera muita gente da minha parte agora rudes brados e ásperas sentenças de um implacável pessimismo.

Não poderia haver maior engano.

Nunca fui, nem sou pessimista: não sou também otimista, é certo.

O pessimista é o doente amuado que tem a visão, mas não tem o entusiasmo nem a coragem: vê o mal, mas não pode ou não sabe arcar contra ele. Quero crer não ser este precisamente o meu caso.

O otimista é como o embriagado sorridente, que se julga sempre no melhor dos mundos.

Sofre de uma espécie de daltonismo mental numa esfera que se lhe afigura impecavelmente cor-de-rosa; tem entusiasmo a seu modo, e terá, talvez, coragem; mas não possui a clarividência ponderada e crítica dos fatos. Creio não ser também, com justiça, meu caso.

A ação de ambos é nociva: as “jeremíadas” de um e o eterno “cancã” em que se move e agita o outro nada fundam que tenha valor duradouro.

E, desde agora vos dou o meu primeiro conselho: evitai as miragens do otimismo fácil e os esconjuros do tétrico pessimismo. Procurai, ao contrário, desenvolver vossas faculdades de crítica, primeiro grau da originalidade, na frase do grande educador Ch. Beard. Fugi dos dois inimigos irreconciliáveis; não sejais otimistas nem pessimistas; procurai fazer a crítica séria, imparcial dos fatos, das idéias e dos homens; sede observadores e confiantes.

Acreditai que: “já não é mais tempo de dizer, com os românticos, que o Brasil e os brasileiros são o primeiro país e o primeiro povo do mundo, assombrosas patranhas em que nem mais as crianças acreditam; mas também não é mais tempo de afirmar que o Brasil e os Brasileiros são a lástima do mundo, pecaminoso brado de desalento que nem ao menos encontra mais os escravos para o repetir” (História da Literatura Brasileira, prefácio de 1888, 1ª edição).

Já assim doutrinava há vinte e cinco anos justos.

Não venho, pois, enfiar desânimos, enfileirar esconjuros, arregimentar maldições: O país está perdido!... Está à borda do abismo!... Está condenado a esfacelar-se!...

Estes e outros dizeres da algaravia que arma ao efeito para as pescarias políticas, deixo-os aos declamadores de ofício. E não é de agora que o faço. “Nós, os velhos, já devemos estar um pouco céticos diante deste eterno apontar para o abismo, diante das faces escancaradas desse monstro que nos vem tragar, e é tão pouco diligente em abrir a goela e engolir a presa... Males existem, sim: nem eu vim aqui para os negar; seria passar nas ruas e não ver as casas. Ouso, porém, acrescentar que muitos dos que ali andam imaginados não passam de meras fantasias mórbidas da musa da difamação...

“Em dias da República a impudência dos ataques tem excedido toda a qualificação em linguagem humana. O que se escreve assombra, o que se ouve cresta e mata todas as energias. Quando perderemos tão mau sestro? Nação que de si maldiz, que se macula, é como indivíduo que se desrespeita. Façamos, sim, a crítica de nossos erros, sinceramente, patrioticamente, sempre com alevantados intuitos de melhorar... O em penho constante de denegrir é um triste privilégio, que, se não impede em absoluto o progresso, desnorteia o espírito nacional, amesquinha o mérito, abate os ânimos, entibia as nobres aspirações, vela a justiça, amolenta os caracteres, apaga os entusiasmos, confunde os bons com os maus, escurece o ideal, enlameia as faces, aperta o horizonte de todos os talentos, afunda o país inteiro em um lodaçal sem termo e sem saída.” (Discurso de 20 de agosto de 1901 na Câmara dos Deputados.) Claro é que, há doze anos passados, repetindo as afirmações de vinte e cinco anos atrás, nessas palavras, procurava reagir contra as tendências, então muito em voga, do denegrimento insensato de tudo e de todos por parte dos chamados formadores e guias da opinião, sempre no intuito de evitar os perigosos extremos, os dois maiores erros que possam ser cometidos em política: o endeusamento da infantil ilusão de grandezas que não existem, ou o amesquinhamento sistemático dos belos e nobres impulsos que podem produzir o progresso. Quem quiser trabalhar seriamente pelo futuro do Brasil há de evitar esse duplo escolho e seguir por outra estrada, muito mais promissora.

E o meu segundo conselho é que deveis entrar por ela.

Para isto não será mister negar, caprichosamente, a realidade.

Ao contrário: reconhecer-lhe os erros e procurar-lhe a cura.

Por mais cegos que, propositalmente, queiramos mostrar-nos, impossível é esconder o enorme atraso, o considerável desvairamento em que andamos, sob múltiplos e variados aspectos, mergulhados. Do ponto de vista moderno toda a estrutura brasileira está para ser remontada de alto abaixo. Nossa organização, em todos os sentidos, é de fazer tristeza, tal o alheamento em que toda ela anda dos mais comezinhos ensinamentos do que se faz lá fora entre os grandes povos modernos progressivos.

Escusado, sem dúvida, é agora percorrer por todos os lados as manifestações de nosso existir de nação, de povo que blasona de culto.

Vida econômica, financeira, política, militar, jurídica, social, justiças, administração, ordem pública, trabalho, governos locais, nos municípios e estados, regime federativo, congressos políticos, ensino, educação... em tudo se sente o manquejar do atraso ou da desordem da incompetência ou da compressão, da licença ou do despotismo...

Seria possível, sob todas as faces, inquirir do tardo caminhar das nossas gentes, da massa real da nação, de norte a sul, de leste a oeste, e apontar, de longe que fosse, muitas das máculas que nos estão a afear o semblante. Seria possível e não seria difícil; porque os documentos se contam às centenas.

Não farei eu e muito menos neste lugar. Seria inconveniente em mais de um sentido.

Aceitemos como um postulado geral, de todos conhecido por evidente, que o país vai caminhando errado em múltiplas direções. Urge emendar a mão. O remédio? ......

Aqui é que bate o ponto.

Que nos falta? Que devemos fazer?

De cinqüenta anos a esta parte não nos tem falhado o bando curiosíssimo dos salvadores da sociedade. Resta saber se os seus récipes, dado que fossem sinceros, tenham sido oportunos e acertados. Por velhos e ossificados sestros latinos, dos mil movimentos, atitudes, labutações, atividades, funções e travamentos da trama social só divisamos o mais insignificante de todos, esse a que se tem estreitamente denominado – a... política.

Em um país, como o nosso, onde os maiores e mais complicados esforços dos soi disant estadistas se resumem na mantença da clientela, e os mais árduos assuntos se reduzem da parte da governança à prática de demitir e nomear, demitir os adversários e nomear os amigos, todos os males são políticos, todas as queixas políticas, todos os clamores políticos, todas as necessidades políticas, todos os problemas políticos, e, como conseqüência, todas as medidas políticas, todas as soluções políticas, todos os remédios políticos...

Que nos falta para caminhar aprumados e com desassombro?

Na opinião de todos alguma panacéia... política. Não há muito vozes das mais autorizadas que já foram ouvidas nesta terra, apontando a raiz de nossos males nesta fonte geral, indicaram-nos o remédio. – Qual? A eleição pelo voto secreto...

É o caso de repetir o que, já em 1879, escrevia, quando se discutiu a eleição direta: “Não compreendem esses ingênuos que os males de uma nação, fundos, palpitantes, como suas próprias entranhas, velhos, crônicos, calosos como a estupidez de um buchimano, não se extirpam de momento e por meio de uma medida que só afeta a tona de nossos desconchavos. – Pois como? Uma simples mudança no mundo prático de escolher algumas dúzias de palradores nos há de trazer a era das prosperidades?” (Artigo no Repórter em 1870, sobre um discurso de José Bonifácio (o moço), reproduzido na Crítica Parlamentar). É o caso ainda agora, depois de trinta e cinco anos cumpridos.

Outro espírito, muito patriota, dotado de rude franqueza e de alta capacidade mental, refugando o remédio da eleição por votos secretos, alvitrou a revolução, com o intuito de pôr no chão a reles burguesia que nos anda a desgovernar e colocar no poder o operariado...

Peço, timidamente, licença para discordar, por um motivo muito simples: – nós aqui não temos nada disso.

Lemos nos livros que a velha Europa possuiu, ou possui ainda, – as antigas e clássicas Realezas, tradicionais e históricas, milenárias florações de sua evolução política; as Aristocracias territoriais, de sangue, também tradicionais e históricas; as opulentes Burguesias das cidades, oriundas dos primitivos municípios e do movimento dos hansas, das guildas e das comunas, enriquecidas, no correr dos séculos, pelo comércio, pelas indústrias, pelos descobrimentos e conquistas, mais tarde, dos países coloniais; as Burguesias rurais, também opulentas pela posse e tamanho das terras em substituição aos antigos senhores feudais; os Operariados vetustos, que já se batiam contra os aristocratas nas ruas de Atenas e contra os patrícios nas ruas de Roma, operariados, o que é altamente significativo, que prendem suas origens nas mais fundas populações, espoliadas pelas hordas de conquistadores que têm sulcado o solo do Velho Mundo, classe, portanto, em cada país ali, mais nacional, mais nativista do que todos os senhores que a têm dominado; lemos estas coisas nos livros (V. Crítica Parlamentar), e tumultuariamente, sem mais exame, as transportamos para cá... Não.

Nossa realeza foi uma pobre filha do acaso e do medo de um poltrão que fugiu a franceses e veio rolando... rolando até aqui...

Nossa aristocracia nunca existiu, e, quando muito numa parte, essa suposta nobreza seria oriunda de traficantes negreiros, de reinóis, de lapidadores, de antigos empregados pouco escrupulosos da metrópole, e, noutra parte, e feita outro dia à mão pelos dois imperadores...

Nossa alta burguesia, propriamente dita, representada nas maiores cidades pelas classes comerciais, é, em suas eminências e quase totalidade, meramente estrangeira, porque a estrangeiros pertencem o grande comércio bancário, o grande comércio exportador, o grande comércio importador, e ainda a eles toca, na enorme maioria, o comércio a retalho e até a mercancia das mercadorias, não falhando já nas opulentas e poderosas empresas de transportes, iluminação, esgotos, obras dos portos, fábricas, usinas de toda a casta. Isto nas sete ou oito praças maiores, como Rio, São Paulo, Santos, São Salvador, Belém, Recife, Manaus e Porto Alegre. No resto do país o espetáculo é ainda para nós mais deprimente. A secundária burguesia das pequenas cidades e vilas é, em regra, paupérrima. As exceções, de pouca monta aliás, contam-se nos dedos.

A burguesia agrária e rural de fazendeiros de todos os gêneros, no geral pouco abastados, e antes pobres na maioria, não pode atestar-se com a indicada avalanche estrangeira, emérita no manejo de explorar os povos desarticulados, como o nosso, abroquelada pelos grossos capitais de seus patrícios e pelas ameaças de seus governos lá fora... O operariado, entre nós, que não temos as grandes indústrias estabelecidas; que não saímos ainda de fase da mera recolta extrativa numas zonas, do regímen pastoril, mal dirigido aliás outras; que não temos sequer uma agricultura organizada e cientificamente desenvolvida; que ainda não entramos evolutivamente na fase industrial propriamente dita porque nos falta para tanto a população, o capital, a cultura, o mercado, e não devemos considerar indústria isso que ali anda, essa produção de estufa, fomentada pela escandalosa proteção da tarifa, e movida, oh! ironia dos fautos!...

quase só por dinheiro estrangeiro... o operariado aqui é, nas cidades, como a burguesia na maioria estrangeiro!...

A parte nacional tem cunho oficial, por trabalhar quase exclusivamente nas oficinas e obras do estado. Ali mesmo, releva ponderar, apertá-las demasiado a concorrência estranha. No operariado rural, composto de pobres analfabetos, rudemente tratados quase por toda a parte, nem é preciso falar...

Nestas condições, arredar do poder quem quer que nele esteja e ali colocar esse punhado de anarquistas, ou comunistas, ou coletivistas, ou socialistas, que a caduca Europa nos exporta, no meio de seus padres e frades de todos os credores e ordens, não me parece muito acertado.

É ainda o caso de repetir palavras há muitos anos proferidas: “Aqui anda quase tudo invertido: não temos ainda as opulentas riquezas e as variadas e prósperas indústrias e já temos as reivindicações e as greves. É, talvez, ainda um pouco cedo.”

Felizes, seja dito entre parêntesis, os que se podem repetir.

Numa terra em que a mediocridade letrada passa boa parte do tempo a catar supostas contradições nos homens de mérito, em que existem bacharéis, lentes em institutos de ensino oficial, que acham contradição em dizer ser a Lógica ciência e também arte, e, mais, que trata do descobrimento e também da demonstração da verdade... cincada que não encontra sua igual desde que se escreve no mundo... é uma felicidade poder a gente repetir-se a longos intervalos.

Outro espírito, dos mais autorizados na política e na administração, há poucos dias doutrinava que a função, verdadeiramente mágica de acabar, como por encanto, com os nossos males, está pura e simplesmente no povoamento do solo...

Ainda neste ponto sou forçado a ficar em desacordo.

É velha cantiga, muito cediça, que espíritos, algum tanto pesados e sofrivelmente estreitos, não se dignam de repetir, por um lado, de perigos, por outro. Povoar – sim, mas por quem e como? Com imperialistas alemães, irredutíveis, cedendo-lhes, erro gravíssimo, zonas inteiras do país?

Com japoneses, ainda mais imperialistas, de terríveis tendências invasoras e ainda mais irredutíveis, entregando-lhes, erro que deveria ser expiado com as mais severas penas, vastas regiões, ornadas de excelentes portos? Com os primeiros e gentes da mesma origem, ocidentais e arianos, sim; mas por outros processos. Com japoneses, ramo mongólico ou malaio, truculentos orientais, nunca! Será falta irreparável.

Esta historieta de povoar por povoar, este grosseiríssimo materialismo do grande número, das grandes massas não é tão singelo, como a ignorantaços politicões, desesperados à cata de sucedâneos dos escravos, sói parecer. Não é verdade que o ideal de uma nação seja a enormidade da população. O excesso desta é, ao contrário, sempre um grande mal.

De que se queixa esse próprio Japão, com todo o seu arreganho militar, com todos os seus impulsos de conquista? A China com toda a sua moderação e paciência? A Índia, com todos os seus faquires, seus iógues?, suas magias, seu bramanismo, mais ou menos extravagante, com suas castas, suas ilusões metafísicas? De que se queixa a Alemanha, com todo o seu exército, sua ciência, sua indústria? A Inglaterra, com todo o seu comércio, suas colônias, seu imenso poder marítimo? A Holanda e a Bélgica, com toda a sua riqueza? De que já se vai queixando a Rússia Européia, com toda a sua vastidão? De que já se começam a queixar os USA, nomeadamente nas regiões de leste, com toda a sua vida intensa e enérgica e o seu enorme For West? E já também a Itália, com toda a plasticidade de seu gênio político e industrial? E a Áustria, com toda a sagacidade de seus homens de estado? E todo o norte de Portugal, com toda a atividade de seus filhos e a uberdade de suas terras?

Povoamento, povoamento... sim! Mas em termos, com elementos seletos e principalmente aproveitando nossas desprezadas gentes, a quem devemos outorgar todos os favores de que cumulamos os estranhos, só porque são estranhos...

E aqui vai mais um conselho: fugi do sestro de enxergar a política em tudo e da crença infantil de supor que reparos ou remendos de momento sejam capazes de afugentar os males de qualquer nação.

Lembrai-vos dos ensinamentos do portentoso H. Spencer um pouco por todos os seus escritos e especialmente no admirável e confortante ensaio – Da Liberdade à Servidão.

“O funcionamento das instituições é fatalmente determinado pelo caráter dos homens, e os defeitos neles existentes trarão, inevitavelmente, maléficos resultados... As meras constituições escritas provocam sorrisos nos lábios de todos que lhe têm observado os resultados e os sistemas sociais no papel exercem efeitos semelhantes naqueles que têm examinado os testemunhos a respeito... Um erro fundamental que penetra o pensar de quase todos os partidos, políticos ou sociais, é que os males podem ser corrigidos com panacéias imediatas e radicais: Nada tendes a fazer senão isto ou aquilo para evitar o mal... Segui o meu plano e todo sofrimento desaparecerá... A corrupção há de ceder, inevitavelmente, diante desta medida. – Entretanto, tudo que se pareça com uma cura imediata é de todo impossível.

Só a modificação lenta da natureza humana, sob a disciplina da força social, pode produzir mudanças vantajosas de cunho permanente.”

De acordo com lições do grande mestre, que é que nos falta?

Gente, gente, e só gente, disciplinada, num sentido superior, pela seleção social.

É preciso ir pondo em prática para a obter?

É um verdadeiro sorites: modificar o nosso caráter de comunários, apáticos, amortecidos, desanimados, no sentido da iniciativa, da ousadia, da coragem dos largos empreendimentos; o que traz a vida econômica próspera e progressiva; o que gera a independência individual e coletiva; o que produz a opinião autônoma e esclarecida; o que provoca a morte da política alimentária, e, com isto, o aproveitamento das nossas populações, o povoamento normal do nosso território principalmente por nós mesmos, sem precisarmos de chins ou japoneses: o que tudo acarreta a abastança e a força, o bem-estar e o prestígio, bases dos bons governos, da sã política e das estruturas sociais escorreitas e duradouras.

Não é, claramente, um programa destes coisa a se fazer de um momento para outro, nem a ser pedida aos poderes do estado. É tarefa para décadas e a ser exigida do povo e só dele.

Este é o alvo, o fim. E os meios? só os tenho encontrado, praticamente, na análise do viver social da Inglaterra e dos USA; teoricamente, na doutrina spenceriana; e, mais conscientemente e propositalmente debatido o assunto, nos ensinos dos admiradores incansáveis daqueles povos, Henri de Tourville, Ed. Démolins, Paul de Rousiers, Paul Descamps, Léon Poinsard, Robert Pinot, A. de Préville, Champault, Bureau, a ilustre escola da ciência social pelos processos de observação, fundada por Frédéric Le Play. A bela doutrina de Herbert Spencer, espalhada nos Princípios da Sociologia, nos Princípios de Moral, assente no caráter evolutivo das formações sociais, em todos os ramos, caminhando da indistinção primitiva das instituições para a diferenciação crescente, e inspirada sem cessar num largo, sadio, generoso liberalismo, num enérgico e ousado impulso das forças individuais, é sempre a glorificação da iniciativa particular contra as generosidades supostas e as compreensões reais do Poder. É nos seus Ensaios, nomeadamente em – Excessos de Leis, O Feiticismo Político, A Administração Reduzida à sua Função Especial, O Governo Representativo, Costumes Comerciais, Da Liberdade à Servidão, O Organismo Social, Reforma Parlamentar, Educação pelo Estado, Governo de Partido, Imperialismo e Servidão, Volta à Barbária, Regulamentação; no livrinho de ouro – O Indivíduo contra o Estado e no admirável tratado da – Educação Intelectual, Moral e Física, que essa tonificante doutrina melhor se deixa aquilatar, no seu caráter prático e de aplicação. O filósofo é um autonomista em regra. E nem podia ser de outra forma, dado o caráter de anglo- saxão, rebento da gente mais particularista por excelência (Releva não esquecer ser esta palavra empregada no sentido que lhe dá a ciência social.

O mesmo com o termo comunário.) – E é de notar que, pertencendo a tão seleta nacionalidade, apontada sempre como o exemplo vivo a ser imitado pelos cultores da ciência social e pelos políticos mais liberais e progressistas de todo o mundo, ainda o velho pensador andava satisfeito e não pensava de fazer tantas e tão repetidas críticas ao governo e à administração de sua terra. Um trecho ilustrativo de suas ironias contra os feiticistas do estado envoltas num hino à iniciativa particular: “A iniciativa particular tem feito muito bem. Foi ela que desbravou, drenou, fertilizou nossos campos e edificou as nossas cidades; aprofundou minas, traçou estradas, abriu canais, construiu estradas de ferro com suas custosas obras de arte; inventou e levou à perfeição a charrua, o tear, a máquina a vapor, a imprensa, inumeráveis aparelhos de toda a casa; construiu nossos navios, nossas imensas manufaturas, os ancoradouros de nossos portos; fundou bancos, companhia de seguros, os jornais; cobriu os mares de incontestáveis linhas de navios a vapor, a terra de verdadeira teia elétrica.

– A iniciativa particular levou a agricultura, a indústria e o comércio a inacreditável prosperidade e os impele sempre no mesmo caminho com rapidez crescente. – Logo, desconfiai da iniciativa particular...

“O estado, por seu lado, desempenha seu papel de protetor de modo a arruinar uns, desapontar outros, a fazer recuar de medo os que mais necessidades têm de seu auxílio; seu método para organizar a defesa do país é tão extravagante e tão ineficaz que todos os dias são queixas, censuras, zombarias; enfim, como intendente da nação e de uma parte de nosso vasto domínio público, tira como renda – o déficit.

Logo, confiai no estado...” Dito isto por quem e contra quem? Por um dos mais eminentes sociólogos modernos, contra a administração de uma terra, onde há governo e existe a iniciativa particular. – Que se diria de certa gente onde não há uma coisa nem outra?...

Mas é principalmente nos valentes escritores da ciência social leplayana que, de preferência, aconselho a meus jovens patrícios que vão procurar as lições de que todos nós precisamos. Eles fizeram especialidade do estudo das medidas indispensáveis aos povos denominados comunários, para conseguirem a modificação de sua índole apática e sua transformação particularista.

Destacarei os seguintes meios: “Educação energética moderna; estudo dos grandes povos hodiernos com o estabelecimento das humanidades contemporâneas; a criação do ensino sistemático popular; orientação particularista da vida.”

Antes de ir adiante, prevenirei uma pequena objeção. A pretensão letrada aqui tem o costume de, em se indicando à nação qualquer idéia a ser seguida, gesticular e gritar contra ela, com o duplo fim de desprestigiar o autor propagandista, e, mais tarde, quando a idéia começar a ser aceita, apresentar-se para tomar o lugar do primeiro. São numerosíssimos os exemplos que poderiam ser citados.

Destarte, tendo como certo que haveis de ouvir, eu já ouvi acoimar de retrógrados os doutrinários da ciência social. Retrógrados os cultores da “Educação Nova”, os fundadores da École des Roches, os propugnadores da iniciativa, da autonomia da vontade, da energia do caráter, do largo espírito empreendedor, os admiradores do “são particularismo”

anglo-saxão e ianque, os homens que pregam ao indivíduo que em si mesmo deve procurar as forças impulsoras da vida e não acostado à proteção do grupo: – família, partido, clã, igreja, estado!...

Retrógrados os homens do self-made, do self-control, da liberdade de testar, da descentralização política e administrativa com larga escala; os homens que pregam à França, – à Europa, aomundo – a educação dinâmica, que se poderia chamar energética, meio único de acabar, entre comunários, com a tutela do estado e matar a política meio de vida, ganha-pão, política alimentária de parasitas... Um cúmulo.

Retrógrados os homens – que escreveram a História da Formação dos Povos Particularistas, A Vida Americana, O Tradeunionismo na Inglaterra, Os Franceses de Hoje, A Educação Nova, Há interesses em apoderarmo-nos dos Governos?, Os Grandes Caminhos dos Povos, A que se prende a superioridade dos anglo-saxões?, A Guerra das Classes pode ser evitada?, O Homestead, A Produção, o Trabalho e o Problema Social em todos os países nos começos do século XX, A Grécia Antiga, O Portugal Desconhecido e uma dúzia de outras obras verdadeiramente superiores... Um cúmulo!

Essa gente leu, talvez, desatentamente, na Política Experimental, de Léon Donnat, um acervo de erros sobre Fréderic Le Play e parte dali dessa base fragílima, a falar, sem o menor critério, sobre uma doutrina inteiramente renovada, de todo ampliada por numerosa e brilhantíssima plêiade de continuadores, que corrigiram inevitáveis descuidos do Mestre.

Agora, e já é mais que tempo, uma vista de relance sobre os meios indicados.

Cada um deles tem sido objeto de múltiplos estudos pelos sectários da doutrina, como vamos ver. Urge, ainda, desde já arredar do caminho três empecilhos que o estorvam: a vozeria romântica que endeusava o abc como a solução para tudo; a exagerada reação que hoje aí manda enriquecer para depois aprender: a argumentação antropossociológica de Valcher de Lapouge.

O vozeirão romântico, endeusador da instrução popular, como meio de solver todas as dificuldades imagináveis das nações, é assaz conhecido.

Era a panacéia universal para solver todos os embaraços políticos e sociais, a bater todos os despotismos, igualar as almas, libertar todos os povos, enriquecer todas as gentes, produzir todos os progressos, cimentar a paz universal, fraternizar todas as raças...

Um estudo mais aprofundado dos modernos e contemporâneos mostrou a forte dose de ilusão que andava mascarando tudo isto.

Por um lado, notou-se que amplas e fundas reformas do ensino, aplicadas com critério, não justificaram as esperanças nelas depostas.

Passados alguns anos, começou o desencanto; os resultados práticos para o caráter, a ordem, a moralidade, as virtudes da iniciativa, da autonomia pessoal, da coragem para os sãos empreendimentos, para as boas normas políticas, para a liberdade, o respeito à lei e à justiça, para o saneamento dos costumes – não apareciam, ou não se faziam sentir na proporção dos esforços empregados pela campanha intelectualista.

Por outro lado, eram evidentes as grandes vantagens que levavam, no seguro andar da vida, povos muito menos instruídos. – Resultou, sobretudo, a todas as vistas, a inegável desvantagem do meio-conhecimento, a meia-ciência dada em frações homeopáticas ao povo, às massas. E era de razão.

Surgiu, em conseqüência, a reação dos negativistas exagerados do valor do ensino. Estes sustentam a tese de ser a riqueza que traz o saber. “Enriquecei, e tereis depois o saber...” É o seu lema. – Fabulam, é claro, da instrução de luxo, móvel de aparato de gente rica.

Outros diziam justamente o contrário: “Instruí-vos, e tereis depois a riqueza”. – Proposições ambas errôneas; porque saber e riqueza, riqueza e saber, são coisas correlatas na evolução geral, e funciona cada uma delas, ora como efeito e ora como causa.

Muito mais sérias são os objeções de Valcher de Lapouge, o desabusado continuador de Durand de Gros, o ilustre colaborador de Otto Ammon, na criação da antropossociologia.

Ataca de frente, com uma rudeza sem igual, os preconceitos correntes sobre a instrução, como fator de seleção social: mas se excede, a meu ver. A instrução é ineficaz, afirma, para alterar o tipo intelectual dos indivíduos; depende estreitamente de sua organização cerebral e de suas qualidades nativas. O homem instruído não possui um grande cérebro, por ser instruído; ao contrário, é instruído porque nasceu com um cérebro maior e mais poderoso. A instrução nada pode fazer a favor dos idiotas, dos imbecis, dos nulos, dos medíocres. Não os melhora. Mesmo com relação aos mais inteligentes, não lhe altera a índole; é impotente para inocular-lhe a bondade, a ardileza, a iniciativa. É de notar, escreve, muitas vezes a intensidade do espírito de sequacidade, o espírito gregário em homens dos mais instruídos e que fazem autoridade em sua especialidade.

A mais leve manifestação de uma idéia independente os melindra; rejeitam a priori, como perniciosos erros, tudo que lhes não foi ensinado por seus mestres. Tais sujeitos, terríveis obstáculos ao progresso científico e material, exibem a reunião de uma inteligência muito culta, de vastos conhecimentos e de um servilismo de espírito que nada pôde modificar.

Ainda: “Os conhecimentos adquiridos não se transmitem por herança; é fato fora de dúvida... A instrução é, destarte, ineficaz para assegurar os progressos da humanidade... Há cem mil anos, talvez, que o homem fala; e se não ensinássemos nossos filhos a falar, é claro que a hereditariedade não se encarregaria disto. E o que se diz de linguagem, repete-se de todo o saber: não se transmite. E, o que é mais grave, a criminalidade tem aumentado em grande parte em conseqüência da instrução.”

Mas vejamos. – A instrução não dispensa as qualidades nativas e delas depende. – Mas, por isto mesmo é que é prestimosa. Entre o idiota, o imbecil, que ela não pode modificar e o gênio que ela inegavelmente ajuda em seu surto, que multidão infinita de espíritos de todos os graus que ela desenvolve e fortalece!

Não modifica a índole, o caráter, natureza intrínseca dos indivíduos...

Não é de todo exato. O saber é, as mais das vezes, um auxiliar da vontade; mas seu fim principal não é criar heróis; é fornecer armas na luta pela existência. Para o indivíduo é sempre um companheiro fiel, alargando-lhe os horizontes do espírito, fornecendo a compreensão das coisas, dos fatos e dos homens. Para a espécie é inestimável; é a origem dessa acumulação de idéias, de doutrinas, de teorias, de descoberta que é a fonte inesgotável da civilização, da cultura, das ciências, das artes, das indústrias. Que seria da humanidade sem tais recursos? Não se transmitem, como a mecânica dos instintos, por herança biológica... Sim; mas se transmitem por acumulação, por esse processo que poderemos chamar a hereditariedade social.

Não se transmitem por herança biológica, – nem a língua, nem o saber... Quid inde? Para se bem compreender este ponto, releva ponderar que Valcher de Lapouge tem posição definida no famoso debate, um dos mais renhidos da biologia moderna, travado entre os que se vieram a denominar os neodarwinistas e os neolamarkistas acerca da transmissibilidade ou não por herança dos caracteres adquiridos, debate iniciado por Weismann, em 1885, com sua memória – Die Continuitaet des Keimplasmas, e onde chegara ao mais completo negativismo. Lapouge foi dos primeiros a forçar, por experiências adequadas, o famoso biólogo alemão a renunciar o seu antigo radicalismo negativo.

A princípio negava este toda e qualquer herança dos caracteres adquiridos; foi obrigado pela crítica a admiti-lo quando a qualidade adquirida modifica o plasma germinativo (Em seu segundo livro – Das Keimplasmas, 1892).

É uma posição intermediária entre seu primeiro modo de ver e o de neolamarkistas, em cujo número se encontra H. Spencer. Nesse meio-termo ficou V. de Lapouge. Mas, no caso vertente da língua e do saber é muito de notar o atropelo, a inconseqüência, a confusão do valente antropossociólogo francês. Está ele a negar o valor, a importância, a vantagem sempre muito exagerados geralmente, da instrução, e surge com este caso da língua exatamente um em que a instrução, o ensino é indispensável.

O conhecimento da língua não se herda... Logo, razão de mais para ser indispensável o ensino, a instrução. É claro.

Se os efeitos do saber não se transmitem individualmente por herança, razão é esta demais para tornar indispensável sua eterna repetição pelo ensino no decorrer dos séculos.

Mas será verdade que os salutares e enérgicos efeitos da instrução, fortalecendo o organismo, não modifiquem para melhor as qualidades nativas, as faculdades e potenciais cerebrais. Mas se herda diretamente esta ou aquela língua; mas se herda uma maior facilidade, uma mais desenvolvida tendência para a linguagem.

Não se herda o saber; mas se herdam mais pronunciadas faculdades para as ciências.

Não se herda o conhecimento da música, da pintura, da escultura; mas se herdam mais assinalados talentos para as artes.

Isto, porém, que vos acabo de dizer é um hors-d’oeuvre nas minhas palavras – não venho falar-vos especialmente de instrução; nada tenho com ela, senão na parte em que possa interessar ao primeiro dos meios propostos para transformar o caráter brasileiro: a educação energética.

Neste pressuposto, o que e refere aos exercícios físicos e à instrução intelectual – não tem valor, não aproveita, no caso, senão tanto quanto são indispensáveis para ajudar a solução de nosso problema: a educação moral, a formação do caráter.

E cumpro, com prazer, o dever de declarar em alto e bom som não ser o que proponho nada mais do que seguir o conselho da ciência social, admitido hoje intensamente em França e que se acha consignado nos dois magistrais estudos de Paul Descamps: As Três Formas Essenciais da Educação e A Educação nas Escolas Inglesas. E não farei agora mais do que compendiá-lo quase pelas mesmas palavras.

O ponto mais considerável, de maior importância nas escolas inglesas, é a Educação.

A instrução não passa de um elemento acessório. O mesmo acontece com os esportes e exercícios físicos. Tudo deve concorrer para a educação do caráter, no sentido da responsabilidade, origem de toda a escola de exercícios obrigatórios, porque não são simples exercícios físicos, e têm caráter educativo, desenvolvendo certas qualidades morais.

Um deles desperta o espírito de disciplina. É o campo mais disciplinado o que vence, porque é indispensável que cada comparsa jogue, não para se fazer valer a si próprio, sim para cooperar na consecução de um fim comum. Fortalece o espírito do mando nos capitães do jogo. Outro aguça o espírito de atenção, de self-control. É necessário saber ficar muito tempo imóvel, estando constantemente prestes a agir. São por isso os menos distraídos os que vencem. E, de um modo genérico, os desportos des- pertam a coragem moral... Torna-se bem claro, seja à puridade, que na educação britânica os desportos não se reduzem às pândegas e frivolidades anárquicas e tumultuárias em que os transformaram imitadores desastrados, desconhecedores do conjunto do sistema educativo anglo-saxão no Brasil e em outros países da mesma índole. No intuito moral a própria cultura intelectual visa mais, notai bem, o desabrochar e fortalecer das faculdades do que a quantidade dos conhecimentos.

A característica geral dos métodos ingleses é resumida, como vou dizer-vos.

Antes de tudo, há pouco rigor e aperto intelectual, o que tem por conseqüência retardar o desenvolvimento da inteligência, já de si lenta no menino inglês, mas que, por outro lado, conserva melhor sua personalidade. Em várias escolas em que há estrangeiros matriculados, nota-se que os anglo-saxões são os que se adiantam mais lentamente; como árvores, porém, de longo crescimento, ganham em solidez o que perdem em preciosidade. Sua inteligência desperta tarde; nem isto inquieta os pais. Ao passo que no continente estes se mostram muito orgulhosos dos rápidos progressos de seus filhos, parece que na Inglaterra têm certa repulsão para a precocidade e as brilhaturas. Os mestres não procuram apressar o momento da eclosão. Fazem, ao contrário, tudo para forçar o espírito de atenção, tão característico da mentalidade anglo- saxônica. Procuram utilizar as disposições naturais do menino de preferência a querer enxertar-lhe no espírito qualidades que lhe faltam, como se faz em França, com o intuito de meter toda a gente no mesmo molde: é o nivelamento dos espíritos. O sistema britânico permite o livre desenvolvimento das capacidades divergentes naturais.

Já na Nursery e nos Kindergarten procura-se ativar o sentido de observação. Utiliza-se para isto a curiosidade natural dos meninos, mostrando-lhes objetos ou seres vivos, despertando-lhes a atenção para as particularidades, semelhanças e dessemelhanças. Procura-se também reforçar a imaginativa e o sentimento, por meio de histórias infantis, fazendo apelo ao maravilhoso e ao fantástico. Consideram os ingleses uma falta, do ponto de vista educativo, não recorrer a esses meios, que podem parecer irracionais a certas almas, mas cuja supressão seria como resultado a infecundidade intelectual, secando o espírito e o coração do menino. Este sistema, por meios adequados, é prolongado na instrução dos moços nos cursos mais altos.

Pelo que toca à educação moral propriamente dita, sua principal preocupação, com os sistemas que denominam tutorial e monitorial, na Public School prosseguem o trabalho iniciado na Preparatory School, interessando, reparai bem nessa bela originalidade, interessando os estudantes na direção mesma da vida escolar, despertando e fortalecendo, com uma habilidade sem par, os sentimentos da obediência com responsabilidade, e do mando sempre com responsabilidade.

É um constante e indefeso apelo aos nobres sentimentos de honra, retidão, lealdade, dever. É progressivamente, adianta o escritor que venho compendiando, que se muda o espírito de obediência em aptidão ao mando; porque obediência e mando não passam ali de duas formas do senso da responsabilidade.

Falando dos clubes de estudantes, clubes autônomos e deixados inteiramente à sua iniciativa, onde as autoridades escolares não intervêm, e tudo corre bem, pondera nestas palavras, que valem por um programa: “Esta disciplina voluntária, olhada de um ponto de vista mais individual, vem a ser o self-control, ou disciplina interior, o domínio de si mesmo. É eminentemente um caráter essencial dos indivíduos particularistas.

“A obediência passiva fornece a disciplina exterior; não gera, porém, o self-control. É a disciplina interior que produz esta última qualidade que faz parecer os anglo-saxões frios e indiferentes a observadores superficiais.”

Os ingleses acharam o segredo de fugir aos defeitos dos casarões, espécies de quartéis que servem de Internatos e aos vícios daí decorrentes, e também aos males dos externos, colocados nos centros das grandes cidades. Colocam sempre suas escolas no campo, divididas em casas, onde os estudantes sentem prolongar-se a vida do lar; porque moram nelas sob as vistas das famílias dos professores e do diretor.

Acharam o segredo de, mantendo severa moralidade estimular a simpatia entre os alunos e o corpo escolar, o culto da liberdade, da responsabilidade, o prazer, e só isto vale tudo, o prazer da colaboração consciente na obra comum.

Escrevendo da – Educação Inglesa e seu Espírito, a propósito da École des Roches, imitação admirável tentada em França da educação britânica por Ed. Démolins, emitiu conceitos que convém também aqui rapidamente resumir.

Duas condições importantíssimas, diz ela, estão bem preenchidas, uma de ordem moral, outra de índole física, que se nos antolham indispensáveis à vitória. A primeira, a moral, é que as relações entre os mestres e discípulos estão baseados na confiança e na cooperação; e a segunda, a material, é a instalação no campo, que aos ingleses se afigura de uma suprema importância. A possibilidade de despender o supérfluo da energia em numerosos exercícios ao grande ar livre, a diferença entre a influência moral do que o aluno vê e ouve no campo e o que o cerca na cidade, tudo a ingleses parece tão considerável que pouco a pouco transportaram quase todos os seus estabelecimentos de educação para o campo. Westminster, que hoje está no coração de Londres, no tempo de sua fundação estava situada em pleno campo.

E mais: a centralização e a uniformidade de que se regem as grandes casas de instrução em França e na Alemanha não existem na Inglaterra e ali considera-se vantajoso que assim seja. Cada escola, exclama um professor de Oxford, gaba-se de produzir discípulos de um tipo particular. Estas diferenças tendem a estimular entre os diversos colégios uma rivalidade viril e salutar. Pode-se dizer, em tese geral, que o sistema de educação nas Public Schools, tem por base a confiança, a lealdade, a liberdade. Eis a condição essencial, a tradição da vida escolar inglesa. É durante os anos, prossegue Hugh Bell, em que o rapaz passa da infância à adolescência, esses preciosos anos entre os doze e os dezoito, em que o caráter tem tomado sua impressão definitiva, que os jovens fazem o aprendizado da vida. Se durante esse período crítico o menino adquire insensivelmente a convicção de ser a lealdade a qualidade que supera todas as outras, que deve salvaguardar a honra da escola, continuando o espírito de retidão, de liberdade e de energia, esse tornar-se-á mais tarde são e vigoroso de uma sociedade livre. Se, ao contrário o menino passar esses preciosos anos debaixo da disciplina de ferro de uma autoridade inflexível, disciplina que exige submissão forçada, que origina o espírito de dissimilação e de revolta, guardará igualmente essa impressão. Desde o momento em que o pequeno inglês se matricula na Public School torna-se o defensor de seus direitos, de suas tradições. Eis a diferença enorme entre o sistema britânico e o dos outros países. É nesta tradição secular que repousa a organização das Public Schools. Produz este fato uma solidariedade de interesses entre professores e discípulos cujo efeito seria inútil exagerar. Aí o espírito de revolta já penetra: o jovem inglês não teria que fazer com revoltar-se contra uma autoridade por ele mesmo compartilhada de fato, porque a administração, o governo do Colégio, à medida que avança nas classes, entram cada vez mais em suas próprias mãos. Durante esses anos se familiariza passo a passo com os deveres de cidadão: é chamado a tomar parte ativa na administração daquilo que lhe parece o estado mais importante do mundo. Os estudos propriamente ditos, acrescento eu por minha conta, serão, talvez, mais cuidadosos em França, Alemanha, Bélgica e na própria Itália; mas por um método gravemente abstrato.

Há hoje até certa reação na mesma Inglaterra por este lado, no intuito de dar maior desenvolvimento à parte intelectual da educação, seja dito de passagem.

Quanto ao mero saber, das escolas daqueles países têm saído considerável número de homens preparados nas letras e nas ciências.

Das escolas inglesas também têm eles saído e de primeira ordem; não resta a menor dúvida. Mas há uma coisa que até aos mais medíocres e descuidosos das doutrinas literárias e científicas cabe em partilha nas escolas britânicas e ainda aos mais notáveis sabichões de outras terras falta muitas vezes completamente. Aqui releva ipsis verbis os dizeres de Hugh Bell: “Em compensação, entretanto, saem sempre, tanto os talentosos quanto os medíocres, da escola – sabendo o que significam as palavras coragem, lealdade e justiça; aprenderam a dizer a verdade, a reprovar a delação (o maior crime naquele meio), a se governar a si próprios e aos outros, e, sobretudo, a assumir e acarretar a responsabilidade. São, em suma, homens, cujas ações serão governadas por um código de honra.

Lançados, mais tarde, na vida, não importa de que lado, porque abraçam as mais diversas carreiras, colonização, agricultura, navegação, indústrias, comércio, profissões liberais, ou funcionalismo, continuarão a defender as instituições de sua pátria, com o mesmo zelo com que defenderam as de sua escola, – saberão sair das dificuldades por si mesmos, com energia, com decisão, sempre com lealdade. Eis, em suma, o que o school-boy inglês, esse ser singular, meio menino, meio homem, terá adquirido durante seus anos de aprendizado. Na falta de fundos conhecimentos intelectuais, e já muito, se na verdade, como preceituou o Padre Didon: – A educação é a arte de emancipar os homens.”

Que beleza! Como tudo isto alenta e conforta, e, ao mesmo tempo, entristece, porque bem sentimos que é principalmente o que nos falta. É dessa portentosa educação particularista, como lhe chama a doutrina da ciência social dinâmica, como a denomina Paul Descamps, e que me parece ficar melhor batizada com o apelido de energética que proponho, dessa valorosa antípoda do espírito gregário e comunário que vos aconselho que sejais os pregoeiros em o nosso amado Brasil.

Depois de indicar um completo programa de educação dinâmica, ou energética, Paul Descamps remata com estas excelentes palavras: “Hoje em dia a iniciativa particular já tem fundado no continente europeu muitas escolas baseadas nos princípios da educação dinâmica, e, além disto, podemos mandar nossos filhos às escolas inglesas. Mas cada um de nós pode indevidamente fazer mais. Cada um pode melhorar sua própria regra de conduta, adquirir uma vontade mais firme, aguçar o senso da observação, querer agir por si mesmo: arranjar o tempo, passar o mais rápido possível das idéias aos atos. Os progressos são rápidos, quando se quer com firmeza. Quanto aos meninos, não é possível adotar de súbito, em França (e muito menos no Brasil) todos os princípios da educação dinâmica. É indispensável dosá-los, enquanto o meio não for mais favorável. Cada pai de família pode, porém, tratar seu filho como homem responsável; não empregar nunca a linguagem pueril, não encorajar seus lamentos e queixumes; não lisonjear-lhe a vaidade ou ferir-lhe o amor-próprio; não fatigar-lhe a memória, nem querer fazer dele um menino prodígio; deixá-lo desembaraçar-se por si só. À medida que for crescendo, incutir-lhe na alma que deve criar sua posição por si mesmo, e que deverá partir para formar um novo lar; habituá-lo a saber defender seus interesses e a conhecer o valor das coisas; fazê-lo tomar o prazer dos cuidados higiênicos, o gosto dos jogos em pleno ar. Mas, acima de tudo e mais que tudo, o desdém da política e das posições e empregos oficiais, e, em troca, a estima do trabalho e dos ofícios usuais; e horror da mentira e da preguiça; nunca cercá-lo de um sistema de espionagem mais ou menos oculto; incutir-lhe a idéia de que se pode ser feliz por toda a parte, porque a felicidade está em si mesmo e não nas decorações exteriores; agir sempre em quaisquer circunstâncias conforme sua consciência.”

Eis aí.

Se parecer difícil trasladar para cá e espalhá-los pelo nosso Brasil numerosos modelos de escolas e colégios à inglesa, ao menos esta última parte será fácil pôr em prática.

Mas que temos nós com ingleses sem educação inglesa e coisas congêneres, nós, garfo esplendoroso de rutilante trono latino?

É a linguagem geral da ignorância e da presunção. Pois já não passou por aqui um galhardo escritor da Europa meridional que denominava os anglo-saxões – Un tas d’imbéciles –?... O homem não era das Gálias; mas falava em francês.

Esse tão afamado latinismo, com seu estreito gênio comunário, tão avesso ao espírito hodierno, é que nos tem transviado e feito marcar passo. Pois quando, desde meados do século XVIII, com os Montesquieu, os Diderot, os Voltaire, os Rousseau, os Prevost, a mais inteligente e progressiva das intituladas nações latinas, se dedignava de ir tomar lições de vida política, social e literária com a Inglaterra; quando o mesmo fazia a Alemanha, com Lessing e Kant, aquele na literatura pelo culto de Shakespeare, e outro na filosofia, confessando dever a Hume o ter acordado de seu sono dogmático, quando nesse período ou pouco após alemães e franceses entravam amplamente nas letras pelo caminho aberto por Swift, Sterne, De Foe, Richardson, Fielding, Tohmpson, Gray, Young e pouco mais tarde Walter Scott e Byron, e proveio daí a revolução romântica que se espalhou por todo o mundo, na ordem política e social, os mais eminentes pensadores e estadistas de toda a Europa fizeram, desde os começos do século XIX, os maiores esforços para transplantar para suas pátrias as instituições inglesas – das liberdades municipais, de self-government, de habeas corpus, de júri, do parlamentarismo e das formas constitucionais de governo; quando vemos uma escola inteira de sociólogos franceses preconizar a adoção da educação inglesa, como o meio único de salvar do descalabro a sua, a tantos títulos, vigorosa nação; quando vemos tudo isto, será neste desventurado Brasil, novo e já desfibrado, criança e já cheio de vícios, a ponto de um dos nossos mais ilustres chefes intelectuais – tê-lo definido – um menino de cabelos brancos –, será aqui que se há de levantar pela inconsciência letrada, a grita contrária?!...

Referindo-se de passagem – no prefácio de sua – Educação nas Escolas Inglesas –, ao fato das imitações britânicas tentadas no Continente europeu, Paul Descamps nota que os embaraços que se têm estorvado se originaram de não se ter começado pela educação, a primeira coisa a dever ser transplantada. – “As análises dos fatos mostraram que o fator essencial da superioridade social era o da educação. A superioridade dos anglo-saxões decorre de um gênero peculiar de educação; eis a fórmula criada por obscuros e pacientes trabalhos, conhecida pela primeira vez de grande público, quando Edmond Démolins, publicou esse livro de tão ruidoso sucesso –A quoi tient la supériorité des anglo-saxons?”

Para conseguir este desideratum patrocinado pela École des Roches e pelos mais eminentes sectários da Science Sociale, e hoje posto em prática, propôs a criação, em Londres, de uma Casa de Estudantes, onde pudessem moços franceses aprender no mais apropriado centro da vida energética humana, os mais sérios problemas da prática hodierna.

Escusado é dizer que, seguindo o método adotado neste despretensioso discurso, não transportarei para aqui as minúcias, os programas, os vários meios que já ali estão sendo postos em execução.

Limitar-me-ei, como na parte antecedente, a apontar o espírito e os desígnios gerais, acompanhando o autor, mestre no assunto.

“Se vos proponho”, disse ele, “o enviardes vossos filhos a Londres, certamente é para que se aperfeiçoem no inglês, certamente, também para que se familiarizem com a vida social inglesa; mas é, antes e acima de tudo, para que nesse enorme encruzamento dos povos, mergulhados, se assim posso exprimir-me, todo o dia na prática comercial, tomem o gosto e o prazer da ação para que, à noite, se lhes explique o sentido de quanto viram durante o dia e se lhes comece a abrir no espírito o conhecimento do mundo contemporâneo. Não cessarei de repetir”, prossegue o Sr. Périer, “trata-se inquestionavelmente de nosso futuro em não mais vivermos, voltados sobre nós mesmos, e assim de olhar em torno de nós, de ter os olhos constantemente abertos para o vasto mundo.

“Desde esse dia se ficou de posse da boa fórmula, e se via melhor o caminho a seguir: a reforma da educação no sentido de uma determinada aproximação da educação inglesa.”

Homens deste valor, europeus perfeitamente informados, franceses com todo o seu orgulho de guias de povos, pensam assim dessa cruzada e falam deste modo desse livro, declarado, oh! comédia!.. medíocre, por certa crítica do Brasil... Risum teneatis? E é demais, – não é só.

Como complemento da obra educativa, como elementos e fatores dela, deveremos pôr em prática os outros três meios indicados – estudos dos grandes povos diretores da atualidade ou instituição das Humanidades contemporâneas; criação do ensino superior sistematizado para os operários; orientação particularista ou, melhor, energética da vida...

Sobre cada um deles poucas palavras, meramente definitórias.

A questão do conhecimento, hoje indispensável a quem quer progredir, dos fortes e avançados povos da atualidade – foi, com superior critério, aventada em conferência feita na Sociedade de Geografia de Paris, aos 21 de junho de 1919, pelo Sr. Jean Périer, Attaché Commercial de France en Angleterre.

Releva ponderar que o Sr. Jean Périer não se refere somente aos indivíduos das classes operárias e da pequena burguesia; tem, pelo contrário, especialmente em vista os moços das chamadas classes dirigentes e elevadas.

Para estes enumera as cinco indispensáveis condições que atualmente reputa necessárias ao triunfo na vida: 1ª, um caráter de forte têmpera; 2ª, uma saúde vigorosa; 3ª, uma boa instrução secundária; 4ª, uma especialidade; 5ª, uma cultura geral contemporânea, acompanhada pelo conhecimento, pelo menos, de uma língua estrangeira.

E, como os franceses, saídos das escolas secundárias, encaminham- se principalmente para as intituladas carreiras liberais, no que são, seja dito à puridade, imensamente ultrapassados pelos brasileiros, o Sr.

Périer, notando-lhes a queda para os diplomas e receando que entrem a correr especialmente para as escolas, apelidadas técnicas, previna o sofisma nestas palavras, dignas de atenção: “Há poucos anos não tínhamos na França bastante técnicos de química e da eletricidade; daqui a pouco tê-los-emos por demais, como já possuímos em demasia engenheiros, médicos, advogados, homens da lei, professores e outros seguidores das carreiras liberais. O que nos falta são especialistas bem preparados em indústrias, em comércio, verdadeiros dirigentes do mundo dos negócios.

Em numerosas viagens aos nossos maiores centros mercantis e indus- triais, verifiquei inúmeras vezes a posição vantajosíssima de estrangeiros em todos os ramos, graças a seu espírito de iniciativa, a seu conhecimento das línguas e das coisas do exterior. É, pois, um pouco para as escolas técnicas, mas antes de tudo, para a prática dos negócios, que desejaria ver dirigirem-se os antigos discípulos de nossas escolas e especialmente a École des Roches.

O Sr. Périer, além da educação particularista, dinâmica ou energética, exige boa cultura intelectual para os espíritos modernos.

Traça um belo escorço da evolução do ensino no mundo ocidental desde a Idade Média e o Renascimento, assinando-lhe três largas fases: 1ª, a da cultura greco-latina, velho ensino de cunho literário; 2ª, a da cultura moderna, novo ensino de cunho científico, que é o vigente em todos os países bem organizados; 3ª, a da cultura contemporânea ou hodierna, ensino novíssimo de cunho econômico-social, que agora recomeça a fundar. Essa última fase é suscitada pela conquista e todo o Planeta, onde não existem mais regiões desocupadas. Chegou a vez até da própria África sacudir fora sua vetusta selvageria, com a transformação, do Egito pela administração britânica, a fundação da confederação Sul-Africana, a criação dos Estados Livres do Congo, o progresso das colônias inglesas, francesas e alemãs da costa e contracosta, o interesse da política européia pelo que se passa em todo o continente e a quem possa vir a caber de futuro a preponderância no Marrocos, por exemplo... Foi ainda determinada esta fase pelo assombroso desenvolvimento das vias de comunicação, pelo surto inacreditável do comércio, dos capitais e da riqueza, pelo advento de nações transformadas, como a Alemanha, a Itália, o Japão, não falando já no crescimento fantástico dos U.S.A., Canadá, Austrália, nem na remodelação crescente da Índia, da Pérsia e até da Turquia.

É, nas suas linhas mais altas e mais poderosas, o famoso Imperialismo moderno. A vida local cede o passo à vida nacional e este sente chegar a complicação da vida mundial.

Urge estar preparado para fazer face às tremendas concorrências que surgem de todos os lados em todas as manifestações.

“Em toda ordem de conhecimentos, brada o ilustre francês, na agricultura, na mineração, na navegação, nas indústrias fabris e manufatureiras, no comércio e até nas profissões liberais e administrativas, na política, nas artes, nas ciências, torna-se absolutamente necessário, para progredir até para manter-se em face das concorrências estrangeiras, saber o que se passa lá fora. Tomemos o conselho de Carnégie, o célebre ultramilionário americano: – Para triunfar em nosso tempo é mister saber tudo que se faz na superfície do Planeta em nossa especialidade. – Estudemos o modo de trabalhar, de agir, de viver e de pensar dos povos diretores hodiernos.”

A isto é que se chama as humanidades contemporâneas ou ensino econômico-social.

E entra, neste ponto, em minudências que não são para aqui.

E nós que temos feito neste sentido?

Nada, nada, nada!... porque a nada se reduz a teima de querermos passar pelo que absolutamente não somos, com o duplo processo ilusionista de enviarmos alguns retóricos nossos a fazerem discurseiras de generalidades fáceis nas Academias de Paris ou nas Conferências e Congressos, que ali se reúnem, e, em troca, mandarmos buscar outros tantos lá fora que venham aqui, entre banquetes e festas e passeios à Tijuca, a Petrópolis e a São Paulo, fazer outras tantas exibições muito banais, a peso de ouro, e que nada adiantam, que para nada prestam.

Dos primeiros, os que vão, nada lucra o nosso povo, porque, julgando-se eles poços sem fundo de incomensurável sapiência, vão lá fora, não para aprender, senão, na sua cândida ingenuidade, para ensinar!...

Dos segundos, porque, passando aqui à vol d’oiseau, nem nos estudam, superficialmente que seja, nem nos ensinam o que de suas terras de útil nos poderiam, porventura, comunicar. Quem quer verdadeiramente aprender, com o plano de se transformar e fortalecer para entrar nas lutas modernas, faz como praticaram os japoneses.

Primeiramente, enviaram dúzias e dúzias de moços inteligentes, decididos, voluntariosos, inflamados de um patriotismo irredutível que só encontra o seu igual em rápidas fases da Roma primitiva, para um meio, como os dos USA, por exemplo, a fim de, nos trabalhos mais rudes, até, muitas vezes, como criados de servir, aprenderem o viver íntimo, daquele povo extraordinário. Uns metiam-se pelas estâncias de criar, pelas fazendas agrícolas, pelas terras de mineração, pelas oficinas industriais de toda a casta; outros pelas escolas, pelas academias, pelas universidades, a ver, a estudar, a esmiuçar de tudo, assimilando, no aprendizado e na prática, essa portentosa educação energética, que, de um povo de servos feudais, oprimidos por ferrenha aristocracia, relegados em ilhas do oceano, produziu em poucos anos uma das mais fortes, mais poderosas, mais formidáveis nações do mundo!...

Só a verdadeiramente criadora educação particularista e energética de anglo-saxões, ingleses e ianques seria capaz de produzir este milagre histórico.

Os ousados japoneses, despidos de pedanterias e cheios de zelo patriótico, não enviavam sabichões eloqüentes a discursar nos congressos e academias. Sabiam que neste vezo até a Turquia e a Rússia eram mestras eméritas, o que não as haveria, mais tarde, de forrar as tremendas e formidáveis derrotas.

Os processos, postos em prática primeiro nos U.S.A., foram repetidos na Inglaterra, Alemanha, Bélgica e França, e ainda hoje nas universidades dos dois lados do Atlântico andam numerosos estudantes nipônicos.

Não se esqueceram, por outra parte, de atrair profusamente mestres, professores e especialistas de todos os graus e de todas as disciplinas para transformarem as escolas, nomeadamente militares, do Império do Sol Nascente.

Em seu excelente livro – L’Impérialisme Japonais – o Sr. Herni Labroué dá conta exata dos fatos, e como a este discurso desejo apenas dar o valor de mera propaganda, refugando frases e banalidades retóricas, transladarei pequenos trechos do ilustre viajante, enviado repetidas vezes ao Oriente pela Universidade de Paris. Não nos poderia deparar maior competência. Aqui vai um: “Obrigado pelos U.S.A a abrirem-se à influência extrangeira, os japoneses fizeram-se discípulos dos brancos, para melhor e mais acertadamente tornar-se seus rivais. Nesta obra de educação os ianques mais do que qualquer outro povo, foram os seus iniciadores. Foi, sobretudo, pelos U.S.A., que o Japão se europeizou. Foi ali que os japoneses foram da melhor vontade de fazer o seu fornecimento de idéias modernas, tomar os processos administrativos, procurar seus similares econômicos, encontrar seu ponto de apoio político. As escolas particulares, fundadas no Japão pelas seitas ianques reforçaram a obra indígena da instrução pública, cujos principais elementos os japoneses tinham tomado aos modelos ianques; kindergarten, escolas primárias, escolas médias, universidades.

Foi de seu contato com as idéias ianques que Fukuzana, educador que exerceu no Japão enorme influência, tirou seu sistema pedagógico.

Numerosos são os estudantes japônicos que foram e vão sempre às escolas, universidades ianques e até a Escola Naval de Anápolis, ainda que, várias vezes, para fazer face às despesas dos estudos, sejam forçados, no intervalo das lições, a exercer o emprego de criados.

Em 1900, em 940 estudantes japoneses que seguiam cursos fora de sua terra, 554 estavam nos U.S.A. Mas não foi só a instrução pública: outros ramos das administração japonesa tiraram grandes vantagens das lições da Norte-América. O sistema postal, introduzido em 1871, foi diretamente imitado do sistema ianque.

O serviço de colonização de Kokkaido foi empreendido por ianques sob as ordens do General Capron. O padrão de ouro, a cunhagem da moeda pelo sistema decimal, a organização dos telégrafos, telefones e estradas de ferro: tudo isto são empréstimos da civilização anglo-ianque.

Eis por que em 1909 os japoneses levantaram uma estátua ao comodoro Perry, iniciador da terra do Sol Nascente na civilização do Ocidente. Assim procede quem quer seriamente educar-se com altos planos e desígnios. Vê-se claro que é bem diverso do sistema brasileiro de acreditar que já somos uns grandes portentos, que nada temos a aprender, no sentido que venho indicando. Qual seria o rapaz brasileiro, filho de um país onde o trabalho foi aviltado durante quatrocentos anos e até o outro dia, que, para seguir estudos nos U.S.A., se sujeitasse ao cargo de criado nos intervalos das aulas? Pois, se aqui, desde o curso acadêmico têm os empregos públicos, já efetivos, como adidos ou extraordinários.

Floração original da politiquice indígena esta!

Por isso marcamos passo, já não digo há quatro séculos, mas há mais de cem anos, a contar desde que esta terra foi elevada a Reino, e para cá se transladou o governo da Metrópole e começou, de fato, a nossa independência; por isso marcamos passo, mexidos e remexidos nas garras da mais estafante politicagem, e vimos, tontos, sem saber mesmo do que se tratava, em menos de quarenta anos, a transformação assombrosa do Japão, e em nossa infantilidade de ibéricos que têm vivido nesta porção da América de explorar os índios, os negros e os colonos, oriundos de países fracos, chegamos à tonteria de pensar que também os exploraremos a eles, a esses homens terrivelmente singulares, que hoje causam temores aos seus mestres, – os U.S.A – e a própria Inglaterra, que lhes deu, pelo mais singular erro político da história, mão forte contra a Rússia, essa Inglaterra que eles andam a molestar no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia e a atraiçoar na Índia...

E quando esses povos, validos e poderosos, que foram os seus iniciadores na vida nova, se arreceiam deles, a ponto de lhes vedar a imigração, a colonização e a compra de terras em seus domínios, nós em nossa crassa criancice, desgovernados que andamos por ignorantes, ou levianos, entregamos-lhe portos e léguas de nosso território... Que monstruosa prebenda para nossos netos!

Poucas palavras acerca de curiosíssimo “Ensino Popular Superior”

para o mundo operário, verdadeiro Labour College, posto em prática, posto em prática ainda nessa esplêndida Inglaterra, pelo eminente cidadão ianque Walter Wrooman, que tem dado surpreendentes resultados.

Encontro-o descrito pelo Sr. A. Pernotte em seu admirável artigo “Un essai enseignement populaire”.

Reconhecendo a falta de uma verdadeira instrução para os homens do trabalho, ensino com certo desenvolvimento, o Sr. Wrooman engenhou um novo gênero de ensino que nem é a aula primária rudimentar, nem os cursos médios à antiga, nem as conferências e outros meios postos em prática sem apreciáveis vantagens, nem ainda o pesado aprendizado das universidades, próprio das classes abastadas. Com um professorado devotado ao seu plano, criou uma instituição especial, onde os operários encontram um ensino metódico e superior.

Há ali externos que seguem os cursos nas horas livres do trabalho; internos, que são trabalhadores livres sem horários fixos; internos, em períodos de férias ou de licenças especiais dos patrões.

A maior novidade consiste na Correspondence School, que se não deve confundir com a University-Extension, existente nos U.S.A., útil instituição, sem dúvida, mas inferior à invenção do Sr.

Wrooman.

O meio mais eficaz para a formação autônoma da inteligência dos alunos é ali a dissertação, quer para os que seguem diretamente as lições, quer para os que estudam por correspondência.

O fim, já se vê, não é retirar do seio das classes operárias algumas dúzias de indivíduos, segundo o velho sistema, para fazer deles doutores, médicos, advogados, professores, – deixando a massa no costumado obscurantismo.

O fim, o alvo, é, ao contrário, cuidar da massa mesma, do grande número, cujo nível intelectual se procura elevar.

“Há”, exclama a Sra. Wrooman, porque é preciso que se saiba ser esta mulher talento e caráter a auxiliar do marido na obra meritória, “há em todos os países, milhares de moços aos quais é recusada a, aliás, errônea, esperança de abandonarem seus úteis labores da usina, da fábrica, da herdade, para engrossar inutilmente o número dos médicos ou dos advogados, ou professores, ou dos literatos, jovens que não têm tempo ou meios da fazer estudos universitários. Se, porém, não podem aspirar às profissões liberais, muitos deles desejam, com razão, tomar nos “negócios nacionais” uma parte mais ativa e mais direta, quer como membros de associações, quer como conselheiros municipais ou mesmo membros do Parlamento, e sua educação é pelo menos tão importante para suas respectivas classes, quanto a das classes para as quais os favores da Universidade têm sido tão liberalmente prodigalizados.

“As massas reclamam a instrução. Mas que instrução?

“A resposta a esta questão vem das lojas, das fábricas, das minas, das herdades agrícolas de toda a Inglaterra, donde centenas de cartas nos têm sido dirigidas, exprimindo da parte de seus autores um desejo intensíssimo de se verem iniciados no conhecimento dos grandes fatos e das forças do mundo em que vivem, de poder resolver o problema de sua própria existência e tornarem-se úteis a seus concidadãos... Cada vez mais o operário se sente como um votante, um legislador, um criador de futuras condições sociais (a maker of future social conditions).

“Sente-se investido de um poder que ciumentamente quer exercer. Cabe à sociedade esclarecê-lo e instruí-lo, se não quer que o seu braço de gigante faça desabar o templo em cima de nossas cabeças”.

Para formar esses cidadãos esclarecidos, esses chefes da opinião, esses leaders of people, esses makers of future social conditions, é indispensável um ensino popular superior e metódico, acabando a estulta pretensão de só ser boa a instrução fornecida pelas universidades e academias, de que só há um tipo de instrução possível.

O Sr. A. Pernotte reproduz neste ponto as palavras do Sr.

Walter Wrooman no discurso de inauguração de Ruskin Hall: “em estudo como em viagem todo caminho é bom se desejais ir para onde ele conduz. O gênero de instrução depende unicamente do gênero de homens que quereis formar. O problema da instrução não pode ser formulado e menos ainda resolvido, enquanto não houvermos claramente determinado, como terreno de discussão, o ideal de humanidade que queremos produzir. E que pode haver de mais absurdo do que pretender que em um organismo social tão heterogêneo, tão complexo quanto o nosso, não existia senão um tipo de homem intelectualmente bem educado? Existem tantas espécies de instrução quantas as diferentes funções da sociedade. Não somos dos que limitam o número dos gentlemen a uma classe restrita, cujos membros são todos formados no mesmo molde, criados nos mesmos costumes e tradições, dotados das mesmas qualidades físicas, mentais, morais e financeiras, animados do mesmo ideal. Sem criticar o ensino da Universidade, pretendemos que existam outros, tão estimáveis, tão elevados, e para a maior porção dos homens muito mais praticáveis. Se desejais converter um jovem em bibliotecário, em tradutor, em douto, claro é que deveis escolher para ele ensino adequado à produção de tais homens e para isto o sistema universitário é, talvez, o melhor possível. Se desejais, porém, formar cidadãos capazes, conscientes de seus direitos e deveres, chefes de opinião, leader of people, será indispensável seguir diverso caminho”.

Não me compete, nem é agora oportuno, entrar na exposição miúda dos meios e processos postos em prática em Ruskin Hall e estabelecimentos congêneres. Meu desígnio é apenas sonner la cloche, despertar de pesado sono os competentes, os chefes, os guias de nosso povo.

Quanto ao quarto e último alvitre proposto – Orientação particularista (eu diria energética) da vida, não é propriamente um meio; é antes o fim, o alvo, o desideratum a que tende todo o ensino da Ciência social.

É, todavia, tratado em estudo especial pelo Sr. Gabriel Melin, em páginas encantadoras.

Dignos de ponderada leitura são principalmente os capítulos referentes aos aspectos negativos e positivos do assunto e as aplicações práticas à vida clássica, intelectual, moral, profissional, familiar e social.

A estreiteza do tempo obriga-me a essa rapidíssima indicação apenas.

Para terminar. Estas providências, aconselho-as eu, porque ainda acredito no valor seletivo da educação física, intelectual e moral aplicada aos bons elementos de nossa população nacional.

Mas não deve ocultar a importância da seleção demográfica, operada pela colonização com gentes válidas européias, espalhadas por todas as zonas do país, sob a condição iniludível de se assimilarem a nós pelo uso da nossa língua. Compreendereis bem a razão: é para nos ajudarem no povoamento do país, unidos aos elementos nacionais, e não para formarem grupos irredutíveis, como já fez com alemães, em certas zonas e projetam criminosamente com japoneses, em outras.

Não devo, outrossim, ocultar o concurso das lições de antropossociologia, no ponto em debate. Creio, com os mestres, Ammon, Live, Woltmann, Lapouge, Niceforo, que os bons elementos eugênicos, preponderantemente arianos no Mundo Ocidental, vão sendo assustadoramente gastos pelo mestiçamento desastrado com elementos indestrutíveis que tendem a crescer. Maior, evidentemente, é o perigo em terras, como as do Novo Mundo, povoadas pelos processos postos em prática, principalmente no Brasil. – Daí, a urgentíssima necessidade da colonização pela forma indicada. Daí, finalmente, a necessidade da seleção, que já vai sendo, seja dito de passagem, praticada em certos centros anglo-americanos, saxônicos e germânicos, contra a reprodução dos degenerados, loucos, epilépticos, tuberculosos, alcoólicos, morféticos.

Não ignoro que os cultores da antropossociologia e os da intitulada Ciência Social da escola laplayana não se combinam, não caminham juntos, de acordo, nos pontos comuns.

É porque, ouso dizê-los confinados nos seus credos respectivos, não se estudam mutuamente. Fazem igrejinhas e nada mais.

Bastaria, entretanto, uma só circunstância, a que me hei referido já, noutros escritos, para os pôr de acordo em muitos pontos essenciais: os famosos particularistas da Ciência Social, com sede principal na Inglaterra, não são senão os dólico louros, arianos, com sede principal hoje nesta mesma Inglaterra. Basta ler estes trechos de Valcher de Lapouge: “...l’Anglo-Saxon ou Anglo-Scandinave, le meilleur répresentant du type et du génie aryens, si j’ose employer pour designer la race dolicho blonde ce nome fautif... L’élément Anglo-Saxon a pris le dessus et tend de plus en plus depuis trois siècles, à distancier les autres éléments... Des temps le plus reculés jusqu’á nos jours l’histoire des Îls Britanniques reflète le génie des races dominantes.

À l’origine sur ce débris du massif Anglo-Scandinave, qui fut le berceau de la race, domine ou vit seule. Um periode d’expansion commence avec les prémiers essais de la navegation... Dês essais de dolicho-blonds envahissent toute l’europe occidentale et centrale...”

Proposições são estas de inteiro acordo com a História da Formação dos Povos Particularistas, obra fundamental de Henri de Tourville, que, como Le Play e todos os seus sectários, assinala a Noruega por pátria desse sobre todo elevado ramo da humanidade. Há apenas a diferença de H. de Tourville e companheiros fazerem-no, com as velhas doutrinas, porvir d’Ásia, e transformar-se apenas na Escandinávia, doutrina repelida, com razão, pelos antropossociólogos que o dão por originário do maciço anglo-norueguês, hoje em grande parte submerso pelo Mar do Norte.

Como quer que seja essas gentes sem par, esses valorosos eugênicos, quer os chamemos de particularistas ou energéticos ou lhes conservemos o nome de arianos, os maiores instigadores do que se fez ou ainda se está fazendo de melhor na Terra.

E, ou o seu sistema educativo seja a causa determinante de seu gênio e caráter, como querem os da ciência social, ou seja, ao contrário, como ensinam os da antropossociologia, separados, neste pontos, dos outros, um rebento, uma conseqüência, um reflexo desse mesmo gênio e caráter, para nós brasileiros, gentes mestiçadas a mais não ser, e que precisamos da grande escola e dos fortes exemplos, é indiferente...

Causa ou efeito, ou simultaneamente, causa em uns casos, efeito em outros, a severa seleção energética que tem nas gentes particularistas e eugênicas por excelência seus melhores modelos, é que nos convém, se nos queremos regenerar, se aspiram especialmente matar a politicagem e seus inqualificáveis perniciosíssimos efeitos.

É a tarefa do futuro. Ainda creio nele.

Abençoados os que vão chegando e os que hão de chegar, porque verão a grande obra e deles será o reino da Terra, na glorificação deste portentoso Brasil.

Trabalhai por isto, e é este o meu último conselho.

 

Índice Onomástico

A

Abbott, Fernando

Agassiz

Agripina

Albion

Alencar, Alexandrino

Alves, Rodrigues

Ammon, Otto

Andrade, Anselmo de

Antônio

Aranha, Graça

Argeu

Azeredo, Antônio

Azevedo, Gonzaga de

B

Backer

Bandeira, Esmeraldino

Bandeira, Vasco

Barbalho, João

Barbosa, Carlos

Barbosa, Rui

Barreto, João Paulo dos Santos

Barreto, Tobias

Batalha, Jaime

Bates

Batista, Álvaro

Batista, Homero

Bell, Hugh

Bertrand, Louis

Beviláqua, Clóvis

Bezerra, Alcides

Bittencourt

Bonaparte

Bonifácio, José ( o moço)

Braga, Cincinato

Brasil, Assis

Bulhões, Leopoldo de

Bureau, Paul

Byron

C

Campos, Francisco

Capanema, Gustavo

Carlos V

Carnégie

Carvalho, Américo Sales

Cascudo, Câmara

Castilhos, Júlio de

Castro, José Luciano de

Cayasse

Ch. Beard

Champault

Clajanis

Cléopatra

Clotilde

Colajani

Comte

Constant, Benjamim

Coolidge

Correia, Araújo

Correia, Rivadávia

Cotegipe

Couty, Luiz

Cruz, Osvaldo

Cunha, Euclides da

Cunha, Félix da

Cunha, Flores da

D

D. Pedro I

D. Pedro II

Darwin

De Foe

De Greef

de Gros, Durand

de Lapouge, Valcher

Demolins, Edmond

Dénis, Pierre

Descamps, Paul

Diderod

Donnat, Leon

Durkheim

E

Ellis, Alfredo

Eusébio

F

Feijó, Diogo

Ferrero, Guilherme

Fielding

Filipe II

Finots

Fonseca, Hermes da

Francisco, João

Franco, João

Fukuzana

G

Garcia, Inocêncio

General Capron

Giddings

Gide

Godói, Cândido de

Goethe

Gouveia, Hilário de

Gray

Grove

Guimarães

Guimarães, Ari Machado

Guimarães, Artur

Guimarães, Melo

Guimarães, Santerre

Guizot

Gumplowicz

H

Haeckel

Hamilton

Hartmann

Hegel

Helmboltz

Hermes

Hume

J

Joule

Júlia

Júnior, José Cláudio da Silva

Júnior, Martins

K

Kant

L

Labroué, Herni

Lameyer, Mário Carlos

Lapouge

Le Bon

Le Play, Frédéric

Leal, Modesto

Lessing

Lhiring

Lilienfeld

Lima, Barbosa

Lisboa, Coelho

Littré

Live

Lobo, Costa

M

Machado, Pinheiro

Mansel

Mariano, José

Martins, Gaspar

Martins, Silveira

Medeiros, Borges

Melin, Gabriel

Meyer

Monroe

Montesquieu

Morais, Prudente de

Müller, Juvenal

Muller, L.

N

Néri, Constantino

Nero

Niceforo

Noíre

Novicow

O

Oliveira Botelho

Orbans

P

Padilha, Francisco

Padre Didon

Paim, Antônio

Painsard

Patersen

Paula, Firmino de

Peçanha, Nilo

Peçanha, Procópio

Peixoto, Floriano

Peixoto, J. M. Pinto

Peixoto, Rocha

Peixoto, Sá

Pena, Afonso

Périer, Jean

Pernotte, A.

Perry

Pessoa, Epitácio

Pinot

Pinot, Robert

Pires, Fileto

Poinsard, Léon

Preville, A. de

Prevost

Procópio, Nilo

Proudhon

Prozors

R

Raffalovich

Ramalho

Reale, Miguel

Reddie, Cecil

Richardson

Rocha, Marques da

Rocha, Pinto da

Romero, Sílvio

Rousiers, Paul de

Rousseau

Rui

S

Sá, Francisco

Saraiva, Gumercindo

Schänfile

Scott, Walter

Shakespeare

Silva, Álvaro Alberto

Silva, Lima

Silvério

Sodré, Lauro

Sousa, Mário Alves

Sousa, Francisco Martins de

Spencer, Herbert

Sterne

Suckow, Júlio

Swift

T

Tarde

Thierry

Thompson

Tibério

Torres, Alberto

Tourville, Henri de

Trovão, Lopes

V

Vasconcelos, Augusto de

Vasconcelos, Bernardo de

Veríssimo, José

Vianna, Oliveira

Vicente (frei)

Vignes, Maurice

Voltaire

Von Baer

W

Wallace

Ward, Lester

Weismann

Woltmann

Worms, René

Wrooman (sra.)

Wrooman, Walter

Y

Young

Z

Zacarias

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



*  Transcrito de Outros Estudos de Literatura Contemporânea. Lisboa, Tipografia A Editora, 1905, pp. 49-68.

[1]  Uma idéia completa da doutrina, além dos livros citados e das obras de Le Play, pode ser adquirida na revista La Science Social e e no livro de J. B. Maurice Vignes, – La Science d’après les principes de Le Play et de ses continuateurs.

[2]  La Science Sociale d’après les principes de Le Play et de ses continuateurs, par J. B. Vignes, I, pág. 196.

[3]  A língua francesa, mais rica do que muita gente pensa, além dos substantivos commun, commune, communaux, communage, commanauté, communisme, e dos adjetivos commun, communal, communaliste, communiste, que correspondem (os últimos) aos nossos – comum, comunal, comunalista, comunista, possui o adjetivo communautaire que julgo poder traduzir por comunário, porque comunista, por exemplo, já tem outro significado.

[4]  Ed. Demolins – Les Français d’aujourd’hui (Les Types Sociaux du Midi et du Centre), pág. 440; À quoi tient la supériotité des Anglo-Saxons, pág. 53.

[5]  Ed. Demolins, loco cit.

* Transcrito de Provocações e Debates. Porto Livraria, Chardron, 1910, pp. 189-194.

[6]  Não esquecer o que já foi dito em nota a uma das páginas anteriores. Desta escola não aceito as idéias católicas dum ou doutro de seus membros. Sigo os processos, as idéias econômicas, sociais e políticas.

[7]  1905.

* Transcrito de Provocações e Debates, ed. cit., pp. 195-204.

* Transcrito de Provocações e Debates, ed. cit., pp. 75-101.

* Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1907.

* Lisboa, 1912.

[8]  No Brasil muitas vezes as três qualidades andam juntas no mesmo indivíduo.

[9]  Não esquecer que estas páginas foram escritas em maio de 1904; cumpre, porém, advertir que o flagelo se repetiu em 1907-8.

[10]  Foi isto escrito em meados de dezembro de 1910.

[11]  As horrorosas cenas, ocorridas depois nos calabouços da ilha, onde faleceram asfixiados 18 marinheiros dos revoltosos, presos ali por ordem do comandante Marques da Rocha, e os fuzilamentos a bordo do Satélite, por ordem do Tenente Melo, deixo de os referir pela natural verecúndia que se deve ter diante dos pósteros.

[12]  Ultimamente tivemos a reforma do Sr. Rivadávia Correia.

[13]  Estas páginas estão sendo escritas de 14 de dezembro de 1910 em diante, como já adverti.

[14]  Chamemos “seringueiros” aos “donos” dos seringais e “seringadores” aos apanhadores da goma elástica.

[15]  É como se diz no Rio Grande do Sul.

[16]  Cumpre notar que antropologicamente a expressão – raças cruzadas – é errônea.

[17]  É, como se sabe, assim que se chama no Brasil o tabaco.

[18]  Discurso de 14 de dezembro de 1910.

[19]  Pouco depois, no caso do Conselho do Distrito Federal, foi ainda mais crassa a desobediência.

[20]  Recentemente deu-se no Recife o do Diário de Pernambuco. (Nota da 2ª edição.)

[21]  Pinto da Rocha – Cartas Abertas, págs. 34 e 35.

[22]  Não confundir Finot com Pinot.

[23]  Escrito de meados de dezembro de 1910 a meados de março de 1911.

* Discurso de paraninfo aos bacharéis da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro (20-12-1913). Transcrito de Ari Machado Guimarães – Sílvio Romero e Querido Moheno. Rio de Janeiro: 1912, pp. 276-317.