Por Silvana de Gaspari (UFSC)
Março/2025
⠀⠀⠀Enrico Testa é professor titular de História da Língua Italiana na Universidade de Gênova. Escreveu livros teóricos, resultados de suas pesquisas, e que têm como interesse central a poesia italiana, por exemplo: Quaderno di traduzioni di Giorgio Caproni (1998) e Dopo la lirica. Poeti italiani 1960-2000 (2005). Mas também é poeta, tendo publicado: Le faticose attese (1988), In controtempo (1994), La sostituzione (2001), Pasqua di neve (2008), Ablativo (2013), Cairn (2018).
⠀⠀⠀Ablativo, que tem sua tradução apresentada aqui, recebeu vários prêmios literários na Itália e foi traduzido no Brasil em 2014, tendo sido publicado pela Rafael Copetti editor. O livro foi traduzido a seis mãos por três professores da Universidade Federal de Santa Catarina: Andrea Santurbano, Patricia Peterle e Silvana de Gaspari. A ideia de sermos três tradutores, acredito que foi sempre pensar em uma tradução que pudesse ter uma voz clara e significativa, de poesias que se referem ao cotidiano, à vivência pessoal e individual do autor, que deseja nos fazer ver, ouvir, cheirar, tocar, degustar praticamente todas as sensações que nos são apresentadas a partir dos versos de sua poesia. De meu ponto de vista, para que essas experiências fossem o mais próximas possível do que o poeta criou, nada melhor do que um falante nativo do italiano, uma falante que tem o português como língua materna, mas, por questões pessoais e profissionais, transita naturalmente entre os dois idiomas, e eu, que estou mais próxima do português, tendo inclusive já ministrado aulas de meu idioma materno. Assim, a ideia de refletir com o texto para a realização da tradução a partir dessas três óticas nos fez, talvez, viver um pouco mais de perto o que a poesia nos trazia, tendo inclusive dado a possibilidade de que as imagens/ideias apresentadas nos textos nos fizessem recordar também de nossas vivências, ter restabelecidas memórias que há muito tempo não acessávamos.
⠀⠀⠀Ablativo é dividido em onze seções temáticas: “No sono”, “Trópico de Escorpião”, “Plataforma 20”, “Viagem da sombra”, “Cais de Alcântara”, “Naufrágios”, “Balcânicas”, “A ceifadeira”, “Gramática”, “Breve excursão pela América do Sul” e “Passagem”. Seus poemas contam com uma temática bem variada, que se pauta na memória do cotidiano, na natureza, na percepção das cidades, e ainda nas viagens. Seus poemas não possuem títulos, o início de seus textos não é marcado por maiúsculas e o final não tem ponto final. O que separa os poemas uns dos outros é somente a pausa da página em branco, o tempo da reflexão e da absorção do que cada um busca resgatar e evidenciar ao leitor. Talvez, a ausência de maiúsculas e de um ponto final possa indicar a continuidade da vida, que vai se construindo a partir de percepções que se sucedem, quase que de forma imperceptível para muitos.
⠀⠀⠀Como uma das tradutoras, posso afirmar que a tradução de poemas que evidenciam o cotidiano, a vida em seu fluir natural, não é nada fácil, já que o entorno muda assim como o idioma. Identificar pássaros, flores, animais de outros espaços e realidades sociais e culturais distintas foi uma das questões que para mim mais se tornaram problemáticas durante a tradução, pois nem todos esses elementos da língua de partida têm correspondentes na língua de chegada, nem na realidade em que o livro está sendo inserido. E é assim que o simples se mostra complexo.
O território explorado por Enrico Testa é seu conhecido, lhe é familiar, mas não é nada simples, pois parte de um olhar muito específico e aguçado, de uma realidade perpassada de sentimentos e escolhas únicas que deixam em nós, tradutores, marcas nem sempre concordantes. Explico: para realizarmos a tradução, decidimos que cada um faria a sua leitura e tradução dos textos e que depois, juntos, discutiríamos tanto a forma quanto as escolhas de vocábulos. Juntos, então, pensamos no que mais funcionava como tradução, mas também, e principalmente, no que funcionava para que o leitor brasileiro tivesse a reação o mais próximo possível daquela que o poeta teve ao observar e descrever o que ele nos trazia em seus versos.
⠀⠀⠀Talvez a nossa intenção de entender o espaço onde o “eu” poético se encontrava possa ter sido determinante para a identificação em relação à aparição de flores, plantas, animais, pessoas, parentes, imagens. Ao participar de uma palestra proferida por Testa, eu o ouvi dizer que escrevia para não se esquecer, para guardar suas memórias. Acredito que isso tenha ficado evidente em nossa tradução, já que diversas imagens ali apresentadas podem ativar nossas memórias, nosso baú de recordações que há muito estava fechado. E a edição bilíngue vai ao encontro dessa intenção, dessa escolha de retomar memórias que, mesmo individuais, podem determinar memórias coletivas, condicionadas por um período da história ou um determinado espaço geográfico, ou até mesmo uma determinada condição socioeconômica. Encerro meu texto reproduzindo um dos poemas da parte “Passagem”, que me toca por evidenciar em mim memórias de infância:
por alguns anos entre ginásio e universidade,
usei sempre roupas dos mortos:
o sobretudo double face
(impermeável de um lado
casaco de tweed do outro)
do tio ansaldino,
uma jaqueta marrom de caçador
com bolsos laterais para a presa
permanentemente vazios,
as camisas sem colarinho
(mas, só em casa)
de um outro tio,
por toda a vida camponês.
Nem os lenços eram meus
mas – cifrados e.m. – de um primo rico
morto repentinamente.
E depois calças de muitas pessoas
mas todas reajustadas com a singer
e recolocadas por ela, mesmo se por pouco,
às honras do mundo.
Às vezes no sonho ouço
ainda ao fundo o tiquetaquear
- incansável amorosa –
no sótão da cozinha
TESTA, Enrico. Ablativo. Translation from Patricia Peterle; Silvana de Gaspari; Andrea Santurbano. Florianópolis, SC: Rafael Copetti Editor, 2014. ISBN: 9788567563109.