Traduzido do napolitano
Por Francisco Degani
Novembro/2024
⠀⠀⠀Giambattista Basile ou Giovan Battista Basile, nascido em Nápoles no início dos anos 1570, teve uma vida diversificada e aventureira como militar e homem de corte. Em 1592, sai de Nápoles para peregrinar pela Itália e Grécia, até que em 1604 se alista como soldado em Veneza, na ilha de Candia. Em 1608, retorna para Nápoles e é recebido na corte de Luigi Carafa, príncipe de Stigliano, da qual já fazia parte sua irmã Adriana, cantora muito celebrada na época. Como homem de corte, escreve, na língua literária predominante, ou seja, o toscano de Dante, Boccaccio e Petrarca, inúmeras obras para entretenimento de seus pares. Ao mesmo tempo, começa a desenvolver a escrita em língua napolitana e publica, em 1612, alguns textos em prosa. Ainda em 1612, vai ao encontro da irmã Adriana na corte dos Gonzaga, em Mântua. De volta a Nápoles, ocupa vários cargos no vice-reinado espanhol: governador feudal em Montemarano (1615); em Zugoli (1617); em Avellino (1619), governador régio em Lagolibero (1621-1622) e em Aversa (1627). Em 1624 recebe o título de Conde de Torone, pequeno vilarejo próximo a Caserta. Pouco antes de sua morte recebe o encargo de governador feudal em Giugliano, onde vem a falecer devido a uma epidemia de gripe, em 23 de fevereiro de 1632. Deixa inéditas suas obras primas em língua napolitana: as nove éclogas de Le Muse napolitane [As Musas napolitanas], publicadas postumamente em 1635, e a coletânea Lo cunto de li cunti ovvero lo trattenemiento de li peccerille [O conto dos contos ou o divertimento dos pequeninos], também publicada postumamente entre 1634 e 1636, ambas sob o pseudônimo anagramático de Gian Alesio Abattutis.
⠀⠀⠀Definido por Benedetto Croce (1866-1952), escritor, filósofo e historiador napolitano, como “o mais belo livro italiano barroco”, O conto dos contos é certamente a obra prima de Basile. Trata-se de uma coletânea de 50 contos de fadas de origem popular, recolhida por ele na região de Nápoles, dividida em cinco jornadas, cada uma delas com dez contos, emoldurados por um conto maior que os reúne e organiza (daí o título de Pentameron que lhe foi acrescentado posteriormente). Entre uma jornada e outra são inseridos diálogos em versos, que Basile chama de éclogas, entre servos, cozinheiros e despenseiros do palácio do príncipe Taddeo. No conto maior, que emoldura a narrativa, dez mulheres do povo, depois de várias peripécias, devem contar a Taddeo, príncipe de Camporedondo, a uma escrava moura, sua esposa, e à princesa Zoza, apaixonada por ele, uma história por dia durante cinco dias para satisfazer o desejo da escrava moura que está grávida. Alguns desses contos são universalmente conhecidos, não só por tratarem de temas populares que percorrem oralmente várias culturas, mas também porque foram elaborados, ou reelaborados por autores posteriores, muitas vezes a partir da obra de Basile. Só para dar alguns exemplos, podemos citar os contos “A gata borralheira”, reelaborada por Charles Perrault com o título de “Cendrillon”; “Sol, Lua e Talia”, uma abordagem popular da “bela adormecida no bosque; “As três cidras”, que é a base para a peça teatral obra de Carlo Gozzi, L'amore delle tre melarance, mais tarde ópera de Prokofiev; “Cagliuso”, a história de um gato esperto, depois reelaborada tanto por Perrault quanto por Ludwig Tieck no “Le chat botté” [O gato de botas].
⠀⠀⠀Basile, na organização do livro, opta por uma estrutura fixa facilmente identificável: todas as jornadas se abrem com uma introdução, sendo que a introdução à Primeira Jornada juntamente com a Conclusão da Quinta Jornada formam o conto que emoldura os quarenta e nove contos que são narrados a cada jornada por dez velhas com epítetos grotescos (Zeza aleijada, Cecca torta, Meneca papuda, Tolla nariguda, Popa corcunda, Antonella babenta, Ciulla caruda, Paola vesga, Ciommetella tinhosa e Iacova decrépita) que se revezam sempre na mesma ordem; na introdução das demais jornadas descreve os jogos, as danças e os divertimentos com que se entretêm os convivas antes do início da contação; todas as jornadas, exceto a quinta, encerram-se com uma écloga, um diálogo de cunho realista e moral. Esta estrutura, indubitavelmente inspirada no Decameron, também é o avesso da obra de Boccaccio: a “alegre brigada” de jovens é substituída pelas velhas contadoras deformadas; o locus amoenus é a corte do príncipe Taddeo, sujeita a adulações, traições e intrigas (como a corte de Nápoles?); as narrativas elegantes e diretas são substituídas por inesgotáveis metáforas beirando, divertidamente, o escatológico, o erótico e o chulo. Além disso, para contextualizar sua obra, Boccaccio se vale de um texto não narrativo para emoldurar suas novelas em relação à realidade histórica (a peste em Florença), enquanto Basile enquadra seus contos dentro de um “conto-mãe”, em que o conteúdo e o recipiente se confundem e se unem, levando o conjunto ao plano do maravilhoso e do atemporal.
⠀⠀⠀Da mesma forma, cada um dos contos têm uma estrutura fixa: abrem-se com um sumário do conto com as principais informações de seu desenvolvimento e desfecho; o primeiro parágrafo descreve a repercussão do conto anterior junto à audiência e a preparação da nova contadora; o segundo parágrafo é destinado à introdução moral do conto a ser narrado, em geral recheada de provérbios e citações; segue-se o conto propriamente dito, que na grande maioria das vezes se abre com a expressão “Era uma vez” ou suas variantes, o que lhe confere atemporalidade e é a marca de um mundo imaginário; a maioria dos contos se passa em reinos fictícios com nomes formados por um substantivo acoplado a um adjetivo, que indicam o caráter do rei ou do protagonista; o passar do tempo é marcado pelo alternar dos dias e noites, sempre representados por uma metáfora (p.e., antes que o sol, como médico-chefe, saísse para visitar as flores doentes e debilitadas; quando do moinho do céu saem os cavalos vermelhos e entram os bois brancos; quando sai a aurora para despejar o urinol de seu marido, cheio de areia fina vermelha da janela do Oriente); todos os contos terminam com um provérbio (p.e., para os prazeres do amor, sempre foi condimento a dor; filha da soberba, é a ruína; cachorro escaldado com água quente tem medo até de água fria), que comenta a ação e lhes dá um tom de fábula.
⠀⠀⠀Repleto de ogros horrendos de bom coração, donzelas não muito castas, príncipes e princesas, animais falantes, reis e rainhas, encantamentos e magias, o Conto percorre o imaginário popular, sobretudo napolitano, mas também vai buscar na mitologia e na tradição de outros povos seus argumentos. Histórias que circulavam entre o povo miúdo e no mais das vezes eram contadas às crianças, são reelaboradas em chave irônica, quase iconoclasta, o que vale ao livro o subtítulo de o entretenimento dos pequeninos, o que, segundo Benedetto Croce “não queira dizer (como alguns, e entre estes Grimm, acreditaram, tomando ao pé da letra o título jocoso) que fosse composto para crianças. Era, ao contrário, composto para homens, para homens literatos, experientes e vividos, que sabiam entender e saborear coisas complicadas e engenhosas”.
⠀⠀⠀O Conto dos contos é muito mais um retrato de seu tempo do que um belo livro representativo do barroco italiano, justamente por causa das particulares condições de gosto e de cultura que o século e mais precisamente a corte espanhola em Nápoles, como microcosmo, representava.
Nesse sentido, pode-se dizer que O Conto representa um dos livros mais significativos da literatura italiana, por sua inventividade, por seu trabalho de pesquisa de fontes populares e por sua representação de um mundo em transformação. Basile, ao recolher em livro as fábulas populares da região da Campânia, sistematiza o imaginário popular e lhe dá um status aristocrático e refinado despertando o interesse de outras culturas, elevando a narrativa popular a objeto literário a ser imitado.
⠀⠀⠀A primeira dificuldade ao se traduzir uma obra como esta é determinar o ponto de partida, ou seja, a partir de qual das edições existentes será feita a tradução. Do Cunto, existem três exemplares completos da primeira edição, considerada princeps, publicados postumamente em Nápoles entre 1634 e 1636, conservados nas Bibliotecas Nacionais de Milão (Braidense), Palermo e Turim, facilmente localizáveis na Internet. A esta edição seguem-se as edições de 1645, 1654, 1674, cada uma delas baseada na princeps, emendando-a ou corrigindo-a, sobretudo nos erros de impressão, conforme a intervenção dos curadores. A edição de 1674, publicada por Antonio Bulifon, é a primeira em que aparece na página de rosto o título “Pentamerone” e foi a base para as seis edições completas publicadas em Roma e em Nápoles entre 1679 e 1788. Na Itália, depois de mais de dois séculos de um quase esquecimento, o Conto foi resgatado por Benedetto Croce com uma edição curada por ele das duas primeiras jornadas em napolitano, em 1891, parte do então recente interesse pela língua e pela história napolitanas. Mais tarde, em 1925, surge a primeira tradução em língua italiana pelo mesmo Benedetto Croce. Em 1976, surge uma edição crítica completa a cargo de Mario Petrini, que reuniu no mesmo volume as Muse napoletane e as Lettere, ou seja, toda a obra em língua napolitana de Basile. Uma nova tradução para o italiano irá surgir somente em 1986, por Michele Rak (com o texto em napolitano ao lado), seguida pela tradução de Ruggero Guarini, de 1994, pela reescrita em dialeto napolitano moderno e em italiano, em 2002, de Roberto De Simone. A mais recente tradução para o italiano é de Carolina Stromboli (2013), acompanhada pelo texto em napolitano consolidado por ela, depois de um longo estudo filológico, de modo que a escolha para texto de partida recaiu sobre a edição de Stromboli.
⠀⠀⠀Por outro lado, foi de grande contribuição o livro de Angela Albanese, Metamorfosi del Cunto di Basile. Traduzioni, riscritture, adattamenti (Ravenna: Longo, 2012), que analisa, em seu capítulo 5, as traduções para o italiano, desde Croce até Rak, Guarini e De Simone, e também a tradução para o inglês, de Nancy Canepa. Essas traduções, principalmente as de Croce, Guarini e Canepa, juntamente com a de Stromboli, foram fundamentais para o cotejamento do trabalho em andamento e um auxílio nas passagens mais difíceis ou obscuras do texto em napolitano. Pode-se dizer que Croce trouxe a visão do napolitano, Guarini do italiano e Canepa do estrangeiro, já Stromboli faz uma operação conjugada traduzindo a partir do texto corrigido e estabelecido por ela.
⠀⠀⠀Quanto ao léxico, foi importante o “Glossário” reunido por Franco Graziosi composto com base no Vocabolario delle tre Calabri e La grammatica storica della língua italiana e dei suoi dialetti, de Gerard Rohlfs (Shiena Editore, 1990), e principalmente as notas de Mario Petrini, em sua edição crítica do Cunto, em napolitano (Bari: Laterza, 1976).
⠀⠀⠀Para os provérbios, foi importante a consulta a Proverbs and proverbial phrases in Basile’s “Pentameron” (University of California Press, 1941), em que Charles Speroni relacionou, com base na tradução de Croce, 290 provérbios, 222 locuções e comparações proverbiais e 45 locuções que pareceram proverbiais ao autor, comparando-os com citações semelhantes em outros textos italianos ou napolitanos, o que foi muito útil para o entendimento do texto.
⠀⠀⠀As notas para os jogos, as canções, as danças e divertimentos citados nas introduções das jornadas e em alguns contos, apoiaram-se em documentos de época encontrados na Internet como Il ballerino, de Fabrizio Caroso, Danze e buone maniere nella società dell’antico regime, de Carmela Lombardi, e outros, assim como as copiosas referências a plantas, pássaros e animais.
⠀⠀⠀Por fim, resta talvez a maior dificuldade inerente a uma obra como esta, transportar a outra língua o estilo plenamente barroco do autor, com toques de ironia, e manter todo o colorido de sua prosa repleta de acúmulos lexicais, jogos de palavras, paralelismos, expressões estranhas e bizarras usadas pelo povo, mas às quais Basile deu um tom quase áulico sem, no entanto, perder a elegância do período. Um difícil balanço do popular a ser transmitido na corte.
BASILE, Giambattista. O conto dos contos - O entretenimento dos pequeninos. Translation from Francisco Degani. São Paulo, SP: Nova Alexandria, 2018.