Por Cláudia Tavares Alves
Julho/2025
⠀⠀⠀Meus poemas não mudarão o mundo é a tradução brasileira da coletânea italiana Le mie poesie non cambieranno il mondo, da poeta Patrizia Cavalli. Esta é a primeira publicação no Brasil de um livro de Cavalli e é, não por acaso, a tradução de seu primeiro livro publicado na Itália, em 1974, pela editora Einaudi. Posteriormente, esse primeiro livro foi incluído também no volume Poesie (1974-1992), que reúne ainda Il cielo, de 1981, e L’io singolare proprio mio, de 1992. Já a edição brasileira chega ao país em 2021, pelas Edições Jabuticaba: uma aposta da editora em publicar uma poeta que, apesar de bastante reconhecida e premiada na Itália, era, até então, quase inédita por aqui.
⠀⠀⠀Valem, contudo, dois acenos importantes que antecedem a publicação de sua primeira tradução brasileira. Em fevereiro de 2014, o poeta e crítico literário brasileiro Ricardo Domeneck, então um dos editores da revista brasileira Modo de usar & co.: revista de poesia e outras textualidades conscientes, publicou no blog da revista traduções de quatro poemas de Cavalli, introduzindo em alguma medida a poeta na cena literária brasileira. Igualmente significativa para a circulação de Cavalli no Brasil é a publicação, em 2015, do ensaio "Na trama da urdidura poética de Patrizia Cavalli", da professora, poeta e crítica literária brasileira Patricia Peterle, que dedica sua análise especialmente aos poemas "Aria pubblica" e "La patria". São dois gestos iniciais que chamam a atenção, em contexto brasileiro, para a escrita da poeta italiana.
⠀⠀⠀Em 2021, é finalmente publicada a primeira tradução de um dos livros de Cavalli no Brasil. De início, vale notar que sua obra não é extensa: entre 1974, quando estreia na poesia, e 2022, ano de seu falecimento, publicou 11 livros de poemas. Além dos já mencionados Le mie poesie non cambieranno il mondo, Il cielo, L'io singolare proprio mio e o volume Poesie (1974-1992), foram lançados Sempre aperto teatro (1999), La guardiana (2005), Pigre divinità e pigra sorte (2006), La patria (2011), Datura (2013), Flighty matters (2017) e Vita meravigliosa (2020). Somando-os aos livros de poesia, Cavalli publicou ainda o livro de prosa Con passi giapponesi (2019), o álbum-poesia Al cuore fa bene far le scale (2012), em parceria com Diana Tejera, além de traduções de peças de Shakespeare e Molière.
⠀⠀⠀Nascida em Lodi, na Lombardia, em 1947, Cavalli faleceu em Roma, em 2022, cidade que a acolheu durante a maior parte de sua vida. Chegou ali para estudar Filosofia na universidade e acabou se estabelecendo, criando laços de amizade com grandes nomes da cultura e da literatura italiana, entre eles, a escritora Elsa Morante, a quem Meus poemas não mudarão o mundo é dedicado. Acerca dessa amizade, é conhecida a anedota, contada várias vezes por Cavalli em entrevistas, de que, em determinada ocasião, ainda muito jovem, fora confrontada por Morante acerca do que fazia da vida. Diante da pergunta incontornável, Cavalli responde que escrevia poemas, os quais eventualmente teriam de ser lidos e avaliados pela amiga escritora, conhecida por suas críticas rigorosas. Morante, após a leitura, emite, enfim, o seu parecer: sono felice, Patrizia, sei una poeta.
⠀⠀⠀Porém, apesar de tal reconhecimento de renome, e como o próprio nome de seu livro de estreia já antecipa, Cavalli seria uma poeta que não teria pretensões de mudar o mundo com a sua escrita. E se os poemas reunidos nesta coletânea não mudariam o mundo, por que, então, escrevê-los? A pergunta circular, que se responde pelo próprio ímpeto de publicar um livro que prescinda de qualquer pretensão do gênero, é enunciativa de uma tensão histórica, que diz respeito sobretudo ao contexto italiano e à crise das potencialidades da literatura diante das catástrofes eminentes do mundo naquele período. Mas, para a geração de Cavalli, nascida já no pós-guerra, o engajamento via literatura e, em específico, via poesia, deflagrava suas limitações: ao horror e à violência das guerras mundiais, dos regimes totalitários, especialmente do fascismo, e dos anos de chumbo, a literatura poderia oferecer apenas a possibilidade de registrar em palavras o que havia acontecido, sem nenhuma garantia de que o efeito no público leitor pudesse ser o de uma tomada de consciência redentora. Afinal, poesia enquanto práxis política não seria suficiente para mudar o mundo ao seu redor.
⠀⠀⠀Podendo, portanto, prescindir desse dever cívico, Cavalli estreia como poeta e, no texto que abre sua primeira coletânea, se define de forma bastante esclarecedora: "alguém me disse / é claro que meus poemas / não mudarão o mundo. // Eu respondo claro que sim / meus poemas / não mudarão o mundo" (2021, p. 8). Por meio de uma inversão irônica, elaborando metalinguisticamente o que se ouve dizer sobre a relação entre poesia e mundo, o poema de Cavalli expõe a autoconsciência sobre as limitações de sua própria poesia. Por isso, ao longo dos poemas que se seguem, a tensão principal se desloca e parece se dar entre o dentro e o fora, entre a casa e o mundo, entre o eu e o outro ou os outros que perpassam os textos desta coletânea, nos quais as grandes questões históricas italianas dos anos de 1970, isto é, daquela História com H maiúsculo, acabam surgindo apenas como um pano de fundo para as encenações cotidianas dirigidas por Cavalli.
⠀⠀⠀Na edição brasileira, as traduções dos 54 poemas curtos estão acompanhadas pelas respectivas versões em italiano, além de uma orelha, assinada por Maria Betânia Amoroso, e do posfácio "'Se de mim não falo: a voz de Patrizia Cavalli", de Patricia Peterle. Na capa, destaca-se uma gravura da artista plástica Helena Freddi, inspirada livremente em uma das icônicas fotografias de Cavalli feitas por Dino Ignani. Meus poemas não mudarão o mundo é, assim, um livro feito a muitas mãos.
⠀⠀⠀Para a tradução dos poemas, mesmo que breves, foram necessários quase dois anos de trabalho. O grande desafio posto desde o início era o de escutar os versos de Cavalli com a intenção de imaginar uma existência sonora e performática para eles em português. Ou seja, não se tratava de traduzir palavras da língua italiana para a língua portuguesa, mas sim de recriar poemas em uma nova língua e em um novo contexto de circulação. Isso explica algumas soluções mais livres e criativas presentes em alguns poemas, como a tradução de supplì por croquete, em uma espécie de ousadia que pretendia afastar a tradução do contexto culinário típico romano, tão caro à poeta, em busca de um efeito mais imediato em relação à gordura que lambuzava a cena descrita no poema. Em outros casos, as soluções dizem mais respeito à existência sonora dos poemas, bastante marcados na produção de Cavalli pelo ritmo e pela cadência, fazendo uso em vários momentos inclusive do decassílabo, o mais clássico dos versos da tradição poética italiana.
⠀⠀⠀Como sinaliza Cavalli, em entrevista a Annalena Benini, em 2017, "a língua é uma coisa maravilhosa, um milagre humano, é tudo muito bonito, se for possível chegar ao ponto em que a palavra se disponha em um corpo evidente, necessário e surpreendente. Não existem palavras feias e não existem sinônimos. A palavra é essa" (s/p, tradução minha). Uma tradução que se propusesse a chegar a este nível de intimidade com a palavra poética precisaria, naturalmente, se dedicar a se aproximar de cada uma das escolhas da poeta, escutando-as atentamente, refletindo sobre elas, colocando-as em perspectiva, deixando-as decantar. Este, a meu ver, é o grande deleite da tradução de poesia: não há soluções fáceis para problemas difíceis, mesmo quando eles aparentam ser simples. Traduzir os poemas de Patrizia Cavalli foi, nesse sentido, um grande estímulo.
ALVES, Cláudia Tavares. A poesia de Patrizia Cavalli em tradução. Literatura Italiana Traduzida, v. 1, n. 9, set. 2020. Disponível em: https://literatura-italiana.blogspot.com/2020/09/a-poesia-de-patrizia-cavalli-em.html. Acesso em: 4 jul. 2025.
ALVES, Cláudia Tavares. Entre poemas e poesias: reflexões sobre a tradução de Meus poemas não mudarão o mundo. Revista de Italianística (USP), n. 45, 2022. Disponível em: https://revistas.usp.br/italianistica/article/view/196233/198105. Acesso em: 4 jul. 2025.
BENINI, Annalena. Le mie poesie sono respiri e io respiro per trovare le parole. Entrevista a Patrizia Cavalli. Il Foglio, 21 ago. 2017, s/p. Disponível em: https://www.ilfoglio.it/magazine/2017/08/21/news/le-mie-poesie-sono-respiri-e-io-respiro-per-trovare-le-parole-149129/. Acesso em: 4 jul. 2025.
CAVALLI, Patrizia. Meus poemas não mudarão o mundo. Translation from Cláudia Tavares Alves. 1. ed. São Paulo, SP: Jabuticaba, 2021.