https://dblit.ufsc.br/_images/obras/664905fbc0e6d.jpg

Title: A cidade e a casa

Writer: Natalia Ginzburg

Translator: Iara Machado Pinheiro

Paratext(s) of the work

Information about the work

  • Classification: Romance ou novela; Tradução
  • Publisher: Companhia das Letras, São Paulo, SP
  • Publication year: 2022
  • Languages: Português
  • Original title: La città e la casa
  • Complete translation of the work(s)
  • Language(s) of the translated work: Italiano
  • Medium: Impresso
  • Edition: 1
  • ISBN: 9786559211692
  • Number of pages: 304
  • Dimension: 14x21 cm

Source(s)

  • Projeto Dicionário Bibliográfico da Literatura Italiana Traduzida

Fierce

A cidade e a casa - de Natalia Ginzburg


Por Iara Machado Pinheiro

Novembro/2024

⠀⠀⠀


⠀⠀⠀Natalia Ginzburg (1916-1991) escreveu romances, contos, ensaios e peças de teatro, além de ter uma ampla produção como articulista de jornal. A autora também teve uma relevante atuação como editora e tradutora literária do francês.


⠀⠀⠀Os primeiros contos de Ginzburg foram publicados em jornais e revistas italianos a partir de 1934, momento em que ela assinava como Natalia Levi, seu nome de nascença. Entre 1941 e 1942, ela assinou alguns contos e o seu primeiro romance, La strada che va in città, com o pseudônimo Alessandra Tornimparte, devido às leis raciais vigentes na Itália fascista, que proibia os judeus de publicarem livros e artigos, entre outras restrições de direitos civis. Natalia Ginzburg passa a assinar com o nome que entraria para história da literatura italiana em novembro de 1944.


⠀⠀⠀Entre os anos 1940 e o começo da década de 1960, os enredos de Ginzburg tematizam, como sugeriu o crítico literário Cesare Garboli, no prefácio às obras selecionadas da autora, o encontro de jovens mulheres com o mundo, isto é, histórias de meninas que fantasiavam com a vida que existia fora das paredes de suas casas e que, quando efetivamente saíam, conheciam um aspecto da realidade, frequentemente áspero, que não fazia parte de suas fabulações interiores. Grosso modo, são histórias sobre o processo solitário e sofrido, embora com relances eventuais de alegria, de conhecer a realidade.


⠀⠀⠀Embora tenha usado a terceira pessoa em La madre (1948) e em Tutti i nostri ieri (1952), a perspectiva narrativa mais comum na obra da escritora nesse momento é a primeira pessoa, cuja escolha, na nota introdutória à coletânea Cinque romanzi brevi e altri racconti (1965), é justificada pela ideia de que, para escrever, é necessário contar aquilo que se conhece a fundo: é o único modo, segundo Ginzburg, de não escrever “por acaso”.


⠀⠀⠀No final de 1962, Ginzburg se propõe a escrever um breve ensaio sobre as palavras que circulavam na sua casa quando era criança: no entanto, o projeto inicial se transforma no romance que seria considerado a sua obra prima, Lessico famigliare, publicado em 1963. Após a redação desse romance, porém, alguma coisa acontece: Ginzburg sente que a escrita da história da sua família inviabiliza o uso da primeira pessoa, e então passa a buscar novos recursos para narrar. O primeiro deles é a linguagem teatral: entre 1965 e 1971 a autora escreve oito comédias.


⠀⠀⠀As comédias, para Ginzburg, eram uma resposta à inviabilidade pessoal de usar a primeira pessoa, ao passo que a terceira pessoa lhe parecia inacessível, porque, naquele tempo, ela julgava que um escritor só podia acessar um pedaço muito restrito da realidade, intricada, complexa e desordenada; e, portanto, olhar o mundo com a perspectiva ampla da terceira pessoa parecia impossível. Em suma, as comédias permitiam dissolver a perspectiva narrativa em diferentes personagens, e assim “assistir a vida de pessoas diferentes”, como declara em um texto de 1967 publicado no jornal “Corriere della Sera”.


⠀⠀⠀A partir de dezembro de 1968, Ginzburg começa a escrever assiduamente para o jornal “La Stampa” textos que passavam pelos comentários de livros ou filmes, ou pensamentos sobre o cotidiano e registros de memória. Em um desses textos, de julho de 1971, sobre o romance Boquitas pintadas do escritor argentino Manuel Puig, há uma primeira menção da autora ao seu interesse pela forma epistolar: ela afirma que sempre desejou escrever um romance em cartas, mas àquela altura pensava que talvez jamais conseguiria fazê-lo. No entanto, pouco mais de um ano depois, começa a redigir o seu primeiro romance epistolar, Caro Michele, publicado em 1973. Nessa narrativa, as missivas se misturam a capítulos escritos com uma terceira pessoa que aparece pontualmente em cena.


⠀⠀⠀A escolha pela forma epistolar, como declarado em algumas entrevistas, aproximava-se da ideia que levou a autora inicialmente às comédias teatrais: uma história feita de cartas implica a fragmentação da perspectiva narrativa, e assim também é uma resposta à impossibilidade que a escritora encontrava de usar a primeira e a terceira pessoas. Outro aspecto que aproxima as narrativas em cartas e as comédias teatrais é a caracterização dos agrupamentos humanos e a ambientação das histórias: se numa primeira parte da narrativa de Ginzburg o convívio familiar desempenhava um papel relevante nos enredos, agora, ambientados em Roma, os romances e as comédias contam as histórias de famílias que se dissolvem.


⠀⠀⠀Este é o contexto geral de La città e la casa, romance que foi redigido entre maio e setembro de 1984, e publicado em dezembro do mesmo ano, momento em que Natalia Ginzburg tinha uma cadeira de deputada no parlamento italiano e atuava como consultora da editora Einaudi. Na Itália, o romance teve quatro edições: a primeira, de dezembro de 1984, a segunda, de 1997, a terceira, de 2019, organizada por Domenico Scarpa, principal referência dos estudos ginzburghianos, e a quarta na coleção, também organizada por Scarpa, com tiragem limitada “Natalia Ginzburg. una voce per la nostra storia”, lançada em 2021 em homenagem aos 30 anos da morte da autora. O romance foi ainda incluído no segundo volume das obras selecionadas de Ginzburg, publicado em 1987. Um manuscrito desse romance está conservado na Biblioteca Nazionale Centrale di Roma e indica o cuidado da autora na composição dos personagens, já que parte considerável das correções tem relação com os traços físicos, nomes, locais de proveniência e referenciais espaciais, bem como com os adjetivos que os remetentes usam para descrever uns aos outros.


⠀⠀⠀A primeira tradução brasileira do romance foi publicada em outubro de 2022, pela editora Companhia das Letras. A tradução foi realizada por Iara Machado Pinheiro no âmbito da pesquisa Così ti ricordo: casas, partidas e retornos impraticáveis (FAPESP - 2019/18037-5). A edição está inserida em um novo momento de difusão da obra de Ginzburg no Brasil, com o relançamento, por parte da Companhia das Letras, de traduções realizadas por Homero Freitas de Andrade e Mauricio Santana Dias e publicadas incialmente entre 2009 e 2015 pela editora Cosac Naify; e com publicações de novas traduções, como a de Maria Betânia Amoroso do romance Todos os nossos ontens, que já tinha tido uma edição anterior, também de Amoroso, em 1986, com o título Todas as nossas memórias. Nesse mesmo contexto, o volume de ensaios Não me pergunte jamais foi publicado, com tradução de Julia Scamparini, pela editora Ayiné, também em 2022.


⠀⠀⠀A tradução de A cidade e a casa envolveu o esforço de aproximação do inigualável estilo de Natalia Ginzburg, caracterizado, sobretudo, pela simplicidade lexical e sintática, pelo ritmo compassado e pela ambientação cotidiana. A simplicidade, no entanto, é um atributo que não deve ser confundido com a noção de facilidade, porque a fluência do texto tem relação com a curiosidade da autora pelas relações humanas, isto é, a simplicidade comporta em si o desejo de Ginzburg de representar os laços familiares e de amizade em suas manifestações visíveis na rotina. O risco mais iminente, na tradução, é inadvertidamente formalizar e complicar as escolhas lexicais e a composição sintática, de modo que o registro se distancie desse ritmo cotidiano. Complicar não é o caminho, mas também é preciso ter cuidado com uma descomplicação excessiva. Não se trata propriamente, em Ginzburg, de um registro coloquial, mas sim de uma língua compartilhada por amigos e membros de uma família que, ao longo do romance, em alguns casos se aproximam, o que permite que a linguagem fique mais fluente e as frases mais longas; em outros casos se afastam, e então a cadência é mais truncada e o tom fica mais frio.


⠀⠀⠀Para o crítico Enrico Testa, Ginzburg, em Lessico famigliare, escreve de um jeito simples que reproduz um italiano oralizado, mas que, ao mesmo tempo, não é exatamente a língua que as pessoas habitualmente falam. Trata-se, no romance memorialista, de narrar com a língua particular de uma tribo aquele material que as famílias em geral conservam: as palavras cheias de lembranças que, quando pronunciadas, transportam os seus membros a um tempo específico.   


⠀⠀⠀A cidade e a casa, por ser, diferentemente de Caro Michele, um romance puramente epistolar, pode ser aproximado e distanciado da definição do uso da linguagem proposto por Testa. Por um lado, diversamente de Lessico ou da linguagem das comédias, o romance recria um italiano escrito, simples e usado entre amigos e familiares, o que pode ser notado pela redução, por exemplo, dos anacolutos, um traço muito forte de Lessico famigliare. Por outro, o princípio de composição é semelhante: Ginzburg narra o geral – no caso de A cidade e a casa, a dinâmica das relações humanas em um tempo em que a família deixa de ser um centro regulador dos afetos e do convívio – mas com um vocabulário que carrega a marca de enunciação daquele agrupamento específico de pessoas.


⠀⠀⠀Não há procedimentos de modulação vocal, porque Ginzburg entendia que este seria um “jogo narrativo”, e os “jogos” eram “estranhos” à sua natureza, como afirmará a própria autora em declaração concedida a Antonella Amendola, em entrevista publicada em “Domenica del Corriere” em 16 de fevereiro de 1985, incluída por Domenico Scarpa em seu posfácio à edição de 2019 de La città e la casa. No entanto, cada voz se distingue pelo modo como cada remetente se posiciona diante da vida. Ao mesmo tempo, circulam nas cartas de diferentes remetentes alguns apelidos ou termos estritamente vinculados a pessoas ou espaços – como, por exemplo, O Gato e a Raposa; o quarto dos ursinhos; a colcha dos dragões; a cômoda com as tartarugas; ou uma personagem que é sempre referida por ser “nariguda”, muito magra e ter belos “cabelos loiros dourados”. Essa circulação tanto indica que as relações entre amigos e familiares passaram por cisões e distanciamentos que justificam o formato epistolar quanto aponta para as maneiras como os vínculos de amor e amizade subsistem diante dessas fragmentações, porque a repetição das descrições e dos apelidos mostra que há um resto de intimidade e cumplicidade, de modo que um remetente pode até mesmo incorporar em seu próprio vocabulário palavras usadas pelas pessoas que vivem ou viveram ao seu redor.


⠀⠀⠀Este, portanto, é um dos desafios intrigantes e tão interessantes do ofício de traduzir Ginzburg: escolher termos que passem pela particularidade de enunciação de um grupo específico e que possam carregar memórias e resíduos de configurações de relações humanas. O romance é como um sistema fechado, em que as repetições precisam ser preservadas, porque, diante da introspecção muito econômica, são elas que representam a dinâmica dos vínculos entre os personagens. Essa característica requer cuidado do tradutor, que deve estar atento para identificar as repetições e encontrar correspondentes que possam se adequar aos diferentes contextos de suas reaparições e transmitir os movimentos de aproximações e distanciamentos entre os personagens.



Referências


GARBOLI, C. Prefazione. In: GINZBURG, N. Opere: Natalia Ginzburg, volume primo. 6 ed. Milano: Mondadori Editore, 2013.

GINZBURG, N. Opere: Natala Ginzburg, volume primo. 6ed. Milano: Mondadori Editore, 2013.

GINZBURG, N. Cinque romanzi brevi e altri racconti. 3ed. Torino: Einaudi, 2005a.

GINZBURG, N. La città e la casa. 1ed. Torino: Einaudi, 1984.

GINZBURG, N. La città e la casa. 2ed. Torino: Casa Editrice Einaudi, 1997.

GINZBURG, N. La città e la casa. 3ed. Torino: Casa Editrice Einaudi, 2019.

GINZBURG, N. Lessico famigliare. 5ed. Torino: Einaudi, 2010.

GINZBURG, N. Filo diretto Dessì – Ginzburg, Corriere della Sera, 10 dicembre 1967, p.11.

GINZBURG, N. Boccucce dipinte, La Stampa, 06 luglio 1971, p.3.

GINZBURG, N. Todos os nossos ontens. Tradução de Maria Bethânia Amoroso. São Paulo: Tag/Companhia das letras, 2020.

GINZBURG, N. Todas as nossas lembraças, tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Art Editora, 1986.

GINZBURG, N. As pequenas virtudes, tradução de Maurício Santana Dias, posfácio de Cesare Garboli. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

GINZBURG, N. As pequenas virtudes, tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das letras, 2020.

GINZBURG, N. Caro Michele. Tradução de Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

GINZBURG, N. A cidade e a casa, tradução e posfácio de Iara Machado Pinheiro. São Paulo: Companhia das letras, 2022.

GINZBURG, N. Não me pergunte jamais, tradução de Júlia Scamparini. Belo Horizonte: Ayinè, 2022.

GRIGNANI, M.A et. all. Natalia Ginzburg. La scrittrice e i suoi testi. Roma: La Nuova Italia Scientifica, 1986. 

SCARPA, D. Per un ritratto di Natalia Ginzburg. Griseldaonline 16 (2016-2017)www.griseldaonline.it/speciale-ginzburg/per-un-ritratto-di-natalia-ginzburg-scarpa.htm

SCARPA, D. La casa, la città, la storia. In: GINZBURG, N. La città e la casa. Torino: Einaudi, 2019.

TESTA, E. Lo stile semplice: discorso e romanzo. Torino: Einaudi, 1997. 

Reference

GINZBURG, Natalia. A cidade e a casa. Translation from Iara Machado Pinheiro. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2022. ISBN: 9786559211692.


Comments